REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8342785
Daniel Souza Rodrigues
Resumo
O presente ensaio propõe uma relação entre as ideias e conceitos sobre o mal elaborados por Agostinho de Hipona, ou Santo Agostinho, e Hannah Arendt, e como eles podem ser refletidos em temas da atualidade. A partir do ponto de vista cristão, Agostinho questionou qual a origem do mal, debatendo entre os graus de responsabilidade de Deus e do ser humano, enquanto Arendt, a partir de pesquisas, elaborou o conceito de banalidade do mal em seu livro “Eichmann em Jerusalém”. Nesse sentido, as duas compreensões sobre o mal são aplicadas no cenário da sociedade atual considerando um mundo tomado pela globalização e ignorância em massa.
Palavras-chave: Origem do mal. Banalidade do mal. Desinformação.
Abstract
This essay proposes a way that the concepts and ideas about evil elaborated by Augustine Hippo, or Saint Augustine, and Hannah Arendt relate to each other, and how they can be reflected in current social themes. From a Christian point of view, Augustine questioned the origin of evil, debating between the responsibility degrees of God and the human being, while Arendt, through research, created the concept of banality of evil in her book “Eichmann in Jerusalem”. In this sense, both comprehensions of evil are applied in today’s social scenario, considering a world dominated by globalization and mass ignorance.
Keywords: Origin of evil. Banality of Evil. Desinformation
Introdução
A busca pela compreensão da natureza do mal é constantemente debatida na filosofia, e dois pensadores notáveis que se debruçaram sobre essa questão são Santo Agostinho e Hannah Arendt. Santo Agostinho, um dos mais influentes filósofos da era patrística, explorou as raízes metafísicas do mal, enquanto Hannah Arendt, no século XX, a partir de uma abordagem mais contemporânea, trouxe à tona a noção da “banalidade do mal” em um contexto histórico marcado pela Segunda Guerra Mundial e o Holocausto.
Este ensaio tem como objetivo analisar a relação entre a concepção agostiniana do mal e a teoria de Arendt sobre a banalidade do mal, explorando como essas perspectivas podem ser aplicadas à sociedade contemporânea. À medida que enfrentamos desafios éticos e morais complexos no mundo atual, a reflexão sobre esses conceitos se torna essencial para compreendermos as origens do mal e as implicações de sua presença em nossa sociedade.
Desenvolvimento
Santo Agostinho foi um dos principais nomes da filosofia católica e medieval, entre o final da Idade Antiga e o início da Idade Média. Ele estudou muitos filósofos clássicos, principalmente Platão, e se tornou um dos primeiros a estudar os dogmas cristãos. Assim, criou a filosofia platônica católica, chamada de Patrística ou Neoplatonismo, que era uma conciliação entre a Fé e a Razão. Mesmo que escritas há mais de mil anos, as questões propostas por Agostinho são atemporais e ainda se mantêm relevantes em debates atuais.
O filósofo foi responsável por diversos questionamentos que permanecem até hoje na Igreja Católica. Ele questionou, por exemplo, como Deus, um ser onipotente e onisciente, permite que exista o mal? Se o mal existe, qual a origem dele? Buscando respostas, ele chegou à conclusão de que Deus não era a origem do mal: a origem do mal são os seres humanos. Acreditando ou não na ideia de destino e de uma vida pré-estabelecida, é inegável que os seres humanos, como seres racionais, têm o poder completo de fazer quaisquer decisões que irão traçar o rumo de sua vida. Isso é chamado de livre-arbítrio. Ou seja, para Santo Agostinho, os seres humanos são capazes de tomar decisões sozinhos que podem ser boas ou más. Dessarte, após a conclusão sobre livre-arbítrio, ele concluiu que Deus não é a origem do mal, e sim os seres humanos, em suas atitudes e escolhas. (AGOSTINHO, 1995)
Entretanto, Santo Agostinho passou a fazer outro questionamento. Se existe mal no mundo, isso significa que Deus não é onipotente? Ou que Deus não é bom? Para o pensador, como Deus criou criaturas racionais – os humanos –, ele não pode interferir diretamente em suas escolhas, justamente por causa do livre arbítrio: a capacidade do ser humano de tomar decisões. Logo, Deus não seria onipotente porque Ele não consegue ter influência significativa sobre decisões pessoais, o que contrapõe a antiga ideia de que Deus criou um mundo sem imperfeições. Afinal, no momento que Deus cria seres racionais, Ele perde o poder de controlar o que cada pessoa pode fazer (AGOSTINHO, 1995).
É possível relacionar a explicação da origem do mal de Santo Agostinho com a “banalidade do mal”, conceito criado por Hannah Arendt em seu livro “Eichmann em Jerusalém”, de 1963. Hannah estudou filosofia e apurou a exclusão dos judeus na Alemanha. Em sua obra, ela fala sobre Adolf Eichmann, um oficial nazista julgado a pena de morte, que fazia parte da “Solução final”, o plano nazista de genocídio de todos os judeus em território alemão. Hannah ponderou em sua obra que Eichmann era um homem comum e sem senso crítico, ele apenas executava o que lhe era ordenado e não pensava ética ou moralmente em seus atos.
O problema com Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terríveis e assustadoramente normais. […] Essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as atrocidades juntas, pois implicava que […] esse era um novo tipo de criminoso […] que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado (ARENDT, 2013, p. 299)
A partir do entendimento do caso de Eichmann, a filósofa elaborou o conceito de “banalidade do mal”, que ocorre quando o mal se torna banal, ou seja, quando ele é cometido sem nenhum pensamento necessariamente maléfico. Dessa forma, ele não estaria relacionado com nenhum traço ou caráter de maldade do indivíduo. Hannah afirmou que as sociedades de massa criaram pessoas incapazes de pensar ética e moralmente e que obedecem comandos sem questioná-los, como no caso de Eichmann. Esses indivíduos que não conseguem refletir sobre seus atos se tornam ferramentas de outros seres humanos para o mal, a partir de uma submissão cega.
Santo Agostinho afirmou que a origem do mal eram os seres humanos. Todavia, após entender a banalidade do mal, como indivíduos podem apenas não ter opiniões e reproduzir decisões de outras pessoas, é possível questionar a diferença do grau de responsabilidade entre quem cometeu uma maldade e quem a ordenou. Os indivíduos de personalidade forte, como líderes de guerra, tomam decisões próprias com facilidade. Entretanto, a depender do poder que eles exercem, de sua posição e de sua influência, as decisões desses indivíduos, que eles conseguem tomar por causa do livre arbítrio, podem “interferir” no livre arbítrio de outras pessoas.
Neste contexto, é possível identificar que muitos seres humanos influenciáveis e com baixo conhecimento podem acabar sendo vítimas desse fenômeno. Uma vez que uma pessoa não tem senso crítico desenvolvido para esse tipo de julgamento e apenas lhe faz o que é mandado, ela pode ser uma ferramenta para cometer o mal. Assim, é possível afirmar que a origem do mal não passa apenas por seres humanos individuais. O mal também se origina de seres humanos que usam seu poder para manipular outros a “abrirem mão” de seu livre arbítrio, ou seja, para que essas pessoas possam cometer o mal, mesmo que não tenham necessariamente um caráter ruim.
A associação entre os conceitos de Arendt e Agostinho pode ser facilmente relacionada com o cenário social atual. Sócrates, um dos principais filósofos clássicos, estava em constante busca por conhecimento e desprezava a aceitação da própria ignorância. O que vemos hoje é justamente o que Sócrates abominava: cada vez mais pessoas se acomodam com a própria ignorância sem buscar o episteme, o conhecimento verdadeiro.
A globalização e o constante acesso à informação criou um inesperado paradoxo de indivíduos cada vez mais ignorantes. Informações estão sendo absorvidas de maneira seletiva, as pessoas vivem em uma bolha sem entrar em contato com diferentes pontos de vista e assumem opiniões alheias como próprias. Não é difícil encontrar seres humanos sem senso crítico construído seguindo apenas a opinião de outras pessoas influentes.
Diante do exposto, mesmo que uma influência ou um conhecimento possa ser usado para o bem, este também pode ser usado de maneira negativa, o que é observado com mais frequência nos dias de hoje. O número de pessoas sem posicionamento, sem julgamentos morais e sem senso crítico vem aumentando. Isso significa que o número de pessoas que podem ter suas decisões (que a princípio são próprias com o livre arbítrio individual) influenciadas e alteradas também vem aumentando. Não é à toa que observamos hoje um mundo com tantas distorções morais: Os seres humanos estão cada vez mais vazios e mais suscetíveis à serem usados por outras pessoas como ferramentas para cometer o mal.
Conclusão
A relação entre as concepções filosóficas de Santo Agostinho sobre a origem do mal e a teoria de Hannah Arendt acerca da “banalidade do mal” revela a complexidade da natureza humana e de suas interações com o mundo ao recorrer da história. Ambos os pensadores, em épocas distintas e contextos diferentes, trouxeram pontos de vista profundos sobre como o mal pode surgir e se manifestar na sociedade.
As ideias de Agostinho e Arendt levantam uma reflexão sobre a complexidade do mal na sociedade globalizada. O mal deixou de ser uma questão individual para ser um fenômeno social, onde indivíduos podem ser manipulados e utilizados como instrumentos para ações prejudiciais. Muitos estão, inconscientemente, abrindo mão do poder de tomar decisões próprias para deixarem seu livre arbítrio na mão de outras pessoas. A globalização e a polarização da mídia, mesmo que ampliem o acesso à informação, acabam por facilitar a disseminação seletiva de ideias e a formação de bolhas ideológicas. O crescente número de pessoas com falta de senso crítico e discernimento moral tornou-se uma característica alarmante do mundo atual.
Portanto, a busca por conhecimento, pensamento crítico e responsabilidade individual torna-se essencial para resistir à “banalidade do mal” que vem ameaçando a sociedade e promover um mundo mais ético e compassivo, onde a liberdade de escolha — o livre-arbítrio — seja verdadeiramente exercida de forma consciente.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2013
AGOSTINHO, Aurélio (Santo Agostinho). O Livre-arbítrio. São Paulo: Paulus Editora, 1995