O MINISTÉRIO PÚBLICO E A PROTEÇÃO DO INCAPAZ

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202412121549


Fernando Seixas Baeta Diniz


Resumo

Este artigo tem o condão de correlacionar as melhorias e as deficiências existentes na atuação do Ministério Público frente ao Estatuto da Pessoa com Deficiência. Parte-se da premissa que as recentes modificações coincidem com o posicionamento global, ante a adesão do Brasil a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo. Contudo, caminhar no mesmo sentido não significa que as idiossincrasias continentais devam ser esquecidas, pois levar-se-á ao esgotamento do instituto em questões que nos parecem de suma relevância para a escorreita atuação do órgão ministerial. Ao final, restará demonstrado por meio de casos relevantes a necessidade de adequação da atuação, buscando-se o melhor interesse do público tutelado. 

Palavras-chave:  Ministério Público. Estatuto da Pessoa com Deficiência. Capacidade. Código Civil

Introdução

O presente trabalho tem o condão de demonstrar os reflexos das alterações realizadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei 13.146/2015, em relação à capacidade civil e as atribuições do Ministério Público.

Em virtude da adesão à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, inserida em nosso sistema jurídico por meio do Decreto Legislativo n. 186, a sociedade passou a requerer a implementação das garantias convencionadas, motivo pelo qual o Congresso Nacional se debruçou sobre o tema e o materializou através do Estatuto da Pessoa com Deficiência – EPD.

Diante das modificações atinentes à capacidade civil, surge uma questão quanto a atuação do Ministério Público: teria o “parquet” perdido campo de atuação ou seria ele um membro crucial à fiscalização das garantias previstas aos grupos anteriormente alijados?

As modalidades de deficiência sempre foram temas relevantes socialmente, mas pouco discutidos. Isto porque, os portadores de quaisquer limitações se viam compelidos a sujeitar-se ao posicionamento de parentes e/ou curadores sendo-lhes tolhidas todas as expressões de vontades que são imanentes do ser.

Após a promulgação do Estatuto, as pessoas com deficiência passam a exercer a capacidade plena, adquirindo um status social que deveriam gozar desde sempre. O auxílio, quando se fizer necessário, será convencionado apenas nos temas patrimoniais e não mais a respeito de escolhas pessoais.

Trata-se de um enorme passo da sociedade para equiparar seus integrantes e proporcionar-lhes a dignidade da pessoa humana que lhes sempre pertenceu, mas que não fora aplicada. Mas, antes tarde do que nunca.

Espera-se ao término do presente trabalho elucidar alguns dos inúmeros papéis do órgão ministerial, perpassando pelos pontos históricos, legislativos, para ao final demonstrar a relevância da modificação social e paradigmática imposta pela lei supracitada, conjugada com a atuação profícua do Ministério Público na tutela dos direitos e garantias fundamentais indisponíveis, entre eles, os absolutamente e os relativamente incapazes.

I – Os antecedentes históricos do Ministério Público

Embora a atual função exercida pelo Ministério Público – elencada a partir da Constituição Federal de 1988 – tenha imensa relação com diversos cargos adotados nos séculos passados, não há um consenso doutrinário quanto a exata origem de seu surgimento.

Na verdade, em pesquisas perfunctórias extrai-se uma extensa relação de funções que foram ou poderiam ser vinculadas ao Ministério Público, dado que suas atribuições foram amplamente alteradas desde a primeira incursão do “Parquet” nas Constituições Brasileiras.

No entanto, a doutrina diverge em relação a seus antecedentes (Egito Antigo, Grécia Antiga ou Roma Clássica); convergem, no entanto, quanto a França ser a precursora da feição moderna que o Ministério Público ocupa hoje na sociedade.

A esse respeito, imperioso destacar a lição de Hugo Nigro Mazzili¹:

“… Controverte-se em doutrina sobre as origens do Ministério Público. Para alguns, essas origens estariam na Antiguidade, ou seja, há 4.000 anos, no magiaí antigo funcionário real do Egito Antigo; para outros, na Grécia Antiga (thesmothetis); há entendimento, ainda, de figuras precursoras do Ministério Público na Roma clássica (advocatus fisci, censores etc.) O mais comum, porém, é indicar-se que o Ministério Público moderno tem origem nos procuradores do rei da França, ou mais especificamente, na Ordenança de 1302, de Felipe IV. Entretanto, verdade seja dita, contemporaneamente na Itália e em Portugal (Ordenações do Reino), existiram procuradores do Rei, com atribuições semelhantes. De qualquer forma, os usos forenses, até hoje, ainda se referem ao Ministério Público como parquet, magistrature débout e lês gens du roi, para aludir às origens históricas francesas…”

Para além das explanações do ilustre Professor Mazzili, cabem algumas considerações quanto as funções exercidas pelos dois principais antecedentes históricos (Egito e França).

O Egito possuía uma complexa extensão de funcionários subordinados ao Faraó, entre eles encontrava-se a figura do magiaí. Trata-se de integrante do corpo de Procuradores do Faraó cujas funções eram reprimir os rebeldes e os violentos, acusando-os e relacionando as provas obtidas contra eles, bem como realizada a defesa dos órfãos e viúvas.

Em França, a origem do Ministério Público se dá através da Ordenança de 25 de maio de 1302, de Felipe IV, o Belo, rei da França, sendo o primeiro texto legislativo que cunhou as funções dos procuradores do rei.

Em ambos os antecedentes, a figura do Ministério Público está associada diretamente à figura do Faraó ou do Rei, mas com o advento da Revolução Francesa, o Ministério Público assume o papel de acusador oficial do Estado e fiscalizador das leis.

Neste sentido, preleciona Edilson Santana²:

“… A construção doutrinária de que o Estado encamparia o monopólio da defesa da sociedade, através de uma Instituição Constitucional, só vingaria no século XIV, na França. Até aí, não se poderia falar da existência institucional do Ministério Público, mesmo porque sua construção deu-se paulatinamente e de forma proporcional à estruturação evolutiva do Estado. Quando esse ente, na busca da solução de conflitos sociais, vê-se obrigado a multifacetar o poder e a institucionalizar sua vontade por meio de órgãos aptos a entender à demanda de justiça, liberdade, fraternidade, igualdade, aí, sim, é que surge a ideia de Ministério Público, com estrutura formal, racionalmente organizado e destinado às atividades essenciais da organização estatal (governamental).”

Compreende-se, portanto, que o surgimento do Ministério Público acompanhou a evolução da sociedade e consequentemente dos conflitos desta, à medida que o sistema feudal perdia sua capacidade de manutenção na sociedade, surgia, em contrapartida, a necessidade de uma representação por parte dela junto ao Judiciário, sendo um poder desvinculado e apto à defesa de seus membros.

II – O Ministério Público e as Constituições Brasileiras

O Brasil, em princípio, não se distanciou das intenções europeias quanto as funções desempenhadas pelo Ministério Público, pelo contrário.

Isso porque, em que pese tenhamos seis Constituições antecedentes e uma atual, apenas na última podemos constatar a efetiva caracterização das funções do Ministério Público e a elevação de suas funções ao patamar que de há muito deveria constar das Cartas Magnas.

No entanto, traçando um cotejo entre as Constituições de outrora, observa-se que na de 1824 – Constituição do Império, existia a figura do Procurador da Coroa, ou seja, nos termos da figura cunhada em França, nos idos de 1302.

Em 1891, na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, cunha-se o cargo de Procurador Geral da República, a ser designado entre os membros do Supremo Tribunal Federal, cujas atribuições seriam definidas em lei.

Vislumbra-se um pequeno avanço na Constituição de 1934, momento em que o Ministério Público passa a protagonizar um capítulo, precisamente o VI, recebendo a designação de órgão de cooperação nas atividades governamentais.

Ainda assim, estava-se muito distante do papel desempenhado na atualidade, uma vez que sequer constavam as especificações de suas atribuições.

Grande retrocesso foi submetido o país quando da outorga da Constituição de 1937, com uma vasta supressão de direitos e garantias individuais, por óbvio, um órgão que teria o condão, mesmo que embrionário, de assegurar tais direitos não ficaria a imune a tamanha usurpação, sendo um momento histórico de inúmeros retrocessos por parte da instituição.

Com o término do regime ditatorial e o advento da Constituição de 1946, o Ministério Público alcança sua autonomia, garantindo a estabilidade de seus membros após dois anos do ingresso na carreira, através de concurso público, bem como a impossibilidade de remoção, a não ser mediante a representação motivada do Chefe do Ministério Público, com fundamento em conveniência do serviço.³

Em que pese a Constituição de 1967 represente uma revolução por parte dos militares, ao Ministério Público foram concedidas modificações que trouxeram benefícios à sociedade. Ao restar consagrado os princípios institucionais do Parquet, os quais, importante dizer, estão vigentes até os dias atuais, quais sejam: unidade, indivisibilidade, independência funcional, sendo-lhes assegurada, ainda, a autonomia administrativa.

Embora o órgão tenha deixado de integrar a estrutura do poder Executivo, sua desvinculação não foi completa, pois passou a ser vinculado ao Judiciário, sem, mais uma vez, ter suas funções expressamente contempladas na Carta Magna.

Após a Constituição de 1967, o Brasil passou por um regime ditatorial mais intenso, onde os Atos Institucionais suprimiam direitos e legitimavam condutas, até então, tidas por ilegais.

Mesmo a inúmeras supressões, o Ministério Público manteve-se hígido, sagrando-se vitorioso quando da promulgação da Constituição de 1988, onde o legislador concedeu-lhe todas as garantias, bem como o protagonismo que lhe é característico ante as honrosas funções de tutela da ordem jurídica, do regime democrático de direito e dos interesses sociais e individuais indisponíveis4.

III – A incapacidade no Código Civil de 2002

Após breve introito quanto ao histórico do Ministério Público, bem como quanto às suas funções no curso das constituições brasileiras, desde a de 1824 até a presente, 1988, explorar-se-á a atuação do Parquet junto aos tutelados que lhes foram incumbidos na Carta Constitucional, em especial, os incapazes.

A incapacidade pode ser absoluta ou relativa. O legislador, quando da elaboração do Código Civil de 2002, estabeleceu os seguintes parâmetros distintivos:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

  1. – os menores de dezesseis anos;
  2. – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
  3. – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

E, em relação aos relativamente incapazes:

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:

  1. os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
  2. os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
  3. os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
  4. os pródigos.

Parágrafo único. A incapacidade dos índios será regulada por legislação especial.

A partir da análise dos citados artigos é possível observar um parâmetro legislativo, qual seja, a maior proteção possível aos incapazes e aos relativamente incapazes.

Tais artigos permaneceram vigentes por quatorze anos, sendo-lhes inserida a incumbência de designar tanto as relações patrimoniais como existenciais dos tutelados em questão.

Extrai-se do conteúdo normativo a total submissão do ser em questão em relação a outro que detenha sua curatela, representação ou assistência.

Neste cerne, importante se faz ressaltar que segundo o artigo 1º do Código Civil de 2002 “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, ou seja, todos detém aptidão às relações jurídicas, seja adquirindo direitos ou contraindo deveres.

No entanto, não percamos de vista a dualidade da capacidade, qual seja, a capacidade de fato ou de exercício e a capacidade de direito ou de gozo, como exposto alhures, esta última é destinada a todos.

A capacidade de fato, por seu turno, está associada à possibilidade de a pessoa exercer de forma autônoma os seus direitos.

Conforme preleciona Anderson Schreiber:5

“…No direito contemporâneo, a capacidade de direito confunde-se com a própria noção de personalidade, tornando-se, a rigor dispensável. Com efeito, a noção de capacidade de direito foi construída para explicar porque, historicamente, algumas pessoas, embora reconhecidas como pessoas, não detinham total ou parcialmente capacidade para a aquisição de direitos. Era o que ocorria, por exemplo, com os gladiadores (auctoratus) no direito romano: embora conservasse, a condição de homens livres, comprometiam-se por juramento a se deixar açoitar, prender e queimar, restando privados da imensa maioria dos seus direitos. Ainda no século XIX, algumas codificações reservavam tratamento semelhante ao estrangeiro: se o seu respectivo Estado não assegurasse reciprocidade no tratamento dos nacionais em seu território, o estrangeiro era privado de seus direitos, mas não chegava a ser reduzido à condição de objeto, mantendo o status formal de pessoa.”

Diante da maior proteção à dignidade humana, as concepções aplicadas pelo legislador quando da elaboração da Lei 10.406/2002 – Código Civil não mais poderiam prevalecer, eis que de forma simplória, determinados grupos foram inseridos numa moldura incapacitante, sem nem ao menos permitir a modulação dos níveis de deficiência e a consequente análise da consciência da pessoa em questão.

Em virtude da supremacia do princípio da dignidade humana, bem como da busca pela efetivação das tutelas dos grupos relativamente minoritários, o Brasil, após a adesão à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, inserida em nosso sistema jurídico por meio do Decreto Legislativo n. 186, em observância ao procedimento previsto no § 3° do art. 5° da CF/88, seguido de promulgação pelo Decreto 6.949/2009 de parte do Poder executivo, e que posteriormente foi disciplinado pela Lei 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência – efetuou inúmeras mudanças na legislação pátria, concedendo, em síntese, igualdade aos grupos anteriormente alijados da sua própria vontade.

IV – As modificações realizadas pela Lei 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência

Conforme mencionado alhures, a Lei 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência – colocou a legislação pátria em outro patamar. Isto porque, ao verificarmos a Carta Magna, observamos no caput do artigo 5°, o seguinte comando normativo: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”.

O conceito de igualdade é expresso em inúmeros artigos, porém, antes da adesão à Convenção de Nova York (Decreto 6.949/2009), bem como da promulgação do EPD (Estatuto da Pessoa com Deficiência), os considerados mentalmente deficientes eram inseridos numa bolha incapacitante, onde lhes eram tolhidas quaisquer expressões volitivas.

Neste contexto, elucida Anderson Schereiber:6

“…O instituto das incapacidades tem sido objeto de substanciosa releitura crítica nos últimos anos. A proteção à dignidade da pessoa humana, que se reflete na garantia de autodeterminação da pessoa natural, impõe a flexibilização do regime codificado das incapacidades, que pretendia retirar por completo o incapaz da vida privada. A lógica empregada no Código Civil, segundo a qual a pessoa ou é capaz ou é incapaz (lógica do tudo ou nada), não mais se coaduna com a máxima proteção da pessoa…”

Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva7, por sua vez, traçam um caminho entre as vontades existenciais e patrimoniais dos incapazes:

“… Se nas situações patrimoniais mostra-se possível dissociar a titularidade do seu exercício, no caso das situações existenciais a subtração da capacidade de fato acaba por suprimir o próprio direito. Por isso, impossibilitar aos incapazes a escolha, por si mesmos, de práticas de lazer e de esportes, ou de seus laços de amizade e afetivos, equivale a alijá-los dessas situações existenciais. Daí a necessidade de o regime das incapacidades ser aplicado de forma diversa para relações patrimoniais e existenciais. Nessa esteira, o Enunciado 138 da III Jornada de Direito Civil assim estipula: “A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento para tanto”. Daqui a necessária reconstrução do regime das incapacidades, para se assegurar ao incapaz o maior respeito possível às suas opções de vida.”

A busca pela maximização da dignidade da pessoa humana, expressada neste ponto através do EPD, não foi encampada por todos os doutrinadores, haja vista a posição esboçada na atualização do manual do Ilustre Caio Mário da Silva Pereira, atualizado por Maria Celina Bodin de Moraes8:

“… Alheio a essa nobre função da teoria das incapacidades, provocou o legislador profunda mudança no sistema brasileiro, modificando, com as alterações dispostas pela Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), o rol de incapazes previsto pelo Código Civil para deles retirar todos os enfermos mentais, independentemente de seu nível de discernimento, passando a reputá-los plenamente capazes (art. 6º da lei especial). Em nome de uma bem-intencionada mudança ideológica, deixou, na prática, tais pessoas menos amparadas, alijando-as do manto protetor antes proporcionado pelo status de incapaz.”

Em que pese a discordância, denota-se tanto da parte doutrinária aderente quanto da divergente que existe sinergia quanto a um ponto: a busca pela efetivação e maximização dos direitos dos incapazes, bem como dos relativamente incapazes.

Quando da leitura do EPD é possível identificar a intensidade com a qual o legislador se debruçou sobre o tema, bem como a preocupação social de não mais tolher de tais grupos a expressão da vontade imanente ao ser.

As mudanças inseridas no ordenamento pátrio vão para além das normas materiais, alcançando, inclusive, as normas, procedimentos e outros institutos inerentes aos temas.

Dessa forma, os artigos inerentes ao tema no Código Civil passaram a viger nos seguintes termos:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 (dezesseis) anos;

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer: (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

  1. – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
  2. – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
  3. – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
  4. – os pródigos.

Parágrafo único.  A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)

Assim, compreende-se que em relação a incapacidade absoluta o critério passou a ser apenas o etário; quanto a incapacidade relativa, o Código admite, além do etário, parâmetros biopsicossociais e perenes.

Inclusive, neste ponto elucida o EPD em seu artigo 2°:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais

barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará: (Vigência) (Vide Decreto nº 11.063, de 2022)

  1. – os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;
  2. – os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;
  3. – a limitação no desempenho de atividades; e
  4. – a restrição de participação.

Não há, como anteriormente, uma imposição quanto a existência de limitação física ou psicológica que gere consequentemente uma inviabilidade da pessoa para administrar sua própria vida, mas o inverso. Busca-se uma exata quantificação das limitações e a sua extensão.

A mudança paradigmática implementada pelo EPD privilegiou o binômio dignidade-liberdade em lugar da dignidade-vulnerabilidade. Neste sentido elucida Flávio Tartuce9:

“…Repise-se que o objetivo foi a plena inclusão da pessoa com algum tipo de deficiência, tutelando a sua dignidade humana. Deixa-se de lado, assim, a proteção de tais pessoas como vulneráveis, o que era retirado do sistema anterior. Em outras palavras, a dignidadeliberdade substitui a dignidade-vulnerabilidade.”

Embora confira mais autonomia às pessoas até então consideradas absoluta ou relativamente incapazes, será que essas mudanças não as desprotegem frente a uma possível minoração da atuação do Ministério Público ante a concessão da total capacidade a tais grupos?

Entendemos que não, consoante será explicitado no tópico seguinte onde abordaremos a atuação do Ministério Público frente as alterações promovidas pelo EPD à teoria das incapacidades.

V – A atuação do Ministério Público e as modificações da Lei 13.146/2015 – Estatuto da Pessoa com Deficiência

Antes da promulgação da Lei 13.146/2015, o rol dos absolutamente incapazes era mais abrangente, sendo maior, consequentemente, a atuação do Ministério Público.

Porém, após o início da vigência da mencionada norma, a figura do Parquet não integra mais, necessariamente, a relação processual, embora ainda lhe caiba o papel de custos juris.

As premissas passam a ser outras, pois ao conceder a capacidade absoluta aos grupos anteriormente alijados, a lei, automaticamente, coloca-os em posição de igualdade a toda sociedade que possui ampla liberdade negocial, encontrando óbice apenas no que a lei não autoriza.

Neste contexto, extraem-se as lições de Flávio Tartuce10:

“…O art. 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, também em prol da inclusão com dignidade-liberdade, estabelece que a pessoa comdeficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Eventualmente, quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.

Ademais, o mesmo comando prescreve que é facultada à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada…. A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.”

Quando da análise dos artigos do EPD, especificamente em relação à atuação do Ministério Público, constata-se que sua atuação possui caráter fiscalizador e não como um agente ativo, litigante.

Salienta-se que em relação ao atual quadro dos absolutamente incapazes não houve minoração da atuação do Ministério Público, vez que sempre será figura presente em demandas quem envolvam menores de dezesseis anos, cabendo-lhe, inclusive, um maior poder de determinação e opinião.

As mudanças efetivas se dão no campo das deficiências, pois num passado não muito distante, em linhas gerais, todos eram inseridos numa zona cinzenta quanto às suas vontades existenciais, pois, por vezes, elas inexistiam, cabendo ao seu responsável direto a escolha que melhor lhe aprouvesse, por este fator é que urgia a presença indispensável do Parquet nas deliberações, no intuito de que tais pessoas não fossem submetidas a arbitrariedades.

Aduz Flávio Tartuce¹¹ que: “…Na verdade, o sistema de incapacidade anterior não protegia a pessoa em si, mas os negócios e atos praticados, em uma visão excessivamente patrimonialista, que sempre mereceu críticas.”

Embora possa, num primeiro momento, passar-nos a ideia de que a promulgação do EPD possa ter minorado a atuação do Ministério Público e a consequente defesa de tais grupos, não é este o entendimento de Flávia Piva Almeida Leite e outros¹²:

“… Ao alterar o Código Civil, este Estatuto também regula as hipóteses de intervenção do Ministério Público nos casos de curatela (art. 1.768 e s.) e de tomada de decisão apoiada (art. 1.783-A, § 3°).

Assim, não será pouco trabalho, em boa hora partilhado, pelo menos, entre essas duas instituições – Defensoria Pública e Ministério Público – de bastante prestígio.”

É inegável a mudança na atuação do Ministério Público após a vinda do EPD, entretanto não significa que tais mudanças representem uma minoração na atuação ou ineficiência; as modificações se dão de forma paradigmática, pois o vértice axiológico do novo sistema (tutela da liberdade/igualdade das pessoas com deficiência conferindo-lhes capacidade, em regra, plena) não diminui a atuação do parquet, que além de defender a ordem jurídica (in casu o cumprimento dos dispositivos da lei brasileira de inclusão), também é responsável por garantir o pleno exercício da capacidade civil, direito fundamental e indisponível.

VI – Um novo paradigma quanto a atuação do Ministério Público

Como mencionado alhures, com a edição da Lei 13.146/2015 e a concessão da total capacidade a grupos anteriores que não a detinham integral ou parcialmente, o Ministério Público passa a não mais ser integrado em tais relações, ante a inexistência de agentes que dependam da função custos legis exercida pelo órgão.

Quanto à função exercida pelo Ministério Público diante do EPD, temos as lições de Flavia Piva Almeida Leite¹³ e outros:

“… A atuação ministerial poderá ocorrer por iniciativa do próprio membro da instituição (de ofício) ou mediante provocação de terceiro, em regra, o particular por meio de uma representação, e o Poder Público (por exemplo, Judiciário) pela comunicação por meio do envio de cópias processuais.”

Neste sentido, inclusive, o legislador se incumbiu que consignar em lei14 a obrigatoriedade do Judiciário em comunicar ao membro do Ministério Público, quaisquer violações aos direitos previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência para que sejam tomadas as devidas providências.

Denota-se que tal previsão não incumbe apenas aos membros do Judiciário, mas a toda sociedade, incluindo os serviços, público e privado de saúde, o dever de comunicação obrigatória ao Ministério Público quando da constatação de ofensas aos direitos previstos no EPD.

Neste sentido, preleciona Flávia Piva15:

“… A Lei em comento prevê, ainda, a garantia de prioridade à pessoa com deficiência nas ações judiciais e nos processos administrativos de que seja parte ou interessada (art. 9°, VII). Tal disposição atende à sábia advertência de Rui Barbosa para quem justiça tardia nada mais é que a injustiça institucionalizada.

Ao alterar o Código Civil, este Estatuto também regula as hipóteses de intervenção do Ministério Público nos casos de curatela (art. 1.768 e s.) e de tomada de decisão apoiada (art. 1.783-A, §3°).”  

Em relação a curatela, veja-se as lições de Anderson Schreiber16:

“… Trata-se, como esclarece a lei, de uma medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, devendo durar o menor tempo possível (art.84, §3º). Também aqui a lei se afasta do modelo tradicional para abraçar a concepção contemporânea da curatela como instrumento inflexível às necessidades concretas da pessoa. Em razão disso, a curatela restringirá apenas a autonomia patrimonial da pessoa, não incidindo sobre sua esfera existencial, de modo a não alcançar, por exemplo, o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (art. 85, caput e § 1º).

Com relação a tomada de decisão apoiada, preleciona Schreiber17:

“… No estatuto da Pessoa com Deficiência, diversamente do que ocorre na experiência italiana, a tomada de decisão apoiada surge como uma espécie de instrumento auxiliar, em benefício da pessoa com deficiência que já conta com a possibilidade de uma curatela “proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso” (art. 84, §3º). Tal flexibilização da curatela, a nosso ver, já havia sido operada pela doutrina especializada na matéria, com base no art. 1772 do Código Civil, e, por isso, não chega a ser uma conquista do próprio Estatuto, como alardeiam os seus entusiastas, mas é indiscutivelmente bem-vinda na medida em que reforça a necessidade de modulação dos efeitos da incapacidade. O certo, todavia, é que, diante dessa reconhecida transformação da curatela, com a sua imperativa adequação “às necessidades e às circunstâncias de cada caso”, a tomada de decisão apoiada, construída à luz do modelo italiano da ammnistrazione di sostegno, perde sentido e utilidade.”

De fato, conforme elucida o Autor, a tomada de decisão apoiada não se mostra um instrumento fácil de ser manejado, trata-se de um procedimento judicial, onde, nesta hipótese, após a oitiva de equipe multidisciplinar, deverá ser ouvido o Ministério Público, o requerente e os que forem designados para prestar apoio ao requerente (pessoa apoiada). Ou seja, trata-se de medida em que necessariamente o órgão ministerial deverá integrar a demanda.

Contrário a tal inclusão Anderson Schreiber18 menciona:

“… Burocratiza-se, ao extremo, a tomada de decisão apoiada. A oitiva do Ministério Público, aliás, nem se quer tem cabimento, uma vez que se trata aqui de remédio disponibilizado para pessoa capaz.”

Em sentido contrário, os Autores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho19 consideram favorável a implementação do instituto:

“…Pessoas com deficiência e que seja dotadas de grau de discernimento que permita a indicação dos seus apoiadores, até então sujeitas a uma inafastável interdição e curatela geral, poderão se valor de um instituto menos invasivo em sua esfera existencial. Note-se que, com isso, a autonomia privada projeta as suas luzes em recantos até então inacessíveis.

Imagine-se, por exemplo, que uma pessoa com síndrome de Down, após amealhar recursos provenientes do seu trabalho, pretenda comprar um apartamento.

Pode ser que tenha dificuldade no ato de lavratura da escritura pública.

Dada a desnecessidade da nomeação de um curador para atuar em espectro amplo no campo negocial, a própria pessoa interessada indicará os apoiadores que irão assisti-la (apoiá-la), especificamente, na compra do bem.”

Coaduna com o último posicionamento Flávio Tartuce20:

“…A decisão tomada por pessoa apoiada terá validade e efeitos sobre terceiros, sem restrições, desde que esteja inserida nos limites do apoio acordado (ar. 1.783-A, §4º, do CC/2002). Assim, presente a categoria, desaparece toda aquela discussão aqui exposta a respeito da validade e eficácia dos atos praticados por incapazes, como vendas de imóveis, perante terceiros de boa-fé. Havendo uma tomada de decisão apoiada, não se cogitará mais sua nulidade absoluta, relativa ou ineficácia, o que vem em boa hora.”

Em que pese a divergência doutrinaria, tanto o instituto da curatela, quanto o da tomada de decisão apoiada terão em sua relação processual a figura ministerial.

No que tange as demais relações da vida negocial, colacionar-se-á às lições de

“… Nas ações públicas não propostas pelo Parquet, em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas – não é a simples condição da parte ou interveniente ter uma deficiência (por exemplo, ação de despejo por falta de pagamento proposta por um cadeirante), mas de se discutir a respeito dela (por exemplo, exclusão de cobertura de plano de saúde em razão da deficiência, restrição de participação em concurso público em razão da deficiência) – haverá intervenção obrigatória do representante do Ministério Público, na forma do art. 5º da Lei n. 7.853/89.”

Contudo, diante de todos os elementos anteriores, torna-se incontestável a modificação do papel do Ministério Público frente a tais grupos, passando de uma figura opinativa com extremo relevo às controvérsias, o parquet, diante da vasta capacidade concedida passa a exercer um papel mais secundário, onde somente deverá atuar em casos limitados (procedimentos de interdição para concessão de curatela) e, ainda, se a pessoa tutelada pelo EPD optar pelo instituto da tomada de decisão apoiada.

VII- A colisão de interesses entre o Ministério Público e o Incapaz

A figura ministerial exercida através do Promotor de Justiça não está propriamente vinculada ao incapaz, pelo contrário, estar-se-á intrinsecamente ligada a garantia da ordem jurídica e demais preceito legais.

Neste sentido, é possível concluir que o órgão ministerial poderá discordar dos interesses do incapaz, bem como do relativamente incapaz. Assim discorre Tartuce²¹:

“…Entretanto, em caso de negócio jurídico que possa trazer risco ou prejuízo relevante a qualquer uma das partes, havendo divergência de opiniões entre a pessoa apoiada e um dos apoiadores, deverá o juiz, ouvido o Ministério Público, decidir sobre a questão (art. 1.783 – A, § 6º, do CC/2002. Eventualmente, poderá ele suprir a vontade de uma parte discordante.”

Sendo o Ministério Público órgão fiscalizador da ordem jurídica, por sua natureza não poderá exercer qualquer tipo de parcialidade. Logo, a busca será sempre pelo cumprimento da norma jurídica e não o interesse do incapaz.

Depreende-se do artigo 178 do Código de Processo Civil que o Ministério Público agirá para tutelar a ordem jurídica, convalidando-se uma vez mais a sua independência.

Em que pese a presença do incapaz atraia a atuação do Ministério Público, não a vincula, ou seja, permite-lhe exercer o juízo de valoração da situação mesmo que a posição seja contrária ao interesse esboçado pelo incapaz ou pelo relativamente incapaz.

VIII- A importância da atuação do Ministério Público para implementação de políticas públicas

Em um país com tamanha desigualdade como o Brasil, a implementação de políticas públicas deixa de ser um benefício e passa a ser uma necessidade.

Quando falamos em grupos alijados socialmente, entre eles os deficientes físicos, a recomendação de novas políticas surge constantemente, bem como a necessidade da efetivação.

Em que pese as modificações inseridas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, é certo que a concessão da capacidade não retirou deste grupo as consequências do abandono social que viveram e ainda vivem.

Isto porque, ser deficiente em um país que não é urbanamente apropriado, tampouco socialmente, é uma carga dobrada, ou seja, a pessoa deve suportar as dificuldades existentes da sua própria condição e as que são inseridas pelos contextos externos que ao invés de melhorar, pioram a situação.

Ao se considerar que a incapacidade está relacionada apenas ao fator etário, podemos, ainda, mencionar a situação dos incapazes do nosso país, onde apenas uma pequena camada é assistida pelas condições básicas necessárias ao seu desenvolvimento.

É, pois, através das políticas públicas realizadas nas instituições de cuidados infantis, nas escolas e demais grupos de apoio que se busca uma pequena parcela do que deveria ser inerente a cada ser humano em desenvolvimento.

Logo, ao considerarmos a dimensão de nosso país, bem como que dentro dele existem diversos “países”, cujas necessidades não necessariamente se correspondem, não se pode atribuir apenas ao Estado a implementação e a manutenção de políticas públicas eficientes.

É neste cenário que o Ministério Público, uma vez mais, encontra campo para atuação.

Embora em muitas das vezes sua atuação se dê de forma repressiva, ou seja, quando o problema já se encontra instalado, frente ao número de promotores e a expressiva quantidade de órgãos a serem acompanhados, seria impossível que a atuação ocorresse de forma preventiva.

Inclusive, o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADI 3161²² manifestou-se sobre a participação do Ministério Público em órgãos que deliberem sobre políticas públicas:

CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA. ART. 263, §2º, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. PARTICIPAÇÃO DE MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO EM CONSELHO SUPERIOR DE FUNDO ESTADUAL DE CONSERVAÇÃO AMBIENTAL E DESENVOLVIMENTO URBANO. RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR PARA ESTABELECIMENTO DE ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE DE EXERCÍCIO DE ATIVIDADES DE CONSULTORIA DE ÓRGÃOS PÚBLICOS. INTERPRETAÇÃO CONFORME. PROCEDÊNCIA PARCIAL.1.Nos termos do artigo 129, IX da Constituição Federal (…) Conselhos da Administração Pública – órgãos com atribuição legal para se manifestar, em caráter deliberativo ou consultivo, sobre a formulação de políticas públicas de interesse social – é compatível com as atribuições previstas pela Constituição Federal e pela Lei 8.625/1993 para o Ministério Público, desde que: (a) a representação do Ministério Público seja exercida por membro nato, indicado pelo Procurador-Geral de Justiça; (b) a participação desse membro ocorra a título de exercício das atribuições institucionais do Ministério Público; e (c) vedada a percepção de remuneração adicional.4. Ação Direta julgada parcialmente procedente.

Neste mesmo sentido posicionou-se o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do AgInt no REsp n. 1.969.844/AM²³:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRAS DE SANEAMENTO. ART. 25 DA LEI N. 8.987/95. FALTA DE PREQUESTIONAMENTO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. PRECEDENTES. CONTROLE JURISDICIONAL. POSSIBILIDADE. OFENSA À SEPARAÇÃO DOS PODERES NÃO CONFIGURADA. RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. ACÓRDÃO ANCORADO NO SUBSTRATO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.1. Na origem, cuida-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Amazonas em face do Município (…) coletividade e determinar providências aos entes federados, sem que isso implique ofensa ao princípio da separação dos poderes. No caso, a instância a quo dirimiu a controvérsia em consonância com os precedentes desta Corte de Justiça, bem como do Supremo Tribunal Federal.5. Ademais, a alteração das premissas adotadas pela Corte de origem, tal como colocada a questão nas razões recursais, a fim de afastar a responsabilidade do município recorrente pela realização das obras de saneamento, demandaria, necessariamente, novo exame do acervo fático-probatório constante dos autos, providência vedada em recurso especial, conforme o óbice previsto na Súmula 7/STJ.6. Agravo interno não provido.

Diante do microssistema que tutelam os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, pode estender-se a compreensão de que o Ministério Público é figura legitima para pleitear a implementação de políticas públicas que salvaguardem ou ao menos minorem os prejuízos sociais experimentados por incapazes em situação de vulnerabilidade e pessoas portadoras de deficiências que se encontrem respaldadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Para além da atuação repressiva junto aos órgãos, o Ministério Público dispõe de ferramentas jurisdicionais que alcançam uma expressiva repercussão social e seus efeitos não se limitam, por vezes, a pequenos grupos, exemplifica-se através da Ação Civil Pública.

Denota-se que o Ministério Público não exerce apenas o papel de fiscal da ordem jurídica, também passa a atuar de concreta na implementação, fiscalização e efetivação dessas políticas públicas.

IX- Casos relevantes que envolveram a atuação ou ausência dela por parte do Ministério Público em relação aos incapazes

Embora muitas vezes assertivo já ouve em nossa história momentos em que o Ministério Público não seguiu as diretrizes que lhe foram impostas pelo legislador originário, deixando um incapaz perecer diante das inúmeras negligências cometidas por seu genitor.

Este caso, especificamente, trata do homicídio do infante Bernardo Uglione Boldrini, ocorrido em meados de abril de 2014, em Frederico Westphalen, região Sul do país.

O menor buscou o Judiciário para que lhe fosse retirada a guarda do seu genitor e concedido a outra família, diante dos inúmeros abusos a que era submetido (abandono, ausência de vestimenta, ausência de alimentação escolar, dentre outras atrocidades).

Ao procurar ajuda na promotoria da cidade, o menor prontamente indicou duas famílias das quais gostaria de conviver, porém, em razão da notoriedade do genitor na cidade, ambas não quiseram se imiscuir na possível modificação da guarda.

Assim, a avó materna de Bernardo se dispôs a criá-lo, momento em que a promotora chamou o genitor para narrar o ocorrido e foi prontamente respondida de que este gostaria de reafirmar os laços afetivos com o filho. Diante do aparente interesse do pai, aceitação do menor, o juiz autorizou uma tentativa de recomposição familiar.

Em que pese a alegação da promotora de que tal conduta seria costumeira, visto a inexistência de agressões físicas infringidas ao menor e de que não seria possível trabalhar com o imprevisível, quando da realização do Tribunal do Júri dos condenados pelo homicídio, dentre eles: o genitor e a madrasta, poder-se-ia através de uma maior análise dos fatos narrados pelo garoto e das informações espalhadas pela cidade constatar que se não se poderia prever o crime, ao menos poderia impedir a permanência da conduta delitiva em relação ao menor.

Isto porque, diversos foram os relatos de que o garoto era abandonado pela cidade à própria sorte, sendo, inclusive, proibido de fazer refeições em sua “casa” para não sujar os ambientes.

Obvio que o “parquet” não dispõe de contingente suficiente para promover sua própria investigação em todos os casos, mas há situações em que a dúvida e a atuação soam melhor do que o hábito de colocar todas as demandas em esteira comum.

Infelizmente, este não foi um dos casos costumeiros mencionado pela promotora, ao contrário, o desfecho foi trágico e irreversível.

Como toda história tem seus pontos críticos, também há o contraponto: o positivo. Inúmeros são os casos em que o Ministério Público efetua de forma diligente a busca pela efetivação das garantias constitucionais, bem como honra com seus princípios institucionais.

Diariamente somos lembrados através das mídias telemáticas de casos em que através da atuação incansável do Ministério Público foi possível alcançar a condenação dos culpados pelos delitos.

Dentre os inúmeros casos relevantes, pois de fato são muitos, temos o caso da Isabella Nardoni, onde após a efetiva busca e o acurado trabalho pericial, somado ao brilhantismo do Promotor Francisco Cembranelli, foi possível a condenação dos autores do crime: genitor e madrasta da menor.

Na esteira de crimes praticados contra incapazes, temos o mais recente do menino Henry Borel, o qual encontra-se em vias da realização do tribunal do júri, mas que uma vez mais tem a frente da ação penal um Ministério Público hígido e comprometido com a efetivação do ordenamento jurídico, bem como a busca pela – se assim podemos descrever – minoração ao sofrimento imposto aos familiares diante da perda do menor.

Tantos casos podemos discorrer e ainda serão pouquíssimos perto das conquistas diárias angariadas pelos membros do parquet em benefício da sociedade brasileira.

Trata-se de uma instituição essencial a garantia do estado democrático de direito, bem como da repressão a quaisquer atos que atentem contra as garantias dos grupos socialmente alijados pela sociedade: pessoas portadoras de deficiência, idosos, crianças, adolescentes, população LGBT+, indígenas e as mulheres.

Considerações Finais

Ao longo do presente estudo foi observado que as alterações provocadas pela Lei n. 13.143/2015 (Estatuto da Pessoa com deficiência) no instituto da capacidade civil, sobretudo quanto a conferir a estes grupos ampla inclusão social, através da alteração do binômio dignidade-liberdade em lugar da dignidade-vulnerabilidade. As modificações realizadas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência impactaram, sem sobra de dúvida, a atuação do Ministério Público.

Isso porque, para cumprir seu dever institucional de defensor da ordem jurídica e do regime democrático, ao Parquet incumbe assegurar que os direitos e garantias previstos na referida lei sejam efetivamente observados.

A capacidade civil, como um direito humano fundamental e indisponível, reconhecida em sua plenitude como regra às pessoas portadoras de deficiência deverá ser efetivada pelo Ministério Público, inclusive de forma articulada com a sociedade civil.

Em que pese as discussões acerca da abrangência da capacidade, nota-se através do comportamento social, a inclusão dos grupos anteriormente marginalizados, quais sejam, os portadores de deficiência, bem como os incapazes e os relativamente incapazes após a promulgação da lei.

Embora a capacidade prescinda de autonomia, certo é que o Ministério Público não deixará de atuar, pelo contrário, a necessidade passa a ser quanto a implementação das medidas, bem como a garantia dos que as detém diante de eventuais riscos patrimoniais, pois quanto aos atos existenciais, como visto, não mais necessitam de tutela.

No meu sentir, as mudanças coincidem com o momento social e inclusivo que vivemos, bem como conferem aos que de fato necessitam o apoio em questões pontuais, de forma temporária; assim, espera-se não mais vejamos seres suprimidos dos próprios anseios em razão de sua condição física.

Por fim, compreendo que a modificação quanto ao regime das capacidades apenas confere ao Ministério Público uma nova vertente de atuação, uma vez que o órgão permanece sendo o fiscal do ordenamento jurídico, sua atuação comporta interpretação extensiva e jamais restritiva, podendo ao membro percorrer diversas searas em prol da sociedade e dos direitos e garantias indisponíveis.


¹MAZZILI. Ministério Público. São Paulo – SP: Editora Damásio de Jesus, 2003.
²SANTANA, Edilson. Política do Ministério Público: De procurador do rei a defensor da sociedade. Editora: 2017.
³Art. 127 – Os membros do Ministério Público da União, do Distrito Federal e dos Territórios ingressarão nos cargos iniciais da carreira mediante concurso. Após dois anos de exercício, não poderão ser demitidos senão por sentença judiciária ou mediante processo administrativo em que se lhes faculte ampla defesa; nem removidos a não ser mediante representação motivada do Chefe do Ministério Público, com fundamento em conveniência do serviço. – Constituição Federal de 1946.
⁴Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. – Constituição Federal de 1988.
⁵SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo/Anderson Schreiber. 7 ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024.
⁶SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo/Anderson Schreiber. 7 ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024.
⁷TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil/ Gustavo Tepedino, Milena Donato Oliva. 4 ed., ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2023.
⁸PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil: teoria geral de direito civil/ Caio Mário da Silva Pereira; atualizadora e colaboradora Maria Celina Bodin de Morais. 34 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
⁹TARTUCE, Flávio, 1976 – Manual de direito civil: volume único/ Flávio Tartuce. 13. Ed. Rio de Janeiro: Método, 2023.
¹⁰TARTUCE, Flávio, 1976 – Manual de direito civil: volume único/ Flávio Tartuce. 13. Ed. Rio de Janeiro: Método, 2023.
¹¹TARTUCE, Flávio, 1976 – Manual de direito civil: volume único/ Flávio Tartuce. – 13. Ed. – Rio de Janeiro: Método, 2023.
¹²Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13.146/2015 / coordenação de Flávia Piva Almeida e Leite, Lauro Luiz Gomes Ribeiro e Waldir Macieira da Costa Filho 2. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
¹³Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13.146/2015 / coordenação de Flávia Piva Almeida e Leite, Lauro Luiz Gomes Ribeiro e Waldir Macieira da Costa Filho – 2. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
¹⁴Art. 7º É dever de todos comunicar à autoridade competente qualquer forma de ameaça ou de violação aos direitos da pessoa com deficiência. Parágrafo único. Se, no exercício de suas funções, os juízes e os tribunais tiverem conhecimento de fatos que caracterizem as violações previstas nesta Lei, devem remeter peças ao Ministério Público para as providências cabíveis.
¹⁵Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13.146/2015 / coordenação de Flávia Piva Almeida e Leite, Lauro Luiz Gomes Ribeiro e Waldir Macieira da Costa Filho 2. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
¹⁶SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo/Anderson Schreiber. 7 ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024.
¹⁷SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo/Anderson Schreiber. 7 ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024.
¹⁸SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo/Anderson Schreiber. 7 ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2024.
¹⁹GAGLIANO, PABLO STOLZE. Parte Geral – v.1/ Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. 25. Ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2023.
²⁰TARTUCE, Flávio, 1976 – Manual de direito civil: volume único/ Flávio Tartuce. – 13. Ed. – Rio de Janeiro: Método, 2023.
²¹TARTUCE, Flávio, 1976 – Manual de direito civil: volume único/ Flávio Tartuce. – 13. Ed. – Rio de Janeiro: Método, 2023.
²²STF, ADI 3161, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, Julgado em: 13/10/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-294 DIVULG 16-12-2020 PUBLIC 17-12-2020.
²³STJ, AgInt no REsp n. 1.969.844/AM, relator Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 22/4/2024, DJe de 25/4/2024.

Referências bibliográficas

LEITE, Flávia Piva de Almeida e outros. Comentários ao Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13.146/2015 / coordenação de Flávia Piva Almeida e Leite, Lauro Luiz Gomes Ribeiro e Waldir Macieira da Costa Filho – 2. Ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Parte Geral – v.1/ Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho. 25. Ed. – São Paulo: SaraivaJur, 2023

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PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: introdução ao direito civil: teoria geral de direito civil/ Caio Mário da Silva Pereira; atualizadora e colaboradora Maria Celina Bodin de Morais. 34 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

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TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil: teoria geral do direito civil/ Gustavo Tepedino, Milena Donato Oliva. 4 ed., ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2023.