THE CIVIL POLICE OFFICER AS A RECIPIENT OF HUMAN RIGHTS STANDARDS
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202502201319
Giuliano Sorge de Paula Silva1
Resumo: Este artigo explora os desafios enfrentados pelo trabalho policial e a importância de uma cultura institucional que respeite os direitos humanos. Enfatiza a segurança pública como um direito fundamental, destacando a necessidade de os policiais atuarem em conformidade com os princípios dos direitos humanos. Além disso, aborda a dupla perspectiva dos policiais como destinatários e defensores desses direitos, ressaltando a importância de promover um ambiente de trabalho que valorize a dignidade e o bem-estar dos profissionais de segurança. O artigo também discute a necessidade de formação contínua e a implementação de mecanismos de controle e responsabilização para garantir a conformidade com os princípios dos direitos humanos. Por fim, destaca a importância de uma abordagem integrada e colaborativa entre polícia, comunidade e formuladores de políticas para avançar rumo a uma sociedade mais segura, justa e humanizada, onde a segurança pública seja verdadeiramente um direito fundamental assegurado a todos.
Palavras-chave: Direitos humanos; normas internacionais; policial civil; função policial; persecução penal.
Abstract: This article explores the challenges faced by police work and the importance of an institutional culture that respects human rights. It emphasizes public security as a fundamental right, highlighting the need for police officers to act in accordance with human rights principles. Additionally, it addresses the dual perspective of police officers as both recipients and defenders of these rights, underscoring the importance of promoting a work environment that values the dignity and well-being of security professionals. The article also discusses the necessity of continuous training and the implementation of control and accountability mechanisms to ensure compliance with human rights principles. Finally, it highlights the importance of an integrated and collaborative approach among police, community, and policymakers to move towards a safer, fairer, and more humanized society, where public security is truly a fundamental right guaranteed to all.
Keywords: Human rights; international standards; civil police officer; police function; criminal prosecution.
Sumário: 1 Introdução. 2 Desafios do trabalho policial e cultura institucional de respeito aos direitos humanos. 3 Segurança pública como direito fundamental. 4 A dupla perspectiva do policial como destinatário dos direitos humanos. 5 Conclusões. 6 Referências.
1 Introdução
A segurança pública é um direito fundamental, essencial para o desenvolvimento harmonioso e sustentável de qualquer sociedade. Neste contexto, o trabalho policial civil é fundamental, desempenhando um papel crucial na proteção dos direitos dos cidadãos. No entanto, a atividade não está isento de desafios. Um dos principais deles reside na necessidade de desenvolver e consolidar uma cultura institucional que respeite e promova os direitos humanos.
Ao longo dos anos, a relação entre a polícia e os direitos humanos tem sido um tema de intenso debate e discussão. Nesse sentido, a consolidação e a prática de uma cultura de respeito aos direitos humanos pelo policial civil não é apenas uma exigência ética, mas também uma necessidade para garantir a eficácia e a aceitação social do trabalho policial.
A cultura institucional de respeito aos direitos humanos deve ser entendida como um conjunto de valores, atitudes e comportamentos que permeiam todas as ações e decisões do policial. Isso envolve, além da formação e capacitação contínua dos policiais em temas relacionados aos direitos humanos, a implementação de mecanismos de controle que garantam a conformidade com esses princípios. Também é essencial fomentar um ambiente de trabalho que valorize o bem-estar e a dignidade dos próprios policiais, reconhecendo-os como destinatários dos direitos humanos.
Sob essa perspectiva, a dupla condição dos policiais civis como agentes de segurança pública e, simultaneamente, destinatários dos direitos humanos, torna-se um ponto central de análise. Os policiais, ao garantirem a segurança da população, também têm seus próprios direitos a serem protegidos e respeitados. O reconhecimento dessa dualidade é essencial para promover uma abordagem mais equilibrada e justa no quadro da segurança pública.
A segurança pública como direito fundamental deve ser entendida de maneira ampla, reconhecendo a interdependência entre os direitos dos cidadãos e os direitos dos policiais. Somente com uma abordagem integrada e comprometida com os valores democráticos será possível enfrentar os desafios do trabalho policial e promover um ambiente de segurança mais ético, eficaz e humanizado. Este artigo busca, portanto, explorar essas questões, oferecendo uma análise das complexidades envolvidas na construção de uma cultura institucional de respeito aos direitos humanos dentro da instituição policial civil.
2 Desafios do trabalho policial e cultura institucional de respeito aos direitos humanos
Antes de adentrarmos propriamente ao tema central do estudo, faz-se necessário à compreensão do assunto, tecermos algumas breves considerações acerca dos direitos humanos de modo a facilitar a percepção da abordagem dada.
Os direitos humanos podem ser conceituados como o conjunto de direitos que materializam a dignidade da pessoa humana e, surgem por meio de uma construção histórica, visando atender às novas demandas surgidas na sociedade em razão de sua própria evolução.
Segundo Ramos (2023, p.3) os direitos humanos nascem de parto natural, por meio das normas internacionais, tratados, convenções, pactos etc., mas também nascem de cesariana, através da jurisprudência internacional, pela construção dos direitos através dos precedentes das cortes internacionais e do diálogo com as cortes constitucionais dos Estados.
Os direitos humanos positivados nas normas internacionais são incorporados ao nosso ordenamento jurídico por meio de um processo que se inicia com a assinatura pelo chefe de Estado ou quem o represente, como no caso o Ministro das Relações Exteriores, na sequência devem ser submetidos à apreciação do Congresso Nacional e, após a aprovação, estão sujeitos à ratificação, ato pelo qual o Estado se torna signatário do tratado. Após estas etapas, desde que já tenha adquirido vigor no plano internacional, o instrumento internacional deve passar pela promulgação, por meio de decreto do Poder executivo e logo em seguida, publicação para gerar obrigação em caráter erga omnes perante o Estado e seus cidadãos.
As normas internacionais, ratificadas e em vigor perante o ordenamento jurídico brasileiro, devem ser observadas e cumpridas por todos sob pena de sujeição do Estado à imposição de sanções internacionais pelas cortes de Justiça existentes nos sistemas de global e regional de proteção dos direitos humanos.
Essa ideia é demonstrada através da relação dos avanços em matéria de proteção da dignidade da pessoa humana, com todos os direitos dela decorrentes, e a evolução do Estado. Partindo do Absolutismo, onde se afirma uma onda zero pela inexistência de direitos dos súditos frente ao Estado, prosseguindo para o Estado Legal de Direito, Estado de Direito Constitucional, até alcançar a etapa transnacional, caracterizado pelas relações internacionais e, global de direito, consubstanciada principalmente pelo direito internacional penal, capaz de reconhecer a responsabilidade internacional pelas violações de direitos humanos (Gomes; Vigo, 2008, p. 11).
A relação do direito internacional com o direito interno, na solução dos eventuais tensionamentos surgidos, essencialmente na temática dos direitos humanos, deve ser pautada pelo diálogo construtivo que deve ocorrer entres essas fontes produtoras de normas, bem como entre as cortes internacionais e constitucionais dos Estados, permitindo uma construção direcionada à prevalência da maior proteção à pessoa humana. Essa relação é nomeada por Menezes (2007, p. 140) como transnormatividade. Neves (2009, p.117-119), por sua vez, menciona que este fenômeno é viabilizado em razão das pontes de transição entre os sistemas vigentes nos Estados e que o resultado disso é uma fertilização constitucional cruzada, como decorrência das trocas recíprocas havidas nessas relações.
Essa comunicação, do direito internacional com o direito interno2, é possível devido às “cláusulas de compatibilização”; “cláusulas de diálogo”; “vasos comunicantes”; “cláusulas dialógicas” ou “cláusulas de retroalimentação” que os próprios instrumentos internacionais trazem em seu texto e permitem a harmonização da disciplina jurídica (Mazzuoli, 2021, p. 189-190).
O convívio entre os dois ramos e o grau de influência exercido reciprocamente por um sobre o outro funciona como um processo de indução a uma “constitucionalização do direito internacional e internacionalização do direito constitucional” (Bonavides, 2017, p. 45-46).
Esse cenário, conduz a uma perspectiva na qual se concebe o indivíduo como titular de direitos onde quer que ele se encontre, independentemente e dissociada do vínculo com seu Estado de origem, pois passa ser reconhecido como cidadão do mundo, consagrando um pensamento de cidadania cosmopolita (Borges, 2018, p. 19).
Assim, a importância do papel do policial civil na sociedade brasileira é destacada como agente público encarregado de aplicar as normas internacionais, com as quais o Estado brasileiro assumiu o compromisso na esfera internacional, conferindo maior efetividade aos direitos nelas reconhecidos.
No entanto, o trabalho do policial civil apresenta desafios que exigem dele preparo e condições para lidar com exposições e altos níveis de desgaste emocional, sujeito ao enfrentamento de situações complexas em ambientes hostis, com pessoas em conflito com a lei.
Em razão disso, o policial civil necessita de formação e capacitação adequada às demandas que a atividade exige no seu cotidiano, bem como proteção jurídica em decorrência de suas ações legais visando evitar consequências prejudiciais à sua saúde mental.
Ainda em relação ao ambiente de trabalho do policial civil, deve-se observar meios de protegê-lo em face de retaliações ou discriminações por força do desempenho de suas funções, pois ao agir com vistas a atingir o interesse público, está sujeito a adotar decisões que eventualmente podem desagradar pessoas ou determinados setores da sociedade.
Essas decisões, em sua grande maioria, são adotadas de forma rápida, em caráter urgente pelo policial civil, na preservação de bens jurídicos fundamentais das pessoas, bem como da sua própria vida e integridade física e, por tais circunstâncias, são insuscetíveis de desfazimento no calor dos fatos. Tudo isso, é capaz de potencializar situações e momentos de estresse elevado no policial, podendo acarretar em consequências prejudiciais à sua saúde.
Por essas razões, torna-se imperativa a necessidade de atualização constante do policial civil em relação aos métodos e práticas empregados em seu mister, essencialmente a capacitação em direitos humanos, pois uma Polícia que respeita os direitos é uma instituição forte e seguramente terá o reconhecimento da sociedade.
Torna-se essencial também, a existência de mecanismos de controle e apuração de eventuais condutas consideradas, ao menos preliminarmente, desviantes. Esse trabalho deve ficar a cargo de órgãos corregedores e ouvidorias institucionais capazes de apurar as alegadas irregularidades com isenção e respeito ao devido processo legal, ampla defesa, contraditório e todos os demais direitos e garantias deles decorrentes.
Essa cultura de respeito e promoção dos direitos humanos pelo e para o policial civil, a qual faz da Polícia Civil paulista a pioneira na questão, traz uma nova feição a este agente público, deixando de ser visto apenas como repressor, mas como aplicador dos direitos humanos e fundamentais que lhe cabem em sua atividade profissional.
O pioneirismo mencionado é caracterizado pelo grau de comprometimento com a temática dos direitos humanos nos cursos de formação e de aperfeiçoamento por ela ministrados, bem como pela exigência da disciplina em seus concursos públicos, sendo a primeira do país a demandar ao candidato o conhecimento da matéria.
Esse instrumental de conhecimento viabiliza ao policial civil o desempenho de suas funções com vistas à atender a uma sociedade plural, norteada pelas diversidades e conectada ao universalismo de confluência, de convergência, que segue além do tradicional eurocêntrico e contempla a convivência de várias culturas, de modo a assegurar um quadro de interculturalismo e multiculturalismo pelo diálogo e demonstrar alinhamento aos preceitos de direitos humanos com os quais o Estado brasileiro se comprometeu internacionalmente.
Neste contexto, o policial civil, conforme verificaremos mais adiante, está inserido em uma tutela ampla dos direitos humanos, na medida em que está compelido a observar e aplicar normas internacionais às pessoas com as quais se relaciona no âmbito profissional, bem como é titular dos mesmos direitos que assegura ou restringe aos demais indivíduos.
A tutela ampla, aqui mencionada, não se confunde com a tutela reforçada. Esta está relacionada ao rol exemplificativo de direitos e garantias fundamentais previstos essencialmente pelo art. 5º da CF, os quais recebem o reforço do próprio texto constitucional ao vedar, pelas cláusulas pétreas, a supressão deles por qualquer alteração da lei maior (Art. 60, §4º, IV).
A cultura de respeito e de promoção dos direitos humanos pelo policial civil, além de situar o Estado brasileiro, como já mencionado, em um cenário de fato democrático e de respeito às normas internacionais com as quais se obrigou perante a comunidade internacional, evita com que seja alvo de condenações pelos organismos internacionais de proteção.
Não devemos olvidar que o Estado brasileiro já sofreu condenações3 perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos por violações a diversos dispositivos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, inclusive pela ausência de proteção judicial e emprego da devida diligência na investigação de casos internos, direito à vida, privacidade, vedação à escravidão, detenções arbitrárias etc.
Cumpre ressaltar que o Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte IDH por meio do Decreto n. 4.463/2002, de modo que está compelido a adequar sua legislação e suas práticas aos precedentes do referido órgão jurisdicional do sistema interamericano de proteção. A inobservância ou descumprimento das sentenças da Corte IDH, implica em nova violação de direitos humanos.
3 Segurança pública como direito fundamental
Como direito fundamental, à segurança pública tangencia várias dimensões, mas guarda maior aproximação com o direito à paz, consubstanciada na sensação de tranquilidade pelo indivíduo de que está protegido pelo Estado contra qualquer ataque aos seus bens jurídicos, e como direito que viabiliza o exercício de outros direitos, a exemplo de buscar a educação, saúde e trabalho.
Embora o art. 5º da CF/88 tenha feito referência à segurança em termos amplos, é reconhecida a existência de direitos fundamentais previstos em outros dispositivos do texto, pois, além trazer um extenso rol exemplificativo, em razão da inexauribilidade, eles não se esgotam.
Ademais, por força da historicidade, são construídos na medida em que surgem demandas da sociedade a exigirem que o direito se adeque às novas perspectivas. Nesse contexto, cabe ao Estado garantir a segurança aos seus cidadãos com os meios e instrumentos legais necessários do seu aparelhamento para o cumprimento do ordenamento jurídico.
Sob essa perspectiva, a segurança pública, por meio de seus órgãos institucionalizados, se consubstancia na última barreira fixada entre a normalidade democrática e o caos, a desordem e o império da criminalidade e da violência sem o mínimo controle. Catalogada como direito social pelo art. 6º da CF/88, de segunda dimensão, a segurança é um direito necessário e inerente ao ser humano, indispensável ao seu desenvolvimento pessoal e coletivo, cuja falta de prestação pelo Estado compromete seus maiores bens jurídicos, a exemplo da vida, liberdade, patrimônio, privacidade e honra.
Como direito fundamental (CF, art. 5º, caput) no qual a titularidade é de todos, mas inserida dentre os direitos sociais (CF, art. 6º, caput) a segurança pública está diretamente ligada aos direitos de segunda dimensão, mas também pode ser encarada por um viés de terceira dimensão pela natureza coletiva como direito de todos. Nesse aspecto, a ordem e a segurança pública são condições essenciais à manutenção da estabilidade democrática do Estado brasileiro, sem a qual o respeito pleno aos direitos humanos e fundamentais restaria comprometido por excessos, arbitrariedades, ausência de prestação estatal, falta de controle social e impediria o alcance de sua finalidade precípua, o bem-estar social geral.
4 A dupla perspectiva do policial como destinatário dos direitos humanos
Em matéria de direitos humanos, a Polícia Civil, por meio de seus integrantes, é destinatária sob duas perspectivas. A primeira delas corresponde aos deveres como órgão estatal de persecução penal em cumprir as normas internacionais e constitucionais relativas ao assunto e em vigência no território brasileiro no tratamento das pessoas envolvidas em investigação criminal; a segunda significa que, ao ter como premissa que os direitos humanos são marcados pela característica da universalidade – logo, seus agentes também são titulares destes mesmos direitos – e em respeito à dignidade humana enquanto valor supremo da ordem democrática, a instituição deve observar e cumprir os preceitos contidos nas citadas normas quando das relações funcionais com seus servidores policiais.
Sob o viés do policial civil como destinatário em relação às pessoas envolvidas em procedimentos investigatórios desenvolvidos junto ao órgão, a roupagem institucional estabelecida a partir da CF/88 e das normas internacionais incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro impôs o dever de obediência e cumprimento por suas autoridades e agentes quanto ao respeito pelo arcabouço normativo que materializa a dignidade humana. Essa aplicabilidade ocorre por meio da fiel observância de direitos e garantias fundamentais previstas no art. 5º da CF/88 e, convencionais, essencialmente dispostas na Declaração Universal dos Direitos Humanos, primordialmente nos arts. 7º e 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, além do art. 9º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, tornando a atividade de polícia judiciária e a apuração das infrações penais condizente com os compromissos assumidos pelo Brasil em âmbito internacional.
Vale destacar que dos 79 incisos do art. 5º da CF/88, 49 deles estão direta ou indiretamente ligados à persecução penal e, muitos deles, aplicáveis também em processos e procedimentos administrativos.
Nesse contexto, reconhece-se que o policial civil é um agente do Estado responsável pela proteção dos direitos humanos, tanto em relação aos indivíduos investigados, sobre os quais recai alguma imputação delitiva, quanto no tocante às vítimas de crimes, na medida em que a ação policial visa, em muitos casos, interromper a prática criminosa.
O policial civil também é titular de direitos humanos e fundamentais e deve ter sua dignidade respeitada pelo Estado, essencialmente no plano institucional, na medida em que merece tratamento digno em suas relações funcionais, ter suas garantias processuais observadas quando na posição de investigado, condições e jornada de trabalho adequada4, estabelecimento de horários compatíveis para servidores com deficiência ou, que possuem dependentes nessa condição5, ambientes salubres, acesso a equipamentos de proteção individual, observância da normatização pertinente à segurança e medicina do trabalho, preservação de sua saúde física e mental por meio de assistência profissional e proteção social extensiva aos seus dependentes nos termos legais.
Há que se observar que as convenções da OIT6 também se aplicam às relações funcionais dos servidores públicos, pois consagram direitos que representam uma importante etapa desde os primeiros passos da internacionalização dos direitos humanos até o contexto atual.
Normas de soft law também são previstas visando a responsabilidade e proteção de direitos dos servidores públicos, incluindo os policiais civis7.
Impõe-se ainda como medida obrigatória pelo Estado e pela instituição como um todo, a fiel observância e cumprimento da recente Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, Lei n. 14.735/238, bem como, no âmbito do Estado de São Paulo, da Consolidação das Normas do Serviço da Polícia Judiciária, editada através da Portaria DGP n. 26/239, no que tocam ao feixe de atribuições dos cargos e carreiras policiais civis, de modo a evitar desvios abusivos de funções e assegurar prerrogativas funcionais. O respeito às garantias e prerrogativas funcionais dos servidores públicos policiais civis representam uma segurança à sociedade, no sentido de que suas demandas serão apreciadas e decididas por um agente público concursado, capacitado, sujeito às normas legais e infralegais e submetido a controle interno e externo de sua atividade.
Além disso, um quadro normativo que visa coibir práticas discriminatórias e de preservação da integridade física e moral também aplicáveis aos servidores públicos no âmbito das relações funcionais com os órgãos e entidades da Administração Pública10.
Outro ponto importante a ser observado é o combate ao assédio sexual e moral nas relações funcionais, prática que deve ser eliminada com orientações, conscientização das pessoas, cursos e punição criminal e administrativa aos responsáveis.
O respeito aos direitos humanos e fundamentais dos policiais civis consagra as metas estabelecidas pela ONU, essencialmente o objetivo do desenvolvimento sustentável n. 8 (ODS8), fixados durante a cúpula das Nações Unidas de 25 a 27 de setembro de 2015 em Nova Iorque.
O policial civil também deve respeitar e ser respeitado quanto à sua identidade de gênero e orientação sexual, pois embora não haja um tratado específico acerca dessa temática, deve observar os princípios de Yogyakarta, bem como as normas legais e infralegais aplicáveis, inclusive a Portaria DGP n. 08/202211 que estabelece no âmbito da Polícia Civil paulista, o dever de atentar e adotar o atendimento adequado a estas questões.
Assim, o respeito pelos direitos humanos consolidados através das normas internacionais pela Polícia Civil representa o alinhamento do país à atual concepção de cidadania cosmopolita. Significa, além disso, a conexão com a própria evolução do Estado de Direito, com a existência das relações internacionais, o conceito de soberania em face da globalização e o reconhecimento de tribunais e cortes internacionais de proteção e responsabilização por violações a esses direitos.
5 Conclusões
Os desafios do trabalho do policial civil e a necessidade de uma cultura institucional de respeito aos direitos humanos são temas centrais para a construção de uma segurança pública mais justa e eficaz. O reconhecimento da segurança pública como um direito fundamental exige que este agente não apenas proteja os cidadãos, mas também que opere em total acordo com os princípios e normas de direitos humanos.
Ao abordar a dupla perspectiva dos policiais civis como destinatários dos direitos humanos, torna-se evidente a importância de promover um ambiente de trabalho que valorize a dignidade e o bem-estar desses profissionais. Esse reconhecimento é crucial para garantir que possam desempenhar suas funções com integridade, ética e eficácia.
Para que isso seja possível, é imperativo investir em formação contínua, implementação de mecanismos de controle e promover uma colaboração estreita entre a polícia e a comunidade. Somente com uma abordagem integrada e comprometida com os valores democráticos e de justiça social será possível enfrentar os desafios do trabalho policial e construir uma cultura institucional de respeito aos direitos humanos.
Dessa forma, a construção de uma segurança pública que respeite e proteja os direitos de todos os indivíduos exige um compromisso contínuo com a adequação da instituição policial. Isso inclui a promoção de um ambiente de trabalho justo e digno para os policiais, bem como a implementação de políticas e práticas que priorizem os direitos humanos em todas as suas operações. Somente por meio de uma abordagem colaborativa, que envolva a polícia, a comunidade e os formuladores de políticas, será possível avançar rumo a uma sociedade mais segura, equitativa e humanizada, onde a segurança pública seja, de fato, um direito fundamental assegurado para todos.
Os direitos humanos, positivados por meio de tratados, convenções e demais normas de direito internacional destinadas à sua proteção, exercem papel complementar aos direitos fundamentais assegurados internamente pelos Estados e, diante disso, devem ser aplicados por todos os órgãos, Poderes, autoridades e agentes públicos em decorrência da obrigatória observância do ordenamento jurídico na pauta das ações estatais.
A Polícia Civil, na função de polícia judiciária e de apurar infrações penais, deve observar as normas internacionais de direitos humanos e os direitos fundamentais previstos na CF/88 como forma de assegurar a efetividade desses direitos durante a fase de atuação que lhe compete, além de ter os direitos de seus policiai respeitados e aplicados de modo a fomentar a cultura institucional preconizada.
2 CADH. Art. 29. Normas de interpretação. Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a. permitir a qualquer dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; c. excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.
3 Ximenes Lopes vs. Brasil (2006); Escher e outros vs. Brasil (2009); Sétimo Garibaldi vs. Brasil (2009); Gomes Lund e outros vs. Brasil (2009); Trabalhadores da fazenda Brasil verde vs. Brasil (2016); Favela nova Brasília vs. Brasil (2017);
Vladimir Herzog vs. Brasil (2018); Márcia Barbosa vs.Brasil (2021).
4 Decreto Estadual nº 52.054/2007.
5 Decreto Estadual nº 69.045/2024.
6 Convenção n. 1 (1919): Limita a jornada de trabalho a padrões razoáveis; Convenção n. 111 (1958): Proíbe discriminação no emprego e ocupação; Convenção n. 155 (1981): Estabelece diretrizes para segurança e saúde no trabalho; Convenção n. 190 (2019): Reconhece o direito de todos a um ambiente de trabalho livre de violência e assédio.
7 Declaração de Pequim sobre os Direitos e Responsabilidades do Funcionário Público (1997): reconhece a importância de proteger os direitos e a dignidade dos servidores públicos, incluindo policiais.
8 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14735.htm. Acesso em: 19 fev. 2025.
9 Disponível em: https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=%2f2023%2fexecutivo+secao+i%2foutubro%2f31%2fpag_0021_2ef43dc46f2b66e8fdfd1adbc69430b7.pdf&pagina=21&data=31/10/2023&caderno=Executivo%20I&paginaordenacao=100021. Acesso em: 19 fev. 2025.
10 Lei nº 14.457/2022: estabelece mecanismos para combater assédio e violência no trabalho (Programa + mulheres);
Lei nº 13.675/2018: institui, no artigo 42, o Programa Nacional de Qualidade de Vida para Profissionais de Segurança Pública (Pró -Vida); Lei nº 14.531 de 2023 aprovada previu a criação da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio: implementar ações de assistência social, saúde mental e a prevenção do suicídio para profissionais de segurança pública.
11 Dispõe sobre o tratamento a travestis e transexuais, no âmbito da Polícia Civil do Estado de São Paulo e dá outras providências. Disponível em: https://www.imprensaoficial.com.br/DO/BuscaDO2001Documento_11_4.aspx?link=%2f2022%2fexecutivo+secao+i%2fmarco%2f04%2fpag_0012_6d7cf3d4c4aae98b91def3573ed6225a.pdf&pagina=12&data=04/03/2022&caderno=Executivo%20I&paginaordenacao=100012https://goo.gl/hr8fdp. Acesso em: 18 fev. 2025.
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1Doutorando e Mestre em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Especialista em Direito Processual Penal pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU. Graduado em Direito pela Universidade São Francisco – USF. Delegado de Polícia Civil no Estado de São Paulo. Orcid: https://orcid.org/0009-0005-2716-5811. E-mail: giulianosorge671@gmail.com