REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12786119
Sandra Teresinha Demamann[1]
Resumo
As abrangentes atribuições do serviço de orientação educacional demandam desse profissional práticas pedagógicas inovadoras que possam aprimorar significativamente seu desempenho. É preciso estar sempre atento à novas abordagens que possam beneficiar suas atividades, proporcionando um suporte eficaz aos alunos e à comunidade escolar e, com isso, promover as articulações e diálogos necessários para melhorar as interações sociais e os processos de ensino-aprendizagem. Com base nisso, este artigo de revisão de literatura é resultado de uma pesquisa bibliográfica voltada a compreender o papel do Orientador Educacional no âmbito escolar. Na medida em trazemos inferências teóricas que confirmem nossa hipótese sobre a utilização dos relatos pessoais escritos como uma estratégia eficiente que pode e deve ser usado pelo orientador na sua prática para a resolução de conflitos, melhoria nas relações no ambiente escolar. Desta forma, objetivamos problematizar a utilização do relato pessoal escrito na promoção do relacionamento interpessoal e intrapessoal dos alunos. Neste estudo nos embasamos teoricamente nos teóricos da orientação educacional (Grinspun, 2018; 2008; 2006), (Corbelli, 2021), Almeida (2019), Gomes (2018), entre outros. Para tratar sobre a escrita do relato pessoal, articulamos os estudos de Foucault (2016; 2002), Galli (2010), Eckert-Hoff (2008), Yinger (1986), Carillo (2001) e Zabalza (2005). Como resultados, observamos que o relato pessoal escrito é uma importante ferramenta que pode ser articulada pelo orientador educacional na sua pratica pedagógica, na promoção de avanços nas relações intrapessoais e interpessoais, para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Palavras-chave: Orientação Educacional. Relato pessoal escrito. Prática Pedagógica.
Abstract
The comprehensive responsibilities of the educational guidance service demand innovative pedagogical practices from professionals that can significantly enhance their performance. It is crucial to be constantly attentive to new approaches that can benefit their activities, providing effective support to students and the school community, and thereby promoting the necessary articulations and dialogues to improve social interactions and the teaching-learning processes. Based on this premise, this literature review article results from a bibliographic research aimed at understanding the role of the Educational Counselor in the school context. As we bring theoretical inferences that confirm our hypothesis regarding the use of written personal narratives as an efficient strategy that can and should be used by the counselor in their practice for conflict resolution and improvement of relationships in the school environment. Therefore, our objective is to problematize the use of written personal narratives in promoting interpersonal and intrapersonal relationships among students. In this study, we rely theoretically on educational guidance theorists (Grinspun, 2018; 2008; 2006), (Corbelli, 2021), Almeida (2019), Gomes (2018), among others. To discuss the writing of personal narratives, we articulate the studies of Foucault (2016; 2002), Galli (2010), Eckert-Hoff (2008), Yinger (1986), Carillo (2001), and Zabalza (2005). As a result, we observe that the written personal narrative is an important tool that can be articulated by the educational counselor in their pedagogical practice to promote advances in intrapersonal and interpersonal relationships, towards the construction of a more just and inclusive society.
Keywords: Educational Guidance. Written personal narrative. Pedagogical practice
1 INTRODUÇÃO
O Orientador Educacional, dentro da instituição escolar, é parte da equipe de gestão. Seu trabalho está diretamente ligado aos alunos no que se refere ao seu desenvolvimento pessoal. Em conjunto com os professores, procura compreender o comportamento dos estudantes. No que concerne à escola, trabalha na organização e realização da proposta pedagógica; além disso, atua na comunidade, ouvindo, orientando e dialogando com as famílias, pais e responsáveis.
Conceição (2010) expõe a função do Orientador na escola, percebendo que seu trabalho contribuiu coletivamente para o ensino, pois interage diretamente com os diferentes integrantes da comunidade escolar e atua efetivamente para contornar qualquer tipo de dificuldades enfrentadas. Desta forma o “orientador educacional deve ser o agente de informação qualificada para a ação nas relações interpessoais dentro da escola, adotando a prática da reflexão permanente com professores, alunos e pais, afim de que eles encontrem estratégias para o manejo de problemas recorrentes” (Conceição, 2010, p.49).
O trabalho do Orientador deve caminhar para o desenvolvimento de uma educação humanizadora e integral do sujeito, com vista nisso, Lück (2005) argumenta sobre a necessidade do Orientador perceber como ocorre o desenvolvimento humano e a aprendizagem. Assim como, perceber as influências do ambiente cultural, social e econômico sobre o aluno, respeitando as diferenças individuais. Ainda, deve promover o desenvolvimento de bons modelos de relacionamentos, participar na resolução de problemas em sala de aula, e sobretudo, atuar na motivação os alunos. Ademais, o orientador precisa trabalhar de forma cooperativa e em função dos interesses e necessidades dos estudantes. Haja visto, que a busca pelo desenvolvimento humano depende de como as relações são construídas.
A amplitude das funções do orientador educacional exige deste profissional constantes buscas e pesquisas por práticas outras que possam auxiliar no efetivo desempenho de suas atividades. De acordo com Corbellini (2021), o orientador educacional precisa
[…] contribuir para a construção coletiva desse espaço de forma ética e pautada em conhecimentos científicos da sua prática e, para tanto, é preciso que não somente seja reprodutor, mas que seja pesquisador e propositor de novas práticas, posicionando-se de forma crítica e suscitando transformações que contribuam com o cotidiano social (Corbellini, 2021, p. 163).
Na compreensão da importância de práticas sempre atuais que possam contribuir na resolução de conflitos e nas relações sociais dentro do espaço educacional, com vistas a um ambiente escolar mais inclusivo, democrático e emancipatório. Diante do exposto, este artigo de revisão de literatura, resultado de uma pesquisa bibliográfica voltada a compreender o papel do Orientador Educacional no âmbito escolar, buscando inferências teóricas que confirmem a utilização dos relatos pessoais escritos como uma estratégia eficiente que pode e deve ser usado pelo orientador na sua prática, para a resolução de conflitos entre alunos, melhorando assim as relações interpessoais. Desta forma, este artigo busca problematizar o papel mediador do Orientador Educacional e a importância do relato pessoal escrito na promoção do relacionamento interpessoal aluno – aluno.
Para tanto, num primeiro momento teceremos uma breve contextualização histórica sobre a orientação educacional no contexto brasileiro, seguido de um embase teórico sobre as funções, papéis, e elementos do trabalho do Orientador Educacional, fundamentada em autores como Grinspun (2018; 2006; 2005), Corbelli (2021), Almeida (2019), Gomes (2018), entre outros. Em um segundo momento, abordaremos sobre a escrita do relato pessoal embasada em autores como Foucault (2002), Galli (2010) e Eckert-Hoff (2008), Carillo (2001) e Zabalza (2005) entre outros, para pensa-la como prática pedagógica promotora de avanços nas relações intrapessoais e interpessoais, essencial na construção de uma sociedade mais inclusiva, e facilitadora no/para trabalho do Orientador junto aos alunos.
2 A ORIENTAÇÃO EDUCACIONAL
Para melhor entender o papel (função) do orientador educacional (OE) no âmbito escola, torna-se relevante uma breve contextualização histórica desta profissão. Neste sentido, Garcia (2011) e Grinspun (2006) e Almeida (2019) situam o inicio da orientação educacional no Brasil, enquanto área profissional, quando da criação, do engenheiro suíço Roberto Mange, de um serviço de seleção e orientação profissional destinado a alunos de um curso de mecânica, no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, em 1924. Na década de 1930, é criado o serviço de Orientação Educacional e Profissional no Estado de São Paulo, o então diretor do Departamento de Educação de São Paulo, Loureço Filho, em 1931, cria o primeiro serviço de Orientação Profissional público do Brasil.
Serviço que, segundo Almeida (2019), teve sua introdução em âmbito nacional inicialmente no ensino industrial pela Lei Orgânica do Ensino Industrial (Lei nº 4.073, de 30 de janeiro de 1942, que organiza o ensino industrial). Posteriormente, com a Lei Orgânica do Ensino Secundário (nº 4.244 de 9 de abril de 1942, que organizou o ensino secundário em dois ciclos: o ginasial e o colegial), e no ano seguinte com a Lei Orgânica do Ensino Comercial (lei nº 6.141, de 28 de dezembro de 1943, que reforma o ensino comercial) e na Lei Orgânica do Ensino Agrícola (lei nº 9.613 de 20 de agosto de 1946, que organiza o ensino agrícola). Na década de 60 e 70, é mantida na em ambas as LDB – Leis de Diretrizes e bases da Educação – Lei nº 4.024/61 e Lei nº 5.692/71.
Grinspun (2006), assim como Gomes e Grinspun (2018), sistematizam os diferentes períodos que constituem a orientação educacional em âmbito nacional: implementador, institucional, transformador, disciplinador, questionador, orientador, reconceitualizador e renovador (ou articulador). O primeiro período, segundo Grinspun (2006) estende-se entre os anos de 1920 a 1941, em que ocorrem as tentativas para introduzir a orientação educacional nas escolas, e por isso caracteriza-se como “Período Implementador”. Porém, neste período ainda não havia legislação específica para a orientação, apenas alguns projetos. Conforme vimos, o primeiro documento legal é de 1942 e marca a mudança de iniciativas isoladas, ligadas à orientação educacional, para atividades regularizadas pelo governo. Quando em abril de 1942 é promulgada a Lei nº 4244/42, conhecida como Reforma Capanema, que institui a obrigatoriedade da orientação educacional nos estabelecimentos de ensino secundário.
O segundo período, compreendido entre 1942 a 1960, Grinspun (2006) e Gomes (2018) nomeiam como “Período Institucional”, tendo como característica o foco no aluno, visando identificar seus interesse e aptidões, bem como orientá-los a uma escolha profissional. Este período, temos o surgimento e implementação das leis orgânicas. Além disso, em 1945 a Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) implementa o primeiro curso de orientação educacional. No início da década de 1950, também é organizado o primeiro manual de trabalho de orientadores educacionais (1952). E em 21 de dezembro de 1968, a profissão de orientador educacional é instituída pela Lei nº 5.564 (Grinpun, 2006; Gomes, 2018).
Em seguida, entre os anos 1961 a 1970, temos o “Período Transformador”, em que o orientador trabalha basicamente com aconselhamento ao aluno (individualmente ou em grupo). Este período é marcado pela primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) na Lei nº. 4.024/1961, especialmente pelos artigos 62 e 63, que se refere à formação desse profissional do orientador educacional. Acarretando a reformulação dos cursos de Pedagogia e criação da Habilitação em Orientação Educacional. Além disso, ocorre a fundação das associações de orientadores e de supervisores educacionais, em 1966 temos a criação da Associação dos Orientadores Educacionais do Rio Grande do Sul (AOERGS) e da Federação Nacional dos Orientadores Educacionais (FENOE), e no ano de 1970 da fundação da Associação dos Orientadores Educacionais de Santa Catarina (AOESC). Entre os anos de 1971 a 1980, os autores identificam como “Período Disciplinador” que é marcado principalmente pela Lei nº 5692/1971, que sanciona a segunda edição da LDBEN, tornando obrigatório os serviços de orientação educacional. Além disso, no ano seguinte com a Lei nº. 72.846/1973, a profissão de orientador educacional é regulamentada, sendo a primeira a conseguir esse feito na área educacional (Gomes e Grinspun, 2018).
Segundo Grinspun (2006), a partir da década de 1980, inicia o “Período Questionador”, historicamente marcado pelo fim do Regime Militar (1985) e a promulgação da Constituição Federal de 1988. Também nesse período a LDBEN como a ser revisada em face as novas legislações, todas essas mudanças fomentam os questionamentos com relação às atribuições e papéis do orientador numa dimensão político-pedagógica.
Em meados dos anos de 1990 inicia o “Período Orientador”, que é marcado especialmente pela nova LDBEN, Lei nº 9394/1996, que omite a orientação educacional em seu texto. Em consequência os serviços de orientação educacional adquiram caráter facultativo nas instituições de ensino, com perda de reconhecimento profissional e da importância desse serviço. A partir dos anos 2000, passamos ao “Período Reconceitualizador”, com a busca por ressignificação profissional, e adequação às demandas da sociedade e da escola. Por fim, o “Período Renovador ou Articulador” que está em processo, que compreende o orientador educacional é enquanto profissional que interage dialogicamente entre escola e sociedade, que se constitui na e pela pesquisa para detectar as necessidades e propor soluções efetivas condizentes com a realidade de cada comunidade escolar. (Grinspun, 2006; Gomes e Grinspun, 2018).
Deste modo, observa-se que o trabalho do Orientador Educacional sofre mudanças em decorrência do tempo, transformando-se, constituindo novas práticas pedagógicas e modos de olhar o aluno e a sociedade. Portanto,
[…] se antes cabia ao orientador ser figura neutra no processo educacional, pra “guiar os jovens em sua formação cívica, moral e religiosa”, hoje, espera-se um profissional comprometido com sua área, com a história de seu tempo e com a formação do cidadão (Grinspun, 2006, p.18, grifos da autora).
Observa-se a constituição de uma nova visão com relação ao papel do orientador:
O papel da Orientação numa escola comprometida com seu projeto político pedagógico onde além do processo ensino-aprendizagem ou, a partir processo ensino aprendizagem esteja comprometida com a formação do sujeito, com a formação da cidadania (Grinspun, 2008, p.73).
A autora salienta a mudança no papel do orientador dos “alunos problemas” para todos os problemas enfrentados pelo aluno. O trabalho do orientador começa a objetivar o desenvolvimento pleno do aluno, integral, em todos os aspectos, assim:
[…] a Orientação não tem mais preocupação prioritária com alunos problemas, mas tenta ajudar os problemas dos alunos e de toda comunidade escolar, em uma perspectiva de melhor compreensão do sujeito e de suas relações dentro e fora da escola (Grinspun, 2018, p. 80).
Chalita (2004) entende que o desenvolvimento pleno do educando requer a saída de uma visão conteudista, cujo foco é apenas o desenvolvimento da habilidade cognitiva, buscando a ampliação de outras habilidades como: sociais e psicológicas. Priorizando ainda a convivência plural, a afetividade, e o equilíbrio. Nesta linha de pensamento Lück (2005, p.19), salienta que uma educação voltada ao desenvolvimento integral “só é possível vendo-se o educando de forma integral, cujos componentes cognitivos, psicomotores e afetivos devem ser desenvolvidos equilibrada e harmoniosamente”.
A educação comprometida com o exercício da cidadania, segundo Silva (2010), está inserida na visão de que o papel do Orientador é atuar para o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa, com vistas à formação de um cidadão crítico-reflexivo. Desta forma, constitui-se uma Orientação Educacional com abordagem participativa e focada na formação integral do sujeito que deve ser construída em conjunto com uma educação emancipatória, ou seja, comprometida com a formação de um sujeito autônomo, crítico e reflexivo.
Millet (2010, p.43) enfatiza diferentes as relações, que devem ser levadas em conta pelo orientador no exercício de seu trabalho. Deste modo, pontua sobre a necessidade de “[…] pensar junto com os alunos sobre o ambiente que os circunda e as relações que estabelecem com esse ambiente, para que, tomando consciência da expropriação a que são submetidos, sintam-se fortalecidos para lutar por seus direitos de cidadãos”. Com isso, a autora alerta para um enfoque de caráter político do Orientador Educacional que “ultrapassa os limites dos muros da escola” e se envolve com a comunidade. Para a Millet (2010) as queixas mais comuns dos professores, como: indisciplina, agressividade, desinteresse, dificuldades de aprendizagem, não podem ser tratadas de forma isolada, mas como sendo um estudo das relações “professor-aluno, aluno-conteúdo, aluno-aluno, aluno-estatutos escolares, aluno-comunidade, professor-comunidade” (p. 43).
Neste sentido, Villon (2015) destaca que o trabalho do Orientador Educacional deve proporcionar a aproximação entre a comunidade e a escola, esclarecendo os papéis e a influência que as diferentes instituições, tais como indústrias, comércios locais, associações, clubes, entre outros, exercem na comunidade. Recomendando a liberdade para extrapolar o espaço escolar em direção à comunidade escolar. Assim, a autora corrobora com a ideia de que o campo de atuação do Orientador Educacional não se limita à escolar.
Placco (1994, p. 30) conceitua a orientação educacional como:
um processo social desencadeado dentro da escola, mobilizando todos os educadores que nela atuam – especialmente os professores – para que, na formação desse homem coletivo, auxiliem cada aluno a se construir, a identificar o processo de escolha por que passam, os fatores socioeconômico-político-ideológicos e éticos que o permeiam e os mecanismos por meio dos quais ele possa superar a alienação proveniente de nossa organização social, tornando-se, assim, um elemento consciente e atuante dentro da organização social, contribuindo para sua transformação.
Assis (2015) aponta o Orientador Educacional como corresponsável pela aprendizagem dos alunos e, portanto, deve questionar as práticas docentes que envolvem os aspectos didático-pedagógicos, tais como relação professor-aluno, objetivos, conteúdos, metodologia, e avaliação; mostrando a necessidade dos docentes conhecerem e refletirem sobre o verdadeiro significado da existência da escola e da sua função social.
Segundo Grinspun (2006, p.98), durante o processo de socialização “o aluno vai construindo sua formação como sujeito, portanto a sua subjetividade”, portando é preciso levar em consideração que “a Escola é um dos espaços do cotidiano do sujeito onde a subjetividade está sendo formada”. Obviamente, a escola existe porque o aluno existe, ele é a razão de ser da escola. Assim, a escola conta com o trabalho do Orientador para auxiliar o aluno nas suas necessidades formativas. Ele é o profissional que trabalha com o aluno e que se preocupa com a sua formação pessoal. Cabendo ao Orientador construir propostas que aumentem o nível cultural do aluno para que se desenvolva na sua totalidade, e aprenda “[…] o sentido da singularidade, da autonomia, da dimensão da solidariedade, no verdadeiro significado do humano” (Grinspun, 2008, p. 73), além de possibilitar que o ambiente escolar seja o melhor possível.
Pensando nisso, e na necessidade do orientador se tornar “um pesquisador permanente” (Gomes, 2018), que nos propomos problematizar neste artigo sobre a utilização dos relatos escritos dos/pelos alunos na resolução de conflitos entre alunos, pensando nos relatos como ferramenta do Orientador pra melhorar as relações interpessoais dentro da escola. Levando em conta que, “se o aluno é o promotor da sua história, ouvi-lo não é nenhuma atitude de atendimento específico, mas sim uma obrigação que se insere em uma medida educacional” (Grinspun, 2014, p.191).
3 A IMPORTÂNCIA DA ESCRITA: o relato pessoal escrito
Desde o nosso nascimento, estamos inseridos em um universo em que inúmeras são as formas de linguagem. Compartilhamos uma série de situações que envolvem diferentes tipos de linguagem: oral, escrita, corporal e gestual, pertencentes ao meio em que vivemos. Diariamente, nos comunicamos através da escrita, seja por e-mail, whatsApp, Messenger, Skype, entre tantos outros. Além disso, a escrita serve-nos para emitir documentos, cartas, contas a pagar, jornais, livros, fazer listas de matérias, tomar notas de coisas que não queremos esquecer, enfim, inúmeras são as possibilidades para uso da escrita, ela com certeza é um importante, talvez o principal veículo de transmissão de ideias.
Devido ao caráter “concreto” da escrita, pois se trata de símbolos expressos em alguma forma de registro, seja impresso num papel ou um arquivo digital em um dispositivo eletrônico, a escrita possui uma permanência no tempo e no espaço, característica que a palavra falada não possui, a menos que seja registrada em equipamentos adequados, atualmente possível, mas vale lembrar não existia até um século atrás. Assim a grande vantagem da escrita sobre a fala é que esta pode ser lida e relida mais tarde, sem ter a memória do evento que ocasionou a escrita.
Carillo (2001, p.51, tradução minha) expõe sobre as virtudes do escrever e seus benefícios:
A escrita é, desse modo, um espaço de silêncio para lembrar a mudança e vislumbrar os rastros deixados, mas, ao mesmo tempo, nos leva a projetar novos espaços imaginários à luz daquilo que já foi, do que é e do futuro que ainda é incerto porque não é. É também um espaço para a descoberta de cada rosto, de cada olhar, das diferentes maneiras de pensar, de sentir e de viver a realidade.
Foucault (2002), traz um entendimento de escrita pautado em Plutarco, compreendendo-a como treino de si e com função etopoiética, isto é, de “transformação da verdade em ethos” (p.134), as divide em hypomnemata e em correspondência. A hypomnemata trata-se de uma espécie de “cadernos pessoais” que teria como principal função a constituição de si a partir da recolha dos discursos dos outros, por intermédio de “captar o já dito”, daquilo que se ouviu ou se leu. Assim, a escrita hypomnemata é um importante veículo de subjetivação do discurso (Foucault, 2002, p.137-138). Esse processo de escrita se divide em dois: por um lado o escritor unifica os “fragmentos heterogéneos por intermédio da sua subjetivação no exercício da escrita pessoal” (p. 143), pelo outro “o escritor constitui a sua própria identidade mediante essa recoleção das coisas ditas” (p. 144-145), isto é, pelas releituras.
Na correspondência, o texto é destinado a outrem e funciona como um exercício pessoal, por que atua no “próprio gesto de leitura daquele que envia” (Foucault, 2002, p.145) como também, na leitura e releitura daquele que a recebe. Foucault salienta que escrever é “‘mostrar-se’, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro” (2002, p. 151, grifo do autor), com isso o exercício de escrever para alguém trabalha com a subjetivação do discurso verdadeiro, da assimilação e elaboração para um “bem próprio”.
Também podemos pensar os relatos escritos dos alunos, como um falar de si. Para Eckert-Hoff (2008), o sujeito, quando fala de si, se “e(in)screve”, se (re)inventa, “trabalha diferentemente a voz do Outro, apagando-se, ausentando-se, mas e(in)screvendo-se, sempre, com seu traço, num movimento de presença/ausência, que é condição de possibilidade de qualquer escritura” (p.76). Com isso, o relato pessoal escrito pode funcionar como uma “escritura de si, como um lugar possível de (re)fazer a sua existência, de sobreviver, de retalhar-se, de (re)costurar-se, de (re)tecer-se” (Eckert-Hoff, 2008, p.92).
Foucault (2016, p.68) afirma que a “escrita destina-se a designar, mostrar, manifestar fora dela própria alguma coisa que, sem ela, teria permanecido, se não oculta, ao menos invisível”, no decorrer da obra o autor assevera que não escreve para dar a sua “existência uma solidez de monumento”, mas que tenta antes de tudo reabsorver sua própria existência (Foucault, 2016, 73).
Segundo Galli (2010) a escrita é a “(re)construção de ‘eus’”, pois ao “escrever, o sujeito se inscreve, fala de si, (re)significa-se, (re)inventa o seu ‘eu’ a sua identidade. (Galli, 2010, p. 62). Ademais, o processo de escrita, trabalha com as incertezas, as tensões, os conflitos de cada um “que tende a se abrir, deslizar, (des)locar, no movimento de (re)construção de muitas vozes e dos muitos sentidos (Galli, 2010, p.51).
Yinger (1986), pontua algumas características importantes da escrita. Segundo o autor, o processo de escrever é “multirrepresentacional” e interativo, assim no desenvolvimento da escrita, maneja-se diversas formas de acesso à realidade em que se faz, pensa e lida com imagens. Destarte, o ato de escrever força quem escreve a expressar em símbolos um conhecimento e algumas lembranças que haviam sido representadas originalmente (e armazenadas na memória imediata) de um modo diferente. Além disso, o processo de escrita acontece promove um tipo feedback “autoproporcionado”, segundo o autor na
[…] medida que se escreve, a gente lê as palavras que acabe de escrever, percebe que tais palavras dizem se se comunicou ou não o que se queria comunicar. Os propósitos e os objetivos íntimos de quem escreve, os componentes expressivos da escrita, proporcionam um modelo de pistas para o contraste e a comparação. […] O fato de que a escrita recolha e mantenha pensamentos e sentimentos, torna os produtos escritos algo disponível como documento da evolução e desenvolvimento desses pensamentos e sentimentos. (Yinger, 1986, p.06)
Ademais, a ação de escrever requer uma estruturação deliberada do significado, pois não conseguimos escrever de maneira mecânica e inconsciente, pois, a escrita não consegue se sustentar em apoios não-verbais ou paraverbais, como acontece na língua oral. Por fim, o autor salienta a característica ativa e pessoal da escrita, fato que toda a escrita, por natureza própria, possui um envolvimento pessoal (motor e cognitivo) (Yinger, 1986).
Segundo Zabalza (2004) escrever é uma operação que necessita “re-codificar” o que está sendo narrado (expressando as coisas que vivemos ou ideias que temos por meio de outro código escrito), o que nos obriga fazer uma reconstrução do evento ou da sensação a ser narrada. Para quem está contando, é como voltar atrás para observar em outra perspectiva o que está narrando.
O próprio fato de contar fará com que a situação se reconstrua desde parâmetros menos emocionais e o sujeito possa controlá-la melhor. Se, em vez de pedir que nos conte, pedimos que nos escreva, estamos lhe solicitando um processo de reconstrução ainda mais laborioso, o que permite obter uma maior distância da coisa narrada e, com isso, um maior controle sobre ela. (Zabalza, 2004, p. 140)
Segundo Zabalza (2004) a redação dos acontecimentos faz com que o sujeito passe por um processo de se tornar consciente da própria atuação ao ter que identificar suas ações para posteriormente narrá-las, ocasionando uma racionalização dos seus atos, promovendo a possibilidade de transformá-los. Assim, o autor entende que biografias, autobiografias, histórias de vida, e também documentos menores com cartas, informes e relatos escritos são documentos pessoais.
Mercadé (1986, p. 295) apresenta como definição de documento pessoal:
É todo aquele documento revelador de si mesmo, que de maneira intencional ou não proporciona informação em relação à estrutura, à dinâmica e ao funcionamento da vida mental de seu autor. […] Um relato em que se dá conta da experiência de uma pessoa que expõe sua atividade como ser humano e como participante da vida social.
Sendo assim, os relatos escritos dos alunos, quando em atendimento com o orientador educacional, utilizados na resolução de conflitos (interpessoais ou intrapessoais) são documentos pessoais, e desta forma devem ser tratados pelo orientador com toda a ética necessária que esse material escrito exige. Além de servir a um propósito reflexivo, este material poderá auxiliar em situações futuras, como conversas com o próprio aluno, com seus pais e/ou responsáveis, quando da troca de profissionais de orientação, etc.
Aventamos, a possibilidade de uso dos relatos escritos em situações de conflito. Para pensar na sua utilização anterior à ação de ouvir as partes em conflito. Assim, se o orientador solicitar inicialmente um relato escrito do ocorrido de cada um dos envolvidos, quando chegar ao momento do relato oral, as partes já estarão mais tranquilas, tendo em vista que precisaram se acalmar para conseguir escrever o que aconteceu. Além do mais, durante o relato escrito os alunos têm a possibilidade de refletir suas ações e assim melhorar seu comportamento futuro. Esta é apenas umas das possibilidades do uso do relato pessoal escrito, podendo o orientador utilizá-la também para melhor entender a aprendizagem, as relações familiares, as incertezas, dúvidas e medos do aluno em determinada fase, entre outras.
Portanto, salientamos que indivíduo a partir da escrita pode rever seus pensamentos, e constituir outros pontos de vista. Também, pode registrar suas ideias livremente, e posteriormente pensar sobre seus registros, e modificar suas atitudes. Assim, cabe ao orientador educacional investigar, pensar e implementar na sua pratica pedagógica os relatos pessoais escritos dos alunos, tendo em vista que “a linguagem escrita representa um […] poderoso instrumento de pensamento” (Luria e Yudovich, 1985. P.118) e transformação pessoal.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando nos propomos a escrever este artigo, sabíamos da escassa bibliografia sobre as práticas propriamente ditas do orientador; muitos autores trabalham a evolução histórica e as funções e mudanças de papéis do trabalho do orientador através dos tempos “(…) papel integrador, mediador e principalmente um papel de interdisciplinaridade entre o saber e o fazer, entre o ter e o ser, entre o querer e o poder” (GRINSPUN, 2008, p.93), porém nenhum se detém a descrever ou mesmo pontuar maneiras de como o Orientador pode fazer para realizar sua prática de modo mais eficiente.
Segundo Grinspun (2015) devemos pensar a Orientação Educacional envolvida com a “construção” de um cidadão mais comprometido com seu tempo e com sua gente. Pretendendo trabalhar com o aluno o desenvolvimento do seu processo de cidadania, sua subjetividade e intersubjetividade, que são obtidas através do diálogo nas relações estabelecidas.
Propomos que a melhoria destas relações não seja apenas com o diálogo com os demais, mas através de uma escrita, com relatos sobre os fatos, que se torne uma reflexão, um diálogo consigo mesmo, que promova uma ação sobre si, servindo como de elemento de análise (e autoanálise), e ainda melhore a pratica pedagógica do Orientador educacional. Vale ressaltar, levando em consideração o caráter de documento pessoal, que estes relatos possuem. Por isso, demandam um tratamento ético do orientador, assim como em todo o trabalho pedagógico, pois, a confiança na pessoa do orientador é fundamental para o êxito no trabalho.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Laurinda Ramalho de. Orientação educacional e coordenação pedagógica no Estado de São Paulo: avanços, recuos, contradições (Parte I). Psicologia da Educação, n. 48, p. 111-118, 2019. Disponível em: http://educa.fcc.org.br/pdf/psie/n48/2175-3520-psie48-11. Acesso em: 05 jul. 2024.
ASSIS, Nizia. Revendo o meu fazer sob uma perspectiva teórico-prática.In: GRINSPUN, Mírian P. S. Zippin (Org.). A prática dos orientadores educacionais. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2015.
CARRILLO, Isabel. Dibujar espacios de pensamiento y diálogo. Cuadernos de pedagogia, nº 305, p. 50-55, 2001.
CHALITA, Gabriel. De tudo que mora em mim. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 2006.
CONCEIÇÃO, L. F. Coordenação Pedagógica: princípios e ações em formação de professores e formação do estudante. Porto Alegre: Mediação, 2010.
CORBELLINI, Silvana. O ato da pesquisa e a autoria na formação do orientador educacional: uma união da teoria e prática. In: CORBELLINI, Silvana (Org.). Orientação educacional: registros de um percurso de formação [recurso eletrônico]. Porto Alegre: Forma Diagramação, 2021. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/232571. Acesso em: 05 jul. 2024.
ECKERT-HOFF, Beatriz. Escritura de si e identidade: o sujeito-professor em formação. Campinas: Mercado de Letras, 2008.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 4 ed. Trad.: A. F. Cascais e J. B. Miranda. Vega: Passagens. 2002
FOUCAULT, Michel. O belo perigo. Conversa com Claude Bonnefoy. Tradução Fernando Scheibe. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016
GALLI, Fernanda C. S. Escrita: (re)construção de vozes, sentidos, ‘eus’… In: CORACINI, Maria José R. F. e ECKERT-HOFF, Beatriz Maria. Escritura de si e alteridade no espaço papel-tela: formação de professores, língua materna e estrangeira. Campinas: Mercado das letras, 2010.
GARCIA, Regina Leite (org.). Orientação Educacional: o trabalho na escola. 6ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
GOMES, Marise. Orientação educacional: do ontem às pertinências do hoje. In: GOMES, Marise; GRINSPUN, Mírian P. S. Zippin. Orientadores educacionais em ação: novos tempos, novos rumos. Rio de Janeiro: Wak, p. 47-75, 2018.
GRINSPUN, Mírian P. S. Zippin. A orientação educacional nas escolas de hoje. In: GOMES, Marise.; GRINSPUN, Mírian P. S. Zippin Orientadores educacionais em ação: novos tempos, novos rumos. Rio de Janeiro: Wak, p. 77-109, 2018.
GRINSPUN, Mirian P. S. Zippin (Org.) A prática dos orientadores educacionais. 7ª ed. São Paulo: Cortez, 2015.
GRINSPUN, Mírian P. S. Zippin. Autonomia e ética na escola: o novo mapa da educação. São Paulo: Cortez, 2014.
GRINSPUN, Mirian P. S. Zippin. (org.). Supervisão e orientação educacional: perspectivas de integração na escola. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2008.
GRINSPUN, Mirian P. S. Zippin. A Orientação Educacional: conflito de paradigmas e alternativas para a escola. 3ª Ed. São Paulo: Cortez, 2006.
LÜCK, Heloísa. Ação Integrada: Administração, Supervisão e Orientação Educacional. Petrópolis: Vozes, 2005.
LURIA A. R.; YUDOVICH, F. I. Linguagem e desenvolvimento intelectual na criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985
MERCADÉ, F. Metodología cualitativa e historias de vida. Revista Internacional de Sociología, v.44, nº 3, p.295-320, 1986.
MILET, Rosa Maria Lepak. Uma orientação educacional que ultrapassa os muros da escola In: ALVES, Nilda & GARCIA, Regina Leite (org.). O fazer e pensar dos Supervisores e Orientadores Educacionais. 12 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
PLACCO, Vera Maria N. de Souza. Formação e prática do educador e do orientador. Campinas, SP: Papirus, 1994.
SILVA, Nara Rúbia Miranda. A práxis do orientador educacional como agente importante da equipe gestora democrática e o seu papel frente o desenvolvimento de aprendizagem significativa do cidadão crítico reflexivo. Setembro de 2010. Disponível em www.partes.com.br/educação/praxisdoorientador
VILLON, Ivanita Gil. Orientação educacional e a comunidade. In: GRINSPUN, Mírian.P.S. Zippin (Org.) A prática dos orientadores educacionais. São Paulo: Cortez, 2015.
YINGER, Robert J. Investigación sobre sobre conocimiento y pensamiento de los profesores. Hacia una concepción de la actividad profesional. In: VILLAR ÂNGULO, L. M. (Ed.). pensamientos de los profesores y toma de decisiones. Sevillha: ICE, Universidade de Sevilha, 1986. pp.113-141.
ZABALZA, Miguel A. Diários de aula: um instrumento de pesquisa e desenvolvimento profissional. Porto Alegre: Artmed, 2004.
[1] Doutoranda em Letras/linguística/PPGLetras/UFMS e Mestre em Educação.