O PAPEL DO ESTADO NO ENFRENTAMENTO À INFLUÊNCIA DO CONSERVADORISMO NO DIREITO DE FAMÍLIA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8011954


Ramilla Mariane Silva Cavalcante1
Giselli de Almeida Tamarozzi2


RESUMO

O presente artigo propõe uma reflexão sobre o papel do Estado no enfrentamento à influência do conservadorismo no direito de família, com foco na evolução do seu conceito ao longo do tempo até a sociedade contemporânea. A partir de uma revisão bibliográfica, o estudo visa analisar as principais características da formação sócio-histórica brasileira paternalista, autoritária e conservadora, que repercute diretamente nos nossos valores e na forma de estruturação do arcabouço normativo do país. Em seguida, buscamos compreender alguns aspectos da mudança social e cultural considerados relevantes pelas repercussões que provocam na dinâmica das composições familiares, para além do modelo nuclear composto por pai, mãe e filhos (as). Conclui-se pela importância da atuação do Poder Legislativo na proteção efetiva das novas entidades familiares existentes, diante da inexistência de regramento jurídico adequado a garantir de forma efetiva os referidos direitos fundamentais.

Palavras-chave: Direito de família. Conservadorismo. Diferentes formas de constituição familiar.

ABSTRACT

The fundamental rights are applicable to the rights related to the human being, recognized through the law in the sphere of the constitutional law of a determined State that seek to ensure the exercise of social and individual rights in a Democratic State of Law. The guarantee of fundamental and social rights are basic principles in the formation of society. This study aims to highlight the importance of social rights, seeking to identify their foundations and historical perspective. To this end, an exploratory research is adopted, whose method of procedure adopted is the scientific one, and the research technique is bibliographic, as it seeks in doctrine, legislation, articles, periodicals, among other sources, elements for understanding of the search problem. It was concluded that social rights, in national law, are of great importance, mainly because of the enshrinement in the title destined to the protection of “fundamental rights and guarantees”. However, the effectiveness of such rights is increasingly questioned, mainly due to the social inequality that plagues the country, which is aggravated by the state’s omission in the implementation of rights such as education, health, housing, leisure, among others, being essential to seek, for through social service, the effectiveness of the public power, so that it fulfills its role, since social rights require the positive action of the state.

Keywords: Family right. Conservatism. Different forms of family formation.

INTRODUÇÃO

A discussão sobre o papel do Estado nas relações familiares brasileiras, que sofreram modificações consideráveis ao longo dos anos, somado à influência do conservadorismo em sua atuação legislativa, desperta diversas nuances e possibilidades.

Diante disso, neste artigo pretendemos apresentar algumas considerações sobre o pensamento conservador presente na sociedade contemporânea, e como isso vem reverberando na legislação vigente que trata de direito de família.

Assim, foram considerados alguns traços gerais da formação sócio-histórica brasileira, autoritária, conservadora, paternalista e patriarcal, que deixa marcas na nossa cultura e se reflete, inevitavelmente, na forma como se estruturam o Estado e as políticas sociais no país.

O trabalho se propõe a fomentar uma reflexão teórica destinada a desvelar melhor as diferentes formas de constituição de família, propiciando um conhecimento mais adequado desse cenário e suas composições de família.

Nesse contexto, a escolha do tema justifica-se, principalmente, pela atualidade do debate, buscando contribuir para a realização e criação de regramento jurídico pertinente para cada tipo de família encontrado na sociedade contemporânea.

Por fim, não se pode perder de vista a análise do importante papel do Estado, por meio da atuação do Poder Legislativo, que possui o dever de assegurar a proteção legal das novas composições familiares por meio de normas efetivas e sintonizadas com a realidade brasileira.

Para tanto, parte-se de uma pesquisa teórico-dogmática, que por meio da análise bibliográfica busca fundamentos doutrinários para identificar as peculiaridades do direito de família, notadamente seus fundamentos e perspectiva histórica, e a influência do conservadorismo em sua concepção e desenvolvimento até os dias atuais.

O DIREITO DE FAMÍLIA E SUAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E LEGAIS

Na tentativa de buscar um melhor enfrentamento da evolução do seu conceito, apresenta-se um breve retrospecto histórico da forma de pensar o direito de família na realidade brasileira.

As últimas décadas do século XX foram marcadas por transformações profundas na sociedade, acarretando uma vastidão de mudanças das estruturas sociais, políticas e econômicas com reflexo nas relações jurídicas da família, havendo uma total reformulação do seu conceito. Aduz Venosa (2016, p. 17) que “[…] entre os vários organismos sociais e jurídicos, o conceito, a compreensão e a extensão de família são os que mais se alteraram no curso dos tempos”.

O modelo de família brasileiro encontra sua origem na família romana, que por sua vez, se estruturou e sofreu influência no modelo grego. Seguindo tal evolução, à luz do modelo de família romana, marcado pela forte presença da figura patriarca de poder absoluto, em Roma, todos os integrantes do organismo social ficavam submetidos ao poder de um chefe e esse chefe era exclusivamente masculino, visto que a mulher se submetia, obrigatoriamente ao domínio do homem (RIZZARDO, 2007, p. 10).

Como consequência, na Idade Média, o Direito, confundido com a justiça, era ditado pela religião, que possuindo autoridade e poder, se dizia intérprete de Deus na terra. Os canonistas eram totalmente contrários à dissolução do casamento por entenderem que não podiam os homens dissolver a união realizada por Deus e, portanto, era um sacramento.

Com o reconhecimento do Cristianismo como religião oficializada dos povos civilizados a partir da Idade Média, a família passa a ser reconhecida como entidade religiosa, desde que erigidas com o sacro casamento, considerada assim o núcleo da Santa Igreja.

No âmbito religioso, sem sombra de dúvidas, a principal prerrogativa e função da família brasileira, oriunda do casamento, era o da procriação, sendo considerados inferiores os casais sem filhos. Ademais, Farias e Rosenvald (2011, p. 4) aduzem que o poder patriarcal foi fruto da Revolução Francesa, e que nessa época, seus membros abriam mão da própria felicidade em nome da manutenção do vínculo de casamento.

A nossa formação é acompanhada por características históricas de nossa cultura, como o autoritarismo, o patrimonialismo, o clientelismo, o racismo, o patriarcalismo, a privatização do público, que se combinam entre si (CISNE; SANTOS, 2018, p. 99).

A partir do desenvolvimento da produção industrial nos centros urbanos e a oferta do trabalho fabril, as mulheres ingressaram no mercado laboral. Com isso, os itens úteis para o seu sustento providenciados pelas próprias famílias antes do século XIX passaram a ser produzidos no interior das fábricas, conferindo-lhes uma função econômica.

Diante desse novo perfil, a família passa a desenvolver valores morais, afetivos, espirituais e de assistência mútua entre seus membros. Seguindo as palavras de Cavalcanti (2004, p. 12), ela perdeu suas funções tradicionais e voltou-se aos elementos de interesse do próprio indivíduo, como o afeto e a solidariedade entre seus membros.

Ocorre que, em reação às grandes transformações oriundas da Revolução Francesa e Industrial, vistas como o vetor responsável pela desorganização social, pensadores como o Visconde de Chateaubriand (1768-1848) passam a usar o termo conservador para defender as ideias de restauração clerical e política, no afã de resgatar o modelo tradicional do passado.

Nesse sentido, podemos assinalar como principais traços do pensamento conservador clássico: a) somente são legítimas as autoridades fundadas na tradição; b) a liberdade deve ser sempre uma liberdade restrita; c) a democracia é perigosa e destrutiva; d) a laicização é deletéria; e) a razão é destrutiva e inepta para organizar a vida social; f) a desigualdade é necessária e natural. O pensamento conservador, com a consolidação do capitalismo, vai modificando sua função sociopolítica. De profundo crítico da nova ordem, se torna defensor da mesma, mantendo presente, contudo, a maioria dos traços elencados anteriormente. O “único deles que, no pós-48, tenderá a perder sua importância é o componente clerical, cada vez menos visível” (ESCORSIM NETTO, 2011, p. 67 – grifos no original).

Nesse contexto, se desenvolve o pensamento conservador clássico de resgaste às formas de vida e organização social do passado, que passa por diversas fases e influencia a cultura do nosso país, na defesa intransigente do modelo tradicional de família nuclear, vista como a base da sociedade, da moralidade e da estabilidade.

Desse modo, após 1848, podemos afirmar que o pensamento conservador deixa de ser clássico e se torna moderno, passando, nesse processo de mudança, a defender a manutenção e a estabilidade da sociedade capitalista. Nesse sentido, alguns elementos fundamentais ao pensamento conservador persistem. Entre eles, assinalamos os seguintes: a) a sociedade tem natureza orgânica e por isso não pode ser desmembrada em indivíduos, pois os indivíduos sempre serão parte de um determinado grupo social. Ressaltamos que o pensamento conservador afastou-se da defesa da ordem clerical como poder que deve organizar a sociedade. Contudo, o pensamento conservador vai continuar a enfatizar que, mais que a razão, o sentimento, a emoção e o sagrado são fundamentais à vida humana em sociedade. Entre tais grupos está a família, que deve ser sempre preservada, pois é base da sociedade, da moralidade e da estabilidade; b) os indivíduos têm necessidades inalteráveis, que são: a ordem, a religião, a tradição e a segurança; c) a vida moderna afastou os seres humanos dos valores ligados ao sagrado, desprezando a importância dos sentimentos e da emoção. A volta a um mundo onde haja mais sentimento, sagrado e moral é a solução para os problemas humanos; d) a estabilidade, a segurança e a ordem necessitam de autoridades e hierarquias. “Sem hierarquia na sociedade não pode haver estabilidade” (ESCORSIM NETTO, 2011, p. 70).

A despeito de tais ideais retrógrados, a família desencadeou o seu processo de evolução e chegou a um estágio atual em que perde parte de suas funções e dá ensejo a múltiplas composições familiares, conforme aduz Dornelles (2018, p. 34)

Na sociedade contemporânea encontram-se diversos arranjos familiares, o que conduz a seguinte reflexão de que hoje não é possível considerar apenas um modelo familiar existente na sociedade. Transformações ocorreram como: divórcio, os métodos contraceptivos, o crescimento das indústrias, a entrada da mulher no mercado de trabalho, entre outras tantas mudanças que trouxeram para a família alterações, sendo estas responsáveis pela diversidade de tipos familiares. Deve-se ressaltar que a família não se encontra enfraquecida, pelo contrário, ela vem deixando de ser apenas um único modelo para transformar-se em outros modelos familiares.

Assim, a dimensão para o conceito de família na sociedade contemporânea tem fundamento nas relações de confiança, de amizade e de afeto ou o sentimento de fazer parte de uma, em que os seus membros não necessariamente estão ligados entre si por laços consanguíneos.

Para além da família tradicional constituída por um casal heterossexual e filhos, destacam-se como novos arranjos as famílias monoparentais, reconstituídas, homoafetivas, dentre outras configurações. A demonstrar o afirmado, um estudo realizado em periodicidade decenal pelo IBGE1 constatou que o Brasil possuía, em 2010, 1.047.381 famílias de casal com filhos, 991.872 de casal sem filhos e 2.342.003 de mulher sem cônjuge com filhos.

O Censo 2010 trouxe à tona, ainda, o percentual dos lares habitados por casais com filhos com a presença de filhos anteriores ao seu relacionamento atual, constatando que 16,2% são de famílias reconstituídas (IBGE, 2010).

Ante esse apanhado geral da evolução histórica da família, é possível verificar que as efetivas mudanças vividas por essas instituições, principalmente no que concerne ao vínculo afetivo e a sua contribuição para o sucesso das uniões, são reflexo das conquistas da sociedade moderna.

Sob esse viés, não se pode falar em formação histórica dos arranjos familiares sem estabelecer um liame com as modificações ocorridas de forma concomitante na legislação brasileira ao longo do tempo, desvelando a atuação do Estado nesse processo e suas influências.

Em 1916, a Constituição tratava o instituto nos moldes patriarcais, centrando a família na dominação patriarcal e estabelecendo diferença entre homens e mulheres. Já em 1937 tem-se um ganho de expressiva importância, os filhos legítimos e os ilegítimos passam a ter os mesmos direitos (BARSTED, 1987).

Com a Constituição Federal de 1988, a família é reconhecida de forma mais ampla, modificando sua concepção conservadora centrada apenas no casamento, caracterizando-a como “base da sociedade; tem especial proteção do Estado. (…) é uma comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes.” (CF: 1988, Cap. VII, art. 226, §4º).

Reconhece também que todos são iguais perante a lei, com igualdade de direitos e obrigações, igualdade entre os filhos que já havia sido reconhecida na Constituição anterior, trazendo preocupação com a dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.

Ademais, a Emenda Constitucional número 9, de 28 de junho de 1977, permitiu a instauração do divórcio no Brasil e a Lei n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977, o regulamentou, assegurando uma maior proteção à união estável e às famílias monoparentais.

Diante da sua condição de instituto protegido pelo Estado, a família passou a ser referendada ainda na Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, no Estatuto do Idoso, entre outras legislações.

Hodiernamente, a família é tratada nos direitos fundamentais previstos na Carta Magna e em diversas outras normas legais de forma fragmentada/individualizada, segundo analisa Cisne (2018, p. 93),

Nessa perspectiva, em que supostamente as famílias são o foco da proteção social, ocupando lugar de destaque em um conjunto de leis, programas e projetos sociais, não necessariamente estão centralizadas a proteção, os serviços ou programas sociais nas famílias, mas em indivíduos que integram essa esfera da vida social, os quais vivenciam situações específicas. São, por exemplo, a criança, o adolescente, a pessoa idosa, a mulher. Percebemos uma limitação, ou mesmo omissão, do Estado quando a atenção às famílias é tratada de forma fragmentada/individualizada, no sentido de dificultar uma leitura ampla em torno das famílias, considerando todos os processos relacionais, a forma como se organizam, as demandas e necessidades sociais que as envolvem.

Apesar das relevantes transformações sociais e normativas no direito de família, a referência conservadora continua determinando a estruturação do Estado e das normas jurídicas vigentes, com reflexo nas pautas/ações do Estado enquanto Poder Legislativo e Judiciário, calcadas no modelo de família tradicional dentro do conceito de homem, mulher e filhos (as), a despeito do defendido por Souza e Lima (p. 149, 2019),

O que ainda observamos no cotidiano dos agentes institucionais e no próprio discurso governamental é uma idealização da família com base em determinado “padrão” ou “modelo”, exprimindo uma sintonia com pensamentos conservadores, cujos discursos e ações em torno deste são retomados com intensidade no tempo presente. A título de exemplo, ressaltamos as recentes iniciativas impulsionadas pela bancada religiosa do Congresso Nacional: o projeto de lei que propõe regras jurídicas para definir quais grupos podem ser considerados como família, expressos no Estatuto da Família, e o projeto Escola Sem Partido, que coíbe o uso do conceito de gênero e expressões como identidade de gênero em sala de aula. Em junho de 2019, também houve a orientação do Itamaraty aos diplomatas brasileiros para que a utilização da palavra gênero somente acontecesse significando sexo biológico. Além disso, o Brasil se absteve na votação de uma resolução da ONU voltada para a garantia de direitos sexuais e reprodutivos (KREUZ, 2019).

Atualmente, inexiste no ordenamento jurídico qualquer lei que contemple as diferentes formas de constituição de família referindo-se a essas relações com as expressões “homem” e “mulher”. Sobre o tema, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei 470/2013, conhecido como o Estatuto das Famílias, apresentado pela Senadora Lídice da Mata (PSB-BA) no Senado Federal em 12 de novembro de 2013, visando reestruturar toda a matéria de Direito de Família em só instrumento normativo e sanar essa inércia legislativa.

Por conseguinte, diante da idealização da família propagada nos valores da sociedade brasileira, repercutindo efeitos na atuação/omissão dos representantes do Estado ao tratar do tema em debate, urge a necessidade de reflexão sobre o seu papel de proteger as novas composições familiares majoritárias surgidas na sociedade contemporânea.

Todos nós, em maior ou menor medida, incorporamos os valores dominantes na sociedade. No nosso caso, são valores gestados na sociedade do capital, pois, como afirmam Marx e Engels (1991, p. 72), as “ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes […]”. Nesse sentido, a cultura predominante imprime em nosso ser valores baseados no individualismo, competitividade e produtivismo. E, no caso da sociedade brasileira, somam-se a isso valores ligados ao patrimonialismo, autoritarismo, clientelismo, dentre outros. Contudo, é preciso sempre considerar que saídas individuais e morais nunca transformaram nem transformarão o mundo. A moralidade vigente expressa relações sociais concretas, e é necessário transformar o conjunto das relações sociais para modificar a moralidade dominante. Nesse sentido, somente a práxis transforma o mundo, ou seja, não são as ideias que transformam o mundo – apesar de terem um papel importantíssimo e serem molas propulsoras para a ação no mundo. Enquanto molas propulsoras, as ideias e valores precisam desencadear ações no mundo – práxis –coletivas, políticas e revolucionárias: (SOUZA e LIMA, p. 149, 2019).

Diante da constatada inércia legislativa, emerge como necessária uma ação ativa do Estado, por meio do Poder Legislativo, na formulação de normas asseguradoras da diversidade familiar existente no país, demonstrando sensibilidade e conhecimento das transformações sociais ao promover e consagrar direitos fundamentais na esfera da família.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho trouxe uma análise acerca dos fundamentos e perspectiva histórica dos direitos sociais da família, notadamente quanto a influência do conservadorismo na estruturação do Estado e do regramento jurídico vigente no país.

Realizar um debate sobre esse tema é um desafio complexo e desafiador, dadas as nuances e possibilidades de seu enfrentamento, essencialmente pautado pela formação sócio-histórica brasileira autoritária, paternalista e patriarcal, que repercute diretamente na nossa cultura e na forma de atuação estatal.

Importante esclarecer, dialogando com Dorneles (2018), que o conceito de família aqui tratado é mais amplo, e diz respeito a um conjunto de pessoas que possuem laços que podem ou não ser de consanguinidade e de afetividade, composta por sujeitos que compartilham um cotidiano de vida, seja com proximidade ou à distância.

Veja-se que, ao longo dos anos, as relações familiares sofreram significativas transformações para além da família tradicional composta por homem, mulher e filhos(as), surgindo diversas configurações de constituição familiar em que os papéis dos seus membros também foram modificados diante das novas necessidades sociais.

O impacto da Revolução Industrial no âmbito dos movimentos políticos do século XVIII e ao longo do século XIX, quando o surgimento da classe operária revelou a inserção de mulheres no mercado de trabalho dos centros urbanos, fez emergir uma modificação da organização familiar. A partir disso, iniciou-se a geração de novos papéis sociais e divisão de tarefas entre homens e mulheres, enfraquecendo o sistema patriarcal até então vigente.

Esse novo cenário tornou possível a nova forma de olhar a família e sua composição tradicional com o surgimento de diferentes constituições familiares, a exemplo das famílias monoparentais, reconstituídas, homoafetivas, dentre outras configurações. Essa realidade refletiu diretamente no regramento jurídico brasileiro e suas alterações, dando ensejo ao sufrágio feminino, a legalização do divórcio em 1977, o aumento de casais sem filhos com o advento da pílula anticoncepcional entre o período de 1960 e 1970, dentre outras conquistas.

Ocorre que, na contramão a esse processo de mudanças, surge e se desenvolve o pensamento conservador, valorizando formas de vida e organização da sociedade passada. O referido movimento foi estruturado como reação às grandes transformações impostas pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial, vistas como espectro da desorganização social e reverberou sua influência na nossa cultura paternalista e autoritária.

Assim, inobstante se reconheça os avanços normativos no direito de família ao longo da história, o pensamento conservador continua presente na produção legislativa atual do país, em sentido oposto à predominante composição familiar monoparental constatada no Censo de 2010 (IBGE, 2010).

Ao se analisar a relação entre família e Estado no Brasil, evidencia-se na produção normativa a sua concepção com foco na referência “homem e mulher” totalmente desconectada da realidade, além da omissão legislativa, inexistindo norma vigente que preveja de forma adequada os novos arranjos para além do modelo tradicional.

Deste modo, expostas as deficiências de atuação quanto ao tema decorrente da inércia do Parlamento, fortifica-se a ideia do quão importante para o desenvolto social é o papel do Estado, evitando a segregação de grupos desprovidos de amparo normativo na defesa dos seus direitos.

Conclui-se, portanto, que a existência de uma regulamentação adequada e efetiva aos direitos fundamentais na esfera da família promovida pelo Legislativo resultaria em uma sociedade mais plural e igualitária, afastando a nefasta influência conservadora que promove a discriminação e preconceitos enraizados na comunidade.

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1 IBGE | Cidades@ | Brasil | Pesquisa | Censo | Amostra – Famílias


1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Tocantins. Pós-Graduada em Direito Processual (UNISUL) e Direito Eleitoral (UFT). Advogada e professora da Faculdade Serra do Carmo (FASEC). E-mail: ramillacavalcante@mail.uft.edu.br.

2 Mestre e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- SP. Professora orientadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Tocantins. E-mail:gisellitamarozzi@mail.uft.edu.br.