O PROCESSO HISTÓRICO DAS PENAS E A INFLUÊNCIA DO CAPITAL

THE HISTORICAL PROCESS OF PUNISHMENTS AND THE INFLUENCE OF CAPITAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12093684


Vanessa Nascimento Souza Lobato1
Mílvio da Silva Ribeiro2


Resumo

A evolução do sistema de penas ao longo da história passou por várias transformações, desde tradições familiares e grupais até a tirania dos reis, imposições clericais e, finalmente, ao serviço do capital. A análise inclui a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Inicialmente, as prisões eram apenas locais de passagem, mas tornaram-se ferramentas para “cura” da delinquência e controle das massas. O objetivo geral da pesquisa é compreender como ocorreu essa transformação, com foco nas influências do capital e do Iluminismo. A metodologia utilizada é historiográfica, com revisão bibliográfica.

Palavras-Chave: Penas. Capital. Iluminismo.

Abstract

The evolution of the sentencing system throughout history has undergone several transformations, from family and group traditions to the tyranny of kings, clerical impositions, and finally in the service of capital. The analysis includes the Universal Declaration of Human Rights (UDHR). Initially, prisons were only places of passage, but they became tools for “curing” delinquency and controlling the masses. The overall objective of the research is to understand how this transformation occurred, focusing on the influences of capital and the Enlightenment. The methodology used is historiographical, with bibliographic review.

Keywords: Feathers. Capital. Enlightenment.

Introdução 

A implementação de penas ao longo da história passou por diversas transformações, desde tempos remotos em que eram regidas por tradições familiares e grupais, até chegar ao ponto em que o poder coercitivo do Estado se aliou aos interesses do capital. A partir de tradições milenares, a punição era vista como forma de restaurar a ordem social e moral, sendo aplicada de forma pública e muitas vezes cruel. Com o passar dos séculos, a tirania dos reis, a imposição dos poderes clericais e, por fim, a ascensão do sistema capitalista foram moldando as penas de acordo com os interesses de cada época.

Inserido nesse contexto de transformações, o sistema de penas evoluiu conforme a própria estrutura social se modifica. As práticas punitivas, inicialmente baseadas em suplícios e castigos físicos, foram aos poucos substituídas por métodos mais sofisticados e sutis, visando não apenas a repressão do indivíduo, mas também o seu controle e “reabilitação” para a sociedade. O surgimento das prisões como locais de reclusão definitiva foi um marco nesse processo, tornando-se parte integrante do sistema capitalista de produção e controle.

A promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos representou um momento crucial na história das penas, estabelecendo princípios fundamentais de justiça, igualdade e dignidade para todos os seres humanos. No entanto, as práticas punitivas continuaram a ser influenciadas pelo poder do capital, que viu nas penas um meio eficaz de manter a ordem social e político-econômica. A finalidade das penas deixou de ser apenas a punição do indivíduo, tornando-se também um instrumento de controle das massas e da delinquência.

O objetivo geral deste estudo é compreender como se deu a transformação do sistema de penas ao longo da história, identificando possíveis influências do capital e do Iluminismo nesse processo. Para alcançar esse objetivo, serão adotadas abordagens historiográficas, incluindo revisão bibliográfica e categorização dos dados.

As questões que nortearão esta pesquisa são as seguintes: Como se deu a transformação do sistema de penas de episódios históricos marcados pelos suplícios até a institucionalização das prisões? A influência do capital foi determinante nesse processo de transformação das penas? E a influência do movimento Iluminista, com seus ideais de racionalidade, liberdade e igualdade, contribuiu para a humanização e racionalização do sistema penal?

Ao analisar o processo histórico das penas, é possível observar a complexidade das relações entre poder, justiça e capital. A evolução das práticas punitivas reflete não apenas as mudanças sociais e econômicas de cada época, mas também os interesses e ideologias que fundamentam o sistema de justiça penal. Compreender esse processo é essencial para repensar as estruturas de punição e controle vigentes, visando uma sociedade mais justa e igualitária para todos os seus membros.

Juízo e penalidade de delitos: primeiras percepções

O processo de juízo e penalidade de delitos, passou por diversas metamorfoses segundo culturas e crenças no tempo e no espaço. Segundo Jonh Gilissen (1995), na antiguidade, as sociedades primitivas tinham que cumprir preceitos verbais anunciados pelos sacerdotes, patriarcas ou líderes grupais, onde os laços de consanguinidade embasaram a hierarquia grupal, na qual os sacerdotes exerciam autoridade por receber e interpretar as regras e costumes dados por divindades.

Desse modo, tanto os preceitos religiosos quanto as tradições grupais, eram as medidas de juízo para os delitos, segundo Wolkmer (2001), os sacerdotes ou líderes religiosos, não raramente detinham poderes unificados nos aspectos políticos, sociais e religiosos, devotado respeito religioso às  regras orais.  

Porém, após o advento da escrita, à medida que o homem foi se sedentarizando e desenvolvendo novas formas de produção, cultura e arte; mudaram também os padrões de conduta, pois tão logo submetemos valores, proclamados evidentes à verificação histórica, “percebemos que aquilo que foi considerado como evidente por alguns num dado momento, em outro momento, não é mais considerado como evidente por outros” (Bobbio, 2004), uma referência às metamorfoses sociais que levaram a superação do direito arcaico.

Ainda a partir da escrita, um dos primeiros e mais importantes códigos legais da antiguidade foi o código de Hamurabi, um conjunto de princípios legais desenvolvidos pelo Rei Hamurabi da Babilônia, por volta do século XVIII a.C  (Silva, 2006).

Observamos neste Código, segundo Silva (2006), as bases de dispositivos que transcenderam aos nossos dias, como o “direito à propriedade e a supremacia das leis em relação aos governantes”; também é possível observar, que as medidas punitivas variam de acordo com as castas sociais à época. E principalmente, o princípio de talião, onde a pena era proporcional à ofensa cometida, “ilustrada pela premissa de olho por olho, dente por dente”.

Já na antiguidade Clássica, os povos gregos contribuíram com a filosofia, a política e a democracia, com destaque para as reformas de Sólon, estadista grego que propôs a ideia de sistema democrático já no mundo antigo, dessa forma, cada Cidade Estado tinha seu próprio código de leis e condutas.  sendo as cidades mais destacadas Atenas e Esparta. 

Ainda entre os gregos, surge a noção de direito natural ou jusnaturalismo, direitos que seriam próprios da natureza humana: 

O Direito Natural clássico dos gregos compreende uma concepção essencialista ou substancialista do Direito Natural: a natureza contém em si a sua própria lei, fonte da ordem, em que se processam os movimentos dos corpos, ou em que se articulam os seus elementos constitutivos essenciais. A ordem da natureza é permanente, constante e imutável. Trata-se da concepção cosmológica da natureza (Ximenes 2007 p. 3)

Em análise, tal concepção é uma visão essencialista, cuja ideia central é que todo o direito do homem emana da natureza, ou seja, de sua condição naturalmente humana. Uma visão cosmológica do governo da natureza sobre os homens, ligando a ordem cósmica natural à parametrização da natureza para as ordenanças jurídicas.

Passando ao período Romano, o último império unificado que deteve domínio sobre o mundo antigo, é possível observar predomínio de um caráter legislativo laico, com surgimento das escolas de juristas e foco na proteção dos direitos e vontade do indivíduo. 

Após a decadência de Roma, o imperador Justiniano compilou os códigos das Cidades Estado romanas e deu origem ao “Corpus Iuris Civilis”, que era a “síntese do que o direito romano havia produzido em seu período mais rico e sofisticado” (BOBBIO, 2023), com contribuições jurídicas que chegaram até nossos dias.

Por conseguinte, a queda de Roma implicou numa grande transição social e Histórica, pois a partir de então, a sociedade foi identificada como sociedade feudal: modelo de organização político-econômico e social, baseada na posse de terras: Os feudos. 

O modo de produção escravista é substituído pelo feudal: ao escravo sucede o servo, que goza de uma liberdade pessoal parcial, da Propriedade parcial dos meios de produção (instrumentos de trabalho, animais)  e de uma certa autonomia (Wolker, 2001, p.172)

Assim, os feudos eram porções de terras, posses do senhor feudal, que dominava relações de servidão para com os camponeses. Os camponeses ou vassalos, vivam na terra e da terra do seu senhor feudal, esta relação de servidão estava arbitrada por códigos próprios de cada feudo (Arruda, Piletti, 1997 ), no entanto foi marcada por grande controle e submissão que em geral, se revelava em pesados impostos pagos com a produção da terra. 

Ao descrever as relações sociais nos feudos, observamos em Arruda e Piletti (1997, p. 109), que por sistema de justiça, “havia dentre os impostos pagos pelos servos a “taxa de justiça””: Cobrada em caso de haver o servo, cometido infração que requeresse julgamento por tribunal. Sendo este, presidido pelo próprio senhor feudal ou por seu representante. 

Ainda no sistema feudal, o caráter laico do código de leis romano foi substituído pelo poder regulamentar da igreja Católica, sob o argumento de ser a única igreja intérprete das leis de Deus. Desse modo, a igreja romana legitimava o status de Sociedade Estamental (uma forma de controle social, na qual a posição do indivíduo está determinada pelo nascimento), sem possibilidade de mobilidade. E ainda, a própria igreja tornou-se rica donatária de terras, submetendo às leis canônicas inclusive os senhores feudais. Pois “O pensamento medieval e escolástico parte de um conceito teológico de natureza” (Ximenes, 2007 p. 3). Assim, a igreja defendia a existência de uma lei superior à vontade humana. 

Em análise, tamanha autoridade da igreja vinha regimental à vida e morte de cada sujeito, pois só se nascia a partir do batismo e só haveria descanso na morte, se sepultado no terreno sagrado dos cemitérios. Nesse período, foi instaurado o Tribunal da Santa inquisição, que conservou como principal modelo de pena os suplícios (SIQUEIRA, 200 p. 1), com a finalidade de punir os chamados hereges, sujeitos considerados contrários às regras e leis eclesiásticas.

Será conduzido ao lugar da execução, em camisão, pés descalços e com a cabeça coberta por um véu negro; será exposto, em um cadafalso, enquanto o meirinho levará para o povo a sentença condenatória e imediatamente executado (Foucalt, 1999, p.12-13).

É interessante destacar, que o rito de execução descrito na citação não enfatiza ou se quer revelar a condição de aprisionamento, isso demonstra que as prisões ainda eram somente locais de detenção de passagem, em que o condenado aguardava o cumprimento da pena. sendo os principais modelos de pena a morte ou suplício.

O suplício de exposição do condenado foi mantido na França até 1831, apesar das críticas violentas — “cena repugnante”, […]ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao crime mantinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade […] fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos assassinos, invertendo no último momento os papéis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração. A punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal (Foucalt, 1987, p.12-13).

Desse modo, depreende-se que as penas se tornaram cada vez mais cruéis, tendo nos suplícios segundo o texto,  a forma de “punição exemplar”, para que a igreja exercesse o controle social pela coação e medo. O que Foucalt (1987) chama de “melancólica festa de punição” ou “espetáculo punitivo”, que só entraria em declínio na Europa no século XVIII em transição para o século XIX; quando finalmente houve mudanças de paradigmas – da era dos suplícios para penas de restrição de liberdade, e a punição desvia o foco para o exílio social do apenado, restringe-lhe agora, seu direito à liberdade pelo bem coletivo.

No Brasil, a primeira constituição foi promulgada em 1824, mas somente em 1830 foi promulgado o primeiro código criminal do império, este rompeu com a prática dos suplícios sobre os corpus. 

O pelourinho, o patíbulo, o chicote, a roda, serão considerados, na história dos suplícios, como as marcas da barbárie dos séculos e dos países e como as provas da fraca influência da razão e da religião sobre o espírito humano (Van Meenen, 1935, p.30).

A partir da criação do Código Criminal brasileiro, é possível analisar da citação a influência de ideais iluministas, ao despotismo esclarecido do imperador brasileiro D. Pedro II, que regulamentou a punição pela restrição de liberdade, pois a certeza de ser punido é que deveria desviar o homem do crime. Pois segundo Baccaria (1764), as penas da lei têm como função principal, a função preventiva; “pois se executadas à letra, cada cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, porque tal conhecimento poderá desviá-lo do crime”. E ainda, “colocai o texto sagrado das leis nas mãos do povo, e, quanto mais homens houve que o lerem, tanto menos delitos haverá”( Baccaria,1764, p. 36). Sendo assim, a certeza da punição deveria frear ações criminosas, ou seja, frear a “eloquência das paixões”.

Portanto, para que fosse implantada a pena de restrição de liberdade, houve a necessidade de espaços para acautelamento dos sujeitos; foram então selecionados os locais isolados (comumente em ilhas ou fortalezas). Por conseguinte, o então imperador D. Pedro II (BRASIL, 1830), regulamentou a Casa de Correção do Rio de Janeiro. Destinada a execução da pena com o trabalho dentro da instituição, sendo estes, trabalho solitário de tarefas, restrição alimentar ou jejum a pão e água e ainda cela escura; pois segundo Fucout (1987), tais medidas transformavam os homens em “corpos dosséis”. 

O Código Criminal do Império de 1830, promoveu uma reforma prisional caracterizada por prisões penitenciárias construídas em diversas províncias, a Casa de Correção do Rio de Janeiro iniciada em 1834, foi a primeira da América Latina, já em Belém, o Presídio São José foi erguido no ano de 1843.

O essencial da pena que nós, juízes, infligimos não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, “curar”; uma técnica de aperfeiçoamento recalca, na pena, a estrita expiação do mal, e liberta os magistrados do vil ofício de castigadores (Fucout, p. 14).

Portanto, o aprisionamento se converte em nova lógica punitiva também no Brasil, a partir da Proclamação da República em 1890, quando o novo Código Penal do “Brazil República” enfatizou a pena de prisão, tornando-se a pena principal. Como consequência, para Foucalt (1987), um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco: guardas, médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos e educadores.  

A inclusão dessa gama de profissionais, trouxe para a pena de reclusão uma transposição técnica da ideologia de correção. Para além dos juristas, a inserção de tal corpo técnico, desenvolveu pesquisas que resultaram em prismas humanizatórios das penas, para proteger o sujeito dos excessos do Estado. Contudo, o código criminal brasileiro de 1890, manteve a pena de morte somente para escravos, ou seja, para negros. 

E ainda no código criminal do Brasil República, é possível observar o marco da igualdade dos homens perante a lei, no entanto, impõem-se  a dificuldade temporal em legitimar o respeito a pessoa humana conforme apregoado pelo iluminismo, pois essa igualdade legal não incluiu as mulheres e os negros.

Já no período do Estado Novo (1940), sob o poder de Getúlio Vargas, é criado o Código Penal do Brasil: Criado dentro do golpe de estado, essa legislação não se caracterizou pelo diálogo democrático e ainda assim permanece em vigor há cerca de 80 anos. 

No Pará, as prisões tiveram início em 1680, antes mesmo das grandes obras da literatura que legitimaram a pena de privação de liberdade, como “Dos Delitos e das Penas” de Bacarria (1774) e Vigiar e Punir de Foucault (1975). Segundo o relato Histórico, Belém inaugurou suas prisões com a reclusão de seu fundador, Francisco Caldeira Castelo Branco, quando foi recolhido em uma habitação fortificada.

Em 18 de novembro de 1619, Castelo Branco foi metido em ferros e recolhido a uma habitação da fortificação da cidade. Sua prisão tinha a finalidade de guardá-lo até a definição de sua pena, afinal o nascimento da prisão como pena se daria no século XVIII, já na Idade Moderna (Jesus, 2010, p. 03).

Podemos observar, segundo a obra de Eduardo Juan de Jesus (2010), em seu trabalho: Memorial da Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará. Trajetória das Prisões em Belém e Origem do Prédio (sede) da SUSIPE. Que a reclusão como punição, segundo o pesquisador, originou-se no costume da igreja de punir o clero visto que, o isolamento era ferramenta decisiva para a reconstrução racional e a aproximação do indivíduo com Deus. 

Dos direitos do homem aos direitos humanos

O advento da Revolução Francesa marcou a transição histórica da Idade Média para a Idade Moderna. A revolução foi feroz, mas trouxe consigo, os ventos de novos marcos legais para a humanidade a partir das crenças iluministas, que em seu bojo, carregaram os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade entre os homens, a razão como luz e a valorização natural do ser humano, auferindo-o direitos a sua condição natural. 

Nesta concepção teórica, o iluminismo, apresenta sua visão do contrato social, na qual a natureza imputa ao homem direitos pelo seu existir, desconectando essa atribuição do mister divino, consecutivamente desabonando o clero como intérprete das leis morais, dos juízos e penas imputados pela igreja romana ao homem e introduzindo a ideia de proteção da propriedade.  

Por conseguinte, em 26 de agosto de 1789, foi aprovada pela Assembleia Nacional da França, a Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão (DDHC); trazendo em preâmbulo que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem, são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos Governos: 

Artigo 10º- Ninguém pode ser inquietado pelas suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, contando que a manifestação delas não perturbe a ordem pública estabelecida pela Lei. 
Artigo 11º- A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem (DDHC, 1789);

Esta declaração de 1789, forjada em 17 artigos, aclama a lei como expressão da vontade geral, e registra que ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos por ela determinados. Mediante a lei, “O homem nasceu com um direito à liberdade perfeita” e em “pleno gozo de todos os direitos e privilégios da lei da natureza”. Assim, a natureza proporciona a qualquer homem ou grupo de homens na terra, “o poder de preservar aquilo que lhe pertence: sua vida, sua liberdade, seus bens.”

Esse princípio recíproco entre lei e liberdade, se torna então a base para o surgimento do Direito penal clássico, quando a sociedade transige da busca pela castidade através do castigo do corpo em forma de suplícios, para a tipificação de crimes, que passa a ser a quebra do contrato social por um cidadão. Onde o Estado será o garantidor e árbitro dos direitos naturais do homem, pela manutenção da igualdade, e a lei como parâmetro para a garantia de liberdade.

Cada um de nós põe sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e nós recebemos, enquanto corpo, cada membro uma parte indivisível do todo. De imediato, em lugar da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantas são as vozes da assembleia (Rousseau, 2015, p.21). 

Ora, sendo o delituoso também parte do todo social, um homem amparado pelas leis naturais, caberá ao Estado, não mais a vingança ou penitência, mas sim o arbitrar ou restringir-lhe os direitos que o amparam quanto homem. 

Desse modo, o Estado passa a restringir a liberdade dos entes sociais delituosos, ou restringir-lhes o direito ao que lhe é propriedade. A partir de então, somente ao Estado cabe arbitrar entre os cidadãos e executar ação puniente, a fim de evitar individualismos e vinganças pessoais. Visto que as partes envolvidas não teriam isonomia e lisura, para medir a proporcionalidade entre crime e restrição de direitos. 

Porém, após a segunda guerra mundial (1944 – 1948) entre tantas atrocidades cometidas, foi criado um organismo internacional que arbitrou pela paz e respeito ao indivíduo, assim surge a ONU (Organização das Nações Unidas), com a finalidade de reafirmar o compromisso dos países com o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e a proteção essencial dos direitos humanos (DUDH 1948)

Uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações [..] os Estados-Membros se comprometeram a promover, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais [..] considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade (DUDH 1948).

Desta forma, em 10 de dezembro de 1948, quarenta e oito países assinaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), se comprometendo em fazer cumprir os trinta artigos basilares da declaração. 

Vale refletir, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, apesar de não ter força de lei, está posta como contexto máximo das relações inter-humanas e institucionais, orientando os procedimentos e práticas no cotidiano, ações profissionais e pessoais. Inclusive em ambientes de privação de liberdade. 

Nesses ambientes, corre-se o risco da cultura de estranhamento, promover tanto gatilhos de autopreservação quanto barreiras ao convívio, desenvolvendo um ambiente de procedimentos austeros. 

A ASSEMBLÉIA GERAL proclama [..] que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva (DUDH 1948).

Com isso, denota-se que a defesa dos Direitos Humanos é uma constante, pois quanto mais diversas são as culturas e as formas de vida, tanto mais é essencial proteção à dignidade humana e a compreensão do respeito aos  direitos humanos inalienáveis.

O Sistema penal a lógica do capital 

Aos pressupostos das obras clássicas quanto ao progresso histórico das penas, corroboraram grandemente com a introdução de prismas multivozes no tempo e no espaço; ao trazerem a narrativa social à questão da pena e punição. A observação e análise dos sujeitos punidos ao longo do tempo.

Para isso, a análise da trama teórica partirá da obra Vigiar e Punir de Michel Foucault (1987). Nesta obra, é possível observar um fio condutor histórico que vem caracterizando inicialmente a pena de suplícios: Um grande espetáculo público de punição física exemplar, pois o condenado deveria remir-se do crime por meio da dor e agonia prolongada da tortura; esse contexto e a carnificina que o caracterizava, manteve o poder da nobreza e do clero principalmente no continente Europeu, servindo como ferramenta de controle social ao longo da idade média.

Meio século depois, segundo Foucault (1987), a lógica de dominação dos sujeitos sociais e seus corpos se transmuta, não mais em torturar o corpo mas em o atingir pelo enclausuramento: “o corpo é colocado num sistema de coação e de privação, de obrigações e de interdições, elementos constitutivos da pena”. Privando-o da liberdade, considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem, o castigo passou a ser uma “arte das sensações insuportáveis para fazer dissuadir o crime”.

Porém, observa-se na história, que desde a segunda metade do século XVIII, surgem os reformadores em direito como Cesare Baccaria. Em sua obra “Dos delitos e das penas” (1764), Baccaria afirma que a os suplícios são menos eficientes quando comparados a simples certeza da punição aplicada por meio das leis do Estado. Dessa forma, Baccaria complementa o referencial teórico desta dissertação, pois suas ideias corroboram para a produção de mecanismos legais contemporâneos que visam a remissão de pena, tais como os períodos de leitura e estudos aos privados de liberdade.

Analisando o nascimento e o processo de generalização das prisões no século XIX, é possível observar de maneira um intento humanizador ou a racionalização das penas. No entanto, a crítica de Foucault (1987) denomina este sistema de “economia do castigo”. Foucault faz uma análise genealógica dos instrumentos de vigilância e das prisões, tratando-as como instituições que produzem para a sociedade “corpos dóceis”. 

Nesse sentido, ele relaciona os vários regimes punitivos aos sistemas de produção em que se efetivam. Em uma economia servil “os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão-de-obra suplementar e constituir uma escravidão civil” (Foucault, 1987, p.28).

No trecho citado de “Vigiar e Punir”, Foucault (1987) cria um elo entre os regimes punitivos de privação de liberdade e o capitalismo, para o autor, sistemas punitivos são fenômenos sociais que criam reserva de mão-de-obra para o capital. 

Ao se propagar pelo tecido social esses sistemas colaboram para que boa parte dos movimentos insurgentes silenciem. “Os que são convencidos de que são impotentes negam sua própria condição de sujeito” (Farias, 2008, p. 90 ) e para além, pela apreensão da alma, das vontades humanas, as prisões cumprem funções sociais complexas: docilizar e perpetuar “corpos dóceis”, descaracterizados ou desfigurados em função do capital. 

Dessa forma, lemos em Amorim (2016) a influência da ideologia de correção pelo trabalho em instituições onde eram aplicadas, objetivando a correção moral do criminoso e sua consequente devolução ao convívio social, disciplinado e acostumado com a rotina do trabalho; num modelo ideal da produção capitalista. 

Trazendo ao contexto Local, para dar à pesquisa um aporte de referencial histórico das prisões no Brasil e no Pará, participou desta análise a obra: “Trajetória das prisões em Belém e origem do prédio sede da SUSIPE” de Jesus (2010). Esta obra, traz registros históricos, teóricos e pictográficos importantes, sobre as instituições de cumprimento das penas de privação de liberdade ao longo do tempo, até a dotação da SUSIPE – Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará em 1974. 

Por conseguinte, será tomada como base teórica, a reflexão contida na obra de Hélio Góes (2023) – Princípios Éticos na Implementação do PPP: Possibilidades a Partir da Escola de Reinserção Social Aguinaldo Júnior. Este trabalho será de fundamental importância, pois primeiramente traz reflexões sobre o lócus da pesquisa: A Escola de Reinserção Social Agnaldo Júnior; sobre a qual a obra contribui com delimitações históricas, fazendo o resgate de atores sociais que ao longo do tempo, atuaram neste espaço de reinserção social. E ainda, irá colaborar com reflexões sobre as dimensões normativas que vigoram no trabalho educacional de reinserção. 

Para o levantamento atualizado da base de dados, será utilizado o INFOPEN (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias), que divulga estatísticas do sistema penitenciário brasileiro. O PAAR (Plano Estadual de Educação para Pessoas Privadas de Liberdade e para Egressas do Sistema Prisional), onde trata dos convênios educacionais celebrados pela SEAP e apresenta meios e metas, para levar educação às pessoas privadas de liberdade no estado do Pará.

Por fim, são bases legais necessárias, a consulta detalhada da LEP nº 7210/1984 (Lei de Execuções Penais), que rege sobre a assistência educacional devida às pessoas em situação de privação de liberdade. Bem como as regimentações dadas pelo Convênio de Cooperação Técnica entre SEAP e SEMED Cametá nº04/2019 (renovado em 2023), onde está registrada a garantia e condições de oferta da educação na unidade prisional de Cametá. Uma construção para a inversão da lógica de aprisionar: a lógica de reinserir.

Nessa perspectiva, David Garland no livro “Cultura de Controle” (2001), dialoga sobre criminologia e segurança nas sociedades atuais, sugere que na atualidade há uma inversão da lógica de “curar” para “gerenciamento de riscos”, na qual se proporciona experiências de reinserção mais próximas do mundo extramuros. Refletindo uma cultura de reinserção, onde a prevenção do crime e a proteção do público se tornaram prioridades.

Considerações finais

A trajetória histórica das penas reflete a evolução dos paradigmas sociais, desde as sociedades antigas com preceitos e tradições orais, passando pelas leis reais e códigos escritos, até chegar à contemporânea Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). Essa evolução foi influenciada por diversas filosofias, desde as religiosas na Idade Antiga e Média até a iluminista, que chegou ao Brasil com o modelo de despotismo esclarecido. Observa-se no Código Criminal de 1830 o ideal de “curar” ou “corrigir” o delinquente, evidenciando uma tentativa de humanização do sistema penal.

Contudo, a teoria de Foucault (1987) sugere que, apesar da evolução das penas em direção à defesa dos Direitos Humanos, a dominação do capital permanece predominante. Os espaços de privação de liberdade, longe de estarem desvinculados da sociedade capitalista, perpetuam a lógica de produção e dominação. Essa lógica capitalista, segundo Foucault, se sobrepõe aos intentos humanizantes, transformando as prisões em ferramentas de controle social e manutenção da ordem econômica.

Essa constatação destaca a necessidade de uma reflexão crítica sobre o sistema penal. A evolução histórica das penas deve ser analisada não apenas como um processo de humanização, mas também como uma manifestação das relações de poder e dominação presentes na sociedade. A perpetuação da lógica capitalista dentro do sistema penal revela que a verdadeira transformação do sistema de penas requer uma mudança estrutural mais profunda, que desafie as bases da produção e dominação capitalistas.

Além disso, é essencial considerar as influências filosóficas e sociais que moldaram a evolução das penas. As filosofias religiosas e iluministas desempenharam papéis cruciais na formação dos paradigmas penais, mas é fundamental questionar se essas influências foram suficientes para promover uma justiça verdadeiramente humanizada. A análise crítica deve contemplar não apenas as intenções humanizantes, mas também as práticas concretas e os impactos sociais das penas ao longo da história.

Assim, a evolução das penas ao longo da história revela uma complexa intersecção entre ideais humanizantes e a persistente dominação do capital. Para alcançar uma verdadeira transformação do sistema penal, é necessário um esforço contínuo de reflexão crítica e mudanças estruturais que promovam a justiça e a dignidade humana, desafiando as lógicas de produção e dominação que ainda prevalecem.

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1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Educação pela Faculdade Interamericana de Ciências Sociais – (FICS). e-mail: vanessa.geografia.lobato@gmail.com
2Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Pará – PPGEO/UFPA. Professor na Faculdade de Teologia, Filosofia e Ciências Humanas Gamaliel – FATEFIG. e-mail: milvio.geo@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1118-7152