THE IMPACT OF DOMESTIC VIOLENCE ON WOMEN’S HEALTH: THE NURSE´S ROLE IN IDENTIFYING AND INTERVENING IN PRIMARY HEALTH CARE
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10038868
Késsia De Souza Melo
Thiago Brelaz De Oliveira
Ingrid Araújo Do Vale
Ginarajadaça Ferreira Dos Santos Oliveira
RESUMO
A violência doméstica, é de longe, o tipo mais prevalente de violência em todo o mundo, afetando cerca de 641 milhões de mulheres a cada ano. No Brasil, a Atenção Primária à Saúde é a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde, portanto, se configura como um âmbito em potencial para o acolhimento e cuidado em saúde de mulheres vítimas de violência doméstica. O objetivo deste estudo é conhecer o papel da enfermagem na identificação precoce e no suporte adequado às mulheres vítimas de violência doméstica, visando contribuir para a melhoria da assistência e o fortalecimento do cuidado integral a essas mulheres. E para alcançar tais objetivos, determinou-se como metodologia a revisão bibliográfica nas bases de dados sciELO e Pubmed. Fizeram parte deste artigos, livros, manuais, protocolos e recomendações de orgãos nacionais e internacionais publicados entre 2002 a 2023 em língua inglesa e língua portuguesa. Portanto, o enfermeiro desempenha um papel relevante no acolhimento dessas vítimas por meio da escuta qualificada, além de fazer parte da equipe multidisciplinar que a atenderá essa mulher nos procedimentos médicos a serem realizados. Ademais, o enfermeiro é responsável pelas notificações dos casos, ajudando assim a construir o mapa epidemiológico desse problema no campo da saúde pública. Esse profissional também pode encorajar essa mulher a denunciar seu agressor por meio da rede de apoio que conta com psicólogos, assistenciais sociais, delegacia da mulher, entre outras instituições e profissionais.
Palavras-chave: Violência por Parceiro Íntimo, Saúde Pública, Enfermagem.
ABSTRACT
Domestic violence is by far the most prevalent type of violence worldwide, affecting around 641 million women every year. In Brazil, Primary Health Care is the gateway to the Unified Health System and is therefore a potential area for receiving and caring for women who are victims of domestic violence. The aim of this study is to learn about the role of nursing in the early identification and adequate support of women victims of domestic violence, with a view to contributing to improving care and strengthening comprehensive care for these women. In order to achieve these objectives, the methodology used was a bibliographical review of the sciELO and Pubmed databases. This included articles, books, manuals, protocols and recommendations from national and international organisations published between 2002 and 2023 in English and Portuguese. Therefore, nurses play an important role in welcoming these victims through qualified listening, as well as being part of the multidisciplinary team that will assist these women in the medical procedures to be carried out. In addition, nurses are responsible for reporting cases, thus helping to build the epidemiological map of this problem in the field of public health. This professional can also encourage women to report their aggressors through the support network, which includes psychologists, social workers, the women’s police station, among other institutions and professionals.
Keywords: Intimate Partner Violence, Public health, Nursing.
1. INTRODUÇÃO
A violência contra mulher (VCM) causa danos profundos, não somente para as vítimas, mas também para suas famílias (ZUMA et al., 2020). De acordo com a Organização das Nações Unidas para Mulheres (ONU – MULHERES) a violência cometida pelo parceiro íntimo – também conhecida como violência doméstica (VD) – é de longe, o tipo mais prevalente de violência em todo o mundo, afetando cerca de 641 milhões de mulheres a cada ano (ONU MULHERES, 2023).
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS) (2021) a violência afeta a saúde e o bem-estar da mulher pelo resto de sua vida, mesmo após o término da violência. Além disso, está associada ao aumento do risco de desenvolvimento de transtorno de ansiedade, depressão, gravidez não planejada, infecções sexualmente transmissíveis, incluindo HIV, entre outros problemas de saúde. Para a Organização Pan-Americana da Saúde (2023), os serviços de saúde dos países podem atuar como porta de entrada para outros serviços essenciais para essas vítimas, seja por meio do encaminhamento adequado para a polícia, abrigo, apoio social e outros serviços.
No Brasil, a Atenção Primária à Saúde (APS) é a porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS), portanto, se configura como um âmbito em potencial para o acolhimento e cuidado em saúde de mulheres vítimas de VD, contudo, há importantes obstáculos estruturais do trabalho em saúde que precisam ser superados para que esse cuidado ocorra de fato na APS (D’OLIVEIRA et al., 2018).
Ao que tange campo da enfermagem, a temática VD enfrenta algumas dificuldades para que esse atendimento seja contínuo e efetivo a essas vítimas. Tais obstáculos começam já na graduação, visto que, esse tema não é abordado e se perpetua durante a educação continuada. Sendo assim, muitos profissionais desconhecem a importância das notificações e acerca de suas atribuições nesses casos, aliado a dificuldade de abordar mulheres vítimas de violência em sua rotina laboral (SILVA; RIBEIRO, 2020).
Nesta perspectiva este estudo justifica-se pelo fato de a violência doméstica ser uma das faces mais cruéis da violência. Violência esta ainda propagada pela sociedade patriarcal, que não reconhece o papel da mulher na sociedade, e a reduz, a um mero objeto de uso, de manipulação e preconceito. Negando assim o seu direito à cidadania e igualdade. Diante do exposto, o tema escolhido leva ao seguinte questionamento: Qual é o papel da enfermagem na identificação precoce e no suporte adequado às mulheres vítimas de violência doméstica?
Sendo assim, o objetivo deste estudo é conhecer o papel da enfermagem na identificação precoce e no suporte adequado às mulheres vítimas de violência doméstica, visando contribuir para a melhoria da assistência e o fortalecimento do cuidado integral a essas mulheres. E para melhor compreensão da temática, delineou-se os seguintes objetivos específicos: refletir sobre a violência como problema de saúde pública; conhecer as características da violência contra a mulher e seus impactos; investigar como a enfermagem exerce suas atribuições diante de casos de violência doméstica no âmbito da Atenção Primária à Saúde.
E para alcançar tais objetivos, determinou-se como metodologia a revisão bibliográfica nas bases de dados sciELO e Pubmed. Fizeram parte deste artigos, livros, manuais, protocolos e recomendações de orgãos nacionais e internacionais publicados entre 2002 a 2023 em língua inglesa e língua portuguesa.
2. REFERÊNCIAL TEÓRICO
2.1. A violência como uma questão de Saúde Pública no mundo e no Brasil
A violência tem um caráter social e se revela em meio a um conjunto de relações e interações entre os sujeitos em uma sociedade. A violência tem múltiplas facetas e origens, encontra-se em todo mundo e em todas as classes sociais (MINAYO, 2006). De acordo com Cruz (2016) o termo violência é utilizada por todos, de modo até rotineiro, a sociedade já demonstra certo domínio de suas expressões e do que na prática a palavra representa. A impressão é que o homem já a identifica sempre que ela se faz presente, do modo automático, sem questionamentos, até mesmo negligenciando seu alcance e seus efeitos.
Para Njaine et al., (2020) um dos maiores desafios da saúde mundial e também brasileira tem sido lidar com a violência e seus impactos na vida dos indivíduos e das comunidades. Do ponto de vista epistemológico, embora a violência seja um problema antigo e esteja presente nas origens da humanidade (o assassinato de Abel por seu irmão Caim, é um dos mais antigos relatados), logo, trazer esse tema para o âmbito da saúde é relativamente recente e resiste à mentalidade biomédica, ou seja, ainda há uma tendência de vê-la como um alvo dos serviços policiais e de justiça. Porém, os profissionais da área sabem que as consequências das lesões e traumas físicos e mentais impactam o sistema, necessitando de serviços especializados e onerosos (MINAYO et al., 2023).
Desde meados da década de 90, essa questão é objeto de estudos e vem sendo incluída na agenda de prioridades das instituições internacionais de saúde. Os eventos violentos não fatais graves trazem consequências para saúde física e mental das suas vítimas bem como na sua capacidade produtiva (NJAINE et al., 2020). Ademais, estudos demonstram que ser vítima de qualquer tipo de violência pode desencadear o surgimento de doenças crônicas e transtornos mentais, por exemplo (CRUZ; IRFFI, 2019; ZUMA et al., 2020).
Em 1996 foi lançado o primeiro relatório mundial sobre saúde durante a Assembleia Mundial da Saúde (Resolução WHA 49.25) onde foi declarado que a violência era um problema urgente de saúde pública. Nesse cenário, a OMS foi instituída a desenvolver uma tipologia da violência e suas características, assim como os vínculos entre eles (BIGLIARD et al., 2016). Entretanto, a OMS fez o primeiro pronunciamento contudente a respeito da temática violência em 2002, pois antes desse evento, a instituição apenas classificava os efeitos desse fenômeno, realizava estudos ou recomendava ações de modo esporádico sobre a questão (NJAINE et al., 2020).
Segundo a OMS (2002 p. 5) a definição de violência ficou estabelecida como “uso intencional de força física, poder real ou em ameaça contra si mesmo, contra outro indivíduo, grupo ou comunidade que tenha o risco de resultar em lesão, dano psicológico, deficiência, privação ou morte”. A tipologia proposta pela OMS (2002) é dividia em 3 grandes categorias, em conformidade com as peculiaridades de quem comete o ato de violência (Quadro 1):
Quadro 1 – Tipos de violência.
Tipos | Características |
Violência auto infligida | Subdividida em comportamento suicida e auto abuso. O primeiro compreende pensamentos suicidas, tentativas e suicídios completados. Já o auto abuso inclui atos como automutilação. |
Violência interpessoal | Subdividida em 2 categorias: violência intrafamiliar e de parceiros íntimos (ocorre geralmente dentro dos lares) |
Violência coletiva | Indivíduos sem relação pessoal que podem ou não se conhecer. É subdividida em violência social, política e econômica. |
Violência social: Seguem uma determinada agenda socia, exemplo: crimes de ódio e atos terroristas. | |
Violência política: Inclui conflitos armados, guerras e violência do Estado. | |
Violência econômica: Inclui ataques de grupos maiores regidos pelo ganho econômico, almejando interromper a atividade econômica de um indivíduo ou grupo. |
Fonte: Organização Mundial de Saúde (2002).
Já a natureza dos atos violentos, se expressam em 4 tipos: 1) física, 2) psicológica, 3) sexual e 4) violência envolvendo negligência, abandono ou privação de cuidados (BRASIL, 2001; ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2002) (Quadro 2):
Quadro 2 – Natureza dos atos violentos.
Natureza dos atos | Características |
Violência física | É quando alguém causa ou tenta causar dano, por meio de força física com algum tipo de arma ou instrumento. Pode ocorrer em todos os ambientes sociais. |
Violência psicológica | É toda ação que visa humilhar, aterrorizar, causar danos ao desenvolvimento da pessoa e à autoestima. |
Violência sexual | É o ato de forçar outra pessoa a se envolver em práticas sexuais sem o seu consentimento, usando força física, manipulação psicológica (como intimidação, sedução ou aliciamento) ou por meio do uso de armas ou drogas. |
Negligência, abandono ou privação de cuidados | Caracterizados pela falha, rejeição ou deserção de cuidados essenciais para aqueles que merecem atenção e cuidados. |
Fonte: Brasil (2001); Organização Mundial de Saúde (2002).
Diante do exposto nos quadros 1 e 2, observa-se que a violência possui tantas nuances que é quase impossível que toda a sociedade esteja a par do tipo de violência que pode estar sofrendo, especialmente as mulheres, mas que precisam urgente serem mais divulgadas para que o ciclo de violência diminua cada vez mais.
No Brasil, foi só em 2001 que a temática violência entrou como pauta de discussão no setor de saúde, ou seja, 13 anos após a criação do SUS e 5 anos após a Assembleia Mundial da Saúde. O Ministério da Saúde naquele ano promulgou a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violência (PNRMAV) (Portaria GM/MS n. 737/2001) (NJAINE et al., 2020).
Construído sob a jurisdição do Ministério da Saúde, o PNRMAV foi tema de um seminário interdisciplinar que reuniu indivíduos de todo o país que compartilhavam preocupações sobre o impacto da violência nas taxas de morbidade e mortalidade. Este seminário incluiu um grupo diversificado de profissionais de saúde, tais como profissionais do serviço pré-hospitalar, médicos de emergência, funcionários hospitalares, especialistas em reabilitação, psiquiatras, psicólogos, profissionais de saúde pública, enfermeiros, assistentes sociais, investigadores e membros da sociedade civil. Como resultado, o PNRMAV é um instituto que promove os princípios democráticos e está centrado nos conceitos de promoção da saúde, proteção individual e coletiva, paz e qualidade de vida.
Para Minayo et al., (2018) o Brasil apresentou pautas bastante progressitas na época como violência de gênero, violência contra crianças e adolescentes, violência no transito, violencia contra pessoas idosas, outras pautas fora inseridas através dos anos como violência étnica, violência contra população portadora de deficiências e população LGBT.
De acordo com Njaine et al., (2020) desde a criação dessa política, houve avanços quanto as pautas propostas, muitas experiências focadas na promoção e proteção da saúde de pessoas em situação de violênca, contudo ainda busca ser consolidada, pois ainda falta investimento na formação de profissionais e estratégias de prevenção em conjunto com os diversos setores da sociedade civil como afirma Minayo et al., (2023).
2.2. Violência doméstica: quando seu próprio lar não é mais seguro
Para Minayo (2020) existem formas de violência que persistem no tempo e se perpetuam por quase todas as sociedades, como o caso da violência de gênero que vitima mulheres todos os dias, sendo portanto, uma questão de saúde pública e uma violação notória aos direitos humanos. Para Virginia Woolf (2022, p.54) “As mulheres serviram todos estes séculos como espelhos possuindo o poder de refletir a figura do homem duas vezes maior que seu tamanho natural […]”
De acordo com Zuma et al., (2020) a violência de gênero é qualquer ato que acarrete em dano físico ou emocional de um indivíduo contra outro em um contexto pautado em assimetria e desigualde ente gêneros, pode acontecer ente parceiros, colegas de trabalho e relações íntimas. Segundo Minayo et al., (2018) as mulheres representam a maioria dos atendimentos em relação a todos os tipos de violência, em exceto, ao que se refere ao trabalho infantil. A violência sexual contra a população feminina chega a ser 6,5 maior do que a no gênero masculino, na violência moral/psicológica é 5 vezes maior.
Para a Organização Pan-Americana da Saúde (2023), as consequências da VCM em todas as suas formas são significativas, é está relacionada a uma ampla gama de problemas de saúde física, sexual, reprodutiva e mental; essa mulher pode ainda adotar comportamentos não saudáveis que podem aumentar o risco do desenvolvimento de doenças crônicas.
Além dos custos para a saúde e o bem-estar das mulheres, a violência afeta os filhos, famílias e comunidades. A exposição ou o testemunho de violência em casa não só afeta a saúde emocional e o comportamento das crianças, mas também pode aumentar o risco de uma criança sofrer ou cometer violência mais tarde na vida (ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2023). A violência perpetrada por parceiros íntimos (violência doméstica), de acordo com a OMS (2002) pode ocorrer em ambos os gêneros, em parceiros do mesmo sexo, contudo, as mulheres são as maiores vítimas. Inclui agressão de natureza física, sexual e psicológica, moral e patrimonial.
Além das formas encontradas na literatura e em leis, há também os comportamentos e sinais que podem ser observados pelos profissionais que podem ser considerados VD: comportamentos controladores como afastar a vítimas de seus familiares e amigos e não permitir visitas. Impedir ao acesso ao sistema de saúde, negar acesso a dinheiro, não permitir que a mulher trabalhe ou estudo, bem como controlar os lugares e roupas, além de privar/restringir a liberdade da vítima (D’OLIVEIRA et al., 2019).
De acordo com Brito et al., (2020) a maioria das mulheres que sofrem violência doméstica apresentam sintomas de transtorno mental comum (TMC), ou seja, expressam sintomas de ideação suicida, humor depressivo ansioso e queixas somáticas como perturbações digestivas, alteração de apetite, tremores nas mãos e dores de cabeça.
Segundo D’oliveira et al., (2021) outros sintomas podem ser notados nessas mulheres como abuso de drogas e álcool, síndrome de pânico e insônia. Ainda segundo os supracitados autores, se esses sintomas não forem abordados de modo holístico, os processos patológicos que emergem coligados à violência e ao sofrimento psicoemocional resultam em casos com soluções mais complexas, mesmo quando se trata de patologias bem conhecidas e de natureza “simples”, isto é, esses casos estão sujeitos a iatrogenias e tornam-se frustrantes para os profissionais envolvidos.
No que tange a violência sexual, vítimas de violência doméstica geralmente têm dificuldade em negociar sexo seguro (incluindo o uso de métodos contraceptivos), além disso podem estar mais propensas a começar o pré-natal tardio ou a sua não realização. É estimado que entre 1% a 5% de gestações indesejadas são decorrentes de violência sexual cometida pelo parceiro íntimo (ZUMA et al., 2020). Outros sintomas que podem ser indícios de violência sexual perpetrada pelo parceiro íntimo são: dor pélvica ou dor durante o ato sexual, infecções urinárias recorrentes, infecções sexuais transmissíveis de repetição e HIV e lesões mal explicadas ou repetidas (D’OLIVEIRA et al., 2019).
De acordo com Gomes et al., (2022) muitas mulheres continuam com seu agressor por muitos anos apesar de todas as repercussões dos atos de violência, algumas denunciam seus parceiros não para romper seus relacionamentos, mas sim para cessar as agressões e devido a isso muitas delas evitam prestar queixas. Além disso, muitas mulheres são dependentes financeiras de seus companheiros, tem filhos e ainda nutrem esperanças quanto a mudança do comportamento em prol da sacralidade da instituição familiar.
Nesse cenário, Cordeiro (2018) aponta que muitas mulheres não tem uma rede de apoio para denunciar seu agressor, as vezes nem a família ajuda nesse contexto. De acordo com a supracitada autora, isso é decorrente da invisibilidade da violência por se tratar do companheiro da vítima, ou seja, há a “violação da integridade familiar”. No Brasil, a principal arma na luta contra a violência doméstica é Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), sendo até mesmo considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três legislações mais progressistas do mundo (CALAZANS; CORTES, 2011).
A referida Lei leva o nome de Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica cearense, vítima de violência doméstica por 23 anos. Em 1983 seu então marido, um professor universitário tentou matá-la por 2 vezes, a vítima o denunciou, entretanto, o Estado não dispunha de leis que a amparassem judicialmente. No ano de 2001 por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos conseguiu condenar o Estado brasileiro por negligência e omissão quanto a punição do agressor, apesar de todas as denúncias efetuadas (PRUDENTE, 2019). Portanto, não se trata apenas de um meio jurídico a fim de punir agressões, mas promove a autonomia das mulheres, educa a sociedade e constrói meios de assistência humanizada (CALAZANS; CORTES, 2011).
Segundo Brasil (2015) a Lei Maria da Penha reconhece a obrigação do Estado em garantir a segurança das mulheres vítimas de violência em espaços públicos e privados, ou seja, assegurando e devolvendo a cidadania. Nessa conjuntura, convém ressaltar que a Lei vai muito além da violência física, ademais, a lei define que o agressor não precisa ser o parceiro íntimo, assegurando assim à mulher agredida o direito à segurança, à vida e a sua autonomia perante a sociedade.
Nesse cenário, é importante relatar que o ciclo de violência não é algo repentino, se expressa em diferentes formas e graus durante toda a vida conjugal, ou seja, alterna em comportamentos de tensão (Fase I), violência aguda propriamente dita (Fase II) e episódios de breve tréguas, conhecido como lua de mel (pedido de perdão, promessa de mudança, etc.) (Fase III) (ZUMA et al., 2020) (Figura 1).
Figura 1 – Ciclo da violência doméstica.
Fonte: Adaptado de Lucena et al., (2016); Zuma et al., (2020).
O relacionamento conjugal é permeado no começo por insultos, intimidações e provocações mútuas que podem gerar conflitos e tensões. Com o tempo, pode surgir um desejo de desvalorizar e subordinar a mulher, o que pode ser acompanhado de ameaças de violência até que o fenômeno se agrave. As mulheres podem ser relegadas ao papel de objeto e figura passiva, com a sua finalidade reduzida à reprodução biológica. Entretanto, os homens são vistos como o partido ativo, utilizando a força física e a dominação (ZUMA et al., 2016).
O ato de apropriação da identidade feminina é uma ocorrência comum, o que por sua vez desconsidera as vivências de quem foi vitimado pela VD. Esta prática envolve frequentemente culpar a vítima pelo abuso que lhe foi infligido e propor que a mudança ocorrerá através de promessas mútuas de transformação. Contudo, esse ciclo é frequentemente renovado, mesmo após o chamado “período de lua de mel”, devido ao não cumprimento de expectativas e papéis sociais pré-determinados. Como resultado, o fenômeno de violência torna-se um problema recorrente (LUCENA et al., 2016).
Em relação aos casos de feminicídio, a ONU-Mulheres (2022) afirma que em todo o mundo cerca de 81.100 mulheres e meninas foram mortas por seus parceiros íntimos ou outros membros da família (incluindo pais, mães, tios e irmãos). Os atuais e ex-parceiros íntimos são, de longe, os autores mais prováveis de feminicídio, sendo responsáveis por 56% de todos os assassinatos relacionados a parceiros íntimos e familiares. No Brasil, de acordo com o Atlas da violência (2022) entre 2009 a 2019, 50.056 mulheres foram assassinadas, e 66% das vítimas eram negras, ou seja, a cada 2 horas, uma mulher foi assasinada no país (CERQUEIRA et al., 2021).
Segundo os dados da 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, entre 2021 e 2022 houve um crescimento de 17% de casos de tentativa de feminicídio por parte do parceiro íntimo. Em 2022, 1.437 mulheres tiveram suas vidas ceifadas no Brasil, 70% delas tinham entre 18 a 44 anos, contudo, o maior percentual se encontra na faixa etária de 18 a 24 anos. 7 em cada 10 mulheres foram mortas dentro de casa, 56% das mortes foram causadas pelo parceiro e 19% pelo ex-companheiro (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2023).
2.3. A atuação do enfermeiro na APS com mulheres vítimas de violência doméstica
APS é o primeiro nível de cuidado de atenção em saúde, sendo descrito como um conjunto de ações em saúde, no domínio coletivo e individual. Muitos profissionais de saúde que atuam nesse nível se deparam com casos de violência doméstica e já reconhecem suas repercussões na saúde das vítimas (D’OLIVEIRA et al., 2018). De acordo com Cruz et al., (2019) muitas vítimas buscam cuidados de saúde para tratar os resultados das agressões (físicas e psicológicas), mas muitas vezes não revelam a origem dessas lesões, denotando assim a importância do acolhimento na APS e pelos profissionais que ali atuam.
O enfermeiro é o profissional que geralmente mantém o primeiro contanto com a vítima na APS, logo, é necessário que estes profissionais em conjunto com a equipe interdisciplinar estejam aptos a identificar, notificar casos de agressão e com isso prestar a conduta mais adequada para acolher essa vítima na tentativa de promover a resolução do problema, contribuindo assim para redução ou eliminação do ciclo de violência, evitando que casos leves de agressões se tornem mais graves e até mesmo fatais (SILVA et al., 2017).
Para Freitas et al., (2017) a identificação dos casos é a primeira etapa do processo de enfermagem, logo, esse cuidado deve ser planejado a fim de promover acolhimento, respeito e satisfação das necessidades particulares da vítima. Nesse cenário, o acolhimento humanizado pode impulsionar a coleta pormenorizada de dados essenciais para identificação das vítimas de violência.
De acordo com Associação Brasileira de Enfermagem (ABEFORENSE) (2017) a escuta atenta da história e expectativas da vítima em relação a assistência em saúde, almejando compreender seu problema e aflição, a origem de seu sofrimento e as dificuldades que a mulher tem para sair da dinâmica abusiva, deve ser realizada em um espaço onde a vítima possa se sentir segura.
Já em casos de violência sexual, o protocolo “Assistência às Mulheres e Meninas Vítimas de Violência Sexual” elaborado pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) propõe que o enfermeiro da APS em um primeiro momento deva promover o acolhimento humanizado e em seguida acionar e equipe multidisciplinar, ou seja, médicos, psicólogo e assistente social para o atendimento da vítima (EBSERH, 2021).
Portanto, em qualquer caso de violência, cabe ao enfermeiro ou ao médico efetuar a notificação no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), estar presente e participar do primeiro atendimento multiprofissional e agendar retorno ambulatorial. Esse profissional deve ainda orientar a vítima acerca importância do seguimento do tratamento com a equipe multidisciplinar, realizar orientações relevantes e sanar dúvidas em relação a administração dos medicamentos prescritos, curativos e retorno ambulatorial (EBSERH, 2021).
Em relação a notificação, desde 2003 (Lei nº 10.778) é compulsória em todo o território nacional e realizada pelos profissionais de saúde que integram a rede de atenção às vítimas de violência de qualquer suspeita e de casos confirmados de violência no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) (BRASIL, 2003). Para Garbin et al., (2015), as notificações são uma importante ferramenta para avaliação dos casos de violência e fornecem condições para estimar a aplicação de investimentos no desenvolvimento e melhoria dos centros de vigilância em saúde e dos serviços de assistência e cuidado prestados às vítimas, bem como das redes de proteção.
Para Silva & Lima (2020) muitos enfermeiros que se depararam com casos de violência doméstica não sabem como abordar essas vítimas e por vezes desconhecem a importância da notificação e que é compulsória desde 2003. Sendo assim, a falta de preparo desses profissionais impulsiona e contribui para o surgimento de subnotificações, prejudicando o desenho epidemiológico dessa questão no país.
DISCUSSÃO
A violência afeta não apenas saúde individual mas também na saúde coletiva, reduz a qualidade de vida das pessoas e das comunidades, introduz novos problemas para o atendimentos de saúde e para outros serviços públicos (MINAYO et al., 2020). Para Njaine et al., (2020) esse problema revela a necessidade de uma atuação focada na prevenção e tratamento de base intersetorial, interdisciplinar, multiprofissional e socialmente comprometida, especialmente quando se trata de VD.
Em complemento, Oliveira et al., (2022) acreditam que enfrentamento da VD é complexo e devido a isso demanda a participação do poder público e engajamento de comunitários e sociais, contudo, nem todos os serviços de saúde no Brasil conseguem seguir as orientações de protocolos, orientações ou normas técnicas do Ministério da Saúde para oferecer um atendimento multidisciplinar humanizado e integral às vítimas de VD.
Nesse cenário, Santos et al., (2020) afirmam que a falta de notas técnicas ou protocolos para o enfrentamento da VD em uma instituição de saúde em nível de APS pode facilitar a dispersão dos casos, bem como a falta de notificação e o não encaminhamento da vítima para a rede de atenção para acompanhamento pós-atendimento de emergência.
Em relação ao atendimento da vítima de VD, a equipe de enfermagem é responsável pelo primeiro contanto com a mulher que geralmente busca o atendimento médico para tratar suas lesões oriundas de um ou vários episódios de agressão (SILVA et al., 2017). Nesse contexto, Oliveira et al., (2022) acreditam que esse atendimento primário com base em um acolhimento humanizado e escuta qualificada auxilia na construção de prontuários, fichas e notificações para então estabelecimento dos cuidados multidisciplinares que a vítima deverá ser submetida.
Para D’Oliveira et al., (2021) o enfermeiro deve durante a abordagem da vítima garantir sigilo, bem como evitar qualquer tipo de julgamento ou desacreditá-la. De acordo com o estudo realizado com Baptista et al., (2015) com 27 infermeiras de 6 Unidades Básicas de Saúde de um município no Nordeste. 71% das profissionais relataram dificuldade em conversar com suas clientes sobre VD e até mesmo evitam por não terem habilidade de se comunicar e relatam ainda o medo de ofendê-las. Silva & Ribeiro (2020) acreditam que a dificuldade de abordar as vítimas, advém da falta de reflexão/estudo sobre temática ainda na faculdade e a falta de cursos de especialização, acarretando asssim no desconhecimento sobre importância do acolhimento e escuta dessas vítimas.
A notificação desses casos, apesar de ser compulsório ainda é de desconhecimento de muitos profissionais, entretanto, em alguns casos, como aponta o estudos de Freitas et al., (2017) há uma clara falta de conhecimento para distinguir notificação de denúncia, e por isso esses profissionais acabam contribuindo para invisibilidade desse problema no âmbito da saúde coletiva. Segundo a pesquisa efetuada por Acosta et al., (2017) com 34 enfermeiros de 2 hospitais no Rio Grande do Sul, a falta de conhecimento dos enfermeiros sobre a notificação obrigatória da violência não se restringe aos problemas de VD, isto é, as deficiências também são observadas nas condutas relacionadas aos casos de casos de violência contra crianças e idosos.
Nesse cenário, Patrick & Jackson (2022) defendem que os líderes, gerentes e educadores do setor de saúde devam, portanto, priorizar a educação, o desenvolvimento e o treinamento sobre a questão da violência contra a mulher para melhorar o conhecimento, os padrões de assistência à saúde e, em última análise, os resultados de saúde e bem-estar das mulheres. Ainda de acordo com os supracitados autores, a influência do cuidado em enfermagem tem implicações profundas no processo de recuperação dos pacientes e isso é particularmente, o verdadeiro papel da assistência à saúde no enfrentamento da violência contra as mulheres.
De acordo com Baptista et al., (2015) os profissionais também devem conhecer as articulações dos serviços em rede contra violência doméstica para prover mais fluidez e eficiência no atendimento a essas vítimas. Conforme cita Tracz et al., (2022), o trabalho em rede pode ser iniciado na APS por meio do encaminhamento que abarca diversos setores e inclui ambulatórios especializados, delegacia da mulher, centros de atenção psicossocial, centros de referência especializada em assistência social, centros de referência a assistência social e hospitais de referência.
Os meios de comunicação têm um papel ambíguo.
Portanto, a literatura aponta que a violência doméstica pode acontecer em diferentes etapas do ciclo de vida de uma mulher, especialmente entre as mulheres em idade reprodutiva. Sendo assim, a violência mina o potencial dessa mulher como membro da sociedade e como pessoa (ZUMA et al., 2020). Por isso a assistência prestada pelo enfermeiro é crucial, visto que, segundo Silva et al., (2020), o primeiro contato no serviços de saúde acontece por meio desses profissionais. Logo, suas ações devem basear-se no acolhimento humanizado, na avaliação por meio de exames médicos, no cumprimento correto das normas institucionais e na execução dos procedimentos necessários.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência é um fenômeno presente em todo o mundo, apresenta-se em inúmeras formas e umas das faces mais relevantes, atuais e tristes é a violência doméstica. Esse tipo de violência não fere apenas a dignidade da vítima, mas também provoca sérios problemas de saúde, além do risco de serem assassinadas pelos seus parceiros (feminicídio).
De acordo com a literatura, mulheres que sofrem violência doméstica têm maior probabilidade de apresentar depressão, ataques de pânico, fobias, ansiedade e distúrbios do sono. Elas têm níveis de estresse mais altos e correm maior risco de tentativas de suicídio. Elas correm um risco maior de fazer uso indevido de álcool e outras drogas.
A atenção primária à saúde é a porta de entrada para o SUS e é considerado um ambiente propício para acolher essas vítimas e com isso ser mais uma ferramenta contra esse tipo de violência, pois muitas mulheres buscam os serviços médicos, mas não tem coragem de denunciar seus agressores, pois muitas vezes são julgadas e não acolhidas. Sendo assim, o enfermeiro desempenha um papel relevante no acolhimento dessas vítimas por meio da escuta qualificada, além de fazer parte da equipe multidisciplinar que a atenderá essa mulher nos procedimentos médicos a serem realizados.
Ademais, o enfermeiro é responsável pelas notificações dos casos, ajudando assim a construir o mapa epidemiológico desse problema no campo da saúde pública. Esse profissional também pode encorajar essa mulher a denunciar seu agressor por meio da rede de apoio que conta com psicólogos, assistenciais sociais, delegacia da mulher, entre outras instituições e profissionais.
REFERÊNCIAS
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Késsia De Souza Melo
Estudante de Enfermagem
Instituição: Faculdade Martha Falcão – Wyden
Endereço: Rua Natal, 300 – Adrianópolis, Manaus – AM, 69057-090
E-mail: kessiamelo530@gmail.com
Thiago Brelaz De Oliveira
Estudante de Enfermagem
Instituição: Faculdade Martha Falcão – Wyden
Endereço: Rua Natal, 300 – Adrianópolis, Manaus – AM, 69057-090
E-mail: thyagobrellaux86@hotmail.com
Ingrid Araújo Do Vale
Estudante de Enfermagem
Instituição: Faculdade Martha Falcão – Wyden
Endereço: Rua Natal, 300 – Adrianópolis, Manaus – AM, 69057-090
E-mail: ingridyvale@gmail.com
Ginarajadaça ferreira Dos santos oliveira
Doutora em Biotecnologia
Instituição: Faculdade Martha Falcão – Wyden
Endereço: Rua Natal, 300 – Adrianópolis, Manaus – AM, 69057-090
E-mail: ginarajadaca@yahoo.com.br