REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8070252
Luiz Davi de Souza Fontes¹
Professor Me. Luís Gonzaga da Silva Neto²
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar o caráter inquisitivo do inquérito policial em relação às garantias do exercício da advocacia e aos crimes de abuso de autoridade. São examinados aspectos como a presença do advogado no interrogatório, o acesso aos autos do inquérito e os limites do sigilo na investigação. No contexto de um sistema acusatório e de respeito aos direitos fundamentais, o papel do advogado é fundamental na defesa do indiciado, atuando como uma força contrária ao Estado acusador. A legislação referente aos crimes de abuso de autoridade estabelece punições para aqueles que, sem justa causa, impedem a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado, destacando a importância da presença do defensor. Embora o inquérito policial possua características inquisitivas, é importante ressaltar que o Estado Democrático de Direito estabelece limites e garantias que assegurem o respeito aos direitos do investigado. O amplo acesso do advogado aos elementos de prova documentados durante a investigação, assim como o direito de examinar autos e tomar anotações, permite a concretização do contraditório e influência nas diligências, evitando abusos e constrangimentos. O método de pesquisa adotado é principalmente bibliográfico, com uma abordagem analítica. As reflexões são embasadas nos ensinamentos de renomados autores, como Noberto Avena, Marta Cristina Cury Saad Gimenes, Aury Lopes Júnior e Luís Gonzaga da Silva Neto. Essas referências contribuem para uma análise aprofundada sobre o tema proposto, proporcionando uma compreensão mais ampla do caráter inquisitivo do inquérito policial e sua relação com as garantias do exercício da advocacia e os crimes de abuso de autoridade.
Palavras chave: Inquérito. Advocacia. Crimes. Constrangimento
ABSTRACT
This work aims to analyze the inquisitorial nature of the police inquiry concerning the guarantees of legal practice and crimes of abuse of authority. Aspects such as the presence of the lawyer during the interrogation, access to the inquiry records, and the limits of confidentiality in the investigation are examined. In the context of an accusatory system and respect for fundamental rights, the role of the lawyer is crucial in defending the accused, acting as a counterforce to the accusing State. Legislation regarding abuse of authority establishes penalties for those who unjustifiably hinder the personal and confidential interview between the prisoner and their lawyer, emphasizing the importance of the defender’s presence. Although the police inquiry has inquisitorial features, it is important to highlight that the Democratic Rule of Law sets limits and guarantees to ensure respect for the rights of the investigated. The extensive access of the lawyer to documented evidence during the investigation, as well as the right to examine records and make annotations, allows for the realization of adversarial proceedings and influences the investigations, preventing abuses and constraints. The research method adopted is primarily bibliographical, with an analytical approach. The reflections are based on the teachings of renowned authors such as Roberto Avena, Marta Cristina Cury Saad Gimenes, Aury Lopes Júnior, and Luís Gonzaga da Silva Neto. These references contribute to an in-depth analysis of the inquisitorial nature of the police inquiry and its relationship with the guarantees of legal practice and crimes of abuse of authority.
Keywords: Inquiry. Legal practice. Crimes. Coercion.
1 INTRODUÇÃO
A discussão acerca do caráter inquisitivo do inquérito policial tem sido objeto de debates no contexto jurídico, levantando questionamentos sobre a razão do sigilo existente nas investigações e a limitação da intervenção defensiva, em comparação com o processo criminal. Além disso, alguns argumentam que a discricionariedade da autoridade responsável pela condução do inquérito é supervalorizada em detrimento da participação das demais instituições e da fase subsequente.
Esses pontos de vista divergentes têm sido objeto de análise e reflexão, a fim de compreender se o inquérito policial, em sua estrutura atual, pode ser considerado verdadeiramente inquisitivo. Seria o sigilo um fator determinante que sustenta tal argumento? Seria a intervenção defensiva limitada em comparação com o processo criminal? Ou estaria a discricionariedade da autoridade presidindo o inquérito sobrevalorizada, em detrimento de outras instituições e da próxima fase processual?
É importante considerar que o inquérito policial desempenha um papel fundamental na busca pela verdade material e na coleta de elementos probatórios que subsidiarão a eventual ação penal. No entanto, o embate entre a busca pela verdade e a proteção dos direitos fundamentais do investigado tem gerado controvérsias.
Neste trabalho, buscamos analisar criticamente esses diferentes pontos de vista, a fim de compreender se o inquérito policial pode ser classificado como inquisitivo. Para isso, exploraremos os fundamentos do sigilo nas investigações e sua relação com as garantias defensivas, bem como a discricionariedade da autoridade responsável e sua influência no processo investigativo.
Por meio dessa análise, poderemos obter uma visão mais abrangente e contextualizada do inquérito policial, levando em consideração tanto as necessidades investigativas quanto os direitos e garantias individuais. Dessa forma, contribuímos para um debate mais esclarecido e embasado sobre a natureza e a eficácia do inquérito policial no sistema de justiça criminal.
O capítulo 1 trata da investigação preliminar e do inquérito policial, destacando sua função como filtro das informações e evidências coletadas durante a fase de investigação preliminar. Será discutida também a importância da imparcialidade nas investigações, garantindo que a busca pela verdade material seja conduzida de forma imparcial e sem influências indevidas.
Nos subcapítulos, será explorada a instauração do inquérito policial, abordando diferentes formas de sua abertura, como instauração de ofício pela autoridade policial, requisição do Ministério Público, representação da vítima, denúncia anônima e requisição de autoridade judiciária.
O subcapítulo, trará uma visão moderna sobre o inquérito policial, destacando as transformações ocorridas nas últimas décadas em relação a esse procedimento investigativo. Serão discutidos princípios como imparcialidade do juiz, contraditório, igualdade de armas, direitos humanos e garantias individuais. Questões como participação da defesa, transparência, publicidade e desformalização do inquérito policial também serão abordadas.
Adiante serão abordos temas como o procedimento administrativo, procedimento indispensável e procedimento inquisitivo. O capítulo sobre procedimento administrativo explora a atuação das autoridades administrativas nas investigações preliminares, pautada pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência. O capítulo sobre procedimento indispensável discutirá as etapas e diligências obrigatórias no inquérito policial para o esclarecimento dos fatos e a formação de provas. Já o capítulo sobre procedimento inquisitivo tratará das características desse procedimento, suas críticas e as perspectivas modernas para superar suas deficiências.
Por fim, no terceiro capítulo, serão abordados os seguintes temas: a função filtro do inquérito policial e a importância da imparcialidade nas investigações; a atuação da defesa no inquérito policial, destacando a participação do advogado desde as etapas iniciais da investigação; e o sigilo na investigação e o acesso do advogado aos autos do inquérito policial, explorando a importância do sigilo como mecanismo de proteção das investigações, mas também ressaltando a necessidade de equilíbrio para evitar abusos. Será discutido o direito do advogado de acessar os autos do inquérito policial, visando exercer plenamente sua função de defesa e garantir a ampla defesa e o contraditório. A conciliação do sigilo necessário com a transparência e a necessidade de controle e supervisão das atividades investigativas também será explorada.
A compreensão desses temas é essencial para entender o papel do inquérito policial na fase processual, bem como para garantir o respeito aos direitos e garantias individuais dos envolvidos no processo.
2 INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR E I INQUÉRITO POLICIAL
Constantemente nas cidades brasileiras, diversas pessoas vão às Delegacias motivadas a informar sobre uma possível infração penal que tenha acontecido, ou ainda é possível que o delinquente seja surpreendido na hipótese de flagrante delito, e seja conduzido coercitivamente. Uma consequência natural que decorre da prática de uma infração.
Entretanto, nos diversos crimes que ocorrem, em um primeiro momento, não é possível identificar quem é o autor, quem são as vítimas, qual tipificação da conduta cometida, e qual é a gravidade oriunda desse delito para a sociedade. Por essa razão, é necessário que as informações passem por uma prévia e cautelosa apreciação, na qual leva tempo, atenção e paciência para que sejam tomadas as devidas providências legais.
Assim, esse período de prévia averiguação de todas as dúvidas que surgem a partir de um aparente fato típico é concebido como investigação preliminar. Sendo ela, o conjunto de diligências anteriores e necessárias a ação penal, realizada por autoridade legitimada, com vistas a identificar a materialidade, autoria e circunstâncias atinentes à conduta. No qual, podem ser utilizadas não somente para subsidiar o ingresso no exercício da ação penal, mas também busca evitar um processo judicial injustificado.
Dentro da investigação preliminar existem várias espécies que a lei estabelece para que sejam utilizadas como forma de apuração dos fatos, variando conforme o órgão que esteja incumbido com a competência investigatória e a natureza da infração. Há por exemplo: as investigações do Poder legislativo por meio das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), as investigações do Ministério Público por meio do Procedimento de Investigação Criminal (PIC), as investigações realizadas pelo COAF, as Sindicâncias, o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), o Inquérito Policial e etc.
Nessa linha, o trabalho ocupou-se na análise do último e principal meio mais utilizado na federação brasileira para combater os ilícitos, o Inquérito Policial. Que surgiu a primeira vez com essa nomenclatura na Lei n° 2.033/1871, regulamentada pelo Decreto n° 4.824/1871, em seu art. 42 que traz o seguinte conceito: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e dos seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito”.
É no Código de Processo Penal, em seu título II, que definimos quem pode presidir o inquérito, como funciona sua instauração, quais limitações recebe e suas características. Nesse sentido, o art. 4°, caput, do CPP, define a Polícia Judiciária como protagonista da função de apurar as infrações penais e sua autoria. E conforme o art. 144, §§ 1° e 4° da CF, essa função de Polícia Judiciária compete à Polícia Federal e a Polícia Civil. Daí extraímos a primeira característica que é a Oficialidade, cujo entendimento é sempre realizado por órgão previamente competente.
Nesse exercício, o Delegado de Polícia é quem preside toda a movimentação que será realizada (art. 2°, §1°, da Lei 12.830/13), cabendo a ele resguardar as garantias e fazer com que seja cumprida a lei da melhor forma. Nas Palavras de Luís Gonzaga da Silva Neto (2022, p. 299)
(…) Logo, a observância da legalidade e da ética é de suma importância para o atuar da Polícia Judiciária, pois o sistema constitucional democrático brasileiro não mais admite condutas arbitrárias ou mesmo ausente de respaldo legal, perpetradas por aqueles que agem em nome do Estado, tendo este a obrigação de tutelar a ordem pública por meio de mecanismos que respeitem os direitos individuais dos cidadãos e sejam limitados pela incidência irradiante do princípio da dignidade da pessoa humana, pedra-mestra do atual ordenamento jurídico pátrio.
Sem sombra de dúvida a noção complementar do professor a respeito da atuação do Delegado na investigação preliminar está o mais alinhada possível com o cenário do Estado Democrático de Direito. No âmbito da persecução penal, Celso de Mello, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do habeas Corpus 84.568/SP, falou uma excelente frase que resume tudo: “O Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”. Assim, antes do poder punitivo ser exercido, o agente público à frente dos trabalhos, deve ter claro no seu intelecto o seu papel para a sociedade e principalmente para o cidadão investigado.
É por essa razão que no momento da instauração do inquérito policial a autoridade deve ter dentro da sua discricionariedade a responsabilidade na escolha de dar ou não início no ato, pois, consoante o art. 17 do CPP uma vez iniciado ele torna-se indisponível, não sendo possível o seu arquivamento pelo próprio Delegado. Desse modo, somente o Ministério Público tem o poder de arquivar o procedimento, dada sua complexidade e seriedade. Assim, sempre que possível a autoridade poderá antes da instauração do Inquérito utilizar da Verificação Preliminar de Informação (VPI), cujo objetivo é de examinar a procedência da notícia crime e a viabilidade ou não do seu prosseguimento em futura investigação preliminar.
2.1 Formas de instauração do Inquérito Policial
A respeito da instauração do inquérito policial, é necessário destacar as possibilidades que podem ocorrer a depender da espécie de ação penal da respectiva infração cometida. O art. 100 do Código Penal apresenta o conceito de dois tipos de ação penal e como serão promovidas.
A ação penal pública é promovida pelo Ministério Público por meio de denúncia e será incondicionada (quando não depender da vontade da vítima para iniciar) ou condicionada (quando exige-se a representação da vítima ou requisição do Ministro da Justiça como condição de procedibilidade). A ação penal privada por sua vez é promovida pelo ofendido ou quem tenha qualidade de representá-lo por meio de queixa-crime.
Nessa perspectiva, o art. 5° do CPP é quem vai definir as possibilidades apresentadas para o início do inquérito pela autoridade policial. No primeiro caso, após tomar conhecimento de um crime que seja de ação penal pública incondicionada, a autoridade é lícito instaurar o inquérito de ofício (inciso I), podendo ser por meio de uma peça chamada portaria ou auto de prisão em flagrante. Na segunda situação, a instauração pode ser através de requisição do Juiz ou do Ministério Público (inciso II), que consiste em ato obrigatório, pois vincula a iniciativa. Todavia, o requerimento do ofendido nesse mesmo inciso não é condição obrigatória para sua instauração. Uma terceira possibilidade é nos casos de delação por qualquer pessoa do povo (§3°), na qual fica a critério do Delegado em instaurar ou não, após verificar as procedências das informações.
Nos crimes de ação penal condicionada (§4°), a instauração do inquérito depende da representação do ofendido ou quem tenha qualidade para representá-lo. E aqui, diferentemente da requisição do inciso II, a representação não tem o condão vinculante na instauração do inquérito, podendo assim o Delegado proferir despacho denegatório. E para esse despacho que indeferir caberá recurso ao chefe de polícia na forma do §2º do respectivo artigo. Nessas mesmas ações pode haver o início por requisição do Ministro da Justiça, ato esse que obriga a instauração da investigação.
Uma última modalidade de instauração do Inquérito é nos crimes de ação penal privada, na qual depende necessariamente como condição de procedibilidade, o requerimento do ofendido ou seu representante legal, na forma do art. 5°, § 5° do CPP.
2.2 Visão Moderna sobre o Inquérito Policial
Tradicionalmente no modelo brasileiro o conceito difundido e aceito no meio acadêmico e jurídico é de o inquérito policial sendo um procedimento administrativo, dispensável, inquisitório, preparatório da fase processual, e que visa elucidar informações básicas que componha a estrutura da opinião delitiva do titular da ação criminal para seu ingresso. Porém, sob o ponto de vista do Estado Democrático de Direito, tal posicionamento pode realmente estar correto? Quais incongruências é possível indicar a partir do aspecto moderno?
Analisando sob o enfoque constitucional com princípios e valores democráticos que englobam todo o arcabouço jurídico, muitos pensadores vem implementando uma releitura e novos questionamentos acerca da dogmática primitiva superficial que se tem consolidado a respeito do inquérito. Não rara às vezes os materiais produzidos em matéria processual penal são escritos por promotores de justiça, advogados e juízes de direito, que inevitavelmente a depender do escritor possui um certo viés tendente a valorizar mais um tópico em detrimento de outros.
Por esse motivo, passaremos a analisar características que vêm sendo reformuladas a respeito deste instituto.
2.2.1 Procedimento Administrativo
O primeiro ponto dessa nova vertente diz respeito a natureza jurídica, o conceito convencional classifica o inquérito como um procedimento administrativo, pois a sua realização é presidida por uma autoridade administrativa, em sede de órgão vinculado ao poder executivo (não o judiciário), não tendo partes nem contraditório como no processo, não se convertendo assim em uma sanção.
Os contemporâneos acreditam ser possível classificá-lo como processo administrativo sui generis, dentro do contexto da teoria da processualização dos procedimentos, segundo o qual defende-se a possibilidade de aplicação dos princípios do devido processo legal na investigação preliminar. O termo processo aqui não seria somente o exclusivo do direito processual, mas sim um gênero incomum do processo dentro do âmbito administrativo. Além do mais, apesar de não ter aplicação de sanção nesse momento, haveria atos coercitivos de decisão do Delegado de Polícia que afetaria diretamente os direitos fundamentais do cidadão investigado, como por exemplo: prisão em flagrante, liberdade provisória com fiança, indiciamento e apreensão de bens e etc.
Nessa linha, mesmo que a autoridade policial não seja vinculada ao judiciário, é alguém que exerce atividade de natureza jurídica (art. 2° da lei 12.830/2013) e a lei o legitimou expressamente e de maneira prévia a esse dever. Pois, em respeito ao princípio do investigador natural (pouco abordado na doutrina), ninguém poderia ser submetido a investigação de autoridade que antes não tenha sido selecionado pela lei para tal competência. Assim sua atuação só pode ocorrer nos limites de sua circunscrição, e esta será definida pelo local em que se consumou o fato ou em razão da natureza da infração.
2.2.2 Procedimento Dispensável
No que diz respeito à dispensabilidade do inquérito para a fase processual, a nova corrente em sentido divergente argumenta que ele é um mecanismo indispensável. Levando em consideração que na atuação prática, a maioria das ações sobrevém mais do inquérito do que de outros elementos de informação, ou seja, esse se apresenta na realidade como uma verdadeira semente da totalidade dos litígios processuais criminais. A irrelevância às vezes apresentada dentro do Código de Processo Penal em alguns artigos, conforme ensina Garcez, Júnior e Jorge (2023, p. 258), tais dispositivos se referem à exceção, não é regra. Logo, não seria correto conceituar um instituto pela sua exceção.
Desse modo, mesmo que grandes doutrinadores defendem ser uma mera peça informativa e que não vincula o membro do MP a iniciar uma ação, o dia a dia nos revela que a utilização do inquérito é mais comum do que se imagina, e vem sendo mais um obstáculo do que passagem aberta para outros tipos de investigações.
2.2.3 Procedimento Inquisitivo
Outra característica propagada de maneira majoritária é a inquisitividade do inquérito. A expressão inquisição decorre de um movimento político-religioso da igreja Católica Apostólica Romana que buscava combater as heresias e novas crenças que ameaçavam a própria estabilidade da instituição. No sistema processual inquisitório, as funções de investigar, acusar, julgar e defender se concentravam nas mãos de uma única pessoa, o chamado Juiz-inquisidor. Essa figura atuava de ofício em todas as fases do processo e por não ter contraditório e nem ampla defesa o sujeito investigado era tratado como mero objeto.
No Brasil o sistema processual adotado pelo código de processo Penal é o acusatório (art. 3º-A do CPP), nele existe a divisão das funções de investigar, acusar, julgar e defender na mão de diferentes pessoas, o Juiz é alguém equidistante e imparcial, o réu é um sujeito com direitos e garantias e as provas são produzidas por meio do contraditório e ampla defesa. Porém, muitos sustentam não ser puramente acusatório, em virtude da fase preliminar ser inquisitiva.
O que reforça essa alegação é a suposta não existência da ampla defesa, contraditório, as partes ou a publicidade como ocorre na fase processual. Contudo, para a visão moderna, o inquérito seria acusatório-mitigado, pois nem o sigilo e nem as vantagens do elemento surpresa da atuação policial seriam capazes de eliminar as garantias e os direitos fundamentais do investigado e de seu defensor. Ora, no atual cenário não é congruente a ideia de um instituto de suma relevância ser totalmente inquisitório, se esse fato fosse verdadeiro, por que então poderíamos ainda permitir o uso dessa ferramenta desde a promulgação da constituição cidadã de 1988?
O Estado investigador possui sim vantagens para conseguir informações a respeito das infrações penais, todavia, o poder não pode estar apenas para o poder, deve antes de tudo ser diligente e promovedor de justiças.
2.2.4 Preparatório da fase processual
No contexto da persecução penal, o inquérito policial é apresentado como uma prima fase pré-processual, meramente preparatória (unidirecional) e com a função de subsidiar a opinião delitiva e decisão do titular da ação penal. Contudo, nessa definição habitual, a polícia judiciária se apresenta com um aparente vínculo indissociável com a acusação, de modo que o seu trabalho no inquérito mais pareça ser parcial e unidirecional, tornando-se na verdade em uma burocracia para encontrar um culpado para a infração.
Por causa dessa ofuscação causada no conceito, é que muitos delegados de polícia estão verificando a necessidade de readequar as funções e características desse instituto com base em novas perspectivas. Assim, para os modernos, o processo investigatório preliminar seria na realidade apuratório (bidirecional) e autônomo que com frequência poderá ser convertido em ação.
Na análise individual dessas sub características é possível identificar a diferença e respeito ao texto constitucional. Quando se diz que o inquérito é apuratório (bidirecional), podemos imaginar que a solução preliminar que venha provir dali, deve ser uma resposta tanto em prol da vítima como em prol da defesa do investigado. Nas palavras de Gonzaga (2023, pág. 159) o inquérito visa não apenas constatar a materialidade e autoria do crime, mas também serve para subsidiar a defesa do sujeito passivo da investigação criminal. Ou seja, mesmo que haja um interesse e pressão social enorme em encontrar um responsável pelo ato criminoso, a utilidade maior dessa fase é não realizar injustiças em um futuro processo descabido.
Das características apuratória decorre uma outra que é a autonomia do inquérito. Quando se fala que ele é um procedimento autônomo, na realidade o que se quer dizer é que ele está livre de qualquer subordinação ao próprio início da ação criminal. Logo, mesmo que comumente o inquérito policial facilite o início da próxima fase persecutória, ele serve também de base para inibi-la, pois estando presente as causas de excludente do crime ou inexistindo justa causa, essa não vai chegar nem a existir.
3 A FUNÇÃO FILTRO DO INQUÉRITO POLICIAL E A IMPARCIALIDADE NAS INVESTIGAÇÕES
Após discorrer sobre as diferentes frentes apontadas pela posição moderna, o inquérito policial passa então a ser classificado em uma versão atualizada como processo administrativo, indispensável (pois seria uma regra), acusatório-mitigado e de caráter dúplice sendo tanto apuratório (bidirecional) como também autônomo. Desse modo, um outro tópico bastante importante para redirecionar o valor desse instituto à luz do Estado Democrático, diz respeito à chamada função filtro do inquérito policial.
Inicialmente para adentrar ao conceito dessa função é necessário contextualizar o que acontece na circunstância anterior ao período de responsabilização penal. Portanto, quando o Estado elabora uma lei em matéria criminal cominando sanção a determinadas condutas, surge para ele o direito de punir em abstrato aquele que venha a lei violar, ou seja, no momento que ocorrer a prática da infração penal o direito de punir em abstrato passa para um plano concreto gerando a chamada pretensão punitiva. Contudo, essa pretensão punitiva do Estado só pode ser efetivada por meio da persecução penal, e no seu estudo é possível dividi-la em duas fases totalmente distintas. A primeira fase é a da investigação criminal ou pré-processual já abordada nos tópicos anteriores e a segunda fase é a do processo judicial, por meio do qual os atores que compõem os polos da demanda e autoridade judiciária devem observar regras, princípios e garantias fundamentais a fim de exercer a jurisdição.
Assim, o inquérito policial é apresentado na primeira fase da persecução como autônomo, que pode vim ou não dar início na segunda fase. E nessa ligação entre uma fase e outra, é que observamos a importância da função filtro. Nas palavras de Luís Gonzaga da Silva Neto (2023, p. 158): o inquérito visa proteger o indivíduo do constrangimento de responder a um processo judicial injustamente, funcionando como um filtro, que através dos elementos encontrados durante as investigações, determinará se o sujeito é passível de responder a um processo ou não.
Por meio dessa exposição, percebe-se que a função filtro pode ser caracterizada como um instrumento de baliza por meio do qual a autoridade estará sempre pautada para realizar um exame minucioso em todas as informações sobre o fato, na busca da verdade, afastando o que seja considerado desnecessário na resolução da investigação e se aproximando daquilo que é central.
E nesse raciocínio, somada à defesa do princípio da imparcialidade dentro da investigação, explica Walter Martins Muller (2023, p. 126) que uma investigação regular parte do fato para o criminoso. Ou seja, no momento que houver a inversão do fluxo inicial de partida do trabalho policial do criminoso para o fato, necessariamente os investigadores serão conduzidos a trabalhar em prol de demonstrar a culpa de alguém, podendo quase sempre levar ao insucesso da primeira fase e automaticamente causar um processo injustificado, guiando a um juízo antecipado de culpa ferindo os princípios fundamentais do Estado democrático direito como a dignidade da pessoa humana, a presunção de inocência, e etc.
4 A ATUAÇÃO DA DEFESA NO INQUÉRITO POLICIAL
Com objetivo de interpretar constitucionalmente o procedimento do Inquérito Policial e analisar o contexto fático que corrobora as investigações, é imprescindível discutir a respeito da atuação do advogado nessa fase e em especial os direitos e garantias a ele inerentes e de seu cliente.
É nesse ponto, onde se concentra grande parte das objeções e perspectivas negativas a respeito da atividade exercida na inquirição pelos órgãos investigatórios em contraposição ao direito de defesa. Tendo em vista o posicionamento tradicional na doutrina, no sentido de não existir contraditório e ampla defesa no inquérito policial, passaremos então a explorar as normas com uma interpretação sistemática, no caminho para compreender o que de fato acontece nesse exercício.
Na faceta principiológica, a ampla defesa é o direito fundamental garantido de maneira expressa no corpo da Constituição Federal, em seu art. 5°, inciso LV, para o acusado em geral, exercer de maneira positiva (utilizando de meios para confrontar a prova a respeito da materialidade e autoria) e/ ou de maneira negativa (o não exercício e nem a produção de provas) a sua defesa.
Segundo a doutrina, a defesa pode ser dividida em dois aspectos, sendo uma à autodefesa (exercida pelo próprio indiciado ou acusado) e a outra é a defesa técnica (exercida pelo defensor ou advogado). Na primeira existe uma faculdade, sendo um direito disponível, ou seja, na investigação o indiciado pode ou não exercê-la e assim permanecer em silêncio sem que isso lhe prejudique. Enquanto na defesa técnica, não existe o direito de renúncia, sendo portanto necessária a qualquer procedimento e processo.
Na análise do artigo ora mencionado, Aury Lopes Jr. (2019), vai descrever uma postura protetora do constituinte, em que não deve haver uma leitura restritiva voltada apenas para o processo em si. No que tange a expressão “processo administrativo”, em sua análise deveria o legislador ter falado procedimento, para considerar o inquérito, e no que diz respeito a palavra “acusado em geral”, deve ser levado em consideração o indiciado e outras série de situações que gere igual efeito, não só o acusado formal do processo. Em seu ponto de vista, a confusão terminológica causada por uma interpretação literal, não deve ser um obstáculo para sua aplicação ao inquérito policial.
O art. 5º, inciso LV da CF, além de falar da ampla defesa também menciona o contraditório como direito fundamental em todo e qualquer processo. Partindo do sentido estrito, não é possível computar o contraditório pleno com o Inquérito Policial, e nem poderia, uma vez que, neste momento não há formação da relação processual com as partes e o terceiro imparcial que caracteriza o processo propriamente dito.
Muito embora não tenha compatibilidade no sentido estrito da palavra, o contraditório é um princípio que possui dois elementos cruciais no que diz respeito ao regime democrático, um deles é o direito de informação e o outro é o direito de participação (reação). Quanto se diz que o sujeito terá direito à informação, devemos levar em consideração que esse direito se dá de maneira regrada, pois está condicionada a conclusão das diligências policiais, como será explicado posteriormente. E, na seara criminal existe diferença com relação a outros ramos do direito, pois, não basta somente a informação, é necessário também o acompanhamento por meio de defesa técnica, sob consequência de gerar nulidade.
Nesse sentido, o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil por meio da Lei nº 8.906/94, em seu art. 7°, inciso XXI, vai complementar a constituição e o pensamento teórico e descrever como direito do defensor:
XXI: Assistir a seus clientes investigados durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração: a) apresentar razões e quesitos” (Alterada pela Lei 13.245/2016)
Assim, a legislação resguardou os direitos fundamentais com eficiência, dado que na formação do interrogatório e o que dali for derivado sem a presença do defensor, existe a possibilidade de ser considerado nulo. Porém, diferentemente dessa posição, para Noberto Avena (2019) essa previsão legislativa não tirou o caráter inquisitivo do inquérito, pois na Lei nº 13.245/2016 o legislador não modificou o CPP e a intervenção que diz respeito a alínea “a” não é um ato capaz de conduzir a linha investigativa em alguma direção, pois é apenas uma mera faculdade concedida ao advogado e a autoridade policial a ela não estaria vinculado.
Certamente a afirmativa do professor tenha seus fundamentos, pois de fato o Delegado não é moldado em suas convicções a agir segundo as vontades do advogado, porém, não é possível a partir daí concluir necessariamente, que essa mesma autoridade pública, seja capaz de fazer tudo ao seu bel prazer durante o interrogatório. É necessário lembrar que o indeferimento deste pedido deve ter seus fundamentos certos e quando essa intervenção for necessária ao esclarecimentos dos fatos e controvérsias ela deverá ser autorizada.
Para suplementar o pensamento, o art. 14 do Código de Processo Penal, afirma que “O ofendido, ou seu representante legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não a juízo da autoridade”. Assim, com relação ao requerimento de diligências, a autoridade que preside as investigações não estará obrigada a deferi-las, más se houver o indeferimento e acreditando o advogado ser necessário, pode fazer um requerimento judicial a fim de realizar a prova indeferida, uma vez que, essa requisição para o Delegado funcionará como uma ordem.
Desse modo, comenta Marta Cristina Cury Saad Gimenes, a respeito do requerimento de diligências, que afirma:
(…) Em face do disposto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República, o requerimento de diligências pelo indiciado é um direito subjetivo seu, que não pode ser negado arbitrariamente pela autoridade e, na eventualidade de ser indeferido o pedido, o acusado pode fazer o uso do mandado de segurança, porque ferido direito líquido e certo, ou até se valer do habeas corpus (GIMENES, 2018, p. 79)
Além disso, não é possível afastar-se da ideia de que essa fase normalmente pode levar a potencial relativização de direitos e garantias da pessoa a ela submetida. Por essa razão, é que autoridade à frente dos trabalhos policiais, com sua devida formação acadêmica no curso de direito e conhecimentos técnicos deve observar os princípios que regem a estrutura administrativa, dentre eles destaca-se a legalidade e a impessoalidade. Pela legalidade, a atuação do agente púbico deve ser dentro dos limites da lei e quando ela permitir e em qualquer desvio ou excesso de poder, deve ser considerada ilegal. Enquanto na Impessoalidade, garante que esse serviço será isonômico e feito para órgão e não para promoção pessoal.
Assim, nem sempre podemos dizer que quem conduz o interrogatório terá a mesma moderação no agir e pensar. Para corrigir essa naturalidade do ser humano e manter uma uniformidade de condutas com vista em evitar coação ou constrangimento do indiciado para confessar algo ou assumir uma culpa que ele não tenha. O advogado vem funcionar como essa força motriz com interesses opostos ao do Estado acusador e com uma presença eficaz nas investigações para influenciar o trabalho da autoridade a agir de maneira proba, ética, cautelar e dentro dos padrões de legalidade que se exige no Estado Democrático.
Nessa perspectiva, um outro dispositivo que vai reforçar esse ideal de valores e fomenta as garantias do exercício da advocacia é a lei que dispõe a respeito dos crimes de abuso de autoridade, em seu art. 20, Lei n° 13.896/19, no qual há uma punição de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa, para aquele que impedir, sem justa causa, a entrevista pessoal e reservada do preso com seu advogado. Assim, no íntimo da relação de confiança entre o advogado e cliente não é admissível o tratamento impeditivo de modo a tumultuar o contato entre eles.
Portanto, traçando uma comparação com relação a presença do advogado no interrogatório e a produção e apresentação de razões e quesitos, além do crime de impedir a entrevista pessoal entre preso e advogado, como é possível então ainda classificar esse procedimento como inquisitório? Isso pode ser respondido simplesmente com a vasta ideia reducionista da Doutrina que atrela a inquisitividade ao sigilo, e por consequência essa é uma característica necessária do Inquérito policial.
No entanto, a transparência do sistema de direitos e garantias fundamentais que rege todo o entorno do inquérito, não deixar ser razoável negar a interferência do princípio do contraditório, por meio das suas duas faces, além dos crimes e consequências que podem originar de uma investigação ilegal. Evidentemente a atuação é bem mais limitada do que no processo, o próprio Supremo Tribunal Federal na edição da súmula vinculante nº 14 reconhece a incidência relativa. Contudo, utilizando das estratégias no melhor interesse do indiciado, o causídico pode oferecer reação, e ter acesso aos autos do inquérito, como será explicado no tópico seguinte.
4.1 O Sigilo na Investigação e o Acesso do Advogado
Um dos argumentos utilizados para reforçar o posicionamento de que o inquérito policial é inquisitivo é a sua característica de ser um procedimento sigiloso. O art. 20 do Código de Processo Penal, é o preceito responsável por estabelecer essa particularidade, e dispõe que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
Todavia, é necessário estabelecer um paralelo entre os limites da palavra “sigilo” nas investigações e as prerrogativas inerentes ao exercício da advocacia. A luz do Estado Democrático de Direito e sob a exigência do sistema acusatório é incompatível o sigilo absoluto na fase pré-processual, bem como, não é expressivo para a sociedade e as instituições a publicidade ampla da atuação do Estado-investigador.
Para estabelecer os limites sobre o sigilo do inquérito, e garantir a eficiência da atuação da polícia judiciária, no sentido de não abusar dos direitos e garantias inerentes ao indiciado, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, regulamentado pela lei nº 8.906/ 1994, em seu art. 7º, XIV, estabeleceu como direito do advogado:
XIV – examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigação de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital.
O posicionamento da Suprema Corte também não é diferente, pois, conforme a Súmula Vinculante nº 14, in verbis: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
Dessa forma, temos aqui um primeiro obstáculo ao preceito do art. 20 do CPP, levando em conta que o advogado, no interesse do seu representado, deve ter acesso amplo aos autos do inquérito, no que tange às diligências já documentadas. Ora, se comparado com tempos antigos é evidente a evolução garantista ao investigado de que não seja tratado e considerado como mero objeto, mas sim, como sujeito dotado de direitos.
Nessa linha, explica Luís Gonzaga da Silva Neto:
O direito de examinar procedimentos investigativos, seja em sede policial, ou no Ministério Público, ou mesmo na Comissão Parlamentar de Inquérito, representa a materialização do direito de defesa e do contraditório, pois, em caso de haver a juntada de um laudo pericial, por exemplo, pode a defesa ou mesmo a vítima juntar uma perícia particular com o objetivo de contradizer o exame técnico anterior (SILVA NETO, 2023, p. 196)
Assim, conforme o exemplo citado pelo professor do laudo pericial, uma prova cautelar não repetível e de produção antecipada durante o Inquérito policial, deve a autoridade observar o contraditório diferido, de modo a oportunizar a influência não só da vítima mas também da defesa. Para que, o sigilo não venha causar embaraço em uma futura ação penal a qualquer das partes.
Outro freio que reforça, a limitação ao sigilo e garante uma atuação das instituições com maior transparência e eficiência no sentido legal é a disposição prevista na Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019), uma vez que, havendo a possibilidade de fornecimento parcial dos autos ou de peças repetidas no procedimento e ainda no caso de não concessão de acesso aos autos para o advogado, é possível a responsabilização criminal e funcional por abuso de autoridade. O art. 32 dessa lei prevê:
Art. 32 – Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível: Pena – detenção, de 6 meses a 2 anos, e multa. (Lei nº 13.869/2019)
Além disso, é interessante mencionar que é possível a preservação ao sigilo externo, ou seja, da população e dos meios de comunicação, sem que haja ilegalidade. E nos autos onde for decretado sigilo, não haverá a configuração dessa conduta se o Delegado negar o acesso ao advogado que não apresente a devida procuração, para obter o acesso, conforme o art. 7º, § 10, Lei 8.906/94. Em outra disposição, no art. 7º § 11, inciso XIV, da Lei 8.906/94, fica permitido a autoridade dispor por meio de sua discricionariedade, o acesso aos elementos de prova, se as diligências estiverem em andamento e não tiver sido formalizadas.
É nítido que no último caso o legislador se atentou em conceder proteção a investigação, levando em conta que eventual publicidade poderia afetar negativamente a própria atividade na formação das informações quanto a materialidade e autoria. Ou seja, colocaria em risco a finalidade dessa etapa. É assim o que defende Henrique Hoffmann:
Nada mais correto. Afinal, fossem as diligências precedidas de prévio aviso ao investigado e os atos investigativos acessíveis a qualquer tempo, seriam inviáveis a localização de fontes de prova e a colheita dos elementos probatórios sem sobressaltos, impedindo a regular atuação do aparato policial. (HOFFMAN, 2016)
Dessa maneira, sempre que possível e estando devidamente documentadas, deve ser concedido a peças do inquérito ao defensor. Como aduz Aury Lopes Jr: Destacamos que não existe sigilo para o advogado no inquérito policial e não lhe pode ser negado o acesso às suas peças nem ser negado o direito à extração de cópias ou fazer apontamentos (LOPES, 2019).
Evidentemente, a publicidade nessa fase é bem mais reduzida se comparado ao processo, todavia é necessário levar em consideração cada colocação aqui feita, que colaboram para a formação de um sistema democrático, a fim de que não se utilize de algumas características do procedimento, para justificar argumentos reducionistas e infundados a respeito do inquérito policial.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar o caráter inquisitivo do inquérito policial à luz das garantias do exercício da advocacia e dos crimes de abuso de autoridade, é possível constatar a evolução do sistema jurídico brasileiro no sentido de assegurar os direitos e garantias fundamentais do investigado.
A presença do advogado no interrogatório e sua participação ativa nas investigações desempenham um papel crucial na defesa do indiciado, contrapondo-se aos interesses acusatórios do Estado. A atuação do advogado como uma força ética e prova nas investigações contribui para a preservação da justiça e do devido processo legal.
Além disso, o amplo acesso do advogado aos autos do inquérito, dentro dos limites estabelecidos pela lei, possibilita o exercício do contraditório e o equilíbrio entre os interesses da defesa e os da acusação. Essa transparência fortalece o sistema democrático e evita abusos e constrangimentos durante a condução do procedimento investigativo.
Por fim, a existência de leis que coíbem o abuso de autoridade e estabelecem sanções para aqueles que negam, sem justificativa adequada, o acesso do advogado aos autos do inquérito reforça a importância de garantir os direitos e prerrogativas da defesa.
Diante disso, é possível afirmar que, embora o inquérito policial possua características inquisitivas em sua estrutura original, as garantias do exercício da advocacia e os crimes de abuso de autoridade conferem elementos acusatórios e salvaguardam os direitos fundamentais do investigado. Essa abordagem mais equilibrada contribui para um sistema de justiça mais justo, democrático e respeitoso dos direitos individuais.
REFERÊNCIAS
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¹Graduando em Direito pela Faculdade Católica Dom Orione.
²Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense e Universidade Federal do Tocantins. Especialista em Ciências Criminais na Atualidade pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas – FAL. Delegado de Polícia Civil no Estado do Tocantins. Professor da Faculdade Católica Dom Orione.