O IMPACTO DA INTERFERÊNCIA POR NAÇÕES ESTRANGEIRAS E O DIREITO DOS POVOS. A INFLUÊNCIA DA TECNOLOGIA COMO MEIO INTERVENTIVO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202504181652


Rafael Lima Marques1


RESUMO

O presente escrito analisa o impacto da interferência perpetrada por nações estrangeiras e o Direito dos Povos, conforme a teoria de John Ralws, no processo democrático da nação alvo da intervenção. Demonstra a influência da tecnologia como mecanismo de intervenção e as consequências deste processo no deslinde das nações. 

Palavra-chave: Direito dos Povos. Intervenção. Tecnologia. Autonomia dos Povos. 

ABSTRACT

This paper analyzes the impact of interference perpetrated by foreign nations and the Rights of Peoples, according to John Rawls’ theory, on the democratic process of the nation targeted by the intervention. It demonstrates the influence of technology as an intervention mechanism and the consequences of this process on the development of nations.

Keyword: Peoples’ Rights. Intervention. Technology. Autonomy of Peoples.

1 INTRODUÇÃO

As questões envolvendo os direitos humanos, em âmbito internacional, são mais atuais do que nunca; cada vez mais estão sendo propostos estudos e escritos sobre o tema. Não se pode negar, no entanto, que a maioria desses parte do que foi pensado a respeito, em clássicos, como nas obras de John Rawls, em especial, o Direito dos Povos, e, antes desse, Immanuel Kant, em À Paz Perpétua.

Em O Direito dos Povos, John Rawls versou quanto a um manual prático de civilidade e razoabilidade para povos e nações que, no seu entender, serviria para guiá-los a um fim comum, de manutenção da pluralidade cultural e política e autodeterminação, em busca da paz, da tolerância e do respeito mútuo, de modo a diminuição de atos beligerantes. Em seu estudo, Rawls confessamente resgata ideais trazidos por Kant, centenas de anos antes, em relação a sua ideia de paz perpétua entre nações, através da justiça e da equidade2.

Em que pese hajam diversas críticas aos estudos de Rawls e Kant, que serão brevemente comentadas no presente, a exposição que aqui se faz não possui o condão de sistematizá-los ou de esgotá-los, mas, sim, de apresentar as suas ideias principais e, partir dessas, realizar uma análise pontual acerca da violação dos direitos humanos e de diversos dos princípios elencados por Rawls, quando da sua obra O Direito dos Povos, em razão da intervenção por uma nação em outra, seja por meios beligerantes, seja por outro meio, como o da influência indireta, a exemplo, a disseminação de informações e notícias falsas, com o intuito de implantar e difundir, em determinada população, percepções e crenças distorcidas, direcionando-a, assim, ao viés que mais lhes convém.

No escrito Além das Eleições: Interferência Estrangeira na Democracia Americana, da autora Samantha Power, parte integrante do livro Can It Happen Here? Authoritarianism in America, editado por Cass R. Sunstein, demonstra-se o impacto da intervenção de outros países nas eleições norte americanas. É extremamente relevante, no mundo globalizado atual, para as demais nações, quem alcançará o poder em determinados países, sobretudo nos Estados Unidos, uma das principais potências mundiais. A partir disso, diversas nações não medem esforços para, de alguma forma, influenciar os cidadãos, a fim de ensejar a eleição daquele candidato, cujas propostas se aproximam às suas ideias e interesses.

É nesse contexto que Samantha Power destrincha a história eleitoral americana, apontando, a partir de dados concretos, a influência de outras nações na tomada de decisão eleitoral norte-americana. Procura-se, no presente, com os dados trazidos pela autora, demonstrar a quão dificultosa parece a implementação dos ideais utópico-realistas de Rawls na atualidade, tendo em vista a reiterada violação dos princípios que o autor considera basilares para a consagração de um Direito dos Povos, pautado na equidade, justiça, tolerância e respeito.

Tal dificuldade é demonstrada a partir da atemporalidade do escrito de Samantha Power, com a apresentação de dois acontecimentos que foram mundialmente disseminados, cuja interferência de uma nação em outra foi indiscutivelmente realizada, em franca violação aos direitos dos cidadãos que, de alguma ou outra forma, foram influenciados por forças externas, como é o caso das Fake News, tão latentes nas eleições brasileiras, e das intervenções militares de nações estrangeiras no Oriente Médio.

2 DIREITO DOS POVOS 
2.1 Conceitos e Contornos

O Direito dos Povos é uma obra que tem por objetivo a fundamentação da ideia que envolve a possibilidade de construção de uma sociedade de povos bem-ordenados. A ideia de Rawls se pauta do exemplo de Kant, em À Paz Perpétua, e a sua ideia de “Liga da Paz”, tradução da expressão “foedus pacificum”, que permita alcançar um ambiente internacional de paz entre Estados constituídos por uma confederação de repúblicas3, como confessado pelo autor logo na introdução de sua obra: 

“A ideia básica é seguir o exemplo de Kant tal como esboçado por ele na Paz Perpétua (1975), e a sua ideia de foedus pacificum. Interpreto-a no sentido de que devemos começar com a ideia de contrato social, pertencente à concepção política liberal de regime constitucionalmente democrático […] em concordância com a ideia de Kant de que um regime constitucional deve estabelecer um Direito dos Povos eficaz para concretizar plenamente a liberdade dos seus cidadãos.4 

Rawls pretende, a partir do seu estudo, elaborar um manual prático de civilidade e razoabilidade para os povos e nações, guiando-as para um fim comum, de manutenção da pluralidade cultural, política e soberania dos povos, de modo que atos de guerra sejam mínimos ou, ao menos, justificáveis. O objetivo do autor, em busca de um mundo cívico e razoável, com menos guerras, é distante, e o mesmo reconhece na introdução de sua obra que não possui certeza se será, um dia, implementado, ou da forma com que idealizou, no entanto, importante o estabelecimento de determinadas premissas, caso, um dia, os povos pretendam aderi-las5.

Almeja-se, assim, em O Direito dos Povos, estender a concepção de uma sociedade bem-ordenada para o quadro internacional; que a organização justa seja um bem para os cidadãos das nações, possibilitando o reconhecimento público da condição de liberdade e igualdade, a partir da cooperação política global, perante valores comuns mínimos6. O escopo de Rawls permeia a realidade utópica, levando em consideração um pluralismo político, a partir de uma diversidade de culturas, tradições de pensamento, de religiões e de políticas7.

A proposta de Rawls está pautada na ideia de reconhecer as diferenças existentes nas relações internacionais, entre os diferentes povos, de modo que é impossível negar que as diferenças são traços permanentes nas relações globais. Tal característica pode parecer limitante; fazendo-se crer que é impossível estruturar o direito dos povos, no entanto, o autor entende que é a partir dessa dinâmica cultural e política plural que nasce a necessidade de as lideranças estabelecerem e construírem, as condições que possibilitem a sua efetivação8

Rawls explica que ao utilizar a expressão “Direito dos Povos”, refere-se a uma concepção política particular de direito e justiça, que se aplica aos principais e normas de direito e da prática internacional9; denota os princípios políticos que regulamentam as relações políticas mútuas entre os povos, e não simplesmente o direito que todos os povos têm em comum como sugere o conceito tradicional do ius gentium10. Já com a expressão “Sociedade dos Povos”, o autor designa todos os povos que seguem os ideais e os princípios do Direito dos Povos; o que demonstra serem conceitos indissociáveis, pois um alude ao conjunto de princípios e o outro concerne aos povos que seguem tais princípios.

Duas são as ideias básicas motivadoras do Direito dos Povos, conforme idealizado por Rawls: “a de que grandes males que afligem a história humana tais como guerras injustas, opressões, perseguição religiosa, fome, pobreza, genocídios e, dentre outros, privação de liberdade de consciência, são decorrentes da injustiça política”; e “que esses males só serão eliminados através daquilo que chama de políticas sociais justas e instituições básicas justas11. A extirpação dos males constitui o que chama de utopia realista; “o projeto é realista, porém, é também utópico e desejável, representando um cenário que ainda não existente, mas realizável no futuro, no qual as diferenças se resolvem através de um sistema de cooperação mútua12”.

Para que o Direito dos Povos seja uma utopia realista, Rawls propõe algumas condições, são elas: “que essa concepção pense nos homens como são, mas nas leis como estabelecidas numa sociedade razoavelmente justa”, “que seja apoiada em direitos e liberdades constitucionais que assegure a todos os cidadãos os bens primários necessários para capacitá-los a fazer uso inteligente e eficaz das suas liberdades”; “que a concepção política de justiça seja subsistente por si mesma, portanto, não dependente de doutrinas abrangentes”; “que os cidadãos adquiram um sentido adequado de justiça e virtudes políticas pertinentes à cooperação, tais como um senso de imparcialidade e tolerância”; “que o Direito dos Povos seja fundamentado numa concepção política razoável de direito e justiça, afirmada por um consenso sobreposto por doutrinas abrangentes”; e “que a concepção política que fundamente o Direito dos Povos seja embasada no princípio da tolerância e respeito13” . 

Um destaque importante do estudo de Rawls se faz ao instituto da tolerância, que se encontra indissociado, nesse contexto, do significado de respeito. O autor refere, como significado para a tolerância, a mesura do quanto os povos liberais – que, na nomenclatura do autor, se baseiam em ideais de justiça e ideais comuns – devem tolerar os povos não liberais; não no sentido de apenas se abster de exercer sanções políticas para fazer mudar as suas práticas, mas também reconhecer essas sociedades como membros participantes iguais, de boa reputação. Já o respeito, indissociado dessa ideia, é a aceitação de que os outros, além dos povos liberais, possuem direitos e obrigações, inclusive dever de civilidade14.

Para o professor, as sociedades liberais devem cooperar e dar assistência a todos os povos; salienta-se, assim, que as doutrinas abrangentes, isto é, morais, religiosas e filosóficas, devem ser respeitadas pela sociedade liberal, enquanto se mantiverem compatível com a concepção política razoável de justiça entre os povos15:

O respeito e a tolerância prevalecem na medida em que as instituições básicas de uma sociedade não liberal cumpram as condições de justiça, política e direito, ou seja, mantenham o respeito para o Direito razoável e justo das Sociedades dos Povos. Sendo, pois, determinado o respeito dos não liberais aos povos liberais, é possível um povo liberal aceitar e tolerar os povos não liberais. Logo, por não se enquadrar totalmente nas condições de uma sociedade democrática liberal, Rawls apela para a necessidade de que, o Direito dos Povos, deve se ater à ideia de tolerância16.

Oito são os princípios elencados por John Rawls, que se originam da história e dos usos do direito e das práticas internacionais, e tidos como superiores a quaisquer outros, que possuem como objetivo fundamentar e nortear a criação de associações e a federação de povos17. Esses são: 

1) Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos; 

2) Os povos devem observar tratados e compromissos; 

3) Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam; 

4) Os povos sujeitam-se ao dever de não intervenção;

5) Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa; 

6) Os povos devem honrar os Direitos Humanos; 

7) Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra; e, 

8) Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo ou decente.18

O autor argumenta que tais princípios são hábeis a formular diretrizes para estabelecer organizações cooperativas entre os povos que compõem a sociedade dos povos, utilizando-se da equidade como base, bem como de mecanismos para a assistência plural. Os princípios elencados por Rawls visam promover o respeito à igualdade e a reciprocidade, ressaltando o exercício do pluralismo e da tolerância através de uma base comum de justiça política internacional19

A aplicação dos princípios, para Rawls, deve ensejar o estabelecimento de um processo intrínseco ao senso de justiça desenvolvido; ou seja, é essencial a realização de um projeto para a efetivação desses postulados para se atingir a paz democrática, pois é através dessa realização que as sociedades liberais aceitam de boa vontade o Direito dos Povos, a verem as vantagens de sua implementação e, por fim, a aceitá-las como um modelo a seguir:

Assim, a utopia realista rawlsiana ganha corpo agregando condições necessárias para se pensar a própria possibilidade de sua existência e a realização da paz democrática. Rawls entende que esse cenário “é capaz de manter um estado de paz, pois, ao honrar um princípio compartilhado de governo legítimo, os povos, atendendo a seus interesses razoáveis, garantem que essa situação não seja mero equilíbrio de forças momentâneo.20” 

A tese de Rawls, que parte do estabelecimento e da efetivação dos oito princípios acima citados, segue a ideia de Kant, em relação às federações de paz, em que os povos liberais não guerreiem entre si, não imponham religiões, doutrinas, costumes ou conquistas de terras e impérios. A implementação dos princípios, para o professor, sustentaria a sua tese, no sentido de que esses culminariam na estabilidade entre os povos21

Nesse contexto, estabelece dois tipos de estabilidade que conduziriam à paz democrática: a estabilidade por razões certas e a estabilidade por equilíbrio de forças. A primeira estabilidade, para o autor, significa que quanto mais o tempo passa em um período de paz, mais crescem os laços de respeito e confiança entre os povos; a segunda, por sua vez, aponta que, ainda que sejam múltiplos e diversos os interesses de diferentes povos, os povos pertencentes à sociedade dos povos estariam assentados sobre uma mesma base, os princípios de paz, equilibrando, assim, as suas particularidades e forças22.

Como visto do apanhado acima, o fim último da sociedade dos povos, a partir das concepções de Rawls, é se tornar justa, com ideais de equidade, tolerância e respeito, e estável, sem que uma sociedade necessite solicitar mais do que aquilo que precisa para sustentar as suas instituições, interrompendo-se o dever de assistência – que é tão precioso para a estabilidade dos povos – tão logo o objetivo de tal suporte tenha sido atingido23.

É indiscutível que a obra de Rawls teve o mérito de reorientar o pensamento político-filosófico nas questões atinentes à justiça; dentro de uma sociedade tão plural e diversa, em que parece ser impossível um consenso a respeito de um ideal de justiça, o professor propõe princípios gerais que podem ser implementados, de forma consensual, a fim de definir as instituições sociais de uma sociedade globalmente estável – ainda que muito custe, ou que seja distante. Fato é que a proposta de Rawls proporciona a discussão, como bem explicitam Staffen e Zambam24:

…) A proposta de Rawls fomenta o debate, seja pelo seu caráter inovador, seja pela sua visão utópico-realista, assim como, pelo lastro da sua fundamentação. Esse é um contexto que conjuga necessidades políticas, interesses e metas individuais, compromissos de governos, governantes, instituições e organizações em vista da justiça nas relações entre os povos. A insuficiência e, até a pequenez do Estado Nacional, simbolizados na quebra das fronteiras culturais e políticas, e a consagração da democracia como o regime de poder do povo e suas representações, implica a necessária participação de todos na construção de uma nova ordem de relações mais ampla e eficaz em relação àquela orientada pela diplomacia oficial ou por representantes e executivos das organizações mais importantes e influentes.

No contexto, para que seja visto a aplicabilidade do que idealizou Rawls, os princípios e os valores da sociedade, especificamente, a tolerância, o respeito, o auxílio, e o respeito à dignidade humana, imploram por sua efetivação, a fim de dinamizar a percepção da justiça no dia a dia, fazendo parte do funcionamento da sociedade. 

2.2 Críticas e respostas de Rawls

Como todas as obras que possuem sua grande relevância e disseminação, o Direito dos Povos, de John Rawls, não passou ileso às críticas. Catherine Audard, assim como Charles Beitz, apresentaram em seus escritos fortes críticas ao ideal de Rawls. 

Para Audard, há ausência de percepção de que a tolerância não é um monopólio das democracias liberais e, em razão disto, suspeita, em certo grau, de que as afirmações de Rawls estão dotadas de um etnocentrismo, pautado na superioridade dos liberais em face dos não liberais25. Em sua análise quanto ao Direito dos Povos, Audard ainda prossegue, no sentido de que:

(…) por razões metodológicas, ele [Rawls] toma por base um modelo de sociedade como um sistema ou estrutura fechada. Trabalhando no “ideal” ou na “estrita observância teórica”; ele constrói um “tipo ideal” no sentido Weberiano, concentrando-se nas características centrais que são relevantes para questões de justiça. Essa “estrutura fechada” é a entidade mínima que não pode ser reduzida para relações interpessoais, mas que formam um sistema do qual não podemos imaginar não sermos parte. Nós sempre somos parte de uma sociedade, qualquer que seja, nesse sentido mínimo estrutural.26

Já Beitz, no mesmo sentido de Audard, entende que Rawls parece se preocupar quase que exclusivamente em evitar tais acusações de etnocentrismo, mencionando, genericamente, o conceito de tolerância, ignorando que as escolhas do Estado, de um povo ou apenas de alguns indivíduos pode afetar diversas outros Estados, povos e indivíduos27

Para Guilherme Feldens e Ângela Kretschmann, as críticas de Audard e Beitz ignoram o fato de que John Rawls, em textos anteriores ao Direito dos Povos, definiu o “senso de justiça dos cidadãos” como imprescindível, elemento essencial para todo o seu sistema equitativo e igualitário de cooperação – e talvez por isso mesmo que seja tão difícil de ser implementado:

Na teoria da justiça como equidade, as pessoas passam a compreender profundamente os princípios e ideais de justiça e, consequentemente, as normas éticas deixam de ser vistas como restrição e passam a abranger uma concepção coerente de reciprocidade e cooperação. O senso de justiça representa, consequentemente, a extensão dos vínculos naturais das pessoas e a preocupação com a justiça e o bem de todos, independentemente do local ou da nação em que se encontram. É justamente essa ética substantiva enfocada pelo autor um forte argumento para fundamentar uma concepção capaz de atingir um padrão humanitário que vá além das fronteiras e que leve em conta o interesse de todos.28

Tal argumento, de que é necessário o senso de justiça, encontra-se ao lado de uma teoria psicológica, definindo a cooperação como um critério moral de cada povo29

Na parte final de sua obra, Rawls rebate a crítica de que o seu ideal seria etnocêntrico e ocidental, sustentando que o significado da sua obra não depende da cultura ou do lugar de origem de análise, mas sim do adimplemento dos critérios estipulados, como reciprocidade e razão pública dos povos; para o autor, a ideia é plenamente aplicável, pois apenas exige de outras sociedades o que elas são capazes de oferecer, sem se submeterem a uma posição de inferioridade e dominação, capacitando, assim, o direito dos povos ao alcance universal30.

2.3 Limitações – que deveriam existir

John Rawls afirma que os direitos humanos, no direito dos povos, expressam classe especial de direitos tipos como urgentes, tais como a liberdade da escravidão, a liberdade de consciência, e segurança para grupos étnicos contra o genocídio; e que a violação desses direitos é igualmente condenável, seja pelos povos liberais, seja pelos demais31

Tais direitos, enquanto base da efetivação dos oito princípios elencados por Rawls, funcionam como fatores que limitam a ação de governantes e a ação de outros Estados, ou seja, a intervenção internacional. O direito dos povos, nesse sentido, não permite a intervenção externa que não seja especificamente justificada – que só é adequada e existente quando o governo interno não consegue cumprir com direitos básicos; ou seja, apenas é justificável a intervenção internacional, caso seja baseada no suporte e auxílio, quando, internamente, houver falha em assegurar os direitos essenciais32

Defende, Rawls, que não há espaço para princípios liberais estritos, no Direito dos Povos, com posições intervencionistas porque, no seu ponto de vista, isso contraria o elemento essencial da tolerância e respeito, necessários à existência de um sistema justo e estável na sociedade dos povos33.

Nesse mesmo sentido, o pensamento de Kant, em À Paz Perpétua, utilizado como referência para Rawls, de que nenhum Estado deve se intrometer na Constituição e no governo de outro Estado. Para o filósofo, a desordem interna, ou o escândalo provocado em razão dessa, não constituem justo motivo para intervenção internacional.34

Infelizmente, não é o que observamos atualmente, cujas intervenções internacionais de uma nação em outras não são raras e acontecem todos os dias, em diversos contextos, sobretudo políticos e, na maioria das vezes, são injustificáveis – principalmente se formos levar em consideração a justificação plausível para tal intervenção, tal qual idealizada por Rawls, de que caberia tão somente quando o governo interno pecasse em assegurar os direitos humanos básicos. 

Essas intervenções, cada vez mais recorrentes, tem por objeto interesses apenas da nação interventora, e fazem com que as ideias de Kant e, as mais recentes, como as ideias de Rawls, e de tantos outros pensadores, continuem aguardando, no escuro, qualquer abertura para, finalmente, virem à tona e resguardar o seu lugar de efetivação. Nesse sentido:

(…) No entanto, ao contrário das características dos povos liberais citadas anteriormente, as características dos Estados ao longo da história têm sido outras bem diversas, pois comumente buscaram o poder, prestígios e riqueza, mesmo que venham através de guerras e da derrama de sangue de civis e inocentes. Esse é mais um dos motivos pelo qual o autor fala em povos ao invés de Estados. Nesse sentido, o Direito dos Povos terá um peso não só em nível exterior, mas também interior na supressão dos possíveis abusos que os cidadãos possam sofrer por parte dos Estados despóticos, de modo que ele “[…] restringirá a soberania ou autonomia (política) interna de um Estado, o seu alegado direito de fazer o que quiser com o povo dentro das suas fronteiras.35

3 INTERVENÇÃO INTERNACIONAL
3.1 Atemporalidade das lições de Samantha Power

No texto Além das Eleições: Interferência Estrangeira na Democracia Americana, parte integrante do livro Can It Happen Here? Authoritarianism in America, editado por Cass R. Sunstein, a autora norte-americana, Samantha Power, debruça-se justamente sobre a demonstração do impacto das intervenções de outros países, especificamente, nas eleições norte-americanas. Ainda que verse sobre as eleições americanas, o texto lança o debate sobre as intervenções internacionais que ocorrem não apenas em épocas de eleições, mas em tantos outros contextos políticos. 

Como visto anteriormente, ao contrário do ideal Kant e, também, de Rawls, todas as nações possuem grande interesse na tomada de decisões em outras nações, e como isso as impactará. A partir disto, diversas nações se esforçam em intervir, de alguma ou de outra forma, a fim de que o seu interesse particular seja adimplido (e não do povo que lá existe). 

Nesse contexto, Samantha Power disseca as eleições americanas, utilizando-se de dados estatísticos e de fatos para demonstrar a influência de outras nações na tomada de decisão eleitoral norte-americana, lançando luz sobre o que muitos já especulavam: a intervenção internacional ocorre, mesmo que não necessariamente a enxerguemos. 

Power inicia seu texto com o pedido realizado pelo presidente George Washington, em seu discurso de despedida, no ano de 1796, em que solicita ao povo americano que esteja alerta em relação à influência estrangeira – se referindo à influência que outras nações possuíam na corrida eleitoral. 

O pedido, como demonstra Power, manteve-se atemporal, pois, muito tempo depois, em 2016, viu-se a forte interferência e intervenção da Rússia nas eleições estadunidenses. Após a verificação, muito buscou-se em relação ao fortalecimento, sobretudo, da segurança cibernética e da infraestrutura e plataformas de votação, mas Power destaca a necessidade de promoção da mesma atenção à capacidade das nações estrangeiras em subverter os processos democráticos, a partir da falsidade de informações – e não apenas no ciclo eleitoral36.

A autora traz, a fim de ilustrar os fatos, pesquisa realizada em solo norte-americano, que demonstrou que notícias falsas causaram muita confusão sobre os eventos atuais, mas que 84% dos entrevistados acreditam em sua capacidade de discernimento entre o que é falso e o que é verdade. Tal confiança, segundo a autora, pode estar equivocada, afinal, são diversos os indícios de que a disseminação automatizada de notícias falsas ganha papel de destaque, inclusive, nas redes sociais37.

As interferências russas, segundo a autora, em outras nações, como os Estados Unidos, remontam a eventos mais distantes, como à Guerra Fria, sempre com o intuito de desacreditar e enfraquecer países com agendas políticas opostas. Nesse contexto, os agentes teriam sido instruídos a se infiltrar nos partidos e nas campanhas americanas, procurando por informações constrangedoras para, assim, poder vazar na imprensa. Na época do então presidente Reagan, tentavam retratá-lo como um militarista que auxiliada regimes repressivos, semeando notícias negativas e disseminando comunicações falsas para aliados americanos, o que não obteve, na época, sucesso, considerando que Reagan acabou por derrotar Walter Mondale na corrida eleitoral38.

Atualmente, os mecanismos e o ambiente para a disseminação de desinformações são ainda mais diversos e propiciam o seu crescimento. Anteriormente, a televisão aparecia isolada, como a principal fonte de notícias – um meio que possui um controle e aferição de veracidade mais forte do que as mídias sociais, por exemplo. Hoje, 26% dos norte-americanos recorrem à internet como principal fonte de notícias; sendo que um terço dos norte-americanos obtém parte de suas notícias de mídias sociais, conforme informa a autora, a partir das pesquisas realizadas pela Pew.

De acordo com os dados, a Rússia, por exemplo, explorou de forma profunda a crescente dependência dos cidadãos às novas mídias digitais – e sem a ausência de árbitros reais, como na televisão -, viram-se diante de um ambiente com pouca, ou nenhuma, aferição de veracidade, amplificando, através de uma rede de trolls e bots online, diversas notícias e informações falsas. O Twitter e o Facebook, apesar de resistirem no início, acabaram confessando que milhares de anúncios políticos exibidos em seus sites eram comprados pela Rússia, com destino ao público norte-americano39.

Além da explosão de novas plataformas de mídia, uma segunda grande diferença entre a época da Guerra Fria e os dias atuais é que há um partidarismo gigantesco, onde as divisões e a polarização são numerosas; a ausência de um debate inclusivo, dotado de informações confiáveis, aos olhos de Power, fez crescer a suspeita dos eleitores de que as notícias aos quais tinham acesso estavam corretas. O terceiro motivo, que alarma, data de 2017, quando ficou evidenciado que qualquer ator que pague bem – incluindo governos estrangeiros – consegue coletar dados de um determinado público-alvo, personalizar sua mensagem para se adequar aos seus interesses particulares e disseminá-la, pretendendo distorcer, sobretudo, o debate político-contemporâneo40.

A conclusão de Power é que muitos americanos aceitaram que as novas realidades de uma sociedade que evoluiu rapidamente, devido aos avanços da tecnologia e conectividade, afinal, 214 milhões de americanos compartilham suas vidas no Facebook.

O alerta, realizado ao final do seu escrito, tem o condão de sinalizar que as falsidades expostas por nações externas, por seus interesses particulares, não surgirão como um risco apenas no próximo ciclo eleitoral – é necessário estar atento o tempo todo41.

A globalização necessita fazer frente a problemas diversos, tais como, a interferência externa que gera conflitos de uniformidade a partir de diferenças políticas, a concorrência de normas globais-nacionais-locais, a promoção dos direitos humanos, o combate de redes criminosas e, ainda, necessita buscar uma nova forma de limitação de um poder de extrema fluidez, que ameaça a estabilidade global, ao funcionamento das instituições, à ordem jurídica, e, fim ao cabo, à própria existência da democracia42.

É evidente que o texto escrito por Samantha Power, embora analise o contexto e apresente dados quanto aos ciclos eleitorais americanos, é aplicável em diversos outros contextos políticos, afinal, diversas são as nações que influenciam e interferem nas outras, por diversos motivos. A fim de ilustrar tal afirmação, demonstra-se exemplos de interferências realizadas através da disseminação de Fake News nas eleições brasileiras e a intervenção militar internacional no Oriente Médio – para a infelicidade de ideais, como os de Kant e Rawls, a intervenção estrangeira em outras nações, sem qualquer apego à igualdade, à tolerância e ao respeito, parece estar crescendo cada vez mais, afastando, por consequência, a tão desejada estabilidade.

3.2 Na prática: Fake News no Brasil

Muito tem se discutido, atualmente, quanto aos riscos para democracia, sobretudo brasileira, tendo em vista a grande disseminação de notícias falsas, principalmente a partir de 2018, quando as mídias sociais foram intensamente utilizadas, para fins estratégicos, para a divulgação de notícias deturpadas, com o intuito de prejudicar outros candidatos e/ou partidos políticos43:

Aplicativos como WhatsApp, Facebook, Instagram, Twitter, só para citar os mais populares, tornaram-se plataformas de disseminação de ideias. Não é mais necessário apelar para as mídias tradicionais, como jornais impressos, revistas ou mesmo telejornais, que dependem de uma estrutura de recursos humanos e tecnológicos para seu funcionamento. Hoje basta ter uma conta nesses aplicativos e acesso à internet e qualquer um pode se tornar um repórter, divulgando notícias de acordo com seu interesse. Com essa facilidade, e utilizando o envio de mensagens para grupos, a divulgação de informações nas redes sociais, em especial o WhatsApp, se tornou um hábito que, mesmo parecendo inocente em um primeiro momento, se transformou em uma estratégia para divulgar notícias falsas, com o intuito de favorecer determinados grupos sociais ou políticos.44

As estratégias de disseminação de informações falsas através das mídias sociais se intensificou no período eleitoral, tendo por plano de fundo, também, empresas especializadas em divulgação de informações em massa, sem a existência de um filtro de aferição de veracidade. A principal estratégia diz respeito ao repasse de uma notícia a um grupo de contatos de confiança, os quais, provavelmente, irão compartilhá-la sem conferir a sua veracidade; além disto, alguns recursos são fortemente utilizados, como sistemas automatizados – bots – que ficam responsáveis por disseminar grande número de notícias rapidamente até que essas estejam em evidência, como nos “trending topics” do “Twitter”, hoje “X”.

Para Zaganelli e Maziero, foi a partir das mudanças das regras eleitorais, trazidas pela Lei nº 13.488/2017, responsável por proibir doações de pessoas jurídicas a partidos políticos e redução de horário eleitoral gratuito, que se difundiu nossas estratégias para entrar em contato com os cidadãos. No Brasil, em 2018, 99% dos celulares possuíam o aplicativo de mensagens instantâneas, Whatsapp, instalado, e esse universo de usuários não poderia ser ignorado45

Grande parte das mensagens encaminhadas pelo aplicativo mencionado, no Brasil, em 2018, manipulavam notícias, ilustradas a partir de montagens inverídicas, inclusive de forma amadora; o uso de jargões foi fortemente implementado e se tornou forte cabo eleitoral. Quando havia desconfiança por parte de algum usuário ou de veículos de informações confiáveis, apontando tal inveracidade, o ataque contrário era prontamente realizado – rotulava-se a notícia que identificava uma Fake News como sendo essa a própria Fake News46:

A jornalista Patrícia Campos Mello discorre em seu livro “A máquina do ódio” como ela e outras profissionais da imprensa, quando faziam reportagens que incomodavam ou questionavam de alguma maneira os políticos no poder, sofriam ataques maciços nas redes sociais, não só ao trabalho realizado, mas também ofensas pessoais à sua família, à sua honra e dignidade e até mesmo à sua segurança física, a tal ponto que entidades profissionais, como a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tiveram que se posicionar publicamente, argumentando que um dos pilares da democracia é a existência de uma imprensa livre e crítica (Abraji, 2020, p.1)47.

A fim de diminuir a propagação das notícias falsas, principalmente em época eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) editou a Resolução nº 23.610/2019, na qual os candidatos são responsáveis por checar a veracidade de informações, antes de utilizá-las em suas propagandas eleitorais – sem prejuízo do dever de indenizar as possíveis vítimas atingidas.

Nas eleições municipais de 2024, no entanto, não foi diferente. De acordo com a pesquisa divulgada pelo próprio Senado Federal, realizada pelo Instituto DataSenado, 81% dos brasileiros opinam que as notícias falsas podem afetar significativamente o processo eleitoral; e, o dado mais alarmante divulgado, é de que 72% dos brasileiros já se depararam com notícias falsas em redes sociais, num espaço de tempo de seis meses – o que demonstra a grande quantidade de inverdades disseminadas48. 

O Senado sinaliza que os dados apresentados colocam em evidência a “a necessidade de medidas mais rigorosas para garantir que o processo eleitoral seja justo e livre de interferências indevidas, como o Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630, de 2020), já aprovado pelo Senado e agora em análise na Câmara dos Deputados.49” Não se pode deixar de mencionar aqui, também, o importante papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que instaurou inquérito (INQ 4781) para averiguar a disseminação das Fake News e seu impacto à democracia brasileira. 

O campo aberto das mídias sociais deixa espaço para a materialização das informações falsas que, como visto, podem impactar o cenário democrático brasileiro, considerando que, certamente, impactam os eleitores individuais, como as pesquisas mostram. A facilidade de criação e divulgação de informações inverídicas em mídias sociais que possuem pouco – ou nenhum – filtro de aferição de veracidade, possibilita, não apenas que o público interno, brasileiro, assim o utilize, mas deixa margem, também, para que nações estrangeiras façam uso de tais estratégias para macular a democracia brasileira, direcionando a algum resultado eleitoral que mais se adequa aos seus interesses, como aconteceu, comprovadamente, nos Estados Unidos, conforme os escritos de Samantha Power.

Ainda que pouco tenha sido escrito, no contexto brasileiro, acerca da influência internacional na corrida eleitoral, através das Fake News, não se pode negar o justo receio de que isso venha a ocorrer – caso já não esteja ocorrendo. O texto de Power serve como um alerta atemporal, não apenas aos estadunidenses, mas ao mundo todo.

3.3 Na prática: Estados Unidos e Rússia no Oriente Médio

Outro exemplo de intervenção internacional, diferente da digital, que muitas vezes se encontra implícita ou escondida, é a intervenção militar direta, de uma nação em outra, para diversos fins – que podem ser justificáveis do ponto de vista internacional ou não. Nesse contexto, destaca-se a situação pública e notória, que ocorre há anos, que é a intervenção estadunidense no Oriente Médio, sobretudo na Síria.

A Primavera Árabe foi a nomenclatura dada às revoltas que ocorreram no Norte da África e Oriente Médio, a partir de 2010. Os eventos até hoje estremecem os países das duas regiões, tendo por início a imolação de um jovem tunisiano contra o governo do seu país; a partir desse acontecimento, uma série de revoltas tomou conta de diversos países, resultando, inclusive, na queda de vários governos. Foi nesse contexto que, na Síria, em 2011, a população foi às ruas postulando o fim do regime comandado por Bashar Al-Assad, o que acarretou repressão efetuada pelas forças militares de Al-Assad, aumentando a tensão política no país50.

O regime de Al-Assad51 terminou após cinquenta anos no poder, com a tomada da capital pelos rebeldes. O presidente fugiu do país e está em Moscou, após ter conseguido asilo, conforme fonte russa. Foi comprovado que os combates na Síria aumentaram quando os atores internacionais, como os Estados Unidos, França e Reino Unido e a Rússia, passaram a figurar nos pólos da guerra. A Rússia aliou-se ao governo de Al-Assad, com o fim de combater o Estado Islâmico e os rebeldes; os Estados Unidos, a França e o Reino Unido, por sua vez, lideraram coalização internacional para repelir o governo, em apoio às forças de oposição:

Os países ocidentais, principalmente os EUA, França e Reino Unido, declararam apoio às forças de oposição, denominadas pela imprensa de forças rebeldes. Elas estão organizadas principalmente na Coalizão Nacional Síria da Oposição e das Forças Revolucionárias (CNSOFR), formada por diversas organizações. O governo dos EUA inclusive chegou a reconhecer, em dezembro de 2012, a CNSOFR como representante legítima da Síria, pretendendo deslegitimar o governo de Al-Assad, e criou ainda o Grupo de Apoio Sírio (Syrian Support Group, SSG, em inglês), uma entidade destinada a angariar recursos financeiros e apoio não letal para apoiar o Exército Livre Sírio (ELS), a principal organização da CNSOFR.

Ainda em 2024, foi divulgado que os Estados Unidos possuem grande número de militares na Síria, com o intuito de evitar o ressurgimento do Estado Islâmico52. É evidente a interferência internacional no contexto do Oriente Médio, inclusive em polos distintos, face aos seus interesses particulares também distintos que, naturalmente, se contrapõem ao simples “bem-estar” da população que lá reside, demonstrando o quão atemporal se mostra os escritos de Samantha Power e o quão distantes ainda estamos de uma sociedade de paz de Kant ou aquela baseada no Direito dos Povos, de Rawls, haja vista que seguimos assistindo a interferência internacional pautada na busca de poder, prestígio e riqueza53.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, as discussões sobre as matérias que envolvem os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana, em âmbito internacional, são latentes e pulsam pela novidade e pelo surgimento de novas formas de tecnologias. Os escritos considerados clássicos, como os de Kant e de Rawls, no entanto, continuam sendo utilizados como referências para se pensar uma internacionalização dotada de princípios e limites, como a igualdade, tolerância, respeito, sob o viés da intervenção mínima. 

John Rawls, em sua obra, elaborou um verdadeiro manual prático de civilidade e razoabilidade para povos que, no seu entender, serviria para guiá-los a um fim comum, de manutenção da pluralidade cultural e política e autodeterminação; em seus estudos, resgatou ideais trazidos séculos antes por Kant, através da justiça e da equidade54. Nos ideais de Rawls e Kant, não se permite a intervenção externa que não seja especificamente justificada, isto é, aquela necessária quando o governo interno não consegue cumprir com direitos básicos55.

Contudo, não é o que se percebe atualmente, tendo em vista que as intervenções internacionais de uma nação em outras acontecem o tempo todo, em diversos contextos, principalmente políticos e, na maioria das vezes, tem por objeto interesses apenas da nação interventora.

É nesse contexto que Samantha Power escreve Além das Eleições: Interferência Estrangeira na Democracia Americana, texto integrante do livro Can It Happen Here? Authoritarianismo na America, editado por Cass R. Sunstein, demonstrando como a intervenção de outros países impacta nas eleições norte-americanas. A atemporalidade do escrito de Samantha Power é notável, desbordando, inclusive, de situações que envolvam apenas processos eleitorais, refazendo-se o pensar sobre as inúmeras intervenções, implícitas ou explícitas, tendo por base o interesse particular, em franca violação aos direitos dos cidadãos que, de alguma ou outra forma, foram influenciados por tais forças externas. 

Implicitamente, pode-se citar que o aumento tecnológico, como evidenciado, propicia a disseminação inverídica de informações, causando justo receio aos cidadãos e conferindo uma indevida oficialidade a perfis de notícias falsas – o que denota a importância de verificação e aferição de veracidade; a exemplo, tem-se o caso das Fake News, relacionadas às eleições brasileiras. No âmbito dos meios mais explícitos de intervenção, pode-se citar aquelas militares de nações estrangeiras, como as do Oriente Médio, amplamente divulgadas.

Ainda que pareçam estar longe de serem implementados, os ideais manifestados ao desenvolvimento de uma sociedade mais justa e bem-ordenada internacionalmente, deve continuar a ser perseguido. Como dito por Rawls, considerar como impossível a proposta de uma sociedade internacional razoável, determinaria a nossa postura, enquanto cidadãos, de maneira negativa de forma muito significativa.


2 SILVA, Alexander Marques. Direito dos povos em tempos de globalização: uma análise fracionada pragmática da teoria ideal e não-ideal de John Rawls, in REVISTA SERVIAM JURIS: São Paulo, Vol. 4., N.4 Nov/2018, p. 108.

3 OLIVEIRA, Maria José Galleno de Souza. Reflexões do pensamento de John Rawls na obra O Direito Dos Povos in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, V. 101, Jan/Dez 2006, p. 531.

4 RAWLS, John. O direito dos povos. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 12.

5 SILVA, Alexander Marques. Direito dos povos em tempos de globalização: uma análise fracionada pragmática da teoria ideal e não-ideal de John Rawls, in REVISTA SERVIAM JURIS: São Paulo, Vol. 4., N.4 Nov/2018, p. 108-109.

6 FELDENS, Guilherme de Oliveira; KRETSCHMANN, Ângela. A concepção de direitos humanos e fundamentais na teoria da justiça como equidade. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 4, Out./Dez., 2017, p. 189.

7 Ibid, p. 190.

8 STAFFEN, Márcio Ricardo; ZAMBAM, Neuro José. Direito Global e Desigualdade: Um estudo a partir do Direito dos Povos de John Rawls. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 10, n. 1 / 2015, p. 249.

9 RAWLS, John. O direito dos povos. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 3.

10 LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem-ordenados segundo John Rawls. Vitória (ES), vol. 2, n. 2, SOFIA, Dezembro 2013, p.13.

11 Idem

12 FELDENS, Guilherme de Oliveira. O Direito dos Povos: Um ideal de justiça para ser aspirado por todas as sociedades. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.2, n.2, dezembro/2010, p. 83

13 LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem-ordenados segundo John Rawls. Vitória (ES), vol. 2, n. 2, SOFIA, Dezembro 2013, p.13. p. 14 e RAWLS, John. O direito dos povos. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 17-21.

14 MESQUITA, Jéssica. O direito dos povos: uma proposta de sociedade bem ordenada. Revista Opinião Filosófica, Porto Alegre, v. 03; nº. 01, 2012, p. 115.

15 RAWLS, John. O direito dos povos. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 77.

16 Op. Cit., p. 115

17 LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem-ordenados segundo John Rawls. Vitória (ES), vol. 2, n. 2, SOFIA, Dezembro 2013, p.10.

18 OLIVEIRA, Maria José Galleno de Souza. Reflexões do pensamento de John Rawls na obra O Direito Dos Povos in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, V. 101, Jan/Dez 2006, p. 536.

19 FELDENS, Guilherme de Oliveira. O Direito dos Povos: Um ideal de justiça para ser aspirado por todas as sociedades. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.2, n.2, dezembro/2010, p. 83

20 Ibid., p. 85

21 LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem-ordenados segundo John Rawls. Vitória (ES), vol. 2, n. 2, SOFIA, Dezembro 2013, p.17.

22 Idem.

23 FELDENS, Guilherme de Oliveira. O Direito dos Povos: Um ideal de justiça para ser aspirado por todas as sociedades. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.2, n.2, dezembro/2010, p. 92.

24 STAFFEN, Márcio Ricardo; ZAMBAM, Neuro José. Direito Global e Desigualdade: Um estudo a partir do Direito dos Povos de John Rawls. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 10, n. 1 / 2015, p. 255-256.

25 LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem-ordenados segundo John Rawls. Vitória (ES), vol. 2, n. 2, SOFIA, Dezembro 2013, p.22.

26 FELDENS, Guilherme de Oliveira; KRETSCHMANN, Ângela. A concepção de direitos humanos e fundamentais na teoria da justiça como equidade. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 4, Out./Dez., 2017, p. 193.

27 Ibid, p. 191

28 Ibid, p. 204

29 Idem.

30 FELDENS, Guilherme de Oliveira. O Direito dos Povos: Um ideal de justiça para ser aspirado por todas as sociedades. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.2, n.2, dezembro/2010, p. 92.

31 ROUANET, Luiz Paulo. Direitos Humanos na perspectiva do Direito dos Povos. Pensando – Revista de Filosofia Vol. 2, Nº 2, 2011, p, 233-234.

32 Ibid. p. 234.

33 FELDENS, Guilherme de Oliveira. O Direito dos Povos: Um ideal de justiça para ser aspirado por todas as sociedades. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.2, n.2, dezembro/2010, p. 84.

34 ROUANET, Luiz Paulo. Direitos Humanos na perspectiva do Direito dos Povos. Pensando – Revista de Filosofia Vol. 2, Nº 2, 2011, p, 237

35 LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem-ordenados segundo John Rawls. Vitória (ES), vol. 2, n. 2, SOFIA, Dezembro 2013, p.15.

36 POWER, Samantha. Beyond Elections: Foreign Interference With American Democracy In Can It Happen Here?, SUNSTEIN, Cass, R. New York: Dey Street 2018, p. 81-82.

37 POWER, Samantha. Beyond Elections: Foreign Interference With American Democracy In Can It Happen Here?, SUNSTEIN, Cass, R. New York: Dey Street 2018, p. 82.

38 Ibid, 83.

39 Ibid, 85-86.

40 POWER, Samantha. Beyond Elections: Foreign Interference With American Democracy In Can It Happen Here?, SUNSTEIN, Cass, R. New York: Dey Street 2018, p. 93.

41 Ibid. p. 95.

42 STAFFEN, Márcio Ricardo; ZAMBAM, Neuro José. Direito Global e Desigualdade: Um estudo a partir do Direito dos Povos de John Rawls. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 10, n. 1 / 2015, p. 255-256.

43 ZAGANELLI, Margareth Vetis; MAZIERO, Simone Guerra. Fake News e Eleições no Brasil. Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político V. 5, n. 1, jan. a jun. 2021, p. 164.

44 Ibid., p. 165

45 ZAGANELLI, Margareth Vetis; MAZIERO, Simone Guerra. Fake News e Eleições no Brasil. Revista Eletrônica de Direito Eleitoral e Sistema Político V. 5, n. 1, jan. a jun. 2021, p. 168.

46 Ibid., p. 168-169

47 Ibid., p. 171.

48 Senado Federal. Para brasileiros, notícias falsas impactam eleições. Disponível em < https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/08/23/para-brasileiros-noticias-falsas-impactam-eleicoes-revela-datasenado > acessado em fevereiro de 2025. 

49 Senado Federal. Para brasileiros, notícias falsas impactam eleições. Disponível em < https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/08/23/para-brasileiros-noticias-falsas-impactam-eleicoes-revela-datasenado > acessado em fevereiro de 2025.

50 Brasil Escola. Conflitos na Síria e Intervenção dos EUA. Disponível em <https://vestibular.brasilescola.uol.com.br/atualidades/conflitos-na-siria-intervencao-dos-eua.htm> acessado em fevereiro de 2025. 

51 CNN BRASIL. EUA tem o dobro de soldados na Síria do que dito anteriormente. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eua-tem-o-dobro-de-soldados-na-siria-do-que-dito-anteriormente-diz-pentagono/> acessado em fevereiro de 2025.  

52 Brasil Escola. Conflitos na Síria e Intervenção dos EUA. Disponível em <https://vestibular.brasilescola.uol.com.br/atualidades/conflitos-na-siria-intervencao-dos-eua.htm> acessado em fevereiro de 2025.

53 LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem-ordenados segundo John Rawls. Vitória (ES), vol. 2, n. 2, SOFIA, Dezembro 2013, p.15.

54 SILVA, Alexander Marques. Direito dos povos em tempos de globalização: uma análise fracionada pragmática da teoria ideal e não-ideal de John Rawls, in REVISTA SERVIAM JURIS: São Paulo, Vol. 4., N.4 Nov/2018, p. 108.

55 ROUANET, Luiz Paulo. Direitos Humanos na perspectiva do Direito dos Povos. Pensando – Revista de Filosofia Vol. 2, Nº 2, 2011, p, 234.

REFERÊNCIAS

Brasil Escola. Conflitos na Síria e Intervenção dos EUA. Disponível em <https://vestibular.brasilescola.uol.com.br/atualidades/conflitos-na-siria-intervencao-dos-eua.htm> acessado em fevereiro de 2025.

CNN BRASIL. EUA têm o dobro de soldados na Síria do que dito anteriormente. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eua-tem-o-dobro-de-soldados-na-siria-do-que-dito-anteriormente-diz-pentagono/> acessado em fevereiro de 2025.  

FELDENS, Guilherme de Oliveira. O Direito dos Povos: Um ideal de justiça para ser aspirado por todas as sociedades. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil, v.2, n.2, dezembro/2010, p. 01-94.

FELDENS, Guilherme de Oliveira; KRETSCHMANN, Ângela. A concepção de direitos humanos e fundamentais na teoria da justiça como equidade. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 4, Out./Dez., 2017, p. 187-208.

LIMA, Jozivan Guedes de. A ideia de uma sociedade de povos bem-ordenados segundo John Rawls. Vitória (ES), vol. 2, n. 2, SOFIA, Dezembro 2013, p.11-24.

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1Rafael Lima Marques é especialista em Direito Tributário pelo IBET/INEJ, membro da Fundação Escola Superior de Direito Tributário – FESDT, membro da Comissão de Estudos de Direito Cooperativo da OAB, Seccional do Rio Grande do Sul, MBA em Gestão de Tributos ela USP/SP, mestrando em Direito pela Unisinos e advogado militante. Endereço eletrônico rlm@deroseadvogados.com.br