O ESTADO DE NATUREZA E NECESSIDADE DO ESTADO CIVIL NA CONCEPÇÃO HOBBESIANA

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10696496


Alexandre Martins Kunrath1


RESUMO: O presente artigo pretende apresentar a teoria de Thomas Hobbes com enfoque no que ele definiu como Estado de Natureza da humanidade e suas construções teóricas, sobretudo em sua obra Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, dos atributos e consequências ao homem que vive em tal situação, levando à consequente necessidade de criação do Estado como forma de proteção e pacificação social. 

Palavras-chave: Hobbes. Leviatã. Estado de Natureza. 

ABSTRACT: This article intends to present Thomas Hobbes’ theory with a focus on what he defined as the State of Nature of humanity and its theoretical constructions, especially in his work Leviathan or Matter, Form and Power of an Ecclesiastical and Civil State, attributes and consequences for the man who lives in such a situation, leading to the consequent need to create the State as a form of protection and social pacification. 

Keywords: Hobbes. Leviathan. State of Nature.

INTRODUÇÃO 

Pretende-se neste trabalho apresentar, brevemente, o conceito de estado de natureza estabelecido por Thomas Hobbes, sobretudo descrito em sua obra mais conhecida: 

Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. 

Hobbes parece ser um dos autores mais criticados e contestados da Teoria Política Moderna. Isto se deve à sua abordagem completamente diferente do que o pensamento político da época oferecia. Ele criou um modelo de natureza humana, que trouxe para dentro da discussão filosófica uma física mecanicista, na qual tudo perpassa pelo movimento.

Frise-se que Hobbes viveu no entre os séculos XVI e XVII, construindo pensamento bastante avançado para a época, tornando-se, para muitos autores e estudiosos, um divisor do pensamento político-filosófico sobre as bases de sustentação do Estado. Para tanto, começa sua obra do Leviatã com uma noção de desejo ou conatus2 herdada de discussões renascentistas. 

Ao fundir estas duas noções (da física mecanicista e a noção do desejo do indivíduo), a partir de sua construção da humanidade no estado de natureza, lançou um sistema filosófico em que une progressivamente corpo, homem e Estado (ou corpo político). 

CONTEXTO HISTÓRICO EM QUE HOBBES VIVEU 

O meio em que o filósofo se desenvolveu foi determinante na forma como desenvolveu sua obra. Thomas Hobbes nasceu na Inglaterra, mais especificamente em Westport, no dia 5 de abril de 1588, no Século XVI. Filho de um clérigo anglicano, vigário de Westport, teve uma infância marcada pelo medo da invasão da Inglaterra pelos espanhóis, na época da rainha Elizabeth I3

Iniciou seus estudos desde muito cedo, aos quatro anos de idade, na escola da igreja de Westport e, mais tarde, aos 15 anos foi matriculado na Universidade de Oxford, instituição em que se formou no ano de 1608.

Obteve o título de bacharel, e em 1608, com idade de 20 anos, entrou no serviço do barão William Cavendish, emprego que, salvo algumas interrupções, manteve até sua morte. A permanência de Hobbes na casa dos Cavendish foi extremamente importante para seu desenvolvimento intelectual. Um ambiente tranquilo, com uma grande biblioteca, oferece-lhe paz para dedicar-se à leitura e reflexão de grandes obras literárias. Seus estudos concentravam-se, especialmente, ao redor dos historiadores, obras que suscitam nele o interesse político.4

Como era comum à época, sua vida desenrolou-se ligada à monarquia inglesa. Atuando como preceptor de figuras ligadas à nobreza, fez viagens que o proporcionaram o contato com a filosofia clássica de Aristóteles e Platão, além da convivência com grandes pensadores, tais como Francis Bacon, Galileu Galilei e René Descartes, apesar de discordar do método e ideias de alguns deles. 

Por ser um monarca convicto, foi obrigado a deixar a Inglaterra e se exilar na França, após a instalação da república inglesa sob a liderança de Oliver Cromwell. E foi em Paris, sob a necessidade de dar uma nova explicação a respeito da necessidade do estado, sob a forma de monarquia absolutista, que Hobbes publicou o Leviatã (provavelmente sua obra mais conhecida), no qual defende que a autoridade do monarca não advém de uma vocação divina, mas de uma justificação contratualista da indelével necessidade de ceder parte da liberdade em troca da proteção e paz oferecidas pelo monarca. 

A contextualização histórica é de suma importância para a compreensão do pensamento de Hobbes. Sob a invasão, na Inglaterra, da Invencível Armada, o nascimento de Thomas Hobbes dá-se de forma prematura. Hobbes, na sua autobiografia, escreve que sua mãe deu à luz a gêmeos “à mim e ao medo”. Este fato parece realmente marcar a vida de Hobbes, pois o que o autor visa em toda sua vida é a segurança, a estabilidade, de tal forma que a liberdade tem uma profunda relação com este episódio.5 

As ideias defensoras do absolutismo foram originadas, provavelmente, a partir do medo que o filósofo inglês vivenciou quando jovem, aliado às revoltas burguesas e camponesas que instauraram um clima de tensão política na Inglaterra.

O meio social, com as instabilidades políticas vivenciadas à época por Hobbes, certamente tiveram força determinante no desenvolvimento do seu pensamento político e filosófico. Em 1651, enquanto ainda estava na França, o filósofo escreve e publica o seu livro Leviatã, no qual descreve a sua teoria contratualista e jusnaturalista e defende a monarquia como regime político capaz de combater o estado de natureza humano e, sobretudo, uma clara reação à república inaugurada na Inglaterra. 

O ESTADO DE NATUREZA HUMANO NO LEVIATà

Thomas Hobbes trata inicialmente da condição em que o homem se encontra, no estado natural, com a finalidade de criar as bases da necessidade da efetivação do Estado. Para isto, divide a sua obra Leviatã em quatro grandes partes. Na primeira parte explora a natureza do homem e as leis naturais; na segunda, a natureza da sociedade civil e os direitos do poder soberano; na terceira, a sociedade cristã; e na quarta e última o reino das trevas. Importante frisar o objetivo com que foi escrita a obra: voltar para a Inglaterra. 

Segundo Hobbes, o estado natural é a condição na qual todos os homens se encontram, num patamar de igualdade. Há intrinsecamente a percepção de que todos possuem o mesmo direito, pois neste estado de natureza é guiado pelos instintos (paixões), pelo conatus. De forma até inconsciente, o homem conduz as ações com o fim maior de permanecer na existência, de sobrevivência, como é comum aos seres vivos na natureza. Sob esta ótica, inexiste qualquer poder estatal soberano que subjugue o indivíduo. Justamente daí que advém a concepção de que todos estão em condição de igualdade e de possibilidades. 

O filósofo constrói suas ideias, como dito alhures, influenciado pelas ciências exatas e conjectura sobre a natureza humana como movimento, conforme assevera: 

“A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona o órgão próprio de cada sentido, ou de forma imediata, como no gosto e tato, ou de forma mediata, como na vista, no ouvido, e no cheiro; a qual pressão, pela mediação dos nervos, e outras cordas e membranas do corpo, prolongada para dentro em direção ao cérebro e coração, causa ali uma resistência, ou contrapressão, ou esforço do coração, para se transmitir; cujo esforço, porque para fora, parece ser de algum modo exterior. E é a esta aparência ou ilusão, que os homens chamam sensação;”6

Observa-se que até a descrição dos sentidos traz em si a ideia de movimento, em que há uma mecânica de interações, ações e reações com os órgãos sensoriais e demais órgãos do corpo humano que acabam por formar o que ele chama de sensação. Assim o conceito de homem está dentro de uma perspectiva mecânica de natureza (exterior) e não teleológica (interior) como em Aristóteles.7 

Hobbes define a natureza humana como uma grande máquina, corpos em movimento, inteiramente descritos por leis mecânicas. O princípio fundamental do sistema de Hobbes é que todo ser é corporal e tudo o que acontece se explica pelo movimento. Na introdução do Leviatã diz que a vida nada mais é que movimento.8 

Assim, Hobbes descreve toda ação humana sob uma perspectiva quase que matemática, mecanicista, muito influenciado por seu interesse pelas ciências matemáticas e a física, as quais utilizou para construção de sua teoria política e explicação da natureza humana. 

No estado de natureza, prévio à entrada no Estado Social, a condição humana é de igualdade entre todos, indistintamente. Naturalmente equiparados em capacidades, sejam elas corporais ou espirituais. Equânimes individualmente, onde cada um tem igual direito a todas as coisas e sobretudo de realizar os seus fins, atingir os seus objetivos. 

Justamente em razão desta perspectiva de igualdade e da possibilidade de obter o que se é desejado é que nasce a discórdia entre os homens. Como são iguais e podem desejar as mesmas coisas, diante da impossibilidade de delas gozar simultaneamente surge o conflito, pois buscam somente a satisfação de suas paixões.

A paixão cuja violência ou prolongamento prova à loucura ou é uma grande vanglória, a que vulgarmente se chama orgulho ou auto estima, um grande desalento de espírito. O orgulho torna os homens sujeitos à cólera, cujo excesso é a loucura chamada raiva ou fúria. E assim ocorre que o excessivo desejo de vingança, quando se torna habitual, prejudica os órgãos e se transforma em raiva, e que o amor excessivo, junto ao ciúme, também se transforma em raiva;9

Como não há estado ou qualquer soberano que diga o que pode ou não pode ser feito, inevitavelmente o conflito é o desiderato necessário. Vislumbrando realizar o que se almeja, torna-se razoável empreender esforços antes que o outro, atacando-o primeiro para neutralizá-lo e satisfazer sua vontade. 

Para Hobbes, inexiste no mundo aquele despido da natureza desejante, justamente porque é a força motriz que conduz o homem em direção a determinada coisa, objeto, que irá lhe satisfazer ou lhe proporcionar prazer. Mas é também através do movimento que o leva a todas as coisas, às quais o homem tem direito em razão de sua igualdade no estado de natureza, que surge a guerra. 

E dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros.10

Percebe-se que em sua argumentação, Hobbes afirma que a igualdade dá direito a tudo indistintamente, inclusive os corpos de outros indivíduos, pela completa ausência de limitação ou de impedimentos externos a que se submeteria o homem em estado de natureza, sempre trazendo a concepção de que todas as condutas humanas são movimento, até as sensoriais. E continua:

Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver.11

O homem, para o filósofo, racionalmente, como uma regra geral da razão, deve esforçar-se pela paz, como o instinto de autopreservação, o que considera ser a primeira lei fundamental da natureza. E, se não a conseguir, pode socorrer-se nas vantagens da guerra, sendo resultado do direito de natureza, a possibilidade de usar de todos os meios para a autodefesa.

Thomas Hobbes considera o convívio em estado de natureza inseguro, instável e insuficiente ao fim maior que busca o homem, pois a preservação de sua vida é logicamente contrária à iminência da morte constante. A desconfiança permanente é permeada por um frequente e aterrorizador medo da morte violenta. Em tais condições, a vida do homem é individualista, pobre, ruim, quase equiparada à dos outros animais, e, como citado acima, sem perspectiva de alongar-se. 

No estado constante de insatisfação, no qual o homem não se contenta somente com a conservação e vive em perpétua desconfiança do próximo, pois existe de maneira geral a aspiração de todos ao poder, obrigando-se cada um a dominar os demais, apoderando-se das suas coisas, é que se vive na condição natural da humanidade.12

Hobbes concebe que a vida no estado de natureza é miserável em razão da indelével vigilância com o fito de afastar a morte violenta e a preservação da vida, bem como o movimento das paixões alheias não signifiquem a impossibilidade do exercício das próprias. E neste diapasão, assevera que a vida em sociedade é o único caminho.

O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependência de sua vontade: é o caso do poder de um Estado. Ou na dependência da vontade de cada indivíduo: é o caso do poder de uma facção, ou de várias facções coligadas. Consequentemente, ter servidores é poder; e ter amigos é poder: Porque são forças unidas.13

Aqui já se vislumbra que começa a ser trilhado o caminho que fincará as bases argumentativas da teoria hobbesiana. A mera associação por consentimento dos indivíduos em torno de uma só pessoa já gera por si só um aumento de poder para aqueles que se uniram. 

É válido lembrar que no estado de natureza a liberdade era entendida como a ausência de impedimento externo ao movimento. É poder alimentar as paixões sem quaisquer grilhões, posto que a todos é dado o direito a tudo, indistintamente. Não existe ainda a concepção de estado, mas apenas existência no âmbito do indivíduo em si mesmo. É diferente, por exemplo, da concepção de liberdade para os cidadãos da Grécia ou de Roma. Esta estava completa com o compartilhamento do poder político entre todos os cidadãos de uma mesma pátria. O governo e a leis podiam penetrar em toda a esfera da vida, e isso não acarretava, de modo algum, perda da liberdade humana. 

Importante lembrar que, para Hobbes, na mesma medida em que as paixões empurram o homem ao conflito e à guerra, são essas mesmas paixões que fomentam e o impulsionam sua saída da condição de desarmonia, insegurança e discórdia. O homem é incentivado a sair dessa condição miserável por medo da morte violenta e pelo desejo de segurança, de paz, efetivamente fundamental para uma vida mais cômoda e longa. 

As paixões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável, e a esperança de consegui-las através do trabalho. E a razão sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo.14

O filósofo indica a necessidade do homem de abandonar o estado de natureza, com o fito de poder ter uma vida mais satisfatória. Sair da situação de guerra constante no estado de natureza permitiria a sobrevivência e longevidade do indivíduo, além da eliminação do medo maior: a da morte violenta. E mais: Hobbes aspirava uma vida confortável, com todas as comodidades que o crescimento da sociedade sem guerra pudesse lhe proporcionar. 

Esta é a razão da instauração do Estado civil, que pelo poder que lhe for contratualmente concedido (acordo entre os homens, que conscientemente renunciam a parcela de liberdade em troca de proteção), é capaz de obrigar aos súditos a cumprirem os pactos e não mais a tudo querer, assegurando paz e estabilidade aos indivíduos que pactuaram na formação do Estado.

O SURGIMENTO DO ESTADO COMO NECESSIDADE HUMANA 

No estado de natureza não havia leis que determinassem o certo ou errado. Somente os indivíduos existiam em si mesmos em condição de igualdade e com direito a tudo, inclusive ao corpo dos outros indivíduos, trazendo consigo a insegurança, beligerância e medo da morte violenta em virtude do exercício das paixões individuais. 

A existência dessa maneira de viver se mostrava, aos olhos de Hobbes, insustentável, já que a natureza humana busca a paz, a proteção e a sobrevivência. É neste meio que o Estado civil nasce como um acordo de vontades entre aqueles que pretendem deixar a miserabilidade e a pobreza. 

Assim, o Estado hobsseniano é aquele Estado erigido a partir do conchavo dos cidadãos que o faz existente, que o compõe a fim de estabelecer o ordenamento mais racional da, e para, o grupo dos pactuantes, isto é, a sociedade. Vale também lembrar que o Estado está isento de qualquer condicionamento ético e moral. O Estado é titular de todos os poderes e age tendo em vista a garantia da paz e dos direitos básicos dos cidadãos, sem levar em consideração qualquer base ética e moral. Hobbes observa que o contrato social é a solução para a superação tanto da violência como da insegurança coletiva existentes no Estado de Natureza e, assim, o Estado é a solução à sobrevivência do homem em Sociedade.15

Destaque-se que, como citado acima, ao Estado é dado o poder de tudo fazer com o intuito da garantia da paz e dos direitos básicos dos cidadãos. Isto não quer dizer que o Estado esteja condicionado a valores éticos e morais. 

Em verdade, quando os homens contratam entre si, reconhecendo que o caminho para a proteção e pacificação é na figura do Estado civil e a convivência em sociedade, voluntariamente transferem parte daquele poder intrínseco ao homem no estado de natureza, no qual lhe era dado o direito a tudo, sem qualquer freio. 

Tal transferência de poder dá ao Estado a titularidade da defesa e garantia da paz com os meios de coerção do indivíduo, inclusive o uso da força e da violência, no intuito de manter a coesão social e impor aos indivíduos que respeitem as proibições estabelecidas em prol da convivência em sociedade.

A saída do caos inerente ao Estado de Natureza é a cessão voluntária de parte dos seus direitos ilimitados enquanto em pé de igualdade para que em troca o súdito seja protegido por um ente maior. 

O Leviatã, como figura, designava um monstro marinho descrito na Bíblia, (mais precisamente no livro de Jó): “Quem confia, se faz ilusões, pois seu aspecto o derruba. Ninguém se atreve a provocá-lo. Quem lhe resistirá? Quem ousou desafiá-lo e ficou ileso? Ninguém debaixo do céu”. As origens do Leviatã remontam à mitologia fenícia e simbolizavam o caos e aparência de crocodilo. Já na crença judaica, o Leviatã simboliza um poder contrário ao de Deus.16

Nada mais significativo para a construção do seu pensamento filosófico e de surgimento do estado através do contrato entre os homens, que criam um “monstro” dissociado de Deus é onipotente na missão de proteção dos súditos. 

A concepção de liberdade ilimitada anterior, banhada pelo medo da morte violenta que os indivíduos conviviam diariamente em detrimento do movimento das paixões de seus pares, muda para a concepção de liberdade dentro do Estado civil em que os indivíduos podem gozar de uma vida plena em razão da imposição pelo poder estatal ao respeito entre os súditos e eliminação da guerra constante. 

O poder absoluto hobbesiano não deve ser vislumbrado como ontológico, com um fim em si mesmo, mas como meio para que se manifeste a realização dos direitos básicos à vida e a liberdades dos indivíduos. Assim, a missão do Estado, em seu poder absoluto, é a criação de um espaço no qual o ser humano possa vislumbrar a perspectiva real de alcançar seus fins naturais.17

Para Hobbes, é a monarquia absoluta que está apta a realizar esta tarefa. Mais ainda, ele rompe com a doutrina filosófica que explicava a origem do poder estatal como divina, como o soberano sendo uma expressão do poder divino encarnado na terra. Muito pelo contrário. Em sua filosofia política, Hobbes não fundamenta seus postulados em causas metafísicas ou transcendentais. Os fundamentos são estritamente materialistas, pragmáticos, com foco na humanidade.18

É nesse contexto que surge, para Hobbes, o soberano. Feito o contrato entre os súditos, aceitando coletivamente a limitação de suas liberdades existentes no estado de natureza para transferi-la a uma pessoa ou conjunto de pessoas (assembleia, por exemplo) em troca de pacificação e segurança, nasce a figura do soberano. 

Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e ela ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do testado, a qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum. Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos. (grifo nosso)19

Hobbes define o soberano como aquele detentor do poder concedido pelos súditos através dos pactos recíprocos e a ele é dado a utilização da força e dos recursos a ele confiados da maneira que considerar mais conveniente. Por isso a crença na monarquia absolutista com o fito de pacificação e proteção, mas despida de roupagem ética ou moral. 

O soberano em sua missão de proteção dos súditos, de proporcioná-los mais conforto e longevidade, não estará adstrito a limitações daquela natureza (ética e moral), estando autorizado pelo próprio pacto social que o alçou à condição de líder, à utilização de força e demais meios de coerção para obrigar os súditos a cumprirem as regras de convivência social (impedimentos externos). A exceção, diz o próprio Hobbes, se dá quando se vai de encontro à própria sobrevivência do súdito:

Entende-se que a obrigação dos súditos para com o soberano dura enquanto, e apenas enquanto, dura também o poder mediante o qual ele é capaz de protegê-los. Porque o direito que por natureza os homens têm de defender se a si mesmos não pode ser abandonado através de pacto algum.20

O direito natural à própria vida é inegociável, segundo o autor do Leviatã. Há, por suposto, mesmo no modelo absolutista, limitações ao soberano, que tem como pilar de sustentação a entrega de parte da liberdade dos súditos num pacto voluntário em troca, precipuamente, de proteção à vida destes. Se este fim primordial não for alcançado, deixa de existir obrigação dos súditos com o soberano, que passa a ser imprestável aos seus servos. 

Feito este recorte sobre a obra de Thomas Hobbes, que vai da construção das bases teóricas e filosóficas do homem em estado de natureza e leva até a necessidade da criação do Estado social e da figura do soberano, vê-se a forma brilhante e sólida como as ideias do autor solaparam a sociedade da época, visto que certamente a frente de seu tempo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Thomas Hobbes constrói as suas bases teóricas na ideia do homem totalmente submerso e comandado pelas paixões em seu estado natural. Tais homens, por ausência de limites externos que lhes impeçam de exercer o que bem lhes convier, estão em pé de igualdade de capacidades frente uns aos outros, podendo agir da forma que seja mais proveitosa para si próprio, sem levar em consideração de que forma seus movimentos afetariam seus pares, com a esperança de atingir seus fins, sejam a glória, fama e riqueza, seja a própria sobrevivência. 

Mas ao mesmo tempo que a liberdade plena (entendida como a não limitação externa na realização das paixões) dá direito a tudo e todos, sem que se possa falar em justo ou injusto, a contraposição dos movimentos dos homens gera uma vivência incerta e perigosa, contrária à razão humana que busca a paz e a proteção.

Foi com este aparato de ideias que Hobbes, explicando a condição humana no estado de natureza (enfoque do presente escrito), fundou uma nova visão sobre a política e a filosofia da época, com repercussões práticas e teóricas até os dias atuais. Como o Hobbes dissociou a formação do Estado e a existência do soberano das questões teológicas, argumentando que a necessidade de formação do Estado e o surgimento da figura do soberano vem da necessidade humana de abandonar o estado permanente de guerra presente no estado natural, fazendo pactos voluntários e recíprocos transferindo parcela de seus poderes e liberdade em troca de paz e proteção. Esta inovação político-filosófica fincou as bases da evolução moderna nesta seara, tornando-se um dos maiores pensadores de sua época. 


2O conceito de conatus na obra de Hobbes é estritamente ligada à ideia de movimento, muito fruto do seu interesse pela matemática e física, em construções herdadas destas ciências que se fundem com o pensamento filosófico. Ademais, outros pensadores como Descartes e Espinosa também discorrem sobre o tema. OLIVA, Luís César. O Conatus em Descartes, Hobbes e Espinosa. DoisPontos, [S.l.], v. 15, n. 1, jul. 2018. ISSN 2179-7412. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/57176/35686>. Acesso em: 07 dez. 2021. doi:http://dx.doi.org/10.5380/dp.v15i1.57176. 
3HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Filosofia. 2 ed. Editora Lebooks, 2020, p. 5
4WOLLMANN, Sérgio. O conceito de liberdade no Leviatã de Hobbes. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 1994, p. 13
5WOLLMANN, Sérgio. O conceito de liberdade no Leviatã de Hobbes. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 1994, p. 9
6HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Filosofia. 2 ed. Editora Lebooks, 2020, p. 14.
7LOPES, J. G. Thomas Hobbes: a necessidade da criação do Estado. Griot : Revista de Filosofia, [S. l.], v. 6, n. 2, p. 170–187, 2012. DOI: 10.31977/grirfi.v6i2.526. Disponível em: http://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/526. Acesso em: 27 nov. 2021. 
8WOLLMANN, Sérgio. O conceito de liberdade no Leviatã de Hobbes. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 1994, p. 19.
9HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Filosofia. 2 ed. Editora Lebooks, 2020, p. 51.
10Idem. p. 83.
11Idem. p. 83.
12WOLLMANN, Sérgio. O conceito de liberdade no Leviatã de Hobbes. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 1994.
13HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Filosofia. 2 ed. Editora Lebooks, 2020, p. 57.
14HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Filosofia. 2 ed. Editora Lebooks, 2020, p. 82.
15LOPES, J. G. Thomas Hobbes: a necessidade da criação do Estado. Griot : Revista de Filosofia, [S. l.], v. 6, n. 2, p. 170–187, 2012. DOI: 10.31977/grirfi.v6i2.526. Disponível em: http://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/526. Acesso em: 27 nov. 2021. 
16CUNHA, Alexandre Sanches. O Leviatã de Thomas Hobbes. Disponível em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2017/08/09/o-leviata-de-thomas-hobbes/. Acesso em: 24 nov. 2021.
17LOPES, J. G. Thomas Hobbes: a necessidade da criação do Estado. Griot : Revista de Filosofia, [S. l.], v. 6, n. 2, p. 170–187, 2012. DOI: 10.31977/grirfi.v6i2.526. Disponível em: http://www3.ufrb.edu.br/seer/index.php/griot/article/view/526. Acesso em: 27 nov. 2021.
18É este um dos pontos fundantes da obra de Thomas Hobbes. Sua construção antropológica da origem do poder estatal como um contrato entre os homens transforma completamente a teoria política e a visão de Estado existente à época, mantendo-o até os dias atuais como um dos maiores filósofos políticos que já existiu. Desafiar o poder da igreja num momento histórico em que soberania e religião se fundiam foi basilar para a construção da visão contemporânea da fundação do poder dos estados e seus soberanos.
19HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Filosofia. 2 ed. Editora Lebooks, 2020, p. 108. 
20HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Filosofia. 2 ed. Editora Lebooks, 2020, p. 137.

REFERÊNCIAS 

AQUINO, Italo de Souza. Como escrever artigos científicos : sem “arrodeio” e sem medo da ABNT. – São Paulo: Saraiva, 2010. 

BITTENCOURT, André Veiga. O Liberalismo contestado: a crítica da liberdade negativa por Charles Taylor e Quentin Skinner. Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 5-16, 30 mar. 2008. Anual. Disponível em: www.habitus.ifcs.ufrj.br. Acesso em: 28 mar. 2021. 

CUNHA, Alexandre Sanches. O Leviatã de Thomas Hobbes. Disponível em https://meusitejuridico.editorajuspodivm.com.br/2017/08/09/o-leviata-de-thomashobbes/. Acesso em: 24 nov. 2021. 

HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Filosofia. 2 ed. Editora Lebooks, 2020. 

KRITSCH, Raquel. Do poder à liberdade civil: elementos fundacionais do pensamento político de Thomas Hobbes no Leviatã. Revista Espaço Acadêmico, v. 10, n. 114, p. 88-99, 11. 

LOPES, J. G. Thomas Hobbes: a necessidade da criação do Estado. Griot : Revista de Filosofia, [S. l.], v. 6, n. 2, p. 170–187, 2012. DOI: 10.31977/grirfi.v6i2.526. 
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OLIVA, Luís César. O Conatus em Descartes, Hobbes e Espinosa. DoisPontos, [S.l.], v. 15, n. 1, jul. 2018. ISSN 2179-7412. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/57176/35686. Acesso em: 07 dez. 2021. doi:http://dx.doi.org/10.5380/dp.v15i1.57176. 

SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes ; tradução de Vera Ribeiro. – São Paulo : Fundação Editora da UNESP (FEU), 1999. 

WOLLMANN, Sérgio. O conceito de liberdade no Leviatã de Hobbes. – Porto Alegre : EDIPUCRS, 1994.


1Bacharel em Direito graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Pós Graduado em Direito Processual Civil pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Mestrando pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP.