REGISTRO DOI:10.5281/zenodo.11496752
Adriana Gomes Fernandes2
Resumo:
O presente artigo tem como objetivo a discussão acerca do excesso da legislação penal no controle social, notadamente, em um contexto de pouco investimento em políticas públicas sociais. Buscou-se trabalhar o contraponto existente entre um Estado de Direito Penal Máximo e um Estado de Direito Penal Mínimo à luz de um Estado Democrático de Direito e de bem estar social.
Palavras-chave: Direito Penal. Controle Social. Panpenalismo. Estado Democrático de Direito.
Diante do atual contexto social em que se verifica um aumento expressivo da criminalidade, fato gerador de profunda insatisfação popular que é resultado da sensação de insegurança experimentada pela sociedade, surge o expansionismo penal, em que direitos e garantias fundamentais são relativizados a fim de atender ao “bem maior”, qual seja a segurança da coletividade e a manutenção da confiança da sociedade na higidez do próprio Estado.
Antes de se adentrar diretamente no expansionismo penal, é necessário relembrar a teoria contratualista do pacto social, uma das teorias que explicam a origem e formação do Estado.
Inspirada na obra “O Leviatã”, de Thomas Hobbes, a teoria do pacto social tem como premissa básica a ideia de que os homens, racionalmente e no intuito de conviverem em sociedade, celebraram um contrato transferindo parte de suas liberdades e direitos a um poder maior capaz de manter a ordem e a existência do corpo social, sendo este o objetivo primeiro do pacto.
Nas palavras de Dallari:
É por força desse ato puramente racional que se estabelece a vida em sociedade, cuja preservação, entretanto, depende da existência de um poder visível, que mantenha os homens dentro dos limites consentidos e os obrigue, por temor ao castigo, a realizar seus compromissos e à observância das leis da natureza anteriormente referidas. Esse poder visível é o Estado, um grande e robusto homem artificial construído pelo homem natural para sua proteção e defesa. (DALLARI, 2013, p.25)
A partir da concepção do pacto social, utilizado para explicar a origem do Estado, surge a necessidade de se fazer breves digressões sobre os modelos de Estados já experimentados.
No modelo absolutista de Estado, o poder era ilimitado, bens e valores, materiais ou jurídicos pertenciam ao soberano que podia interferir como bem quisesse na esfera do indivíduo, pois representava em uma única figura, o poder legislativo, executivo e judiciário, essa concentração de poder é bem ilustrada na célebre frase atribuída ao rei Luís XIV da França: “O Estado sou eu”.
O Iluminismo, um movimento filosófico e cultural que defendia a evolução do homem através do pensamento racional, contrapunha-se a esse modelo concentrado de poder nas mãos de uma única pessoa que era tida como a representante de Deus na terra. Favorável ao Iluminismo, a burguesia, que reclamava sua participação na política estatal, deu início a revoltas que pelo final do século XVIII intensificaram-se dando origem à Revolução Francesa, que se tornou um marco para a concepção do Estado Liberal.
Com o crescimento do Estado Liberal e a vertigem do modelo absolutista, verificou-se a necessidade de se impor limites ao poder estatal e garantir direitos e liberdades individuais.
Assim, surge a constituição escrita como um pacto social formado entre povo e Estado, em que aquele, não obstante transferir a esta parcela de seu poder, preserva para si um núcleo duro de direitos intangíveis, nos quais o Estado deve se abster de intervir. É certo que há situações em que o Estado pode interferir nos direitos ditos fundamentais. No entanto, essa atuação se encontra excepcionada no próprio pacto social, a constituição política que expressa a vontade do povo, verdadeiro titular do poder.
Os direitos de primeira geração ou de primeira dimensão, como prefere a doutrina mais moderna, são justamente os direitos reconhecidos no modelo de Estado Liberal, sob os quais se quer um Estado Mínimo, absenteísta, que não intervenha na propriedade, na vida privada, nas liberdades individuais, entre outros. No modelo liberal se reclama uma postura negativa do Estado.
Já no início no século XX, verificou-se a necessidade de uma postura mais ativa por parte do Estado, fatores como o avanço da industrialização, elevação do desemprego, a crise econômica mundial intensificada com o final da Segunda Grande Guerra e o processo cada vez mais avançado da globalização capitalista cedeu espaço para um Estado Social, segunda dimensão dos direitos fundamentais, em que se requer do Estado uma ação prestacional.
Em verdade, os direitos sociais reclamam uma atuação estatal no sentido de efetivar os direitos de liberdade, pois não há como se efetivar, por exemplo, o direito à vida (direito de primeira dimensão) sem que se preste saúde (direito de segunda dimensão).
Logo, em que pese a distinção entre direitos de liberdade e direitos sociais, essa dicotomia deve ser feita apenas para fins de demarcar a origem histórica do reconhecimento desses direitos, visto que os direitos fundamentais, sejam oriundos do estado liberal sejam do estado social, estão todos umbilicalmente ligados, não se podendo concretizar um, sem que se efetive o outro.
Como se observa a supremacia do indivíduo e o reconhecimento dos direitos fundamentais estruturam o modelo de Estado Democrático, cujo poder se encontra limitado aos ditames previstos no seu pacto jurídico-político, a constituição.
Entretanto, a interferência do Estado nas liberdades e garantias fundamentais reduzindo o espectro de proteção do indivíduo enfraquece a democracia e retira do povo o protagonismo desejado no modelo liberal. Nesse contexto, torna-se evidente a atuação de um Estado liberal máximo, intervencionista, com profunda relativização dos direitos fundamentais, cuja democracia não passa de uma concepção formal. Dentro dessa maximização do poder estatal surge o panpenalismo ou o Direito Penal Máximo, em que o Direito Penal, o mais grave dos meios de regulação social, é utilizado como instrumento para solucionar problemas sociais complexos.
Nas palavras de Marcelo D’angelo Lara:
O panpenalismo, então, seria análogo ao maximalismo penal, tendência de exacerbação do poder estatal através da utilização de normas penais, com objetivo de orientar o comportamento social, evitando assim condutas lesivas ao interesse público representado pelo Estado. Essa tendência, protegida sob a ótica legalista positivista autorizaria o Estado a prescindir das garantias fundamentais com a finalidade de combater a “periculosidade social”. (LARA, 2011, p.86-87)
Contrapondo-se a isso, tem-se a ideia de um modelo de Estado social máximo, com a expansão dos direitos dos cidadãos e, por correlação, dos deveres do Estado, pois o que importa é a concretização máxima dos direitos e garantias fundamentais e uma correspondente minimização do poder estatal. Aqui se apresenta a proposta de um Estado liberal mínimo e de um Estado social máximo, que, por conseguinte, implica na concepção de um Direito Penal Mínimo.
Nas palavras de André Copetti:
A partir daqui começa a se desenhar uma proposta de um Estado liberal mínimo e de um Estado social máximo, o que implica um Estado é um Direito mínimo na esfera penal e, por outro lado, um Estado é um Direito máximo na esfera social. Com essa fórmula, que não cremos nem pretendemos seja mágica, achamos possível resgatar grande parte de um Estado Democrático de Direito, que temos pactuado em nossa Constituição, especialmente no campo penal, com a realização dos direitos fundamentais não só daqueles que se veem enredados com o sistema penal pela prática de ações tidas como delituosas e amargam suas sanções oficiais e paralelas, mas também com a realização dos direitos fundamentais do restante da população, potencial destinatária de ações delituosas que somente serão reduzidas a níveis aceitáveis com a instituição de um Estado social que até a presente época não passou de um simulacro em nosso País. (COPETTI, 2001, p. 112-113)
A concretização de um Estado social, com a implementação de políticas públicas, que efetivamente reduzam os fatores sociais excludentes resultando na diminuição da criminalidade, e a consequente minimização do Direito Penal, que somente será chamado a intervir quando não houver mais alternativas eficazes no plano extrapenal, faz com que haja a redução dos instrumentos repressivos refletindo diretamente na diminuição das despesas públicas como, por exemplo, nos gastos com a manutenção do preso no cárcere, podendo tais receitas serem utilizadas na realização de direitos sociais, que, retomando a ideia iniciada nesse parágrafo, reduz a criminalidade e minimiza a intervenção do Estado nas liberdades e garantias individuais, formando, assim, um ciclo benéfico a toda a sociedade.
A realização do Estado social depende muito mais do aporte de recursos para a implementação de uma série de direitos, do que propriamente de repressão à liberdade individual.
[…]
Com a utilização mínima do direito penal estar-se-á privilegiando não só a liberdade individual, valor fundamental do Estado Democrático de Direito, mas, como já dito anteriormente, pela redução do aparato repressivo estatal e, consequentemente, com a diminuição desta despesa pública, poderão os recursos desta rubrica serem alocados para a realização de direitos sociais. (COPETTI, 2001, p. 117)
Note-se, que a partir de um Estado Social retomam-se os ideais liberais de empoderamento do indivíduo frente ao poderio estatal, uma vez que nesse modelo estatal o foco está no indivíduo e na concretização dos direitos e liberdades fundamentais que lhes são inerentes.
Por outro lado, o que se observa no atual cenário brasileiro, é uma potencialização do Direito Penal, seja com o aumento de legislações penais, seja com o recrudescimento de leis penais já existentes. Ante o insucesso da atuação do Poder Executivo eleva-se o Direito Penal ao patamar de grande pacificador da ordem social.
O problema é que os governantes mascaram seu imenso fracasso na administração dos recursos públicos que deveriam ser utilizados a bem do povo, mas não o são. Eles iludem a população com discursos populistas, romantizados e inflamados. Prometem segurança, paz urbana sem priorizar a verdadeira causa do aumento da criminalidade, que é a imensa desigualdade social.
Enfatiza o grande jurista Eugênio Raúl Zaffaroni no livro “Criminalidade Moderna e Reformas Penais”, escrito em parceria com outros autores em homenagem ao professor Luiz Luisi:
Es innegable la creciente impotencia del poder político nacional para resolver los problemas sociales derivados de la exclusión y de la degradación de los servicios sociales (incluyendo la seguridad pública). Se trata de un fenómeno que los operadores políticos tratan de minimizar, pero su magnitud no permite ocultamiento ni disimulo. En este contexto, la eclosión comunicacional produce un perfil de político por completo novedoso. Se trata de personas que hablan como si tuviesen poder, lanzan sus escuetos slogans ante las cámaras, disimulan como pueden su impotencia y prometen lo que saben que no tienen poder para hacer. (ZAFFARONI, 2001, p. 150)
Assim, enganado, o povo aceita o câmbio realizado. Recebe a promessa de segurança pública em troca da minimização de suas garantias individuais. Relativiza-se o pacto social. A carta política, escrita justamente para limitar o poder estatal, é recortada e emendada, mas não em benefício do povo a fim de empoderá-lo de mais direitos e garantias, oxalá o fosse.
A Lei Maior, em verdade, é reduzida a uma mera peça no jogo político do poder. Desviada de sua finalidade essencial, proteger os indivíduos dos arbítrios do Estado, a Constituição não passa de uma mera folha de papel, como conceituou Ferdinand Lassare.
Considerando tudo o que já foi exposto, se propõe uma reflexão: A concepção do pacto social dando origem a uma lei maior e suprema capaz de limitar o poder estatal e efetivar os direitos fundamentais, os ideais iluministas de liberdade, igualdade e fraternidade, o espírito democrático que inspirou a nova ordem constitucional de 1988, será que tudo isso se concilia com um Direito Penal inflacionado por leis mais duras e mais abrangentes?
A autora conclui que não. Não é possível conciliar o regime democrático com um processo cada vez mais intenso de redução das liberdades e garantias fundamentais.
Referências
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da Teoria Geral do Estado. 32. ed. – São Paulo: Saraiva: 2013, p. 25.
LARA, Marcelo D’Ângelo. O fenômeno do panpenalismo e sua influência na realidade legislativa do Brasil. Revista da Faculdade de Direito – UFPR, Curitiba, n.47, p.29-64, 2008. Disponível em <https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/30766/19874>. Acesso em: 07 out 2019.
COPETTI, André et al[org].Criminalidade moderna e reformas penais. Estudos em homenagem ao Prof. Luiz Luisi. Porto Alegre. Livraria do Advogado, 2001.
1Título.
2Serventuária da Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Aprovada no XVIII Concurso para Defensor Público do Estado de Mato Grosso do Sul. Atualmente é assessora de Juiz de Primeira Instância no TJRJ . Especialista em Direito Penal Lato sensu (2018) e especialista em Direito Constitucional lato sensu (2023).