REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10008353
João Guilherme Bastos dos Santos2;
Danielle Veras dos Santos Salles3
Resumo:
O objetivo central deste trabalho é mostrar como, ao longo da história do jornal O Pasquim, ocorrem cruzamentos, paralelos e divergências entre a identidade formada por este e os pasquins da imprensa artesanal, recorrentes no país durante o século XIX e famosos por protagonizar importantes batalhas por autonomia, além de revoltas como a chamada Revolução Praieira, em 1848. Tomamos como foco três dimensões fundamentais na formação da identidade de O Pasquim: o nascimento do jornal, a repressão sofrida e suas epígrafes. Tais pontos de contato consolidam um constante diálogo entre diferentes momentos da imprensa brasileira, que mantém relações estreitas com a realidade política vivida pelo país.
Palavras-chave: O Pasquim; História do jornalismo; Jornalismo político
As origens da palavra pasquim, do italiano paschino para designar um jornal difamador, ao português pasquim, referindo-se a sátira afixada em lugar público, convergem na caracterização de um modo específico de fazer jornalismo: mordaz, opinativo e panfletário.
Elas remontam à Itália do século XV e à figura de Pasquino, alfaiate ou barbeiro (não se sabe ao certo sua profissão) que se fazia de surdo e escutava importantes conversas da nobreza, tornando públicos seus segredos. Após sua morte, manifestos eram pendurados próximos a uma estátua construída em sua homenagem, o que perpetuava a prática de difamação contra autoridades políticas. Tais atitudes incomodavam os detentores do poder, como o papa Adriano VI, que chegou a sugerir a destruição do monumento. Foi então que o nome pasquim ganhou a conotação conhecida atualmente.
No Brasil, por sua vez, esses jornais podiam ser avistados no século XIX, antes da Independência. Nos momentos de crise política, seu poder de alcance redobrava, e eles se tornavam um espaço para a reflexão e debate de diferentes opiniões. Foi assim durante a Regência, período em que o país foi controlado por regentes por conta da pouca idade do imperador para assumir a tarefa.
O cenário político mostrou-se conturbado, com o poder disputado por três grupos: os conservadores ou “caramurus”, que exigiam a volta do imperador Pedro I, os liberais de direita e os liberais de esquerda. Alguns historiadores acreditam que tenha acontecido cerca de 200 sublevações. É esse cenário que explica o aumento na circulação dos pasquins, assim como sua linguagem radical e ácida. Era um jornalismo simples, sem floreios e, por isso, de fácil acesso à população.
A imprensa, apesar de ainda distante dos padrões dos países pioneiros, parece conseguir seu lugar ao sol, com o jornalismo exercendo, inclusive, influência sobre os rumos sociopolíticos do país, dando base aos conflitos, sobretudo os nutridos por um viés ideológico assumido. Também é nessa época que ocorre uma lenta e gradual transformação do jornalismo brasileiro.
Dessa forma, como mostram Romancini e Lago (2007, p.45), dois tipos de jornalismo convivem no país até a proclamação da República: o jornalismo pré independência, de radicalidade opinativa e descompromisso comercial, voltado para as grandes campanhas de mobilização, cujo maior representante era o pasquim; e outro ainda em seus primórdios, mas que se tornaria hegemônico, que encarava o jornalismo enquanto empreendimento empresarial, mais organizado e com melhores equipamentos, buscando atingir o maior número possível de leitores.
É quando o termo pasquim passa a ser usado de maneira pejorativa, para designar um jornal vil, de baixo calão e sem muito alcance na esfera nacional. Para Werneck Sodré (1998, p.180), quando tomado no conjunto de suas características, o pasquim é capaz de revelar as peculiaridades nacionais que marcaram a história brasileira: “Sua forma plebeia desperta, naturalmente, aversão à inteligência de timbre aristocrático que o julga e condena”.
A exposição satírica do legado dos pasquins continua presente, direta e indiretamente, em outro jornal, criado em 26 de junho de 1969: O Pasquim. Este periódico chegou às bancas durante um dos períodos mais difíceis para a história da comunicação brasileira, aproveitando o momento em que a maioria dos jornais ainda não tinha se recuperado do susto da censura escancarada, apenas seis meses depois de instituído o Ato Institucional nº5 (AI-5). O ano de 1969 era emblemático tanto para a política institucional, com o recrudescimento do regime militar, quanto para a cultura, com todos os movimentos propostos pela geração de 1960, como a Tropicália e o Cinema Novo. A história de Pasquino e sua estátua são retomadas em uma matéria feita por Chico Buarque, correspondente do jornal em Roma, explorando a “origem” do Pasquim (n°11, setembro de 1969).
As épocas que deram origem a ambos os tipos de pasquins apresentavam algumas características semelhantes: governos centralizados, defensores da “moral e dos bons costumes” e conservadores (obviamente em contextos políticos diferentes). Independentemente da censura institucional, a liberdade de imprensa era cerceada pela chamada “liberdade da faca” na segunda metade do século XIX, e por ataques com bombas caseiras contra redações e bancas de jornal no período pós-AI-5.
A presença de personalidades como Ziraldo, Henfil, Ivan Lessa, Millôr Fernandes, Luiz Carlos Maciel, Sérgio Cabral, Paulo Francis, Tarso de Castro e Jaguar, além de correspondentes e colaboradores como Chico Buarque, Ferreira Gullar, Vinicius de Morais, Glauber Rocha, Fernando Sabino entre diversos outros que constituíam a chamada “patota” do Pasquim, indica o tamanho do problema representado pelo periódico, e, principalmente, por seus objetivos. Provocações como a epígrafe “Pasquim – ame-o ou deixe-o”, (edição 58), mostram a forma como o jornal misturava humor e resistência. As epígrafes, que mudavam a cada nova edição, funcionavam como frases que condensavam humor, crítica e denúncias codificadas para driblar a censura.
O nome pasquim é comumente usado para designar um jornal sem grandes atrativos e de pouca relevância. Foi pensando neste aspecto que Jaguar escolheu o nome que consagraria a publicação, como aponta Rego (1996). O cartunista se lembrou da estratégia da Tribuna da Imprensa, que tinha uma tiragem bem menor do que a dos outros jornais e por isso era chamada, pejorativamente, de lanterninha. O adjetivo foi assimilado como símbolo do jornal, com sentido de indicar e iluminar o caminho. Jaguar resolveu fazer o mesmo com relação ao termo pasquim, antecipando as críticas que seriam dirigidas àquele modo de fazer jornalismo e utilizando-o como trunfo na definição de sua identidade.
Explicações semelhantes podem ser encontradas em diversos pasquins do século XIX que traziam, igualmente, humor em seus nomes. Dentre eles, O par de tetas, Enfermeiro dos Doidos, A Marmota e O Minhoca que, para legitimar-se, reivindica para si o título de “verdadeiro filho da terra”.
Na primeira fase de O Pasquim, caracterizada por Braga (1991) como dionisíaca, figuram algumas semelhanças mais visíveis entre o jornal e os antigos pasquins da imprensa embrionária: o modelo não empresarial; a linguagem direta e subjetiva; a parcialidade de seus jornalistas e colaboradores; as epígrafes inovadoras e criativas; as investidas contra autoridades; a ausência de divisões temáticas internas no jornal; e, talvez o mais importante, o fato do jornal inicialmente não ser considerado, nem modificado para ser, uma fonte de renda para os que o produziam. Estas são características que dão ao Pasquim elementos para construir sua imagem como tal, além de ser um alento para os que ainda tentavam resistir.
Nas capas e no posicionamento político, o diálogo entre os dois diferentes tipos de periódico na construção da identidade de O Pasquim é muitas vezes explícito. Em epígrafes como “O Pasquim – a sentinela da Saint Roman” (O Pasquim n°246) é feita uma clara alusão aos pasquins de Cipriano Barata, médico e político baiano que defendeu ativamente a soberania brasileira frente a Portugal, em 1822. Seu primeiro jornal foi a “Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco”, de 1823. As „Sentinelas‟ traziam ao final do nome o lugar onde eram produzidas; no caso de O Pasquim, a rua onde estava a sede do jornal.
Por outro lado, no contexto de repressão à imprensa pelo qual o país passava no período pós-AI-5, a alusão a este ícone das revoltas do século XIX gera um interesse peculiar. Como todo herói mitificado tem um arqui-inimigo, vale lembrar, em contraposição a Cipriano Barata, a figura de Silva Lisboa: uma espécie de “lobista”, defensor do governo imperial e representante da imprensa áulica.
Se, por um lado, a resistência combativa do chamado nanico nos remete à figura de Cipriano Barata, por outro, as rédeas curtas, a violência e a vigilância na relação entre o Estado e a grande imprensa fez com que, durante certo tempo, a epígrafe “O papel da grande imprensa: papelão” (O Pasquim n°520) fosse importante na definição da identidade de O Pasquim como um veículo alternativo. Embora no século XIX não houvesse a ideia de grande imprensa como cunhada no século posterior, essa lacuna era ocupada pela imprensa áulica, de personalidades influentes que apoiavam e muitas vezes eram financiadas pelo regime, a qual boa parte dos antigos pasquins se opunha.
A alusão à imagem de Cipriano na capa do jornal no qual a contestação ao regime e o apoio de veículos de grande tiragem à subversão eram severamente punidos pelo Estado, é um gesto simbólico importante. Neste contexto, quatro meses depois de seu lançamento, a “Sentinela da Saint Roman” comemorava a tiragem de 100 mil exemplares com a seguinte chamada: “Provado: não existe vida inteligente na televisão”, ultrapassando jornais como O Globo, O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo.
O Pasquim causou surpresa pela fome de quebrar regras e inventar novos procedimentos editoriais. Em sua primeira edição, é possível observar alguns elementos que se tornaram característicos do jornal: a linguagem jornalística mais próxima da forma coloquial; as entrevistas de capa; o ratinho Sig, mascote do jornal; as epígrafes e a presença de colaboradores, que ajudaram a manter O Pasquim nos momentos mais difíceis.
A primeira entrevista publicada no jornal foi feita com o polêmico colunista social Ibrahim Sued, que contou à equipe, com exclusividade, que Médici substituiria Costa e Silva na presidência do país. Esta entrevista iniciou um processo de mudança na linguagem jornalística ao reproduzir na escrita os coloquialismos da fala. Para o cartunista Angeli, no documentário O Pasquim, a subversão do humor, de 1999, “era difícil você ler uma entrevista despojada dentro de um grande jornal. O Pasquim trouxe um frescor maior ao jornalismo”. A partir desta, todas as entrevistas passaram a ser publicadas na íntegra e poderiam ocupar diversas páginas, sem limite fixo. Eram acrescidas de rubricas que descreviam o clima na sala, e enriquecidas com brincadeiras como colocar um pequeno balão com falas que o entrevistado jamais diria.
Outra entrevista histórica foi a da edição número 22, que trazia Leila Diniz na capa que, nitidamente, alavancou a tiragem do jornal. O sucesso e a polêmica ao redor de sua entrevista mostram como a exposição aberta da opinião de determinada personalidade é um traço inovador e atrativo que marca fortemente a identidade do jornal. Para Kucinski (1991, p.109), “apesar de superficial, ou até por isso, a entrevista de Leila funcionou como uma bofetada na hipocrisia e duplicidade de valores das elites”. Foi um sucesso tão grande que as bancas vendiam fitas com cópias da gravação.
O maior impacto da entrevista foi a quantidade de palavrões ditos pela entrevistada. Com isso, o jornal chegava a um impasse: ou substituía os palavrões, já que eles não passariam pela censura, alterando, assim, o conteúdo da entrevista, ou encontrava uma forma alternativa para manter os palavrões. A solução foi usar, na transcrição da entrevista, o recurso tipográfico asterístico, representado pelo símbolo *.
Um exemplo importante para entender a dimensão política da quantidade de palavrões disfarçados com asteriscos espalhados pelo jornal está no artigo de Rubem Fonseca “Palavrão não é pornografia” (publicado no Pasquim em dezembro de 1969), dedicado a quebrar os tabus que defendiam a imoralidade incondicional destas palavras e contestar o combate a sua utilização.
Após as inovações relacionadas à linguagem e do tabu do uso de palavrões, Ziraldo criou, através do uso de ilustrações, palavrões disfarçados por neologismos. Desse modo, puderam ser reproduzidos livremente e se tornaram famosos, sendo utilizados até hoje. Eram palavras como paca, pô, sifu, putsgrila, Cacilda etc. Para Ziraldo, no documentário O Pasquim: A Revolução pelo Cartum, “O Pasquim fora da televisão foi a única publicação do Brasil que criou modismos linguísticos”. Para Ivan Lessa, o jornal tirou as aspas do jornalismo. Para Sérgio Augusto, tirou-lhe também o paletó e a gravata.
Até então, a linguagem jornalística seguia os padrões formais da língua. Havia um laço obrigatório com a informação objetiva na qual, segundo Muniz Sodré (1986, p.9), “impõe-se ao redator o „estilo direto puro‟, isto é, a narração sem comentários, sem subjetivações”. A linguagem utilizada por O Pasquim mudou radicalmente esse panorama, pois suas epígrafes, artigos e chamadas de capa eram impregnadas, justamente, de comentários e subjetivações.
Um bom exemplo desta informalidade pasquiniana são as cartas do cartunista Henfil, supostamente destinadas a parentes. Através delas, carregadas de comentários ácidos, ele fazia críticas contundentes à ditadura militar e a diversos episódios marcantes do período, principalmente os que envolviam o governo de João Batista Figueiredo, identificado como “primo” Figueiredo. De forma direta e coloquial, Henfil expunha com certa intimidade os paradoxos e dilemas do governante, como quem chama a atenção de um primo mal criado.
Esta relação mais direta com os fatos políticos também está presente na edição 34 de O Pasquim, que fazia referência ao decreto-lei nº1077, de 26 de janeiro de 1970. Tal decreto oficializava a “intolerância a publicações de qualquer meio de comunicação contrário à moral e aos bons costumes”. Na resposta do periódico, o tom informal de afirmativas como “a liberdade, Senhor Ministro, é a liberdade de quem pensa diferente de nós” tira o assunto de seu pedestal jurídico-militar e o coloca como algo que pode ser contestado sem formalismos.
Inovações mais complexas somaram-se a estas, como os recados passados em código através de epígrafes, sobre o qual trataremos mais adiante, e as mensagens ambíguas nas imagens. Porém, no que se refere a semelhanças com a linguagem dos pasquins do século XIX, ao tom direto, informal e crítico, sem meias palavras ou rodeios, o melhor exemplo de fato são as já citadas cartas de Henfil.
Mais uma semelhança entre os pasquins pode ser destacada, dessa vez referente a seus respectivos locais de circulação. Tanto os antigos quanto o moderno circulavam em regiões de maior agitação intelectual. Para Braga (1991), o projeto inicial de O Pasquim era elaborar um jornal de humor cujo centro das atenções era Ipanema: “O pessoal que escrevia para teatro e televisão estava em Ipanema; o Cinema Novo estava em Ipanema; Tom Jobim e Vinicius de Moraes estavam fazendo Garota de Ipanema, em Ipanema.” Apesar da preferência pelo bairro da Zona Sul carioca, o jornal não mantinha uma sede física em Ipanema e, mesmo entre os integrantes da patota, apenas Millôr Fernandes tenha morado no bairro.
Ao longo de sua história, O Pasquim estava ligado à crítica de costumes e ao movimento de contracultura reinante entre os jovens da época, importado dos Estados Unidos e da Europa. Através desse movimento, também se ligava ao orientalismo, ao anarquismo e ao existencialismo de Jean-Paul Sartre. Era um jornal de esquerda, mas não ortodoxo e pragmático, o que tornava possível encontrar, lado a lado, marxistas convictos como Henfil e personalidades como Paulo Francis, cético em relação à esquerda. Muitas vezes trazia discussões e discordâncias mesmo entre seus integrantes, sem a preocupação de apontar um lado a ser assumido pelo jornal ou aparentar uma homogeneidade interna com relação a posições políticas.
Essa pluralidade de pontos de vista, fundamentados e assumidamente subjetivos, marca o desacordo do jornal com relação a ideia de objetividade una e imparcial como característica do jornalismo. O primeiro exemplar do jornal trazia a epígrafe “Aos amigos, tudo; aos inimigos, justiça”, uma provocação que dá pistas sobre o desacordo com esta pretensão.
No tocante aos pasquins embrionários, geralmente produzidos por uma pessoa só, o principal atrativo também estava relacionado às opiniões e posicionamentos de pensadores que os escreviam, respondendo a outras publicações, a políticas governistas e acontecimentos políticos, gerando expectativas quanto a novas análises e posicionamentos de outros autores de pasquins envolvidos com estes temas.
Como qualquer jornal, O Pasquim é marcado pelo contexto de uma fase histórica, com diversas características típicas de seu tempo. Tendo como bandeira o “anti-caretismo” e tudo mais que fosse “conservador, covarde e hipócrita”, artigos como “Você está na sua” de Luiz Carlos Maciel (publicado pelo Pasquim em janeiro de 1970), defendem que “o futuro já começou. Não se pode julgá-lo com as leis do passado”, e que a velha Razão é incapaz de entender o poder dos sentidos e dos instintos, não sendo útil para interpretar o mundo atual.
Com este posicionamento, o Pasquim estava disposto a arriscar uma nova concepção de jornal: semanário, com formato tabloide, dando igual importância a ilustrações e textos, e respeitando a personalidade de cada profissional em termos de opinião e linguagem. (Rego, 1996, p22)
Existem diferenças óbvias de formato e de produção técnica entre O Pasquim e os pasquins, sem prejudicar sua identidade combativa. Os inúmeros cartuns e a preocupação com a “imagem” de suas páginas foram em grande parte responsáveis pelo sucesso do tablóide e não têm semelhanças correspondentes na imprensa brasileira do início do século XIX (tendo em vista que a primeira publicação periódica ilustrada com desenhos humorísticos no Brasil data de 1844, não sendo representante da realidade dos pasquins embrionários citados no texto).
Como aponta Bezerra (2009), a fusão entre texto e imagem no jornal e o igual destaque dado a jornalistas e cartunistas em O Pasquim contrasta com a sisudez da grande imprensa da época. Este diferencial atuou (propositalmente ou não) na superação de um dos principais problemas enfrentados pela imprensa nacional: a falta de interesse por jornais “escritos”, em oposição às revistas ilustradas, relacionada com a baixa atratividade atribuída à política em geral.
Outro aspecto surpreendente em relação a O Pasquim é a sua longevidade, se levarmos em consideração que a maioria dos jornais alternativos surgidos no período durou menos de um ano. Foi o único “nanico” que, segundo Buzalaf (2009, p.13) “conseguiu, durante a ditadura militar, passar pelos diferentes momentos e formas de censura”, sempre apostando em um discurso fundamentado pelo humor e pela subjetividade.
O Pasquim enfrentou três fases distintas de censura. A primeira, pontual, que durou desde seu lançamento, em junho de 1969 até o final dos anos 1970, com a prisão de seus principais redatores; a segunda, chamada por Braga (1991) de “longa travessia”, compreende o período da prisão citado anteriormente, bem como as dificuldades financeiras enfrentadas e a instalação da censura dentro da redação, totalizando quatro anos de um relacionamento “próximo” com os censores; por fim, a última fase da censura, já mais fria e distinta, centralizada em Brasília, que durou de dezembro de 1973 a março de 1975.
A fase inicial de O Pasquim, quando havia uma censura pontual, é a mais mordaz do periódico e o “desbunde” de seus colaboradores marcava a identidade do jornal. As epígrafes do período demonstravam esse aspecto, como por exemplo: “O Pasquim não se responsabiliza pela opinião de seus colaboradores; aliás, nem pelas suas” (edição 09). Para Buzalaf (2009), à medida que o jornal caía no gosto popular, aumentando, com isso, o número de vendas, crescia também a preocupação dos censores.
Um acontecimento violento marcou esta primeira fase do jornal. Pouco depois da edição de número 39 ir às bancas com a capa: “Este número foi submetido à censura e liberado”, em março de 1970, a redação de O Pasquim, localizada à época na Rua Clarisse Índio do Brasil, em Botafogo, sofreu um atentado à bomba que destruiu a fachada do prédio e algumas vidraças vizinhas. Duas bombas foram jogadas, mas somente uma delas explodiu. Segundo Chinem (2004, p.98) “a segunda bomba não explodiu por milagre: era uma lata de chocolate em pó tamanho família e não detonou porque rompeu o pavio. Se explodisse, metade de Botafogo iria pelos ares”.
Apesar do incidente com as bombas, o ano de 1970 estava sendo muito bom para o jornal, que deixava, aos poucos, de ser exclusivo do Rio de Janeiro e do bairro de Ipanema. Ao final do ano, porém, como explica Buzalaf (2009, p.149), houveram mais incidentes: “No final de outubro, Jaguar publica uma foto montagem do quadro de Pedro Américo, „O Grito do Ipiranga‟. O cartunista adicionou à imagem de D. Pedro I um balãozinho com a frase extraída da música de Jorge Ben: „EU QUERO MOCOTÓ!!‟”.
O acontecimento envolvendo o quadro de Pedro Américo aponta um cruzamento interessante e um diálogo entre os períodos históricos dos diferentes pasquins, já que os pasquins do século XIX contribuíram obstinadamente com a Independência de 1822, sofrendo, inclusive, ataques por isso, visto que a liberdade de imprensa ainda não havia sido constitucionalmente instituída. Os autores de pasquim estariam totalmente expostos a repressões diversas por parte da Coroa ao opinarem sobre o tema.
À época da publicação de O Pasquim, havia um censor que aparecia pontualmente na redação do jornal, Dona Marina (Marina Brum Duarte), também responsável por censurar as músicas de Chico Buarque. O suposto gosto da censura por uísque teria, entre drinques de cortesias, aumentado a chance de aprovação (Chilson, 2004). O fato de ela ter aprovado a fotomontagem de Jaguar, considerada pelos militares um atentado à segurança nacional, provocou sua demissão e, poucos meses depois, a prisão de onze integrantes do jornal – alguns em suas próprias casas, outros “escondidos”, encontrados dias depois, e o mais inusitado, Paulo Garcez, preso na noite de núpcias indo à padaria comprar pão – e passam dois meses atras das grades, em um esforço por parte dos censores para tentar inviabilizar a continuação do jornal.
A colaboração espontânea de diversos intelectuais, que ajudaram a manter o jornal nos dois meses em que os principais redatores ficaram presos, aliada ao humor inabalável de O Pasquim, foi a chave para que pudessem continuar seus trabalhos. Na edição de número 74, é possível observar a seguinte frase-editorial: “O Pasquim – Apesar dos pesares”, não deixava de carregar certo humor, além de ser uma forma encontrada para comunicar aos leitores de que algo não ia bem. Há, ainda, um balãozinho no canto inferior direito que também comunicava a difícil situação enfrentada, bem como o aumento no número de colaboradores: “Ainda com algo menos, mas agora com muitos mais”. Ao todo, a edição contava com 54 colaboradores.
Para tentar explicar a ausência de seus principais jornalistas, a edição de número 72 do jornal trazia em sua capa: “Surto de gripe na redação do Pasquim”. Era uma forma irônica usada na esperança de que os leitores conseguissem ler as entrelinhas da ausência de nomes como Ziraldo, Jaguar, Sérgio Cabral, Fortuna e Luiz Carlos Maciel. As epígrafes eram uma tentativa de driblar a censura e mostrar as pressões que toda a equipe estava sofrendo: “O Pasquim sabe tudo e não quer entrar em detalhes” (edição 38), “Se alguém pensa que O Pasquim se atemoriza com ameaças e pressões, pode tomar nota de uma coisa: é verdade” (edição 56).
A prisão de seus membros foi um golpe muito forte para o periódico. E, consequentemente, as vendas também começaram a cair, mas, mesmo com todas as dificuldades, os redatores de O Pasquim decidiram dar prosseguimento às atividades. Dois meses depois, sem nenhuma explicação plausível, os membros do jornal foram soltos. Desse modo, com a liberdade da equipe de O Pasquim, a censura prévia retornou à redação na figura de um novo censor, o general Juarez Paz Pinto, pai de Helô Pinheiro, a eterna garota de Ipanema.
Novamente, um vínculo foi estabelecido até que, como havia acontecido com Dona Marina, o general aprovou uma entrevista que desagradou os militares, o que provocou seu desligamento. Em junho deste mesmo ano, 1973, pouco antes da censura ser transferida para Brasília, O Pasquim comemorava quatro anos de existência com a edição de número 200. A censura em Brasília foi a pior fase à qual o jornal esteve submetido, pois os redatores perderam sua principal arma: o poder de barganha com os censores. As matérias deveriam ser mandadas para avaliação com uma semana de antecedência, já eram devolvidas censuradas e, portanto, no formato considerado correto.
Com o humor peculiar ao jornal, Jaguar colocava de dois a três datilógrafos para copiar livros inteiros de Graciliano Ramos e Jorge Amado, que eram encaminhados em uma pilha aos censores em Brasília, junto com os 10% que formariam o jornal. Nessa mesma época, O Pasquim, assim como outros jornais, começou a dar mais destaque às notícias de âmbito internacional, aproveitando o autoexílio de alguns colaboradores, como Ivan Lessa, que estava em Londres, e Paulo Francis, em Nova York.
No documentário O Pasquim: a Revolução pelo Cartum (Chilson, 1999), Sérgio Cabral afirma que “o jornal, que era uma escola risonha e franca, deixou de ser, porque a censura e a pressão foram muito violentas”. Para Jaguar, “a censura atrasava muito porque tinha que mandar uma semana antes. Como era um jornal semanal, perdia a qualidade e foi então que começou o declínio, lento e gradual, como a abertura”. Para Fortuna, “O Pasquim começou a se tornar mais político e foi decaindo de qualidade porque já tinha passado aquele momento em que ele era a única válvula de escape que existia para toda imprensa brasileira”.
As epígrafes do período ajudam a entender a situação descrita por parte da patota. Por mais que seja possível identificar o tom humorístico com que os redatores denunciavam suas condições de trabalho, é possível perceber certa ressalva: a fim de evitar cortes muito bruscos nas edições que eram encaminhadas à Brasília, o jornal passou a adotar uma espécie de autocensura, além de matérias frias, que poderiam ser publicadas sem grandes transtornos. O jornal do desbunde tornava-se, então, um jornal comedido. Abaixo, algumas epígrafes, apontadas por Buzalaf (2009, p.168):
- Edição 248: “O Pasquim – um jornal que não vê o final do túnel”.
- Edição 261: “O Pasquim – um jornal que não é editado por seus editores”.
- Edição 271: “Um jornal dis ten di do”.
O Pasquim passou a circular sem qualquer tipo de censura em 29 de março de 1975, na edição de número 300 com a seguinte frase como lema: “Imprensa é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Para Chinem (2004, p. 103), “O Pasquim voltou a circular „sem censura‟, o que não queria dizer necessariamente „com liberdade‟”. Epígrafes como “Um jornal alegre e cheio de apreensões” n° 306, “Um jornal apreensivo” n° 378, apontam para o problema das apreensões de edições do jornal nas bancas. Assim, ocasionalmente, a censura voltava e, para que os leitores pudessem identificar que aquela edição não tinha sofrido qualquer tipo de intervenção, o jornal circulava com uma espécie de carimbo dizendo “enquanto você encontrar este carimbo, O Pasquim continua sem censura prévia”.
A principal diferença entre as repressões deste tipo, sofridas em ambos os momentos históricos citados, era que O Pasquim, ao contrário dos pasquins, não podia ou pelo menos não devia divulgar oficialmente o ocorrido, por não ter permissão dos censores para isso. Se, por um lado, o pasquineiro Luiz Carlos May podia denunciar em seu pasquim que foi vítima de um atentado encomendado no século XIX, além de apontar os mandantes, O Pasquim, por outro, até poderia citar o atentado passando pela censura, mas dificilmente conseguiria apontar publicamente os mandantes sem represálias. Com isso, as epígrafes, como mostrado anteriormente, são utilizadas para driblar a censura e para manter o público informado sobre seu posicionamento.
No final dos anos 70, o tema central de O Pasquim era a anistia e o retorno dos exilados políticos. Este período também marca uma breve recuperação no número de vendas. Outro cruzamento simbólico entre os pasquins ocorre quando o jornal vai até a prisão Frei Caneca, nome de outro pasquineiro panfletário integrante de diversas revoltas coloniais, em uma busca de depoimentos para contribuir com o movimento pela anistia. Se os velhos pasquins davam voz política a ativistas engajados, em sua maioria republicanos, e, principalmente, àqueles que não recebiam apoio do governo – reconhecendo a existência de raras exceções que não cabe a este trabalho detalhar – o Pasquim entrevistou diversos exilados, sem muitas restrições políticas, ressaltando novamente seu posicionamento de patrulheiro da contracultura e berço que reunia opositores de várias correntes.
No auge do movimento pela anistia, o periódico entrevistou, edição após edição, os anistiados que, de uma forma ou de outra, retornavam ao país. Assim como Cipriano Barata, Frei Caneca, Luiz Carlos May, Soares Lisboa, Borges da Fonseca e outras pedras no sapato do governo conservador se manifestavam em seus pasquins, O Pasquim deu voz para resistentes como Alberto Dines, Márcio Moreira Alves, Vladimir Palmeira, Hélio Pellegrino, Darcy Ribeiro, Luiz Carlos Prestes, Leonel Brizola e diversas outras personalidades influentes que, por algum motivo, haviam sido expulsas de seu veículo ou de seu país, ou, ainda, de ambos. Soma-se a esse esforço a publicação, pela Codecri (ligada ao jornal), de livros como O que é isso companheiro? de Fernando Gabeira, ainda em um movimento de potencialização da voz dos anistiados no país.
Por fim, outro ponto de contato entre os dois tipos de pasquim está em seus diferentes tipos de epígrafe. Enquanto o Pasquim utilizada humor e avisava que “Dá um boi para não entrar na briga, dá uma boiada para sair dela” (edição 152), que “Quem tem jornal tem medo” (edição 488), e que estavam “Prontos para resistir até a primeira gota de sangue” (edição 195), o pasquim O Trinta de Junho dizia que “O sangue derramado pede sangue”. Outro pasquim, O Martelo, recitava “Protesto martelar sem piedade/ A quantos contra a Pátria aparecerem” em um humor talvez não proposital. Nas indiretas, temos O Buscapé, que advertia “Nós somos gente, portanto cavalgar também sabemos”.
Outras epígrafes do Pasquim apontam para um perfil mais combativo, como “Um jornal que não tá achando a menor graça” do n°527, “Ou vai ou racha. Nós achamos que racha” n° 182, “Somos contra tudo que a gente pode ser contra” do n°10 e “O voto é o AI-5 do povo” do n°455, além das indiretas como “Um jornal de um pessimismo lento e gradual” do n° 394, mostram um perfil mais próximo à acidez dos pasquins do século XIX. O jornal chegava a divulgar ditos de opositores como suas próprias epígrafes, como em “O Pasquim – um jornal inescrupuloso, ético, faccioso, parcial (coronel Ludwig)”, n°508.
Embora O Pasquim não tenha divulgado nenhum caso em que um integrante do jornal deu marteladas em figuras autoritárias – como promete seu ancestral do século XIX – a chamada “Vamos votar pra quebrar”, (edição 698), mostra empenho em outras formas de enfrentamento conforme a evolução da conjuntura política do país, que apresentava possibilidades extremamente diferentes das vivenciadas por seus antecessores.
Este artigo procurou apontar a cumplicidade e o diálogo existentes entre o Pasquim de 1969 e os pasquins do período pré-Independência. O descontentamento com a cobertura branda de jornais com finalidades comerciais em diferentes momentos históricos, aliado à linguagem simples e direta, bem como a parcialidade de colaboradores que fazem questão de expor suas opiniões, parece redobrar o poder de alcance destas publicações.
1Trabalho apresentado ao GT de História do Jornalismo no 3° Encontro Regional Sudeste de História da Mídia, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 14 e 15 de abril de 2014
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ACERVOS ONLINE
O Pasquim: A Revolução pelo Cartum. Dir. Louis Chilson. São Paulo: TV SENAC, 1999. 50min.
<http://www.youtube.com/watch?v=K1lJr2ipV3c&list=PLD40F695F18F5FCED> (parte 1)
<http://www.youtube.com/watch?v=NSeOOzgXQU8&list=PLD40F695F18F5FCED> (parte 2)
<http://www.youtube.com/watch?v=cNxsFPMHYRU&list=PLD40F695F18F5FCED> (parte 3)
<http://www.youtube.com/watch?v=mqYZ9885lC4&list=PLD40F695F18F5FCED> (parte 4)
O Pasquim: A Subversão do Humor. Dir. Louis Chilson. Brasília: TV Câmara, 2004. 50min. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/tv/materias/DOCUMENTARIOS/164411O-PASQUIM—A-SUBVERSAO-DO-HUMOR.html >
2Doutor pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pós-doutor pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD);
3Bacharel em Comunicação Social e jornalista pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pós-graduada em Comunicação Empresarial pela Universidade Estácio de Sá e pós-graduada em Marketing Digital pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso(FACHA).