O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA CONSTRUÇÃO DO ORÇAMENTO PÚBLICO

THE ROLE OF THE JUDICIARY POWER ON THE CONSTRUCTION OF PUBLIC BUDGET

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202504292135


Paulo Henrique Krensiglova Silva¹


Resumo: O artigo explora os limites que delimitam a intervenção judicial no controle de receitas e despesas públicas, a partir de uma análise doutrinária e da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4º Região.

Palavras Chave: Neoconstitucionalismo; controle judicial de políticas públicas; orçamento público.

Abstract: The article explores the limits to the judicial review on the public budget, from the point of view of law doutrine and the legal costume of the brazilian Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Keywords: Neoconstitucionalism; judicial review of public politics; public budget.

1. Introdução

O presente artigo pretende analisar as balizas de intervenção do Poder Judiciário na revisão das leis orçamentárias, tendo por referencial a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

Apesar dos inúmeros limites estabelecidos na legislação, e das volumosas arrecadações obtidas em um dos países com a maior carga tributária do mundo, o Brasil enfrenta problemas crônicos no cenário fiscal. Há tempos, economistas, gestores e juristas têm buscado soluções para falta de planejamento orçamentário, transparência do gasto e representatividade legislativa.

No campo jurídico, especialmente no âmbito do Direito Financeiro, o tema tem sido analisado – como tem acontecido com as mais variadas frentes – sob o enfoque do direito constitucional e do fomento à democracia participativa, o que, inevitavelmente, envolve a discussão acerca do intervencionismo judicial na construção das políticas públicas. A presente análise, como adiantado, estará concentrada, notadamente, na revisão judicial das leis orçamentárias.

Decisões sobre o tema são encontradas de maneira pulverizada na jurisprudência. Em sua grande maioria, sem muita verticalidade na análise, e com extrema parcimônia dos magistrados. E não poderia ser diferente. O trabalho jurisdicional nessas hipóteses é ainda mais intrusivo e conflitante com o princípio da separação dos Poderes do que o mero controle de legalidade e constitucionalidade das ações e omissões do Poder Público.

Além da falta de legitimidade democrática do Judiciário para direcionar o dinheiro público, há o risco de uma imposição irrefletida ao gestor trazer por consequências indesejáveis o desrespeito às próprias normas constitucionais que regulam a gestão financeira do Estado. Afinal, o aplicador do Direito, por mais cauteloso que seja, jamais terá a mesma perspectiva das contas públicas que possui o administrador.

Sob outra perspectiva, a atuação do Judiciário como instância contramajoritária e a proximidade das leis orçamentárias com o cotidiano social permitem inferir que intervenções bem construídas possam trazer resultados eficientemente inéditos para o manejo do gasto público. Notadamente, para coibir atuações desmedidas e ilícitas dos gestores públicos.

Não é novidade que, com não pouca frequência, o orçamento brasileiro é vítima de mutilações, alvo do lobismo e instrumento de “pechincha”. Essas leis talvez sejam os diplomas normativos que espelhem, com a maior precisão possível, a falta de representatividade da população e a crise institucional vivenciada no País.

Com isso, se por um lado a judicialização do orçamento representa, por si só, uma intrínseca desconformidade a uma série de postulados que estruturam o Estado de Direito Constitucional, uma blindagem dessas espécies legislativas, além de ser incompatível com os vetores do constitucionalismo contemporâneo, pode sujeitar o erário público a consequências nefastas.

Assentadas essas premissas, o presente artigo dedicará sua primeira etapa a sintetizar os pressupostos dogmáticos que justificam a intervenção judicial nessas hipóteses, delineando os contornos do neoconstitucionalismo, do intervencionismo judicial e, especialmente, dos limites da intervenção judicial em políticas públicas.

Na segunda parte, analisar-se-ão as características das leis orçamentárias, sua natureza jurídica e os pontos de contato entre o direito orçamentário e o direito constitucional. Por fim, serão apresentados os pontos conclusivos destacados, traçando-se um paralelo com as resoluções do Tribunal Regional Federal da 4ª Região sobre o tema, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões a respeito.

Quanto à metodologia, adotar-se-á abordagem qualitativa, utilizando-se de métodos de pesquisa bibliográfica e documental, com escopo em pesquisa descritiva e explicativa. Ao final, far-se-ão estudos de casos, com base na jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

2. O Controle Judicial da Gestão Pública

2.1. Neoconstitucionalismo e o papel do Judiciário

Ao longo dos séculos, os instrumentos jurídicos que perfectibilizaram a busca por remediar as neutralidades indevidas dos textos legislativos e das arbitrariedades dos poderes legitimados foram os textos constitucionais. A legalidade estrita e a obediência cega ao conteúdo expresso em regras há muito deixaram de ser os balizadores dos aplicadores do Direito. Percebeu-se, a muito custo, a necessidade de estabelecer barreiras hierarquicamente consistentes para as produções legislativas e para os atos imperiais, cujos efeitos não raras vezes conduziam, e por vezes ainda conduzem, a injustiças e barbáries.

A compreensão atual de que Constituição é norma suprema do ordenamento jurídico, portanto, é produto de uma sucessão de conhecimentos produzidos por pensadores dispersos e, como adverte Eduardo Cambi, coincide com a própria superação da validade meramente formal do Direito, segundo a qual o mero cumprimento por parte do Estado do conteúdo aprovado pelo processo legislativo bastaria para angariar sua legitimidade².

Como salienta Luís Roberto Barroso, a defasagem do Estado de Direito atingiu seu ápice com o advento dos governos totalitaristas, momento em que verdadeiros genocídios aconteceram sob a guarnição de um regime primitivamente democrático:

O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A ideia de que o debate acerca da justiça se encerrava quando da positivação da norma tinha um caráter legitimados da ordem estabelecida. Qualquer ordem.³

O preenchimento dessa lacuna do “legalismo acrítico” é um dos escopos do movimento denominado de neoconstitucionalista que tem por corolários a elevação a status constitucional de princípios de regularidade processual, a constitucionalização dos direitos fundamentais, a vinculação do legislador, do Executivo e do Judiciário à realização dos objetivos constitucionais, a supremacia da dignidade da pessoa humana, o fortalecimento dos mecanismos de controle de constitucionalidade, dentre outros diversos.

Tais implementações paulatinamente ampliaram o espectro de aplicação do sentimento de justiça material aos casos concretos, protegendo valores fundamentais de Estado, que já não podem, em teoria, ser ignorados por quem quer que seja, em qualquer espécie de relação política, jurídica ou social.

Sob essa perspectiva, as normas constitucionais fornecem os conteúdos que espelham o conceito mais próximo de justiça que se há para uma determinada nação, ao qual todas as instâncias do Estado e da sociedade devem obediência. Em posse desses conteúdos, ao intérprete do Direito incumbe corrigir e complementar a voz normativa contida em um texto legal, veiculada à luz de um caso concreto, conforme pontua Luís Roberto Barroso:

Com o avanço do direito constitucional, as premissas ideológicas sobre as quais se erigiu o sistema de interpretação tradicional deixaram de ser integralmente satisfatórias. Assim: (i) quanto ao papel da norma, verificouse que a solução dos problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato do texto normativo. Muitas vezes só é possível produzir a resposta constitucionalmente adequada à luz do problema, dos fatos relevantes, analisados topicamente; (ii) quanto ao papel do juiz, já não lhe caberá apenas uma função de conhecimento técnico, voltado para revelar a solução contida no enunciado normativo. O intérprete torna-se coparticipante do processo de criação do Direito, completando o trabalho do legislador, ao fazer valorações de sentido para as cláusulas abertas e ao realizar escolhas entre soluções possíveis.4

Com isso, deixa-se de confinar a produção de normas jurídicas e a formulação de políticas públicas a estruturas rígidas do poder do Estado, insuscetíveis a um processo deliberativo, e efetivamente representativo. Passa-se, pelo contrário, a valorizar o diálogo entre as instituições, fomentando a busca de resultados cada vez mais efetivos na administração do interesse público.

O desenvolvimento do intervencionismo judicial, portanto, tem por pressuposto necessário o fortalecimento dos textos constitucionais, o que ocorre por meio do enaltecimento da teoria dos princípios e da eficácia dos direitos fundamentais. Tanto aqueles que se caracterizam como liberdades negativas, que se realizam meramente com a não atuação do Estado, como aqueles direitos prestacionais cuja implementação enseja uma atuação positiva do Estado, e se faz necessária para que seja resguardado o “mínimo existencial”. Isto é, o núcleo essencial de garantias que se fazem necessárias para sejam condições mínimas para uma vida digna.

Valendo-se desses vetores, cabe ao intérprete aplicar, casuísticamente, a justiça diante do caso concreto, utilizando como paradigma para sua atividade de silogismo o próprio texto constitucional.

A delimitação dos limites para intervenções dessa estirpe, no entanto, muitas vezes não encontra fórmulas simplistas, já que pressupõe a reavaliação de preceitos basilares. Especialmente, no que diz respeito à intervenção judicial no controle de políticas públicas, e, consequentemente, das receitas e despesas públicas.

2.2. Os parâmetros para o controle Judicial de Políticas Públicas

O poder jurisdicional é espécie de exercício do poder estatal essencialmente técnica. Seu escopo circunscreve-se à aplicação do Direito, à extração do conteúdo normativo contido no texto legal elaborado pelos representantes eleitos a ser incidido diante de um caso concreto.

O jurista opera naturalmente com conceitos vagos e indeterminados, cujos conteúdos somente são significados à luz de um contexto fático. Sua atividade é o próprio silogismo. Não há, e nem há como existirem, portanto, regras enxutas para a revisão jurídica, especialmente, das decisões discricionárias dos administradores públicos, as quais, por vezes, operam por si só com critérios genéricos, e injustificáveis sob um ponto de vista técnico.

Essa máxima é ainda mais verídica para a implementação dos direitos sociais já que a dificuldade em se definir o conteúdo desses direitos é decorrência da própria intenção do constituinte de deixar aberta a margem de discricionariedade ao administrador, para que este aja de acordo com a possibilidade financeira existente.5

Uma vez que o critério de seleção dos membros do Judiciário é pautado na técnica, a forma de ingresso não ocorre pela via democrática. No Brasil, o provimento dos cargos de primeira instância é exclusivamente por concurso público. No segundo, por indicações, que variam entre membros já pertencentes ao quadro e juristas de outras áreas.

Fato é que não há participação popular em nenhuma das fases, de modo que o direcionamento pelo Judiciário da gestão dos recursos públicos já caracteriza uma intrínseca violação ao esquema básico da tripartição de poderes de Montesquieu, como adverte a doutrina:

Nada obstante, é preciso reconhecer que, em um regime de governo que se pretenda democrático, os limites de atuação desse Poder que não advém de eleições devem ser estritamente aqueles determinados na Constituição da República, não cabendo jamais uma interpretação ampliativa, mas, ao contrário, sempre restritiva das esferas de atribuição jurisdicional face aos demais poderes cujos integrantes e decisões auferem legitimação direta ou indireta no voto popular.6

Como primeira consequência, portanto, qualquer espécie de intervenção judicial nas funções próprias dos administradores públicas deve ser admitida sempre de um ponto de vista excepcional.

Até porque o aplicador do Direito é alheio ao cotidiano das demandas públicas e do arcabouço de conhecimento orçamentários e administrativos que envolvem o equacionamento do dinheiro público. Como pontuado pelo Ministro Luís Roberto Barroso no Recurso Extraordinário n° 592.581:

O Judiciário não tem a visão sistêmica das demandas e o Judiciário normalmente é preparado para fazer micro-justiça, a justiça do caso concreto, com muita dificuldade de avaliar impactos sistêmicos das suas decisões pontuais. Em um modelo ideal, quem tem que tomar essas decisões e implementá-las é o Poder Executivo.7

Assim, qualquer decisão judicial que interfira no orçamento deverá sempre estar subsidiada de elementos técnicos que justifiquem a adoção da alternativa indicada pelo magistrado. Raciocínio este incorporado no art. 375 do Código de Processo Civil8, a exemplo:

Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.

Até porque, de modo natural, não podem ser olvidadas as limitações típicas do Poder Judiciário à esfera processual. Ou seja, só podem ser submetidos à análise do julgador os argumentos e subsídios técnicos que são levantados pelas partes. Não se pode exigir do julgador, dessa maneira, “um objetivo inalcançável, qual seja, considerar, de antemão, e mesmo quando tais argumentos não são invocados, todas as possíveis repercussões, exigindo corresponsabilidade das partes e instituições no processo decisório”9.

Não se deve deixar de mencionar, ademais, que as políticas públicas lidam inexoravelmente com um cenário de escassez de recursos. Como retrata Carl Sunstein:

The Declaration of Independence states that “to secure these rights, Governments are established among men.” To the obvious truth that rights depend on government must be added a logical corollary, one rich with implications: rights cost money. Rights cannot be protected or enforced without public funding and support.10

A satisfação de direitos fundamentais presume a realização de gastos que nem sempre se encontram disponíveis ao administrador. Nesse contexto, emerge o debate doutrinário acerca da “reserva do possível”.

Para Ingo Wolfgang Sarlet, a reserva do possível é medida de proporcionalidade entre a prestação a ser concedida e os recursos disponíveis ao administrador. Desse modo, “mesmo em dispondo o estado de recursos e tendo poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável”¹¹.

Invariavelmente, a adoção ou não de determinada política pública em prol de determinado direito ou garantia – e, em última análise, de toda decisão que afete direta ou indiretamente o orçamento público – significa o sacrifício ou benefício de outro direito ou garantia. Como citam os autores americanos:

Both the right to welfare and the right to private property have public costs. The right to freedom of contract has public costs no less than the right to health care, the right to freedom of speech no less than the right of decent housing. All rights make claim upon the public treasury.¹²

Até porque não são somente as prestações ativas do Estado como a efetivação de direitos sociais – que reclamam ao erário público, mas também as prestações negativas voltadas ao combate do mau uso ou uso desvirtuado de direitos básicos. Assim, imposições judiciais que não ponderem adequadamente as possibilidades de custeio da prestação concedida podem gerar consequências nefastas, como adverte Luis Roberto Barroso¹³.

Nessa perspectiva, é necessário que o jurista tenha conhecimento integral das implicações de suas decisões. Não somente dos resultados práticos das prestações deferidas, mas também do modo pelo qual será feito o equacionamento orçamentário das determinações. Para tal mister, faz-se necessário que a norma jurídica orçamentária seja compreendida em todas as suas dimensões, sem o que a análise das possibilidades do controle judicial será incompleta.

3. Orçamento Público

3.1. Natureza jurídica e dimensões da Lei Orçamentária

O orçamento é lei, no sentido formal, de efeitos concretos materiais, tratando-se de instrumento jurídico pelo qual se autoriza a realização de gastos e a obtenção de receitas, sem criar direitos subjetivos e sem modificar as leis tributárias e financeiras.

Com efeito, não há qualquer ação estatal legitimada que não esteja direta ou indiretamente atrelada a uma despesa e a uma receita enumerada em uma das três subespécies de normas orçamentárias classificadas no texto Constitucional: a) a lei orçamentária anual (LOA); b) a lei de diretrizes orçamentárias (LDO) e; c) o plano plurianual (PPA).

Antes de tudo, portanto, é necessário ser delimitada a natureza material das leis orçamentárias. Como afirma Alfredo Augusto Becker, enganam-se aqueles que atribuem ao orçamento mera função contábil, de previsão de despesas e receitas, já que “a regra jurídica que aprova o orçamento Público é a regra de Direito Positivo na qual se concentra o mais intenso grau de positividade; ela é, a priori, a mais constitucional das regras jurídicas”.14

Não obstante sob um ponto de vista lógico, defendido pela doutrina majoritária, normas orçamentárias não ostentem as características de generalidade e abstração que lhe conferem a natureza de norma em sentido material, é inegável que o assento constitucional que possuem eleva o patamar normativo das leis orçamentárias, a ponto de permitir, inclusive, o controle constitucional concentrado15. Um dos fundamentos para tal controle, como ressalta Harrisson Ferreira Leite, é que

(…) importa é a submissão à Constituição, independente da roupagem jurídica que o orçamento assuma (…). Uma vez a previsão clara na Constituição, com regras orçamentárias formais e materiais, qualquer violação resultará na declaração de sua inconstitucionalidade.16

Com efeito, o orçamento é a norma jurídica que dirige o programa de governo, sendo responsável por definir os meios, os prazos e concomitantemente avaliar o cumprimento dos objetivos definidos pelos poderes investidos:

A partir de meados do século XX, a preocupação estrita com o equilíbrio contábil anual das contas públicas cede lugar a considerações mais amplas a respeito da função social do orçamento público, o que faz surgir o “orçamento-programa”, definível como um processo por meio do qual se expressa, se aprova, se executa e se avalia o nível de cumprimento do programa de governo para cada período orçamentário, levando em conta as perspectivas de médio e longo prazo, uma vez que, ao refletir os recursos financeiros a serem aplicados no exercício, haveria de constituir um instrumento de planejamento.17

A orçamentação, portanto, é processo complexo, e não deve ser interpretado apenas como um pressuposto para o gasto público, mas como um resultado moroso de escolhas técnicas, políticas e administrativas premeditadas. O administrador público encontra uma série de limites jurídicos, técnicos e administrativos para o manejo das receitas e despesas públicas. Limites estes que, inequivocamente, devem ser considerados em uma eventual revisão judicial da lei orçamentária.

3.2. Limites à disposição do orçamento público

O regramento orçamentário possui arcabouço legislativo disperso, com institutos e classificações que lhe são peculiares. Para além da espécie de imposição (jurídica, administrativa, contábil), os limites que regulam disposição dos recursos públicos podem ser diferenciados em mais duas categorias: os limites que incidem na etapa de elaboração da lei orçamentária e os limites que incidem na etapa da execução orçamentária propriamente dita.

O artigo 167 da Constituição FederaL é responsável por enumerar em seus vários incisos algumas das regras jurídicas basilares para a orçamentação, tais como a(o): a) vedação ao início de programas não previstos na Lei Orçamentária Anual; b) realização de despesas que excedam os créditos orçamentários ou suplementares; c) realização de operações de créditos que excedam as despesas de capital; d) vinculação de receitas, ressalvadas as exceções previstas no texto constitucional; e) abertura de crédito suplementar ou especial sem aval legislativo; d) transposição de recursos de uma categoria para outra, ou entre órgãos, sem autorização legislativa; e) concessão ou utilização de créditos ilimitados; f) uso de recursos dos orçamentos fiscal e da seguridade social para cobrir déficits de estatais, fundos e fundações; g) instituição de fundos sem previsão legislativa; h) transferência de recursos voluntária para pagamento de despesas com pessoal; i) utilização de recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, inciso I, alínea a, e inciso II, da CF para o custeio de despesas que não os benefícios do regime geral de previdência social; j) utilização de recursos proveniente de regime próprio de previdência para o custeio de despesas que não o pagamento de benefícios previdenciários; e assim seguem18.

Como se observa, a grande maioria das regras estabelecidas pelo Constituinte se dirigem ao próprio legislador orçamentário. Uma forma evidente de colocar os mecanismos de austeridade fiscal a uma espécie de norma jurídica de alteração mais rigorosa. Como afirmam os doutrinadores americanos: “A constitution that does not organize efetive and publicly supported government, capable of taxing and spending, will necessarily fail to protect rights in pratice”.19

É também na fase de formulação e deliberação das leis orçamentárias que o gestor público deve demonstrar um grau de eficiência em suas escolhas, que transborda o mero parâmetro de legalidade exigido para os atos administrativos. Nessa linha, cabe memorar a lição de Juarez Freitas acerca dos requisitos de juridicidade do ato administrativo:

(…) são requisitos de juridicidade dos atos administrativos (mais que de vigência e validade), sob pena de degradação dos princípios e direitos fundamentais:

(a) a prática por sujeito capaz e investido de competência (irrenunciável, exceto nas hipóteses legais de avocação e de delegação);
(b) a consecução eficiente e eficaz dos melhores resultados contextuais, nos limites da Constituição (isto é, a exteriorização de propósitos de acordo com as prioridades constitucionais vinculantes, de modo sustentável, com a necessária compatibilização prática entre equidade e eficiência); (c) a observância da forma, sem sucumbir aos formalismos teratológicos;
(c) a devida e suficiente justificação das premissas do silogismo dialético decisório, com a indicação clara dos motivos (fatos e fundamentos jurídicos);
(d) o objeto determinável, possível e lícito em sentido amplo.

À luz desses requisitos (mais substanciais do que de forma), inadiável recalibrar a amplitude de sindicabilidade dos atos administrativos. De fato, o ato administrativo precisa estar em conexão explícita com o plexo de princípios constitucionais, não apenas com as regras, o que engrandece a missão dos controles: a liberdade do administrador terá de ser constitucionalmente defensável, não bastando ser legal. Importa, a partir daí, reorientar o controle da discricionariedade, presentes as premissas acima.20

É nesse ponto que devem ser revisitados os inúmeros parâmetros voltados à legitimação das decisões de mérito em matéria de Políticas Públicas. Da perspectiva jurídico-orçamentário, em síntese, a receita ou despesa pública prevista deve ser justificável de um ponto de vista constitucional, e não meramente embasada na Constituição, já que, em primeira ou última instância, qualquer prestação pública do Estado, por mais irrisória que o seja, está atrelada à efetivação de um determinado direito fundamental. E, portanto, juridicamente motivada.

Além do fato de a Constituição Federal dedicar capítulo específico à disciplina no sistema orçamentário, o controle dos orçamentos e balanços, por exemplo, tem regras que só estão definidas na Lei 4320/1964. As normas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, por sua vez, só se encontram na Lei Complementar n° 101/2000. E, é claro, as disposições gerais para a disciplina das receitas públicas derivadas – tributárias – constituem matéria própria do Código Tributário Nacional.

No dia a dia da execução orçamentária, no entanto, há outra infinidade de regras técnicas, cuja obediência se faz de igual importância para garantir o equilíbrio das contas públicas. Citem-se, a exemplo, em matéria de contabilidade pública, as regras previstas no MCASP (Manual de Contabilidade aplicada ao Setor Público), no MDF (Manual de Demonstrativos Fiscais), no Manual da Despesa Nacional, para não serem citadas as normativas peculiares aos Tribunais de Contas Estaduais, Municipais e da União que devem observadas para a prestação de contas.

Diante desse panorama, o julgador não pode estar alheio às consequências que advém de suas decisões; não somente dos resultados materiais, mas das consequências práticas para instrumentalizar os provimentos judiciais. Trata-se de regra jurídica inscrita na própria Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro:

Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)    

Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas. (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018)²¹

De posse desses postulados, faz-se possível um exame preliminar das decisões proferidas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região.

4. Revisão Judicial das Leis Orçamentárias

4.1. Controle da receita pública

A intervenção judicial na receita pública pode ocorrer sob as mais diversas formas de controle. Determinada norma tributária pode ser reputada ilícita por onerar indevidamente fato já tributado, em hipótese não prevista na Constituição. Lei que estabeleça incentivo fiscal pode ser invalidada ao pretexto de que autorize renúncia de receita excessiva ou contrária aos requisitos previstos na Constituição.

Em caso apreciado pelo TRF-4 sob a relatoria do Desembargador Leandro Paulsen, foi questionada, por meio de ação popular, a juridicidade de dispositivo da Lei 12.838/2013 que institui, em favor das instituições financeiras, modalidade de crédito presumido:

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO POPULAR. INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO PRESUMIDO. LEI 12.838/13. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E DO MÉRITO DA OPÇÃO DE POLÍTICA MONETÁRIA E FISCAL. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. 1. Ação popular em que o autor discute a legitimidade e constitucionalidade  das opções políticas a cargo do Legislativo e das deliberações do Executivo em matéria de finanças públicas, especialmente diante do crédito presumido instituído pela Lei 12.838/13 em favor de instituições financeiras, apurado na forma de devolução de tributos incidentes sobre provisões de créditos de liquidação duvidosa.  2.Não cabe ao Poder Judiciário  substituir o legislador e assumir a   atribuição do Poder Executivo,  reformulando ou afastando critério de política  monetária e fiscal. 3. Controle de constitucionalidade inviável na hipótese, pois não é adequado o uso da ação popular como sucedâneo de ação direta de inconstitucionalidade, para expurgar do ordenamento norma tida pelo cidadão como incoerente com o sistema constitucional.²²

Embora o fundamento principal para a não admissão da ação tenha sido a inadequação da via processual como substitutiva de medida de controle direto de constitucionalidade, destacou o Relator a impossibilidade de o Judiciário afastar critério de política monetária e fiscal, substituindo a medida elegida pelo Poder Executivo, nos limites de suas funções. Citou-se ensinamento de Pedro Lessa:

Em substância: exercendo atribuições políticas, e tomando resoluções políticas, move-se o poder legislativo num vasto domínio, que tem como limite um círculo de extenso diâmetro, que é a Constituição Federal. Enquanto não transpõe essa periferia, o Congresso elabora medidas e normas, que escapam à competência do poder judiciário. Desde que ultrapassa a circunferência, os seus atos estão sujeitos ao julgamento do poder judiciário, que, declarando-os inaplicáveis por ofensivos a direitos, lhes tira toda a eficácia jurídica.²³

Ao observar a viabilidade processual do objeto da discussão, o julgador apontou que o provimento da ação implicaria na invalidação de Lei formalmente aprovada, e na substituição de critérios monetários e fiscais de escolha constitucionalmente atribuída ao Poder Executivo.

Há casos, no entanto, em que o Judiciário é provocado para o exercício de suas funções típicas de interpretação normativa mediante a interpelação da própria administração pública. Nessa esteira, foi objeto do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas N° 5008835-44.2017.4.04.0000/RS24 a correta interpretação do art. 158, inciso I, da Constituição Federal, o qual disciplina a distribuição de receitas arrecadadas a título de Imposto de Renda Retido na Fonte entre os entes da Federação.

Embora a matéria da insurgência seja primordialmente a repartição de receitas tributárias, são inarredáveis as consequências orçamentárias da decisão. Tanto para os orçamentos municipais como para os federais.

À interpretação do Fisco Federal, veiculada por meio da Instrução Normativa n.º 1.599/15, a repartição do IRRF autorizada aos Municípios seria restrita ao “produto da retenção na fonte do Imposto de Renda incidente sobre rendimentos do trabalho que pagarem a seus servidores e empregados”, excluindo-se a participação no imposto de renda “incidente sobre rendimentos pagos por estas a pessoas jurídicas, decorrentes de contratos de fornecimento de bens e/ou serviços”. Para os Municípios insurgentes, a expressão constitucional “rendimentos de qualquer natureza” não se restringiram aos rendimentos do trabalho ou do capital, contemplando, por consectário, os rendimentos de outras espécies.

O julgamento proferido, na esteira do que as Turmas do Regional vinham decidindo, acolheu a tese dos Municípios partindo de uma interpretação histórica, literal e lógica da norma constitucional controvertida. Foram avaliados, ainda, os argumentos da União Federal de suposta violação ao equilíbrio sócio-econômico entre os municípios (art. 161, II, da CF/88) e ao federalismo cooperativo, destacando-se, na espécie, que o risco de desequilíbrio entre os Município carecia de demonstração fática e de que o viés do federalismo cooperativo estaria estancado pelo constituinte no próprio dispositivo interpretado.

Há de se perceber, em vista dessas considerações, que as intervenções devem procurar, sempre que possível, ser pontuais, não ingerindo no âmbito de atribuições dos demais órgãos. Exemplo dessa parcimônia pode ser visualizada nos julgamentos que enfatizam a competência discricionária da administração pública para direcionar os recursos arrecadados em processos judiciais por meio de aplicação de astreintes:

PROCESSO PENAL. ASTREINTES. DESTINAÇÃO. CONVERSÃO EM RENDA. REGRAS ORÇAMENTÁRIAS. OBSERVÂNCIA. GESTOR PÚBLICO. DISCRICIONARIEDADE. 1. Em regra, os valores recolhidos a título de astreintes, impostos a particulares por não cumprimento de ordem judicial de quebra de sigilo, devem ser convertidos em renda da União e direcionados aos órgãos de administração central. 2. Por se tratar de questão atinente à discricionariedade do gestor público, descabe ao judiciário interferir nas políticas públicas, destinando recursos a órgão ou finalidades específicas à margem das regras orçamentárias. 3. Agravo de instrumento improvido.25

A análise dos precedentes que se debruçam sobre o controle da despesa pública fornece conclusões ainda mais verticalizadas sobre o tema da presente monografia.

4.2. Controle da despesa pública

Como enfatizado, tendo por referencial normativo o próprio texto constitucional, é dever que a decisão em matéria orçamentária parta de uma análise sistêmica dos interesses conflitivos, investigando os diferentes enfoques e resultados das determinações. Com a cautela necessária, no entanto, para evitar ingerências indevidas nas opções democraticamente chanceladas dos demais Poderes.

Não há grande celeuma quando os provimentos judiciais reclamados visam a implementação de despesa que possui previsão orçamentária nos instrumentos legais, e, cumulativamente, há disponibilidade de recursos financeiros (em caixa) para o custeio:

ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO CÍVEL. REMESSA NECESSÁRIA. CONTRATOS. REPASSE DE RECURSOS. MUNICÍPIO. EMENDA PARLAMENTAR. EXECUÇÃO OBRIGATÓRIA. PAVIMENTAÇÃO ASFÁLTICA. PROJETO APROVADO PELO MINISTÉRIO DAS CIDADES. DESPESA EMPENHADA. IMPEDIMENTO DE ORDEM TÉCNICA. INEXISTENTE. PROVIMENTO. 1. A partir da Emenda Constitucional nº 86/2015, as emendas parlamentares são de execução orçamentária e financeira obrigatória, isto é, consignadas no orçamento e inexistindo impedimento técnico, devem obrigatoriamente serem executadas – empenhadas, contratadas/conveniadas e pagas – por força do disposto no artigo 166, § 11, da Constituição da República.   2. Os interesses das partes   são convergentes nos contratos  e os recursos a serem liberados possuem  destinação social (implantação de pavimentação asfáltica em vias públicas urbanas), inexistindo impedimento de ordem técnica a inviabilizar a execução da pavimentação.  3. Apelação e remessa necessária providas.26

Há casos, no entanto, talvez a maioria, que pretendem a atuação do Judiciário quando a prestação não possui respaldo no programa orçamentário de governo. Nessas situações, o risco de resultados negativos das decisões é maior, considerando que a determinação de despesa exorbitante, por exemplo, poderá resultar na cassação de diversos outros direitos.

Sensível a essa possibilidade, o Regional já decidiu que “Não é possível ao juiz substituir a Administração Pública determinando a realização de obras de infra-estrutura e instalação de equipamentos de sinalização em rodovia federal sem a existência de recursos disponíveis em previsão orçamentária”27.

Esse mesmo declínio do Judiciário às opções discricionárias legitimamente fundamentadas pelos administradores é conceito assentado nas decisões do Regional que abordam o direito à saúde. Nesses casos, os decisórios enfatizam a presunção de suficiência e credibilidade de que se revestem as políticas de saúde já aplicadas pelo Estado, sendo ônus dos reclamantes desconstituírem-na, provando de forma cabal a necessidade do medicamento ou tratamento pleiteado:

Estabelecida a política pública de disponibilização de medicamentos, há que se lhe dar credibilidade, pelo menos até que seja seriamente desafiada em sua correção. Isso, não apenas por que se presume a sua seriedade, mas também pois se presume tenha Estado consultado profissionais qualificados para definir sua dispensação de remédios. E ainda,  fundamentalmente, por se admitir, de modo razoável, que o conjunto, que  a reunião desses profissionais  que subsidiaram as políticas públicas substancializa um espectro maior e mais variado de opiniões, cuja soma fornece densidade mais robusta que opiniões  isoladas de médicos, muitas vezes pressionados pelos casos à frente.28

Afirma-se, nessa perspectiva, a corresponsabilidade processual pelo processo decisório. Cientes as partes da excepcionalidade de eventual intervenção judicial, devem subsidiar o julgador com o maior número de elementos possível a fim de demonstrar o (des)acerto ou a omissão do programa orçamentário.

Forte nesse critério, cita-se julgado de relatoria da Desembargadora Vânia Hack de Almeida pelo qual foi reformada sentença que havia determinado ao DNIT que providenciasse obras de regularização de acostamentos em trecho de rodovia sob jugo federal. Os fundamentos para a decisão foram escorados na necessidade de melhor exaurimento dos elementos técnicos na fase cognitiva para justificarem a determinação. Vejase:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DETERIORAÇÃO DE RODOVIA FEDERAL. BR 163. OMISSÃO DO PODER PÚBLICO. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PROVA INEQUÍVOCA DA ILEGALIDADE DO PODER EXECUTIVO. NÃO CARACTERIZAÇÃO. REFORMA DA SENTENÇA. IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. (…) 6. Observase, por fim, que este Tribunal não é insensível à insegurança causada por rodovias em mau estado de conservação, sendo reiterados os julgamentos nos quais se reconhece a possibilidade de intervenção judicial em casos tais e a responsabilização dos órgãos públicos competentes pelos danos decorrentes do cumprimento negligente de suas atribuições legais. 7. Contudo, para tanto, faz-se necessário, sob a perspectiva do devido processo legal, que seja assegurada a correta dilação probatória a fim de perquirir a conduta das partes envolvidas, assim como os respectivos danos decorrentes de eventual ilicitude verificada, competindo ao magistrado, na forma do art. 370 do CPC, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito, justamente para que se possa divisar, com a imparcialidade que se faz imprescindível ao exercício da jurisdição, os aspectos técnicos específicos da lide cuja resolução lhe é reclamada.29

Ainda em matéria de direito à saúde, cumpre referir as decisões do Regional que estabelecem medidas de contracautela quando concedidos fármacos de custo elevado, quando provada a inefetividade ou a inexistência de símiles fornecidos pelo SUS. Considerando a ausência de previsão orçamentária, nesses casos, a medida intrusiva pode ser avaliada periodicamente pelo julgador, para que afira, com base em elementos técnicos e fáticos, a asserção ou não da prestação concedida:

No que diz respeito às contracautelas, confira-se a decisão agravada, nesse particular:

“Restam fixadas as seguintes contracautelas: (a) a medicação deve ser fornecida através da unidade onde realizado o tratamento, sob responsabilidade do médico que fez a indicação do fármaco e mediante a apresentação da respectiva receita, que deve ser renovada bimestralmente; (b) comunicação imediata, no prazo de 5 dias, ao Juízo, ao ponto de retirada de medicamento(s) e à Gerência Regional de Saúde acerca da ocorrência de suspensão/interrupção do tratamento; (c) devolução, no prazo de 5 dias, ao órgão estadual de saúde que disponibilizou o medicamento excedente ou não utilizado, a contar da interrupção/suspensão do tratamento ou da morte; (d) acondicionamento do medicamento recebido de acordo com as informações e especificações do laboratório fabricante; e (e) apresentação, a cada 60 dias, de relatório subscrito pelo médico responsável pelo tratamento dando conta da evolução do quadro clínico da parte autora e informando a necessidade (ou não) de prosseguimento do tratamento.”

As medidas de contracautela se mostram adequadas ao presente caso.30

Na dita decisão, cumpre mencionar, inclusive, que o fármaco objeto da reclamação (Brentuximabe Vedotina para tratamento de Linfoma de Hodgkin – CID C81.1) já havia sido objeto de recomendação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC para incorporação no SUS, o que foi levado a efeito pela Portaria nº 12, de 13 de março de 2019, do Ministério da Saúde. Por essa ótica, é inegável que a concessão forçosa do medicamento por ordem judicial não deixa de representar um primoroso indicativo para os administradores públicos na elaboração de projetos orçamentários futuros.

Nos casos de indisponibilidade financeira, nos quais sustentada a tese da reserva do possível pela Fazenda Pública, urge o múnus para o julgador definir com clareza a necessidade de tutela do direito fundamental envolvido, demonstrando de maneira específica a insustentabilidade da insuficiência de recursos para a oposição. Nessa linha, já decidiu a Corte Regional pela manutenção de sentença que determinou ao Estado do Rio Grande do Sul que iniciasse a construção de escola em comunidade indígena, cuja implementação vinha sendo postergada pelo ente público há mais de 10 (dez) anos, conforme comprovado nos autos:

ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TERRA INDÍGENA. MORA ESTATAL NA CONSTRUÇÃO DE ESCOLA INDÍGENA. NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL E SOBREVIVÊNCIA COMO GRUPO ÉTNICO DIFERENCIADO. INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. DANO MORAL COLETIVO FIXADO. 1. O acesso à educação diferenciada pelas crianças indígenas, com a preservação da identidade cultural e sobrevivência como grupo étnico diferenciado, consoante previsão constitucional e legal são garantias asseguradas pela Constituição Federal e Estatuto e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação. 2. Cabe ao Estado atuar concretamente na efetivação dos direitos das comunidades indígenas. No caso dos autos, cabe ao demandado dar efetividade à construção de escola voltada ao ensino com a preservação das características culturais da comunidade indígena. 3. Deve ser assegurado o direito à educação diferenciada pelas crianças indígenas, com a preservação da identidade cultural e sobrevivência como grupo étnico diferenciado. 4. É possível o controle de atos administrativos não continuados da não adoção de meios materiais e financeiros necessários a conclusão do ato administrativo já editado e em curso, gerando omissão passível de correição por provocação judicial. 5. Verificada a existência de lesão à esfera moral da comunidade indígena pela morosidade na construção da Escola Estadual Indígena Joaquim Gatem Cassemiro, na Terra Indígena Nonoai, em processo administrativo que teve início há aproximadamente 10 anos, deve ser condenado o demandado ao pagamento  de indenização por danos morais, no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais).³¹

No caso, o Relator consignou expressamente que “indevida intromissão ocorre quando se adentra no mérito e discricionariedade das escolhas políticas do gestor público e, no caso em tela, já houve a deflagração de processo administrativo para tratar da construção da escola. Logo, o que se debate é o controle de atos administrativos não continuados da não adoção de meios materiais e financeiros necessários a conclusão do ato administrativo já editado e em curso, gerando omissão passível de correição por provocação judicial.” Estabelecida, portanto, a inexistência de inovação no programa orçamentário do ente condenado, mas a coibição de sua mora para a implementação de garantia tão essencial à parcela da população.

Nesse mesmo sentido, o precedente de relatoria Desembargador Sérgio Renato Tejada Garcia: “não cabe a invocação da cláusula da reserva do possível quando a demanda envolva a segurança estrutural de uma barragem, pois a simples alegação de ausência de recursos orçamentários não exonera o Poder Público de assegurar o mínimo existencial, notadamente quando a ausência de reparos na barragem pode acarretar risco de vidas humanas e de animais, além de danos ambientais, econômicos e sociais, conforme acima já referido.”³²

Visualiza-se, à vista dos julgados, a adoção dos critérios postos à lume no presente artigo para a intervenção das políticas orçamentárias. Não há grandes conflitos nos cenários de previsão orçamentária e disponibilidade financeira. A verdadeira controvérsia emerge das situações conflitivas nas quais o Estado, por mora, por ignorância, ou por escolha, não contemplou a prestação pleiteada em suas diretrizes de gastos.

Nesses casos, espera-se do julgador que se tenha um comedismo mínimo para a tomada de decisões, dada a excepcionalidade de que se reveste o controle do mérito administrativo. As decisões, além de estarem criteriosamente fundamentas de um ponto de vista jurídico, devem estar cabalmente apoiadas em elementos técnicos, de fontes legítimas e confiáveis. Na falta desses elementos, não é escuso ao Judiciário, tampouco ilegítimo, declinar seu jugo para momento posterior, quando, em nova relação processual, seja o Juízo de melhor maneira subsidiado para a tomada da decisão.

5. Conclusão

O paradigma jurídico contemporâneo impende que os institutos jurídicos sejam reinterpretados, à luz dos princípios consagrados na Constituição, para o fim da tutela dos direitos fundamentais. No âmbito do direito financeiro, as possibilidades de controle jurisdicional, e os limites para essas interferências, ainda possuem contornos nebulosos na doutrina e na jurisprudência.

Essa falta de balizas consolidadas para a leitura dos casos, além de um certo distanciamento do Poder Judiciário em relação ao direito orçamentário, são fatores que podem ser vistos como causas diretas para a prolação de decisões extremamente criticadas pelo seu ineditismo. No entanto, leis orçamentárias, apesar de representarem, para alguns, meros instrumentos de planejamento, desprovidos de caráter normativo abstrato e genérico, não podem ser dissociadas por completo da atividade judicial.

O presente trabalho teve por escopo esclarecer, fazendo uma breve leitura de alguns julgados proferidos pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que as intervenções judiciais em matéria orçamentária têm seu fundamento escorado no neconstitucionalismo, na medida em que os vetores que autorizam essa modalidade de controle são os mesmos que legitimam o controle judicial em matéria de políticas públicas. À vista disso, foi possível aferir que decisões bem fundamentadas sobre o tema valorizam o diálogo entre as instituições, fomentando a busca de resultados cada vez mais efetivos na administração do interesse público.


²CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia, Salvador, n. 17, p. 93 – p.130, 2008.
³BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2010. 2ª ed. Editora Saraiva.
4BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. 2005 (triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/09/neoconstitucionalismo_e_ constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf>. Acesso em: 26 out. 2022.
5LEITE, Harrison Ferreira. A autoridade da lei orçamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 162.
6JÚNIOR, Alceu Maurício; HERKENHOFF, Henrique Geaquinto. A intervenção judicial em políticas públicas prisionais. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, pp. 23-54, jul./dez. 2018.
7BRASIL, Supremo Tribunal Federal, RE 592.581, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 13.08.2015, DJe 01.02.2016.
8BRASIL, Lei 13.105/2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 16 de março de 2015.
9VIARO, Felipe Alberitni N. Consequencialismo e Decisão Judicial in Consequencialismo no Poder Judiciário. São Paulo: Editora Foco, 2019.
10A Declaração de Independência preconiza que ‘para garantir estes direitos, Governos estão instalados entre os homens’. Para a óbvia premissa de que direitos dependem de governança deve ser acrescido um corolário lógico, corolário rico que possui implicações: direitos custam dinheiro. Direitos não podem ser protegidos ou fortalecidos sem financiamento ou suporte público” (tradução nossa).HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The costs of rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999. p. 15.
¹¹SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11ª edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 265.
¹²“Ambos, o direito ao bem-estar social e o direito à propriedade privada possuem custos públicos. O direito de liberdade de contratar tem custos públicos não menores que o direito à saúde, e o direito à liberdade de discurso não menores que o direito à moradia digna. Todos os direitos reivindicam ao tesouro público” (tradução nossa). HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The costs of rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999. p. 15.
¹³BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em HTTP://www.lrbarroso.com.br/pt/notícias/medicamentos.pdf p. 12-13.
14BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. Lejus: São Paulo, 1998. p. 230.
15BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI 5449, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 10.03.2016, DJe 20.04.2016.
16LEITE, Harrison Ferreira. O orçamento e a possibilidade de controle de constitucionalidade. Revista Tributária e de Finanças Públicas. Ano 14 – 70. RT: São Paulo, 2007. p. 175.
17JÚNIOR, Jessé T. P. J.; MARÇAL, Thaís B. Orçamento Público, Ajuste Fiscal e Administração Consensual. Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 19, n. 73, p. 162 – 181, abr. – jun 2016.
18LENZA, Pedro; MORAES, Carlos A. D. Direito Financeiro e Econômico Esquematizado. 4ª edição. São Paulo: Saraiva, 2022. p. 896.
19Uma Constituição que não organize um governo efetivo e publicamente ancorado, capaz de tributar e gastar, necessariamente falhará em proteger direitos na prática” (tradução nossa). HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The costs of rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999. p. 58.
20FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à Boa Administração Pública. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2014. pp. 28-29.
²¹BRASIL, Decreto-Lei N° 4.657. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1942.
²²BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5004773-52.2018.4.04.7201, Relator Leandro Paulsen, Primeira Turma, juntado aos autos em 17/03/2022.
²³LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1915. p. 65-66.
24BRASIL, TRF 4ª Região, IRDR 5008835-44.2017.4.04.0000, Relator Roger Raupp Rios, Primeira Seção, juntado aos autos em 30/10/2018.
25BRASIL, TRF 4ª Região, AG 5023995-80.2015.4.04.0000, Rel. João Pedro Gebran Neto, Oitava Turma, juntado aos autos em 04/09/2015.
26BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5003622-87.2019.4.04.7113, Relator Victor Luiz dos Santos Laus, Quarta Turma, juntado aos autos em 25/07/2022.
27BRASIL, TRF 4ª Região. Ag. 138172, Rel. Juiz Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz, DJ 24.09.2003, p. 508.
28BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5003742-69.2019.4.04.7004, Relator Márcio Antônio Rocha, juntado aos autos em 12/08/2021.
29BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5005255-16.2012.4.04.7005, Rel. Vânia Hack de Almeida, juntado aos autos em 13/02/2023.
30BRASIL, TRF 4ª Região.  Ag. 5014634-29.2021.4.04.0000, Relator Osni Cardoso Filho, juntado aos autos em 09/08/2021.
³¹BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5001384-17.2018.4.04.7118, Terceira Turma, Rel. Des. Rogerio Favreto, juntado aos autos em 10/02/2023.
³²BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5025492-33.2019.4.04.7100, Terceira Turma, Relator Des. Sérgio Renato Tejada Garcia, juntado aos autos em 11/10/2022.

Referências das Fontes Citadas

BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. 2005 (triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Disponível em: http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2017/09/neoconstitu cionalismo_e_constitucionalizacao_do_direito_pt.pdf>. Acesso em: 26 out. 2020.

_______________________. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2010. 2ª ed. Editora Saraiva.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. Lejus: São Paulo, 1998.

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BRASIL, TRF 4ª Região, AG 5023995-80.2015.4.04.0000, Rel. João Pedro Gebran Neto, Oitava Turma, juntado aos autos em 04/09/2015.

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BRASIL, TRF 4ª Região.    Ag. 5014634-29.2021.4.04.0000, Relator Osni Cardoso Filho, juntado aos autos em 09/08/2021.

BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5003742-69.2019.4.04.7004, Relator Márcio Antônio Rocha, juntado aos autos em 12/08/2021.

BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5004773-52.2018.4.04.7201, Relator Leandro Paulsen, Primeira Turma, juntado aos autos em 17/03/2022.

BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5003622-87.2019.4.04.7113, Relator Victor Luiz dos Santos Laus, Quarta Turma, juntado aos autos em 25/07/2022.

BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5025492-33.2019.4.04.7100, Terceira Turma, Relator Des. Sérgio Renato Tejada Garcia, juntado aos autos em 11/10/2022.

BRASIL, TRF 4ª Região, AC 5001384-17.2018.4.04.7118, Rel. Des. Rogerio Favreto, Terceira Turma, juntado aos autos em 10/02/2023.

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_____________________. A autoridade da lei orçamentária. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.

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VIARO, Felipe Alberitni N. Consequencialismo e Decisão Judicial in Consequencialismo no Poder Judiciário. São Paulo: Editora Foco, 2019.


¹Pós-Graduado pelo Programa de Pós-Graduação em Jurisdição Federal Lato Sensu da Escola da Magistratura Federal de Santa Catarina (ESMAFESC). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Unicuritiba. Analista Judiciário do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região.