O REALISMO JURÍDICO E A SUA REPERCUSSÃO NO DIREITO BRASILEIRO

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10997915


Andressa Maria Ramos Ramundo;
Marina Lima Riedlinger Teixeira;
Raphaela Sophia Santos Almeida


Resumo:

O artigo explora o realismo jurídico, destacando suas vertentes norte-americana e escandinava e sua influência no direito brasileiro. Surgido no início do século XX, o realismo jurídico enfatiza a importância dos fatos sobre as normas abstratas, questionando o formalismo jurídico. As correntes norte-americana, liderada por Oliver Wendel Holmes Jr., e escandinava, liderada por Alf Ross, convergem na preferência pelo método empírico e na crítica ao normativismo excessivo. No Brasil, o fortalecimento do papel dos tribunais, especialmente do Supremo Tribunal Federal, reflete uma abordagem mais contextualizada do direito, distanciando-se da leitura estrita da lei. Exemplos como as decisões sobre aborto e união homoafetiva demonstram a produção heterônoma de normas pelo judiciário brasileiro. O realismo escandinavo destaca a importância da efetividade social das normas e influencia a interpretação judicial, promovendo uma postura mais comprometida com a realidade social e a proteção dos direitos fundamentais das minorias. Vê-se, assim, que o artigo ressalta a relevância do realismo jurídico na crítica ao formalismo e na busca por uma maior adequação do direito à realidade social, evidenciada nas decisões judiciais brasileiras.

Palavras-chave: Realismo jurídico, correntes norte-americana e escandinava, influência no direito brasileiro, neoconstitucionalismo, papel dos tribunais, efetividade social das normas, proteção dos direitos fundamentais.

1. Realismo jurídico: aspectos introdutórios

Em um contexto de polarização acentuada entre as correntes filosóficas juspositivistas e jusnaturalistas, surge, no início do século XX, o realismo jurídico. Ascende, principalmente, no direito norte-americano, inspirado pelas práticas do common law e preceitua, de forma geral, a valorização do ordenamento jurídico sob uma perspectiva fática. Distancia-se, assim, de todas as perspectivas formalistas e conceitualistas até então adotadas de forma preponderante nos Estados Unidos1

Em razão da grande abrangência do movimento, não havia concordância plena entre os seus participantes, o que impediu designá-lo como “escola”. Contudo, é possível destacar duas correntes principais, as quais abrangem os principais aspectos axiológicos e ontológicos, intactos nas variadas concepções realistas: o realismo norte-americano pregado por Oliver Wendel Holmes Jr. e o realismo escandinavo de Alf Ross. 

A primeira corrente preconiza que as decisões judiciais dependem muito mais dos fatos do que da norma jurídica abstrata posta. A atividade decisória é condicionada à reação do magistrado diante do caso concreto, permitindo-se a conclusão de que o Direito é aquilo que o juiz diz2. Trata-se de ciência empírica, e se manifestará, essencialmente, por meio das decisões judiciais. Assim, os julgados de um determinado período representam o conjunto do direito disponível, o que não significa que continuem válidos para outro momento3.

Por sua vez, na doutrina do realismo jurídico escandinavo, liderada por Alf Ross, as normas são consideradas Direito não quando de sua mera previsão legal, mas tão somente quando aplicadas pelos juízes e particulares. Concentra sua reflexão no papel dos tribunais em face do ordenamento jurídico, de maneira que as regras são apreciadas da forma como aplicadas, e não como constantes do dispositivo escrito. Volta-se a analisar o Direito com base na realidade social e na aceitação psicológica, pela comunidade, da norma, concluindo-se que esta só é vigente quando possui efetividade social4

Nota-se que as duas doutrinas convergem diante da preferência pelo método empírico em suas investigações e da crítica ao normativismo exacerbado dos movimentos até então vigentes. Diferenciam-se, contudo, no foco de suas preposições: para o realismo norte-americano, o Direito é fruto das decisões judiciais; já o escandinavo preconiza essencialmente a conformidade do ordenamento jurídico com a realidade em que é inserido. De todo modo, ambas as correntes foram profundamente marcadas pelo pragmatismo e inseridas sob o contexto sistemático do common law, aspecto que ainda exerce influência nos demais ordenamentos jurídicos, como é o caso do direito brasileiro, da forma que será exposta a seguir. 

2. Realismo jurídico norte-americano e fortalecimento do papel dos tribunais no direito brasileiro

O ordenamento jurídico brasileiro é tradicionalmente concebido como integrante do sistema civil law, em razão da valorização excessiva à codificação do direito e produção de leis. Contudo, ascende na contemporaneidade a visão neoconstitucionalista do sistema jurídico, por meio da leitura de todas as suas normas sob o enfoque axiológico extraído do texto constitucional. Assim, a atuação proativa dos tribunais ganha relevância a partir do momento no qual a realidade jurídica brasileira se afasta, gradativamente, da leitura fria da lei e lhe atribui caráter valorativo.  Esse é um dos motivos para que setores da doutrina defendam, atualmente, a adesão do Brasil a um sistema judicial híbrido, ora com elementos característicos do civil law, ora do common law.5

De certo, não é possível visualizar uma plena concordância com os ditames realistas, pois impossível em um sistema no qual há ainda intensa valorização à codificação. No entanto, a prática judicial denota que, em muitos momentos, o judiciário brasileiro se afastou do texto da lei, realizando verdadeira produção heterônoma de normas jurídicas. 

Exemplifica-se, primeiramente, com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, relatada pelo Ministro Marco Aurélio. Nesse caso, a Corte Suprema, em que pese a lei penal ser taxativa com relação às hipóteses de exclusão de ilicitude incidentes no crime de aborto, afastou a tipicidade material da interrupção da gravidez nos casos de fetos anencefálicos6. Da mesma forma, o STF, contrariando o texto constitucional que reconhecia tão somente o direito à união estável ao homem e à mulher, realizou interpretação conforme a Constituição, de modo a incluir também as relações homoafetivas7

Esses dois casos convergem pelo fato de que, as decisões judiciais, em que pesem contra legem, produziram norma jurídica. O desapego à ideia de obediência rígida às regras escritas é ainda mais contundente diante dos seguintes dizeres proferidos pelo Ministro Marco Aurélio, em entrevista: “o juiz primeiro decide no seu íntimo e só depois vai buscar os fundamentos de sua decisão”8. Assim, nota-se que a prática judicial, embora não inteiramente impregnada, inegavelmente possui influências de caráter realista, em conformidade com a ideia central da doutrina de Oliver Holmes.

3. Reflexos do realismo escandinavo no direito brasileiro 

Como visto, o realismo jurídico, na concepção teorizada por Ross, deve perceber a vigência do Direito em termos de efetividade social das normas jurídicas. Neste sentido, para melhor elucidar este ponto, podemos tomar como exemplo no cenário jurídico brasileiro a questão do adultério. Até 2005 o adultério estava previsto como crime no Código Penal, em seu art. 240, e, em que pese tal proibição, na prática, as pessoas continuavam cometendo-o sem sofrerem nenhuma sanção. Ou seja, essa norma não era seguida pelas pessoas a que se destinava e, caso fosse violada, não era feita valer com meios. 

De acordo com a concepção do realismo escandinavo, essa norma não condicionaria a conduta da sociedade, não sendo aplicada há muito tempo pelos tribunais, de modo que tal previsão penal, embora válida, não era mais vigente e, por conseguinte, já não devia mais ser considerada pelo Direito.

Observa-se, portanto, que no lugar da validade, a noção de vigência ganha muita força no pensamento realista, na medida em que as normas na realidade importam mais que os conceitos jurídicos elaborados por sua existência lógica ou formal, e que mudanças na concepção moral da sociedade possuem impactos significantes no direito.

Afinal, segundo Ross “nosso ponto de partida é que a tarefa do juiz é um problema prático.”9 Isto é, não basta a obediência rigorosa à prescrição formal da norma. É necessário que o trabalho interpretativo do juiz se conduza além, somando necessariamente a consciência jurídica material, ou seja, o conjunto de valores e ideais presentes na sociedade.

Observa-se que o realismo escandinavo possui um papel central na secularização do direito, tendo em vista que tornou possível a formulação de políticas públicas por meio de um debate democrático e dialético, abrindo espaço para libertar o direito de equipamentos ultrapassados.10

Ademais, consubstanciando-se em um dos mais relevantes autores do grupo dos “realistas escandinavos”, Ross defende que o jurista não deve se manter apático diante das posições de poder existentes na sociedade11, sendo certo que referido entendimento possui especial relevância ao vislumbrar o papel contramajoritário representado atualmente pelo Supremo Tribunal Federal – STF na realidade brasileira. 

A atuação do Judiciário, notadamente da Suprema Corte como mecanismo de proteção de direitos fundamentais das minorias contra a vontade da maioria política, denota evidente repercussão e inspiração nessa escola realista, essencialmente ao colocar em conformidade o ordenamento jurídico com a realidade em que é inserido. Ao realizar a denominada mutação constitucional, o STF ajusta a norma constitucional aos novos contornos fáticos que as relações sociais possuem, possibilitando justamente a efetividade do ordenamento jurídico. 

Ainda, interpretando a vigência do Direito em função da efetividade social das normas jurídicas, cabe mencionar a decisão paradigmática do STF no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, na qual foi exarado o entendimento de que os atos homofóbicos e transfóbicos deveriam ser enquadrados como “racismo social”, atraindo, portanto, todo o arcabouço protetivo da Lei 7.716/89. 

Em que pese existirem críticas acerca da referida decisão, por vezes aproximando-a à presença de ativismo judicial, haja vista a necessidade de se resguardar a legalidade penal, é evidente o relevante papel assumido pela Suprema Corte na garantia de direitos tão caros às minorias sociais, em especial quando verificada a mora de um Poder Legislativo conservador, que constantemente se queda inerte e se imiscui de garantir o mínimo existencial da população vulnerável.

É, portanto, em casos como o mencionado, que se vislumbra a repercussão e relevância do realismo escandinavo de Alf Ross para a realidade brasileira, inspirando o juiz a não se tornar indiferente à realidade que o cerca e adotar, na interpretação do Direito, uma postura salvaguardista em prol da efetivação de direitos fundamentais.

4. Conclusão

No presente artigo, buscou-se demonstrar a relevância do realismo jurídico, evidenciando a repercussão das correntes norte-americana e escandinava para a ordem brasileira. Nesse sentido, através da proposta metodológica que referido grupo plural representa, qual seja a tentativa de superação da metafísica através dos pressupostos empiristas, atesta-se a sua influência no Brasil, ao encontrar em determinados feitos sociais o fundamento do direito.

Assim, através de exemplos práticos evidenciados nas diversas decisões do Supremo Tribunal Federal, as duas correntes são trazidas para desvencilhar a ficção de que o juiz unicamente aplica o direito que objetivamente existe, originando uma crítica ao normativismo exacerbado, vislumbrada até hoje na necessidade de aproximar o direito da realidade social.


1MACHADO, Daniel. GUEDES, Maurício. “ DUAS CONCEPÇÕES DE REALISMO JURÍDICO: O PENSAMENTO DE OLIVER HOLMES E DE ALBERTO TORRES”. Revista de Teorias do Direito e Realismo Jurídico. Porto Alegre. v. 4. n. 2 | p. 38 – 53. Jul/Dez. 2018. P. 38 – 39.
2MAZZO, Lucas. ROSSATO, Maurício. Formação Humanística e Noções Gerais de Direito. São Paulo. Juspovim, 2021. P.  60
3CASTILHO, RICARDO. Filosofia geral e jurídica  – 5. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018. P. 188
4MAZZO, Lucas. ROSSATO, Maurício. Formação Humanística e Noções Gerais de Direito. São Paulo. Juspovim, 2021. P.  61
5“Enfim, para bem compreender o Direito processual civil brasileiro contemporâneo não se pode ignorar essa circunstância: é preciso romper com o “dogma da ascendência genética”, não comprovado empiricamente, segundo o qual o Direito brasileiro se filia a essa ou àquela tradição jurídica. Temos uma tradição jurídica própria e bem peculiar, que, como disse um aluno em sala de aula, poderia ser designada, sem ironia ou chiste, como o brazilian law”. (DIDIER JR., Fredie, Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento – 21. ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2019. P. 67-68)
6STF, ADPF 54, / DF, PLENÁRIO, Rel. Min. Marco Aurélio, DJE 31.08.2007.
7STF, ADPF 123 / RJ, PLENÁRIO, Rel. Min. Ayres Britto, DJE 12.10.2011. 
8CORREIA, Fábio Túlio; RIBEIRO, Henrique Costa Cavalcante. Revista da Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n° 07. 2004. Realismo Jurídico. P – 301 – 322. P. 305
9ROSS, Alf. Direito e justiça, 2003, p. 166.
10ANDAKU, Julia. Análise Jurídica da Teoria de Alf Ross. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.
11CARNEIRO, Marcela Dalia; FARIAS, Alexandre Ronaldo da Maia de (Orient.). Revisitando Alf Ross: uma análise sobre o ativismo judicial no âmbito do STF. 2020. 59 f. TCC(graduação em Direito) – Faculdade de Direito do Recife – CCJ – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – Recife, 2020.


BIBLIOGRAFIA:

ANDAKU, Julia. Análise Jurídica da Teoria de Alf Ross. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. 

CARNEIRO, Marcela Dalia; FARIAS, Alexandre Ronaldo da Maia de (Orient.). Revisitando Alf Ross: uma análise sobre o ativismo judicial no âmbito do STF. 2020. 59 f. TCC(graduação em Direito) – Faculdade de Direito do Recife – CCJ – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE – Recife, 2020.

CASTILHO, RICARDO. Filosofia geral e jurídica  – 5. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.

CORREIA, Fábio Túlio; RIBEIRO, Henrique Costa Cavalcante. Revista da Escola Superior da Magistratura de Sergipe, n° 07. 2004. Realismo Jurídico. P – 301 – 322

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MAZZO, Lucas. ROSSATO, Maurício. Formação Humanística e Noções Gerais de Direito. São Paulo. Juspovim, 2021.

ROSS, Alf. Direito e justiça, 2003.