REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202505272242
Radanes Aurélio Lima Vale¹; Mirna Monalisa Braga Santos²; Aline Layse Silva da Silva³; Lia de Almeida Rocco⁴.
Resumo:
Esse artigo analisa as produções acadêmicas produzidas antes e depois da Lei n° 11.645/2008, sobre a relação entre a temática indígena e a Educação Básica. Anteriormente ao ano de 2008 haviam literaturas que tratavam da importância da inclusão deste tema nas escolas brasileiras, no entanto, após a promulgação da Lei em epígrafe, houve um avanço expressivo de produções universitárias no tocante à inclusão da temática indígena na Escola Básica, em virtude da promoção do trato das histórias e culturas dos povos indígenas impulsionado por este dispositivo legal. Assim, após o estudo de alguns autores no tocante à relação entre a temática indígena e a Educação Básica, concluímos que as análises empreendidas apontam para a necessidade de estreitamento das relações entre as Universidades e a Educação Básica, bem como o investimento que impulsione cursos de formação continuada relacionados diretamente com a prática profissional de docentes desta etapa de ensino.
Palavras Chaves: Lei n° 11.645/2008; Educação Básica; temática indígena.
Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar as produções acadêmicas, antes e depois da Lei n°11.645/2008, que contribuíram para pensar sobre o modo que os povos indígenas eram concebidos nas escolas brasileiras.
Seu recorte histórico consiste no período de 1990 à 2017: por um lado o ano de 1990 tem como marco o livro de Manuela Carneiro da Cunha História dos Índios no Brasil, no qual o campo da História Indígena no Brasil torna-se consolidado; por outro lado, após a promulgação da Lei n° 11.645/2008, as pesquisas acadêmicas sobre a relação da temática indígena com a Educação Básica cresceram exponencialmente, em virtude disso, analisaremos o que se produziu até 2017, tempo suficiente para maturação de discussões e desdobramentos em torno da temática.
Não temos como objetivo subdimensionar a importância do movimento indígena na luta em favor de ações afirmativas, cabendo assim um esclarecimento. A Lei nº 11.645/2008, não surge exclusivamente dos debates acadêmicos, tão pouco de uma ação voluntária do Estado no sentido de subverter as discriminações sobre os povos indígenas, e sim, das lutas dos movimentos sociais indígenas e negros. Segundo Mauro Cezar Coelho e Wilma de Nazaré Baía Coelho:
A introdução das temáticas previstas nas leis nº 10.639/03 e 11.645/08 constitui uma inversão do percurso usualmente trilhado pelas políticas educacionais. Ambas as leis não decorreram da constatação, por parte do Estado, de uma fragilidade no sistema ou nas condições de oferta. Os dois instrumentos legais resultam de demandas de movimentos sociais. Nos dois casos, a luta contra as formas de discriminação e preconceito foi o elemento determinante. (COELHO, COELHO, 2013, P. 5).
Segundo os autores, os movimentos sociais foram determinantes para a concretização das leis que tange o trato de questões étnico-raciais na Educação Básica. Contudo, esse artigo se limitará às produções acadêmicas sobre as relações que envolvem a temática indígena e a Educação Básica no Brasil.
A Temática Indígena antes da Lei nº 11.645/2008: dilemas e desafios à inclusão da temática indígena na Educação Básica.
É certo que as produções acadêmicas, referentes à temática indígena, cresceram consideravelmente após a promulgação da Lei n° 11.645/2008, contudo, observa-se uma literatura acadêmica expressiva que tratava da importância da inclusão deste tema nas escolas brasileiras. Atentamos aqui para alguns autores que produziram um saber voltado para a relação entre a temática indígena e a Educação Básica.
Nos anos 90, Manuela Carneiro da Cunha nos desafiou a produzir uma história na perspectiva indígena. Em seu livro intitulado História dos índios no Brasil, publicado em 1992, a autora sistematizou um campo de estudos e reflexões das pesquisas realizadas sobre os Índios no Brasil, tecendo críticas à matriz europeia, comumente responsável pelo engendramento das relações sociais, econômicas e culturais existentes no Brasil.
A percepção de uma política e de uma consciência histórica em que os índios são sujeitos e não apenas vítimas só é nova eventualmente para nós. Para os índios, ela parece ser costumeira. É significativo que dois eventos fundamentais — a gênese do homem branco e a iniciativa do contato — sejam frequentemente apreendidos nas sociedades indígenas como o produto de sua própria ação ou vontade. (CUNHA, 1992, p. 24).
Esta autora não foi a primeira a chamar a atenção para uma história na perspectiva indígena, na qual estes sejam percebidos como agentes históricos, porém seu trabalho, na década de 1990, apontou de modo expresso, a urgência de redimensionar a consciência histórica que reduziu os índios ao papel de vítima e passivo em detrimento das ações do homem branco na sociedade brasileira, e para isso, as Instituições Escolares possuem um papel significativo para a mudança deste paradigma.
Nesse sentido, cabe destacar o livro intitulado A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus, organizado por Aracy Lopes da Silva e Luís Donizete Benzi Grupioni, ainda na vigência da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) n° 5.692/1971. Esta obra contou com a contribuição de especialistas sobre a questão indígena de diferentes universidades, entre eles, Manuela Carneiro da Cunha, Lux B. Vidal e John Manuel Monteiro.
Este livro tem como escopo dar uma resposta ao preconizado na Constituição Federal de 1988, que assegura aos índios o direito de manter as suas culturas e institui como dever do Estado, a tarefa de proteger estes grupos. Assim, esta obra proporcionou aos docentes da Educação Básica, a possibilidade de conhecer diversas sociedades indígenas que habitavam e habitam o Brasil, além de questionar visões equivocadas e generalizadas sobre os povos indígenas. Essa foi uma produção voltada para os docentes das Escolas brasileiras, em parceria com o Ministério da Educação e Desporto, grupo de Estudo indígena/USP e da UNESCO, a fim de pensar o protagonismo indígena por meio da Educação Escolar.
Em 1996, Luís Donisete Benzi Grupioni fez uma análise a respeito dos livros Didáticos de Estudos Sociais para alunos de 1° a 4° série, utilizados nos anos de 1991 e apresentados pelo Ministério da Educação e Desporto5. Esta obra situa-se como a primeira busca de análise sobre a forma que os povos indígenas são concebidos nos Livros Didáticos.
O objetivo deste autor foi analisar o modo como a imagem dos índios estava sendo veiculada nestes manuais didáticos. Segundo Grupione, os Livros Didáticos analisados nessa pesquisa evidenciaram um conteúdo empobrecido, em grande medida equivocados no que diz respeito aos povos indígenas. Assim, estes conteúdos são marcados por generalizações que desaguam em estereótipos, preconceitos e discriminação.
Este autor chama a atenção para o descompasso entre o que é produzido sobre os índios, em nível acadêmico, e o que chega aos conteúdos escolares.
O ponto de partida é que, apesar da produção e da acumulação de um conhecimento considerável sobre as sociedades indígenas brasileiras, tal conhecimento ainda não logrou ultrapassar os muros da academia e o círculo restrito dos especialistas.
Nas Escolas, a questão das sociedades indígenas, frequentemente ignorada nos programas curriculares, tem sido sistematicamente mal trabalhada. Dentro da sala de aula, os professores revelam-se mal informados sobre o assunto, e os livros didáticos, com poucas exceções, são deficientes no tratamento da diversidade étnica e cultural existente no Brasil. (GRUPIONE, 1996, p. 424).
Para o autor, apesar da crescente produção acadêmica e de materiais produzidos por organizações não governamentais a fim de informar sobre a diversidade dos povos indígenas, o que se percebeu é que esse conhecimento não tem impactado significantemente os Livros Didáticos e, concomitantemente, a apreensão que os discentes têm sobre os povos indígenas. Desta forma, o índio genérico e estereotipado, que fica preso no passado, são as tônicas das imagens e conteúdos disseminados nos manuais didáticos pesquisados.
Nos anos 2000, Teresinha Silva de Oliveira, em 2003, apontou – com base em Hall, Said e Albuquerque – a forma como foi instituída a diferenças através da constituição de marcas que limitam o lugar do que é normal e estranho, assim os discursos presentes, na cinematografia, música, política e nas literaturas, fomentam a construção de “um povo exótico”.
Para a autora, a busca da redução6 cultural dos povos africanos e indígenas consistiu na naturalização da diferença. Os livros didáticos de ciências7 são elucidativos da marcação da diferença dos povos indígenas, porque “a visão de ciências é de um campo discursivo rico no sentido de instituir verdades e produzir subjetividades dificilmente contestadas” (OLIVEIRA, 2003 p. 29).
As diferenças se materializam através das representações que estes livros aludiram aos povos indígenas, nos quais são destacadas as vestimentas, moradias e as formas como obtêm recursos para sua sobrevivência. Segundo Oliveira:
Essas representações tendem a universalizar atributos do tipo: Índios usam arco e flecha; moram em ocas; furam o corpo para colocar objetos “estranhos”, como ossos e pedaços de madeira, considerados enfeites; andam nus (ou seminus), enfim, são diferentes de “nós” (OLIVEIRA, 2006, p. 29).
As marcas das diferenças não se esgotam com as análises fenotípicas; os índios também foram representados, nessa obra, como a extensão da natureza, seres dotados de conhecimentos tais como prever fenômenos climáticos, ler a natureza, etc. Colocando-os na condição de sujeitos que possuem características e habilidades inatas e exclusivas. Essa literatura didática expôs, também, uma relação entre identidade pessoal ou coletiva com os artefatos usados, de forma que os mesmos sejam concebidos como essenciais a todos os povos indígenas indistintamente.
Portanto, a análise da autora aponta que as diferenças marcaram a sociedade envolvente pela hierarquia e assimetria, criando assim, a ideia de inferioridade para os sujeitos que praticam atividades, sociais e culturais diferentes. Sendo assim, essa diferença não foi produzida inocentemente, aleatoriamente, mas foi instituída para marcar estereótipos e o lugar dos povos indígenas na sociedade, atribuindo-lhes o papel de inferiores na sociedade brasileira.
Mauro Cezar Coelho, buscou discutir a presença dos povos indígenas na literatura didática8. Porém, sua contribuição diz respeito à reflexão entre o que é abordado no Livro Didático e nas produções acadêmicas. Na literatura didática, o autor evidenciou duas matrizes, uma é a cultura histórica e a outra é o saber escolar, ambas contribuíram à formação e a reprodução relativa ao conhecimento sobre o passado brasileiro, o qual às populações indígenas coube o papel de vítima.
O autor tratou do início da utilização dos povos indígenas como indivíduos construtores da cultura e da história brasileira. O Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) foi importante nesse sentido, porque foi com ele que os índios “apareceram na história do Brasil”. Coelho destacou a importância do IHGB, o qual formulou reflexões sobre a história do Brasil mesclando ideias Iluministas e Românticas, ou seja, as formulações sobre a história do Brasil tiveram matrizes europeias, segundo Coelho:
Na narrativa Romântica, o lugar das populações indígenas seria, justamente, o de anularem-se em favor daqueles que representavam a civilização – os europeus. Na busca por um símbolo nacional, um herói que reunisse os valores da nação nascente, o Romantismo acabou por suprimir dele uma de suas características mais importantes, a independência, e, ao fazê-lo, proferiu um veredicto involuntário: tornou-o um herói sem vontade. (COELHO, 2007, P.2).
Conforme as ideias do autor, as narrativas históricas em que esses personagens estão inseridos os colocaram na situação de servir aos propósitos de civilização europeia, ou seja, confiscaram dos povos indígenas os valores de liberdade e independência que norteiam suas atividades, levando esses povos à categoria de heróis nacionais. Essas narrativas escamotearam outra característica dos povos indígenas; a de lutar pelos interesses intrínsecos à sua comunidade, em detrimento de lutas por interesses de uma nação que não os representavam a fim de elevar o Brasil ao progresso aos moldes europeus.
Ainda de acordo com o autor, os livros didáticos continuaram reféns da ideia sobre os indígenas adotada pelo IHGB. Isto se deve, em grande parte, à necessidade da garantia do saber escolar. Saber escolar na concepção de Coelho é um saber produzido e trabalhado a fim de consolidar o processo de cognição em crianças e adolescentes na Educação Básica, diferentemente do saber acadêmico, o saber escolar não visa produzir ciência e sim cognição, todavia, tendo o conhecimento acadêmico como pilar.
Assim sendo, entende-se que as produções acadêmicas, que se dispuseram a tratar a temática indígena na Educação Básica, anteriores à Lei n° 11.645/2008 aludem para a necessidade de mudar a perspectiva, historicamente construída, sobre os povos indígenas. Nesse sentido, os povos originários foram representados em recursos pedagógicos, tais como o Livro Didático, pautados na perspectiva europeia atribuindo, propositalmente, aos povos indígenas, a passividade, a homogeneidade e a inferioridade. Também, observou-se a necessidade da interação entre o Conhecimento Escolar e o Conhecimento Acadêmico para subverter a forma como os povos indígenas ficaram concebidos na sociedade envolvente.
Portanto, a forma como o ensino sobre os povos indígenas se dava nas escolas, anteriormente à Lei n°11.645/2008, já era apontado por especialistas na área da História indígena como uma questão a ser repensada, a fim de que os currículos escolares os concebessem a partir de sua diversidade e riqueza cultural, reconhecendo sua importância na conformação da sociedade brasileira.
Essas foram algumas reflexões sobre a temática indígena antes da promulgação da Lei n° 11.645/2008. Vale lembrar que aqui não se esgota a relação de estudiosos que pensaram essa temática antes do referido dispositivo legal, porém, as análises dos autores aqui citados, sintetizam a necessidade de se repensar os currículos escolares de forma a conceber a importância, o respeito e a valorização aos povos indígenas a partir de um direito subjetivo e um elemento fundamental para a construção da cidadania; a Educação Básica. Assim, na segunda parte desse artigo vamos discutir as produções acadêmicas realizadas após a promulgação da referida Lei.
Desdobramento da Lei nº 11.645/2008: o que sem tem pesquisado sobre a temática indígena.
No dia 10 de março de 2008, foi sancionada pelo presidente da República, a Lei n° 11.645/2008, o qual redimensiona o artigo 26-A da LDB vigente, tornando obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos de Ensino Público e Privado, que ofertam o Ensino Fundamental e Médio. Sendo assim, conforme a LDB “os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o Currículo Escolar, em especial nas Áreas da Educação Artística, da Literatura e História Brasileira”.
Desde então, o número de trabalhos acadêmicos sobre a Lei vem crescendo significativamente. Desta forma, será abordada a perspectiva de autores que pensam os desafios lançados pela Lei nº 11.645/2008, sem pretender esgotar ou desconsiderar outras discussões sobre a importância desta temática.
Em 2012, com apoio da UNESCO (Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas) e do CNE (Conselho Nacional de Educação), foi realizada uma pesquisa sobre o desenvolvimento da temática indígena nos cursos de licenciatura de Instituições Públicas e Privadas de Ensino Superior, tendo como primícias levantamentos e sistematizações de informações, documentos, publicações sobre a inclusão da temática “história e cultura dos povos indígenas” no Currículo Oficial dos Sistemas de Ensino.
Essa pesquisa tem relevância neste artigo, porque foi a primeira pesquisa, após a promulgação da Lei n° 11.645/2008, a dar conta, no âmbito nacional, da forma como os cursos de licenciatura das Instituições de Ensino Superior Público e Privado estão desenvolvendo a temática indígena, já que esta temática se torna indispensável, nos cursos de formação inicial docente, para a consubstanciação da Lei na Educação Básica.
Nesse estudo, os cursos analisados foram os cursos de graduação em História, Geografia, Artes Visuais, Pedagogia e Letras/Português. A autora justifica a análise desses cursos por entender que são portas de entrada para a compreensão do seu universo cultural, além de promover conhecimento que proporcione a mudança que privilegia uma visão diferenciada da naturalização e homogeneização das distintas culturas indígenas.
Como resultado observou-se um quantitativo ínfimo de instituições de ensino Superior que efetivam a Lei n° 11.645/2008. Verificou-se também que as IES (Instituições de Ensino Superior) que buscam trabalhar com a temática indígena realizam atividades inócuas em relação à legislação.
Algumas justificativas alegadas pela IES são: a falta de clareza do texto da Lei em não especificar essa obrigatoriedade nos conteúdos dos cursos de graduação, já que se remete à Educação Básica; a falta de comunicação com o movimento e as comunidades indígenas. Sobretudo, o que mais preocupou nessa pesquisa foi a constatação da falta de informação sobre a referida Lei, haja vista, que poucas instituições possuíam áreas de pesquisa ou pesquisadores sobre a História Indígena, Indigenismo, Etnologia Indígena ou Etno-História.
No ano de 2013, Mauro Cezar Coelho e Wilma de Nazaré Baía Coelho, com o trabalho intitulado A lei n° 10.639/03 e consciência histórica: ensino de História e os desafios da Diversidade, discutiram as Leis n° 10.639/2003 e 11.645/2008, na perspectiva do redimensionamento da memória histórica, que atribui aos povos indígenas e africanos um papel alegórico e coadjuvante na formação do país.
Segundo os autores, as referidas Leis possuem desafios que não podem ser negligenciados, entre eles a mudança de paradigmas da educação ofertada pelo Estado. Assim, um dos desdobramentos fundamentais à materialização de ações que concorram para a efetivação de uma educação voltada para as relações Étnico-raciais é a modificação nos Currículos Escolares no sentido de atribuir para a África e a América, anteriores à conquista, a mesma importância dada à Europa.
Portanto, para Mauro Coelho e Wilma Coelho, o redimensionamento da memória Histórica é fulcral para a conformação de noções de pertencimento, estabelecendo formas de identificação entre os agentes sociais.
Edson Silva, em 2015, faz uma avaliação das ações para a efetivação da referida Lei, apontando desafios e impasses para sua implementação. Este autor analisa diversos campos que estão relacionados com este marco legal, como a Formação de Professores, as Instituições de Ensino Superior e os Órgãos Públicos na área da Educação.
Silva apontou algumas controversas sobre a promulgação da Lei n° 11.645/2008, pois tacitamente, tornou obrigatória a inclusão da temática nos cursos de formação de professores. Segundo o autor nota-se que erroneamente os cursos de licenciatura vêm adotando “cadeiras nomeadas de educação indígena, quando na realidade, o correto seria a criação de cadeira sobre o ensino da temática indígena” (SILVA, 2015, P 5). Nas instituições impera um racismo que se manifesta em diferentes níveis ligados a questões ideológicas, para o autor o grande desafio, após a promulgação da Lei é superar as imagens estereotipadas sobre os índios que os folclorizam.
Desta forma, Silva entende que a Educação Básica tem parte nas equivocadas concepções criadas e reproduzidas na sociedade sobre os índios.
A escola é uma das instituições responsáveis pela veiculação de muitas ideias, imagens e informações equivocadas a respeito dos índios no Brasil. Ainda é comum na maioria das escolas, principalmente no universo da Educação Infantil, que no dia 19 de abril, quando se comemora o Dia do Índio, em todos os anos vir se repetindo as mesmas práticas: enfeitam as crianças, pintam seus rostos, confeccionam penas de cartolina e as colocam nas suas cabeças. (SILVA, 2015, p. 7).
Para Silva, o enfrentamento deste problema perpassa por dois desafios, o primeiro é a inclusão da temática indígena nos cursos de formação inicial, nos cursos de licenciatura, e formação continuada para os docentes atuantes ativamente em sala de aula. Além disso, outros avanços podem ser contabilizados, tais como; aumento de publicações sobre a temática indígena e oferta de cursos de formação aos profissionais da educação.
José Ferreira dos Santos- Casé Angatú – discute os desafios enfrentados pelas Escolas brasileiras para a aplicação da Lei n° 11.645/2008. O autor questiona as interpretações que assinalam a presença dos povos originários do Brasil, que é a partir da chegada dos europeus. Isso se observa especialmente nas ações docentes ao lecionar sobre as vivências passadas e presentes dos povos indígenas.
Utilizando as contribuições de Manuela Carneiro da Cunha, o autor discute o modo como o Brasil foi simbolicamente criado, no qual a história deste lugar começa com o descobrimento marcando a “entrada de serviço dos gentios no grande curso da história” (CUNHA, 1992, p. 9), o autor entende que a efetivação da Lei n°11.645/2008 alcançará êxito com o diálogo entre cultura indígena e ensino de História, assim como a produção acadêmica com o saber das tradições dos povos originários presentes na linguagem indígenas atuais, “Diálogo esse capaz de enfrentar o descompasso entre as histórias escritas e lecionadas e as linguagens indígenas portadoras de memórias que consideramos fundamentais para a aplicação da Lei nº 11.645/2008” (SANTOS, 2015, p. 184).
O protagonismo indígena é indispensável para subverter o quadro que os colocam na condição de subserviente da sociedade envolvente. Deste modo o autor esclarece a luta pelas conquistas de seus direitos:
Acreditamos que os avanços notados na Constituição de 1988 e a Lei 11.645/2008, bem como nas novas abordagens teóricas sobre os Povos Originários, foram frutos das mobilizações e ações do Movimento Indígena Brasileiro. Indígenas que, por vezes, pagaram até mesmo com a vida ao lutarem por seus direitos, a exemplo do Cacique Xicão Xukuru (morto no dia 20 de maio de 1998 a mando de fazendeiros descontentes com a sua luta para a demarcação do território de seu povo) e de Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe (queimado vivo, em abril de 1997, quando estava em Brasília lutando pela nulidade de títulos emitidos em terras Pataxó a favor de não indígenas), entre outros indígenas que ainda continuam sendo mortos. (SANTOS, 2015. p. 186).
Assim, para o autor a trajetória contemporânea dos povos indígenas, bem como os direitos conquistados pelos seus movimentos pode indicar caminhos para abordar Histórias e Culturas indígenas no ensino.
Kelly Russo e Mariana Paladino elaboraram em 2016 uma pesquisa sobre a representação dos Professores da Rede Municipal e Estadual do Rio de Janeiro no que concerne o ensino sobre a realidade dos povos indígenas. Nas escolas pesquisadas, observou-se o modo pontual que a temática indígena era trabalhada, resultante da iniciativa de professores sensíveis à causa e planejamento escolar. Um dado indispensável desta pesquisa é que as Escolas que manifestaram interesse em efetivar a Lei, possuíam formação continuada em relações étnico-raciais, todavia, suas práticas de ensino tiveram limites em função de questões institucionais, tais como falta de apoio, falta de material didático, limitações de tempo e espaço, para desenvolver atividades dos quais tinham planejado.
Desta forma, as práticas pedagógicas observadas concorriam para abordagem generalizante sobre os povos indígenas sem aprofundamento na diversidade desses povos e nas especificidades dos distintos grupos indígenas.
A forma de abordagem sobre os índios tem como marca o passado, dando a impressão que suas atividades, agendas e lutas não fazem parte do presente. Os problemas relacionados com a falta de ações exitosas, no que tange a Lei, têm vínculo com a falta de discussão sobre a temática das relações étnico-raciais na formação inicial. Segundo as autoras:
A maioria dos docentes afirmou que seus cursos de formação inicial não abordava a temática indígena ou, quando o fazia, era de forma muito pontual e limitada. Sendo assim, é lógico supor que suas práticas refletissem essa ausência em sua formação. Por não terem sido apresentados a informações mais contextualizadas e atualizadas sobre os povos indígenas brasileiros, vários confessavam ir pelo caminho mais fácil: buscar na internet exercícios prontos, ou utilizar notícias que dificilmente apresentavam um material mais aprofundado (RUSSO; PALADINO, 2016, p. 915).
Russo e Paladino entendem que um caminho possível para práticas escolares que considerem a importância dos povos indígenas é priorizar a formação inicial e continuada nos cursos de licenciatura, pois os docentes, ali formados, são agentes transformadores e formadores de consciência crítica das futuras gerações.
Cintia Regina Rodrigues reflete sobre os desdobramentos da Lei nº 11.645/2008 na prática escolar, esta autora entende que a promulgação deste marco legal, significa um passo importante para o reconhecimento da diversidade que forma a sociedade brasileira.
A crítica elaborada por Rodrigues remete-se à necessidade de regulamentação de normas e diretrizes para o desenvolvimento de ações concretas que viabilizem diálogos em torno da formação multiétnica no Brasil. Tais medidas poderiam ser concretizadas das seguintes formas:
a criação de disciplinas específicas que tratam da temática nas universidades, bem como a abertura de concursos de História dos Povos Nativos, contribuindo também para o debate em torno da alteridade étnica no país. Assim, todos os cursos de formação de professores (licenciaturas) deveriam de fato atender a demanda criada pela Lei citada acima, não apenas os cursos de História. Ainda temos que refletir sobre as grades curriculares das universidades e das próprias escolas, que muitas vezes privilegiam em demasia temas eurocêntricos em detrimento de outros assuntos também estão presentes na vivência cotidiana dos alunos. (RODRIGUES, 2017, p. 7).
Segundo a autora, na atualidade, percebe-se inciativas para a efetivação do cumprimento da Lei, porém essas ações esbarram nas questões apontadas acima. Rodrigues afirma que a organização de cursos de licenciaturas de História Indígena – juntamente com a política de reservas de vagas destinadas aos índios – é significativa, pois fomenta o acesso dos povos indígenas ao Ensino Superior.
Os cursos de formação continuada têm sua relevância para a apreensão e produção de novos conhecimentos que tange a diversidade cultural do Brasil. Assim, “a Lei n°11.645/2008 instiga a formação continuada de professores, tendo o objetivo de proporcionar a instrumentalização necessária no que diz respeito às novas abordagens sobre a História dos povos nativos do Brasil” (RODRIGUES, 2017, p. 9).
Logo, ao analisar essas produções acadêmicas impulsionadas pela criação da Lei 11.645/2008, percebe-se que os autores apontaram caminhos possíveis para a efetivação dos pressupostos legais relacionados à diversidade na Educação. O redimensionamento da memória histórica, a fim de atribuir a história africana e indígena a mesma importância dada ao europeu, o uso da literatura e a alusão do protagonismo indígena na atualidade, são caminhos pertinentes para mudar a lógica eurocêntrica, ainda marcante nas Grades Curriculares da Educação Básica e do Ensino Superior.
Contudo, a realidade dos cursos de formação inicial e a insipiente formação continuada voltada para as relações étnico-raciais configuram-se como fatores estruturantes que inviabilizam práticas pedagógicas propositivas e positivas sobre a temática indígena.
Conclusão
Em relação ao que foi produzido antes e após a promulgação da Lei n° 11.645/2008 percebe-se rupturas e continuidades sobre a forma como os povos indígenas são trabalhados e representados no âmbito escolar.
No que tange aos aspectos contínuos, o estado da arte revela que as referências aos povos indígenas, nas escolas, são marcadas pela concepção da homogeneização, estereótipos e do aprisionamento ao passado. A despeito das mudanças promovidas por dispositivos legais e pelas agências dos movimentos sociais em favor de uma educação voltada à valorização da diversidade, ainda são comuns nas práticas pedagógicas, atribuir ao europeu o protagonismo na formação nacional. Os Livros Didáticos, portanto, são elucidativos dessa atribuição, pois destinam parte significativa dos conteúdos à Europa. Segundo Coelho e Coelho a Europa é concebida como “O paradigma e epicentro de nossa história e como nossa herança mais importante” (COELHO e COELHO, 2013, p. 3), caracterizando, assim, os povos indígenas como coadjuvante no processo da formação nacional.
Todavia, é inegável que após a promulgação de dispositivos legais como a Lei nº 10.639/2003, modificada pela Lei nº 11.645/ 2008, mudanças significativas concorreram para subverter essa assimetria. Nesse sentido, os cursos de formação inicial para licenciatura, mesmo que em passos lentos, vem modificando a abordagem sobre a temática indígena, cabe ressaltar a importância da organização de cursos de licenciaturas de História Indígena e das políticas que fomentam reservas de vagas aos índios nas Universidades, o que promove acessibilidade e campo de luta para as agências indígenas.
As produções acadêmicas posteriores à Lei nº 11.645/2008 trouxeram uma nova lógica, em relação às produções anteriores; a substituição da diagnose pela prescrição de ações pedagógicas pertinentes a esse pressuposto legal. Logo, incentivo à formação continuada, mudanças de paradigmas na perspectiva histórica escolar e acadêmica, trabalho conciso com a literatura didática e a alusão ao protagonismo indígena tanto no passado como no presente, conformam ações que podem subverter o quadro de insipientes práticas pedagógicas voltadas para a valorização da história e cultura indígena.
Por fim, considera-se que após 10 anos da promulgação da Lei nº 11.645/2008, o estágio que deve ser alcançado é de ações práticas planejadas, propositivas e positivas no trato com a diversidade, para isso é indispensável o fim das fragmentações das políticas públicas e as desarticulações das instituições responsáveis sendo pertinente a necessidade do estreitamento das relações entre as Universidades e a Educação Básica. Além disso, é imperativo investimento que impulsione cursos de formação continuada relacionados diretamente com a prática profissional de docentes da Educação Básica, no qual possibilite, no dizer de Coelho e Coelho “reflexão sobre o exercício profissional e viabilize a formulação de estratégias que garantam a melhoria das condições de oferta da Educação, em todos os níveis”. (COELHO, COELHO. 2015 p. 24).
5Segundo Grupione, o grupo de trabalho do MEC elegeu um conjunto de critérios e procedeu a uma análise dos livros mais solicitados em 1991.
6Na perspectiva de Stuart Hall, redução consiste em uma representação estratégica destinada a fixar a ‘diferença’ e assim garanti-la para sempre. Lê: HALL, Stuart, (1997a). The work of representation. In: (org.). Representation: cultural representations and signifying practices. London: Thousand Oaks/New Delhi: Sage/Open University. P. 2-73.
7Os livros analisados pela autora foram: BLINDER, David; SCHALCH, Juvenal; ALVIM, Olavo; GRASSILEONARDI, Teresa Cristina; (1992). Ciência e realidade. Física e Química. 8ª série. São Paulo: Atual. MARSICO, Maria Teresa; CUNHA, Maria do Carmo; ANTUNES, Maria Elizabeth; CARVALHO NETO, Armando, (1997). Ciências. 1ª série, 1º Grau. São Paulo: Scipione. OLIVEIRA, Nyelda R. de, WYKROTA, Jordelina L., (1991). Descobrindo o ambiente, v. 2. Belo Horizonte: Formato.
8 Coelho levou em consideração, para sua pesquisa livros didáticos, de quinta e sexta série, presente nas Escolas Pública e Particulares do Município de Belém, no Estado do Pará, nos anos de 1992 a 2005, no qual passaram por processo de avaliação, instituídas pelo PNLD.
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¹Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica/UFPA. Professor do Instituto Federal do Pará;
²Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica/UFPA. Professora efetiva de História, na Secretaria da Educação do Estado do Tocantins – SEDUC/TO;
³Especialista em Educação para as Relações Étnico-Raciais (UFPA). Orientadora educacional na Secretaria da Educação do Estado do Tocantins – SEDUC/TO;
⁴Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação Profissional e Tecnológica pelo Instituto Federal do Ceará. Professora do Instituto Federal do Pará.