O POSITIVISMO JURÍDICO DE KELSEN E A LENDA ACERCA DA SEPARAÇÃO ENTRE DIREITO E MORAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10998187


Andressa Maria Ramos Ramundo


Resumo:

O positivismo jurídico, exemplificado por Hans Kelsen, destaca-se pela objetividade na análise do direito, separando sua validade de considerações éticas. Kelsen propôs uma ciência jurídica focada na norma, excluindo outras áreas do conhecimento para preservar sua pureza metodológica. Ele critica a aplicação acrítica da norma jurídica e defende sua autonomia em relação a considerações éticas, políticas ou sociológicas. Embora reconheça a necessidade mínima de eficácia para a validade da lei, rejeita a ideia de justiça como critério relevante. Seu contexto histórico reflete um período de polarização ideológica, no qual o relativismo cultural ganhou destaque. O positivismo jurídico de Kelsen foi erroneamente associado aos regimes nazistas, embora sua teoria enfatizasse a análise formal do direito, não sua aplicação arbitrária. Ele busca diferenciar a validade das normas da justiça ou moralidade, mantendo a pureza metodológica no estudo do direito. Enquanto a moral e a justiça estão presentes na sociedade, estão fora do escopo da análise da norma jurídica. Dessa forma, a perspectiva teórica de objetivos amorais jamais foi pretendida pelo positivismo jurídico.

Palavras-chave: Positivismo jurídico, Kelsen, ciência do direito, norma jurídica, pureza metodológica, sincretismo metodológico, relativismo cultural, regimes autoritários, nazismo, jusnaturalismo, polarização ideológica, Carl Schmitt, jurisprudência, ética, sociologia, crítica moral.

1. Sobre o positivismo jurídico e Kelsen

A expressão máxima do positivismo jurídico é o teórico austríaco Hans Kelsen (1881-1973), hoje considerado um dos mais importantes e influentes estudiosos do Direito. Essa teoria, construída, principalmente, em sua obra “Teoria Pura do Direito”, se tornou um verdadeiro divisor de águas no estudo da ciência jurídica. 

A origem do positivismo jurídico, defendido por Kelsen, se deu, principalmente, na França do início do século XIX, com a promulgação do Código Napoleônico, por meio da “Escola de Exegese Francesa”, que trouxe a ideia do Normativismo e se apresentou como uma das primeiras correntes do pensamento juspositivista.  Via-se, portanto, a gênese da ideia do dogmatismo legal. Acreditava-se no positivismo jurídico estadista, onde o estado era o único autor do direito e,  portanto os costumes eram negados. O empirismo passou a exercer destaque e o judiciário passava a ter o papel “de boca da lei”, uma vez que passaram a estar subordinados ao legislador pela ideia da autossuficiência dos códigos.

Nota-se, então, que no positivismo jurídico se tem o afastamento da defesa de mandamentos divinos e imperativos de razão humana, pelo simples fato da ordem jurídica não depender da metafísica ou de elementos imutáveis. Em verdade, são os elementos experimentais que delimitam o direito, já que este é um conjunto normativo que vincula toda a sociedade, sendo formulado e aplicado por indivíduos como fruto do desejo da autoridade legislativa. 

2. O positivismo jurídico de Kelsen

O Direito, para Kelsen, deve ser tratado como uma ciência objetiva. Ou seja, o campo do estudo dessa ciência deve ser limitado para estudar elementos como relação jurídica, direito objetivo, sanção, ilícito, lei, norma, etc. Pretende, assim, excluir de seus estudos os demais campos de conhecimento que não dizem respeito à ciência do direito, para não retirar sua pureza. Critica-se a jurisprudência que prevalecia até então, pois dizia-se que se aplicava a norma jurídica de modo acrítico, confundindo-se elementos jurídicos com ética, psicologia, sociologia e política. 

Dessa forma, Kelsen objetivou evitar o que se chamou de sincretismo metodológico no estudo do direito. Isso não se confunde, contudo, com ignorar ou negar a correlação com as demais ciências. Essas análises não seriam de competência da análise pelo jurista concebido por Kelsen. Em verdade, a verificação da pertinência social da norma (ou seja, se ela está sendo cumprida de maneira espontânea ou está sendo aplicada indevidamente) seria objeto de estudo da sociologia jurídica. 

Aponta-se, contudo, que na segunda edição de Teoria Pura do Direito, Kelsen admite que um mínimo de eficácia é necessário para a consideração da lei e o estudo do direito, mas prossegue rejeitando a necessidade de um mínimo de justiça e trata esta como um sonho da humanidade.

Para o jurista concebido por Kelsen, era cabível apenas trabalhar com a norma posta. A valoração desta caberia ao poder legislativo, representante do povo e dos seus valores morais, no momento de elaboração da norma. Então, o conceito do que é justo estaria excluído do escopo de análise da ciência do direito.

Para entender o ideal de Kelsen, deve-se entender o contexto em que a sua teoria foi criada. À época, Kelsen viveu em um mundo de polarização ideológica e conflitos armados. Nesse período, os conceitos universalistas (ex: sujeito universal, moralidade objetiva, núcleo moral invariável) foram sendo substituídos pelo relativismo. A alegação de etnocentrismo das ideias universalistas corroboraram mais ainda ao relativismo cultural, sociológico e antropológico. Dessa forma, sobrevindo o relativismo, se tornou útil um sistema de direito positivista que em seu escopo exclui a justiça e a moral, uma vez que o direito o qual no passado já foi o natural e o divino agora seria um “invólucro que aceita qualquer coisa”. 

Vale mencionar que o positivismo jurídico de Kelsen foi considerado, por diversos autores, a base jurídica dos regimes autoritários nazistas. Exemplifica-se com o o caso de Gustav Radbruch no artigo “Cinco Minutos de Filosofia do Direito”. Radbruch, em apertada síntese, defendeu que a concepção positivista da lei em si deixou a população indefesa perante a arbitrariedade e crueldade que era natural do sistema nazista. 

Porém, diante disso, é importante destacar que não havia, nos regimes nazifascistas, consenso sobre a estrutura filosófica da concepção do direito. 

Cita-se, como exemplo, Carl Schmitt, que é um dos maiores teóricos do regime fascista. Nas palavras de Kelsen, a teoria pura do direito é uma teoria do direito positivo. Na qualidade de teoria de direito, tem por propósito nos dizer o que é e como é o direito. Diferentemente seria a teoria de Carl Schmitt, que não possui o intuito de descrever o direito, mas sim oferecer ao regime nacional-socialista um instrumento para modificar, completar e cancelar o direito herdado do passado. Trata-se, assim, de uma teoria direcionada para a realização de uma política nacional-socialista do direito. Referindo-se criticamente ao normativismo abstrato de Kelsen, Schmitt sustenta que a lei destrói o ordenamento concreto do líder.1

Deve-se mencionar, ainda, que o jusnaturalismo fora visto por muitos autores como a corrente filosofia preponderante à época. Porém, Machado Neto e Lacamba, realizando uma contraposição entre o positivismo jurídico e o jusnaturalismo nos processos de revolução, afirma que o  jusnaturalismo esgota sua função quando celebra seu triunfo. Dessa maneira, o grupo revolucionário sempre tenderia à filosofia jusnaturalista, evocando o direito natural e divino para assumir o poder. Assim, uma vez se constituindo no poder, os revolucionários tenderiam ao positivismo, para impor suas vontades a todos e legitimando o sistema legal.

Dessa maneira, mesmo havendo a defesa de um direito natural nazista para legitimar tal regime, a concretização do regime nazista foi facilitada com o uso de um positivismo jurídico distorcido e autoritário. Contudo, essa utilização não pode ser atribuída à construção teoria de Hans Kelsen. Isso porque, para Kelsen, o estudioso do direito tem por centro suas indagações critérios puramente formais acerca do fenômeno jurídico. Essa concepção, contudo, não é responsável por deixar indefesos o povo e os aplicadores do direito contra leis arbitrárias. Não é o jurista positivista o culpado pela existência ou cumprimento desses preceitos, ou que recomenda ou postula o dever de se dar concreção a esse mandamentos abomináveis, problema este que depende exclusivamente das correlações fáticas de poder em dada sociedade.2

3. Conclusão

Vê-se, dessa forma, que o positivismo jurídico de Kelsen busca diferenciar a validade das normas da valoração de sua eventual justiça ou conteúdo moral. Preza-se, acima de tudo, a pureza metodológica do estudo da ciência do direito. 

Isso não significa, entretanto, que a moral e a justiça não estejam presentes e correlacionados na sociedade em que um sistema jurídico positivo é vigente. Esses elementos só estariam fora do escopo do estudo da norma jurídica. Kelsen, inclusive, é moralmente crítico. Por ser moralmente crítico, Kelsen assevera que o efeito real da identificação terminológica de Direito e justiça é uma justificativa ilícita de qualquer Direito positivo.3 

É equivocado, dessa maneira, atribuir culpa ao positivismo jurídico de Kelsen pela ascensão dos regimes nazistas, uma vez que não há qualquer relação entre a independência metodológica da moral com o direito e as tragédias praticadas. A perspectiva teórica de objetivos amorais, portanto, jamais foi pretendida pelo positivismo jurídico. 


1Ciotola, Marcelo e Valory, Eduardo. Artigo: Kelsen no debate das ideias. Revista Juris Poiesis, ano 19, nº 21, Set-Dez 2016, Rio de Janeiro.  P. 99. 
2Ciotola, Marcelo e Valory, Eduardo. Artigo: Kelsen no debate das ideias. Revista Juris Poiesis, ano 19, nº 21, Set-Dez 2016, Rio de Janeiro. P. 69. Ciotola, Marcelo e Valory, Eduardo. Artigo: Kelsen no debate das ideias. Revista Juris Poiesis, ano 19, nº 21, Set-Dez 2016, Rio de Janeiro. P. 100
3Ciotola, Marcelo e Valory, Eduardo. Artigo: Kelsen no debate das ideias. Revista Juris Poiesis, ano 19, nº 21, Set-Dez 2016, Rio de Janeiro. P. 100


Bibliografia:

Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. 8ª Edição, 3ª Tiragem, Tradução de João Baptista Machado. Editora wmfMartins, 2012, São Paulo.

Ciotola, Marcelo e Valory, Eduardo. Artigo: Kelsen no debate das ideias. Revista Juris Poiesis, ano 19, nº 21, Set-Dez 2016, Rio de Janeiro.

Radbruch, Gustav. Artigo: Cinco Minutos de Filosofia do Direito, Filosofia do Direito, 6ª ed., Arménio Amado, 1979, Coimbra.