O DIREITO PENAL SIMBÓLICO À LUZ DE UMA ANÁLISE DO MEDO E DA INSEGURANÇA NA MODERNIDADE LÍQUIDA
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202401081633
Deise Cariani Carmona1
Paula Zambelli Salgado Brasil2
Resumo
Este artigo analisa os efeitos do medo e da insegurança no Direito Penal em sociedades pós-modernas, à luz da teoria da liquidez de Zygmunt Bauman. Discursos políticos demagógicos, reforçados por alarde midiático, alimentam a percepção equivocada de que leis penais mais severas e novas normas incriminadoras são soluções eficazes para a violência e a criminalidade. Propostas punitivistas têm recebido amplo apoio social, embora o endurecimento legal demonstre ineficácia na mitigação desses problemas. O estudo examina como o avanço de um Direito Penal simbólico não apenas gera insatisfação social, mas também atende a interesses específicos, perpetuando um sistema seletivo que penaliza desproporcionalmente grupos vulneráveis. Por meio de uma revisão bibliográfica nacional e internacional, o artigo aplica as formulações de Bauman aos simbolismos exercidos pelo Direito Penal, em que as funções e os papeis da ultima ratio penal são distorcidos por demandas sociais e dinâmicas punitivistas.
Palavras-chave: medo, insegurança, modernidade líquida, Direito Penal simbólico.
Abstract
This article examines the effects of fear and insecurity on Criminal Law in postmodern societies, through the lens of Zygmunt Bauman’s theory of liquidity. Demagogic political rhetoric, amplified by media sensationalism, fosters the misguided perception that harsher criminal laws and new incriminating norms are effective solutions to violence and crime. Punitive proposals have garnered significant social support, despite the apparent ineffectiveness of stricter legislation in addressing these issues. The study explores how the rise of symbolic Criminal Law not only generates social DISSATISFACTION but also serves specific interests, perpetuating a selective system that disproportionately penalizes vulnerable groups. Through a comprehensive national and international literature review, the article applies Bauman’s formulations to the symbolisms exercised by Criminal Law, wherein the functions and roles of the ultima ratio’s penal law are distorted by social demands and punitive dynamics.
Keywords: fear, insecurity, liquid modernity, symbolic criminal law.
Introdução
Zygmunt Bauman (1927-2017) foi um dos maiores pensadores de nosso tempo.
Sociólogo, filósofo, professor e escritor, Bauman ostentou uma das vozes mais críticas da sociedade contemporânea. Ele cunhou a expressão “modernidade líquida” para classificar a fluidez do mundo onde os indivíduos não possuem mais padrão de referência.
O presente trabalho buscou ideias de Bauman em algumas de suas obras (que são inúmeras), como Modernidade Líquida, Medo Líquido e Confiança e medo na cidade.
Bauman entendeu que os conceitos de fluidez e liquidez são metáforas hábeis à compreensão da natureza da pós-modernidade. O “derretimento dos sólidos” é um traço marcante da pós-modernidade. É nesta época em que toda a fixidez e todos os referenciais morais da época anterior (modernidade sólida) dão espaço à lógica do agora, do imediatismo, do consumismo.
O autor estudou com afinco as questões do medo e da insegurança na sociedade pós- moderna, salientando quais seriam os cenários mais assustadores nesse sentido para os indivíduos.
O presente trabalho busca examinar a modernidade líquida e seus efeitos na esfera do Direito Penal.
Indubitavelmente a violência e a criminalidade crescentes por todo o planeta despertam na sociedade sentimentos de medo e insegurança. Entretanto, seriam o medo e a sensação de risco avaliados racionalmente? Seriam de dimensão real tais sentimentos que transformam radicalmente a vida das pessoas? Ou as informações que chegam até os indivíduos são previamente modificadas, manipuladas?
A verdade é que a manipulação estatal e midiática do medo e da insegurança, assim como os discursos populistas e com finalidades eleitoreiras nesse tema, parecem, de fato, uma realidade terrível que contribui para gerar na sociedade um falso sentimento de que leis penais mais severas e o advento de novas normas penais incriminadoras são a solução para tais questões. Assim é que a sociedade passa a adotar uma ideologia punitivista que, no entanto, não se mostra profícua enquanto proposta para diminuição da violência e da criminalidade.
O medo e a insegurança, então, auxiliam na proliferação de um Direito Penal simbólico que não conduz a resultados positivos. Ao revés, inflige seu mal aos grupos mais vulneráveis da sociedade, aqueles indivíduos considerados invisíveis (ou supérfluos, como os chamou Bauman). Com isso, os grupos frágeis é que suportam o peso do sistema penal seletivo.
1 Considerações iniciais sobre a modernidade líquida
Zygmunt Bauman foi um autor bastante questionador quanto ao mundo contemporâneo.
Em sua obra Modernidade Líquida (2000), Bauman criou a expressão que a intitula com o objetivo de indicar a fluidez presente no mundo atual e no qual padrões de referência deixaram de guiar os indivíduos. Essa perspectiva se opõe à da era moderna que o autor chamou de “modernidade sólida”.
Sob o prisma da era moderna ou modernidade sólida, os conceitos, ideias e estruturas sociais eram tidos como mais rígidos, estáveis e passíveis de previsão. Para Bauman (2001), a modernidade sólida era um tempo de certezas e de estabilidade social manifestadas e traduzidas por valores como religião, família, nacionalidade e ideologia política. Os empregos e profissões eram consolidados e duradouros, família e relacionamentos eram evidenciados pela fixidez e constância. Nesse contexto, a segurança constituía elemento importante a embasar a vida dos seres humanos.
Bauman (2001) referiu-se à modernidade sólida como sendo uma época de revoluções e ocorrências seguidas já a partir do século XV, quando profundas mudanças surgiram e construíram uma realidade fundamentada em padrões de longa duração. Referido processo transformador perdurou por longo período. Nesse sentido, existem divergências quanto a sua demarcação específica no tempo. Diferentes eventos na história da humanidade podem indicar momentos cruciais ou suas características mais definidoras, como por exemplo a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.
Segundo Bauman (2001), a era moderna desenvolveu-se ao mesmo tempo em que aniquilou padrões e modos de vida conexos à Idade Média, enquanto dava origem a outros referenciais que se compatibilizavam com o capitalismo em desenvolvimento. De acordo com Larissa Pascutti de Oliveira (Oliveira, 2012), as concepções aceitas e impostas até então passaram a ser questionadas. Os pensadores antes repreendidos e condenados por contestação às ideias advindas do poder preponderante e da Igreja Católica começaram a receber acolhida. Nesse momento, Bauman viu um processo de dissolução dos antigos sólidos para a construção de novos sólidos, agora mais aperfeiçoados, mais duradouros e condizentes com o que se pensava ser uma nova verdade. O homem não seria mais dominado pela natureza, mas, ao revés, estaria investido de poder para dominá-la, conforme suas conveniências. Esse foi um imenso avanço percorrido pelos indivíduos na modernidade sólida e que contribuiu para que pudessem alcançar um lugar de grande importância nos governos e sobre os rumos do mundo, inclusive na promoção da ordem e da segurança (Oliveira, 2012).
Através do domínio da razão e da ciência, o homem observou que poderia gerar lucros incomensuráveis. O homem racional, em regra, não faria escolhas erradas e nele a modernidade depositava confiança e esperança, as quais antes eram direcionadas à religião e à magia (Oliveira, 2012).
A verdade é que a revolução industrial assentou efetivamente a modernidade sólida descrita por Bauman ao introduzir as poderosas indústrias e fábricas no mundo. Bauman (2001) exemplifica a concretização da modernidade sólida através do modelo de fábrica fordista, grandiosa, e que reunia o capital e o trabalho com objetivos de alcançar uma solidez a ser preservada no futuro e sem imprevisibilidades.
Em suma, a modernidade foi impulsionada pelos ideais de trabalho e progresso para que se pudesse alcançar um futuro sólido e perfeito, no qual não houvesse o desconforto de fatos não previsíveis (Bittencourt, 2011).
No entanto, de acordo com Bauman, o quadro da solidez iniciou um processo de transformações consideráveis com o advento da Segunda Guerra Mundial, ganhando dimensões mais claras nas décadas de 1960 e seguintes. Ao novo cenário que se delineou, Bauman atribuiu o título de “modernidade líquida” (Bauman, 2001).
É importante registrar que a visão de Bauman acerca das modernidades sólida e líquida não propôs uma classificação e uma divisão entre os períodos de forma rígida. Tratou-se de percurso de investigação e interpretação com o objetivo de compreender um modo de vida atual que se originou num contexto anterior. Como se faz comum em qualquer processo histórico, os períodos de transição e mudanças entre modernidade sólida e líquida se entrelaçaram até que os elementos de liquidez se impusessem de modo claro e hegemônico. Todavia, apesar da presença de características pós-modernas (como o progresso eletrônico, por exemplo), nas décadas de 60, 70 e 80 ainda se mostravam presentes referenciais bem sólidos. A pós-modernidade ou modernidade líquida, como Bauman a descreveu e como atualmente é percebida de forma global, galgou patamares sequenciais e permanece em constante, quotidiana e rápida alteração, como, aliás, é de se esperar de uma época abarcada pela fluidez.
Fato é que, a partir do momento em que a modernidade sólida se transformou, um novo sistema se estabeleceu para se adaptar à fluidez da sociedade cunhada por elementos de competitividade, imprevisibilidade e incertezas. Aqueles antigos referenciais ganharam liquidez e se desfizeram (Bauman, 2001).
A expressão “modernidade líquida” indica uma realidade flutuante, multiforme, segundo a qual “tudo o que é sólido se desmancha no ar”, conforme propôs a conhecida expressão do manifesto comunista3. Através dessa ideia, Bauman (2001) objetivou demonstrar que a realidade no mundo contemporâneo seria volátil, dotada de fluidez. Assim, toda a fixidez e todos os referenciais morais da época anterior (modernidade sólida) deram espaço à lógica do momento presente e tudo que ele é capaz de oferecer rapidamente. E esta é uma era em que os referenciais antes enraizados são liquefeitos e, assim, perdidos.
No mundo líquido, as relações econômicas estão sobrepostas às relações sociais e humanas e disso resulta uma fragilidade dos laços entre as pessoas e entre estas e as instituições.
O consumismo alcançou supremacia sobre as questões ligadas à ética e à moral, dando ensejo à cultura do “ter” em prejuízo da cultura do “ser”. Mais ainda, a ideia do consumo penetrou os laços sociais, de sorte que os indivíduos passaram também a consumir e a “comprar relacionamentos”.
Consumir tornou-se praticamente obrigatório na modernidade líquida. O consumo desenfreado de uma infinidade de produtos, serviços e marcas assumiu condição de verdadeiro status social; o indivíduo passou a ser mais respeitado pelo que possui do que pelo que é enquanto ser humano.
O trabalho do ser humano se transformou num projeto bem sucedido ou mal sucedido, mas seus resultados sempre são atribuídos à responsabilidade individual. A lógica da modernidade líquida conduz à responsabilidade integralmente individual.
A modernidade líquida acompanha com flexibilidade a moda, pensamento da atualidade, ciência, a educação, as relações humanas, enfim, tudo o que estiver relacionado com o ser humano e a sociedade. Os relacionamentos humanos (relacionamentos de amizade, sexuais e amorosos) na modernidade líquida se transformaram em meras conexões que podem ser estabelecidas através de redes sociais e outros contatos virtuais. Com a liquidez, os indivíduos estão em busca de relações que tragam satisfação rápida e que não demandem dificuldades, razão pela qual os laços criados resultam superficialidade e banalidade, podendo se desfazer facilmente.
Bauman (2001) aponta para o fato de as pessoas na modernidade líquida desejarem cada vez mais a ampliação de seus números de conexões, sobretudo em suas redes sociais, apenas por razões exibicionistas, tudo com foco na obtenção de admiração pública.
Em suma, através da metáfora da liquefação, Bauman (2001) refere-se ao esgarçamento do tecido social e ao quanto isso resulta para os relacionamentos humanos. Segundo o autor, a solidez das instituições sociais, (do estado de bem-estar, da família, das relações de trabalho, entre outras) perdeu espaço de maneira cada vez mais acelerada, para o fenômeno de liquefação. A concretude dos sólidos e firmes derreteu-se irreversivelmente, assumindo a condição da amorfabilidade (sem forma) do estado líquido.
A liquefação impôs uma era de desapego e provisoriedade, acentuando os processos de individualização. Parece existir uma sensação de liberdade que carrega, como contraponto, um sentimento de desamparo social por parte dos indivíduos. É um tempo de liberdade e ao mesmo tempo é um tempo de insegurança (Bauman, 2001).
Portanto, as principais características da modernidade líquida, segundo Bauman (2001) são o desapego; imprevisibilidade; urgência; instabilidade; provisoriedade e acelerado processo da individualização; tempo de liberdade, e, ao mesmo tempo, de insegurança. Tal contexto pode ser definido pela palavra alemã Unsicherheit que significa insegurança, falta de certeza e de garantia.
2 O medo e a insegurança, segundo Bauman
De acordo com Zygmunt Bauman (2001), o medo é uma das características da modernidade fluida.
O autor volta-se para a análise do medo que acomete a sociedade atual partindo do fenômeno da liquefação e da consequente insegurança, temas desenvolvidos na obra “Modernidade Líquida”(2001). O autor ainda expande suas considerações sobre a questão em outras obras, como “Medo Líquido”(2022) e “Confiança e medo na cidade”(2021). Segundo o autor, de um modo geral o ser humano vive em permanente estado de ansiedade e medo, sobretudo em razão do sentimento de insegurança tão presente.
Para Bauman (2022), o medo no âmbito da liquidez é capaz de atingir os indivíduos de três maneiras: medo de não conseguir exercer atividade profissional apta a garantir o próprio sustento atual ou futuro ou não possuir qualquer fonte para sobrevivência; medo de não obter um lugar dentro da sociedade, ou seja, medo de perder sua posição para outras mais vulneráveis; medo de ter atingida a própria integridade física.
Nesse cenário, o sociólogo utiliza-se dos conceitos de medo primário e medo derivado. O medo primário, para Bauman, é o medo da morte propriamente dita, como o medo de ser atingido num combate de guerra. Já o medo secundário é aquele infligido pelo grupo social em relação a certas atitudes, compelindo o indivíduo a agir da maneira que lhe foi ensinada como mais segura, como, por exemplo, não frequentar determinados lugares ou não caminhar pelas ruas após certo horário (Bauman, 2022).
Na obra “Confiança e medo nas grandes cidades”, Bauman analisa a questão da arquitetura urbana pós-moderna que se voltou significativamente para tentar aplacar os sentimentos de medo e de insegurança que assombram a sociedade. De acordo com o autor, o pavor de viver em insegurança atinge profundamente o ser humano no mundo líquido, razão pela qual a busca pela proteção se tornou verdadeira obsessão na construção de condomínios equipados com câmeras e outros instrumentos que possam garantir a sensação de proteção. Tais circunstâncias, todavia, promovem um movimento de isolamento e perda de identidade dos indivíduos em suas próprias cidades. (Bauman, 2021).
Outra questão importante invocada por Bauman (2021) se refere aos estrangeiros (migrantes, refugiados, etc.) que passam a integrar as comunidades na sociedade líquida. Esta é uma realidade mais atual do que nunca. Toda a humanidade assiste atualmente inúmeros movimentos migratórios pelo planeta e por motivos diversos: econômicos, conflitos de guerra, expulsões por razões religiosas ou étnicas. A convivência com o estrangeiro (compartilhamento de experiências, ideias e costumes) no mundo pós-moderno é uma realidade e componente integrante na lógica existencial das cidades. Entretanto, Bauman (2021) ressalta que a ideia de cidade na modernidade líquida está diretamente relacionada ao cenário do medo e da constante insegurança em relação a essas pessoas, o que resulta, muitas vezes, sentimentos xenofóbicos e de rejeição.
Na verdade, o estrangeiro constitui apenas um exemplo do “outro”, do estranho que adentrou a comunidade e que muitas vezes é segregado ou apartado apenas por essa razão. No contexto do medo e da insegurança, o outro é um alvo a ser evitado e afastado.
Importante salientar que, para Bauman (2022), a segurança denota uma confiança enquanto percepção interna do indivíduo dentro da comunidade, é um sentimento ligado ao bem-estar íntimo. Essa percepção pode não se coadunar com a realidade fática, mas apenas habitar o interior das pessoas. Já a proteção está relacionada ao afastamento de um perigo ou risco e se refere a ferramentas externas, artificiais (equipamentos, por exemplo) e meios perseguidos pela sociedade que supostamente lhe parecem aptos a obstar a propagação do medo e da insegurança.
De todo modo, a incerteza e a liquidez são traços que permeiam o medo e a insegurança. Na modernidade líquida, não se sabe ao certo o que deve ser temido ou o que gera insegurança, de forma que a sociedade, em muitas ocasiões, pode ser conduzida a sentir infundados pavores e pânicos, ou ainda, a acreditar em instrumentos hipoteticamente propiciadores de proteção e segurança, e que, afinal, mostram-se ineficazes ou mesmo desnecessários.
Em “Confiança e Medo na Cidade”, Bauman (2021), indica que, em razão do medo, a modernidade líquida deu origem à forte tendência das pessoas para o desenvolvimento de verdadeira obsessão por segurança. Como consequência disso, a busca por métodos e ferramentas de defesa passaram a se expandir com a mesma velocidade e igual progresso do medo e da sensação de insegurança. Em suma, a indústria do medo e da insegurança fornece elementos ao pacto de defesa, e vice e versa, num processo interminável de retroalimentação.
Mas, afinal, qual é o perigo e o risco que geram medo e insegurança na sociedade líquida? E quem são “os outros”, indivíduos tão assustadores e medonhos?
De acordo com Bauman, o “outro” gera, por si só, suspeitas e desconfianças. E o espaço para confiança e solidariedade se esvaiu, se liquefez. Os indivíduos vivem suas vidas isolados e interagindo virtualmente. Os antigos espaços públicos de ajuntamentos, comunhão, aprendizado e coexistência pacífica se perderam. Um dos grandes dilemas descritos por Bauman é a divisão entre segmentos sociais opostos e que precisam conviver, ou seja, as elites conectadas ao mundo globalizado e os cidadãos impossibilitados de se deslocarem de seus lugares (Bauman, 2021).
Bauman (2021) afirma que as comunidades perderam suas identidades e quaisquer indivíduos que se apresentem diferentemente disso são capazes de causar medo e podem representar um risco. Seres humanos assim são os “outros” temíveis que surgem nas comunidades e podem provocar insegurança e desconforto. Por essa razão, as maiores esperanças na modernidade líquida passaram, então, a ser aquelas pautadas nas propostas e ideias de proteção e segurança contra o perigo e o risco.
Como seria de se esperar, o sentimento de medo que gera insegurança volta-se, de modo especial, às práticas criminosas. Este é o foco principal deste trabalho.
Bauman (2021) refere-se ainda ao sentimento desenvolvido em relação aos estrangeiros, sobretudo refugiados, tratando da sensação de insegurança e medo que a sociedade demonstra em relação a eles e em como a xenofobia toma proporções nesses casos. Neste contexto, para a sociedade, esse grupo de pessoas representa uma classe perigosa, os “supérfluos”, indivíduos que perderam seus meios de sustento e são obrigados ao deslocamento, a deixar os lugares onde são considerados refugiados para se transformar em migrantes econômicos. “Os imigrantes tornaram-se os principais portadores das diferenças que nos provocam medo e contra as quais demarcamos fronteiras” (Bauman, 2021, p. 80).
Mas não é só! Para o autor, a modernidade produziu muita “gente supérflua” no sentido “gente inútil” e sem aproveitamento de capacidades produtivas: “para falar de forma mais brutal, sem meios termos, para as pessoas de bem, seria melhor que essas outras pessoas desaparecessem de vez” (Bauman, 2021, p.80).
Bauman (2021) acrescenta que a “gente supérflua” é a gente que será excluída pelo sistema alimentado pelo medo e a sensação de insegurança:
É uma gente sem perspectivas, que nenhum esforço de imaginação poderia introduzir numa sociedade organizada. A indústria moderna produziu gente supérflua. A construção de uma ordem leva sempre à liquidação dos supérfluos, pois, – se querem que as coisas estejam em ordem, se querem substituir a situação atual por uma ordem nova, melhor e mais racional – vocês acabarão por descobrir que certas pessoas não podem fazer parte dela, e, portanto, é preciso excluí-las, cortá-las fora.
Esta exclusão acaba por se tornar definitiva, pois, conforme Bauman (2021), a superfluidade não oferece propostas de melhorias:
Como todos sabem, o conceito de superfluidade não implica qualquer promessa de melhoria, de remédio, de indenização. Não, nada disso. Uma vez supérfluo, sempre supérfluo. Há uma palavra cruel, desumana, que foi inventada nos Estados Unidos, mas difundiu-se na Europa como um violento incêndio: underclass, ou subclasse […] Ser underclass significa estar definitivamente fora, excluído. A única função positiva que a underclass pode desempenhar é induzir as pessoas decentes, as pessoas comuns, a se agarrarem ao tipo de vida que vivem […]
Interessante lembrar ainda que, na atual fase emergente do capitalismo avançado, no dizer de Saskia Sassen (2010) está se operando uma “lógica da expulsão” em sua força mais perceptível, marcada pelo aumento exponencial no número de pessoas que foram ‘expulsas’ de alguma forma, de algum lugar, de alguma situação, numa lógica em que se emprega o termo ‘expulsão’ para se referir a uma gama de situações, incluindo desde a transferência de áreas que antes faziam parte do chamado território nacional soberano’, para a finalidade básica de venda no mercado global, até chegar-se ao número cada vez maior de pobres no mundo; os desabrigados que lotam campos de refugiados formais e informais; as minorias populacionais armazenadas em prisões; trabalhadores cujos corpos são destruídos ou inutilizados em idade muito precoce; populações excedentes.
Entretanto, o Direito ainda está confinado às fronteiras do Estados-nação e, como instrumento do poder estatal, vê-se confinado ao território nacional, assim como também estão os governantes:
Nossos líderes estão ‘presos’ no espaço nacional. Só pensam e agem nos limites do espaço nacional, enquanto lei, jurisdição, autoridade e base de operações. E disso não escapam nem os Estados Unidos, cujo poder é projetado globalmente. De repente, lá se vai mais um pelotão de fuzileiros para o front, mas, no fundo, isso tem a ver em como reagir a insatisfações internas com o presidente. Os governantes não sabem como lidar com cross-border processes, ou seja, processos da globalização que cruzam fronteiras e assim se configuram. Nossos governantes querem que o capital cruze fronteiras. Que setores de mão de obra também o façam. Mas não querem os terroristas, os traficantes, os imigrantes pobres, não sabem lidar com fluxos indesejados, precisam aprender. Não há outro jeito. Até mesmo os governos mais poderosos terão que começar a trabalhar com governos sem tanto poder. E não só para caçar terroristas. Governos nacionais, é verdade, tornaram-se bem mais internacionais desde os anos 80, ao longo do desenvolvimento de uma economia global corporativa e do mercado de capitais. É pena que não estejam aprendendo a ser mais internacionalistas também em relação ao meio ambiente, à fome global, à injustiça global (Sassen 2010).
E, neste sentido, importa ainda trabalhar a interrelação entre o ordenamento legal, as políticas e instituições e correlacioná-las às práticas sociais e dos agentes governamentais, por exemplo, da forma como se perpetuam as exclusões, engendrando maiores “enquistamentos” ou gentrificação dos pobres (Sassen, 2016; Zaluar, 1997).
Sobre este assunto, convém traçar um paralelo com algumas questões articuladas por Zygmunt Bauman (2021), de que há diversas consequências no processo de promoção de segregações e de (des)encontros de diferenças, que marcam os territórios, transformando as cidades em tempo e local de medo e insegurança. Entre os mais abastados, os ricos, a arquitetura das metrópoles tornou-se defensiva: bairros fechados, grades, muros e outros mecanismos de restrição com o contato com os outros e, dentre os mais pobres, a criação de “mitos”, por conta do desconhecimento, de que pessoas de fora (do país ou de outro ente da federação) tomem seus postos de trabalho ou seus lugares no acesso às políticas sociais em geral. E, nas questões relacionadas ao mundo digital e à internet, a anulação das distâncias e do tempo, ao invés de homogeneizar a condição humana, tende a polarizá-la (Bauman, 1999).
3 “O medo tem muitos olhos, e o perigo, muitos acessos”4: o medo e a insegurança enquanto instrumentos de poder
Ao levar em conta os atos terroristas acontecidos na Europa a partir de 20105, e comentar as várias consequências de ações discriminatórias entre as populações locais contra imigrantes (ou a segunda geração de imigrantes), Bauman (2017), em sua derradeira obra, alerta para o crescimento da mixofobia (medo provocado pelo volume irrefreável do desconhecido, inconveniente, desconcertante e incontrolável) e o quanto esse aumento (da ansiedade e da insegurança) dá margem a novos discursos e ações securitistas de governos potencialmente autoritários. Cria-se uma “moldagem da atual técnica de governo”, em que muitos políticos têm explorado os temores e ansiedades que se generalizaram, especialmente entre as populações excluídas das políticas públicas:
A política da securitização ajuda a reprimir antecipadamente as dores de consciência – como observadores – diante da visão de seus atormentados alvos. Ela leva à adiaforização do tema dos migrantes (ou seja, excluindo-os, bem como aquilo que lhes é feito, da avaliação moral). Uma vez classificados pela opinião pública na categoria de potenciais terroristas, os migrantes se encontram além dos domínios e fora dos limites da responsabilidade moral – e, acima de tudo, fora do espaço da compaixão e do impulso de ajudar (Bauman, 2017).
Bauman (2017) alerta, inclusive, para o fato de que as organizações terroristas, em geral, aguardam engenhosamente a sensação de não adequação dos indivíduos excluídos e enjeitados – que sofrem os impactos do “estigma” de serem diferentes – e que, então, aproveitam-se de suas carências para recrutá-los: “os responsáveis pelo recrutamento das escolas para terroristas, assim como de seus campos de treinamento, tendo esfregado as mãos de alegria, apressam-se em abrir os braços aos candidatos”.
Assim, da mesma forma que existirão governos que usam da ferramenta do medo do diferente e do pobre e vulnerável para promover uma cultura de exclusão, acredita na potencialidade de governos que promovam novas formas de convivência em solidariedade e cooperação com aqueles que (talvez) tenham opiniões ou preferências diferentes.
Os perigos que mais tememos são os imediatos: compreensivelmente, também desejamos que os remédios o sejam – ‘doses rápidas’, oferecendo alívio imediato, como analgésicos prontos para o consumo. Embora as raízes do perigo possam ser dispersas e confusas, queremos que nossas defesas sejam simples e prontas a serem empregadas aqui e agora. Ficamos indignados diante de qualquer solução que não consiga prometer efeitos rápidos, fáceis de atingir, exigindo em vez disso um tempo longo, talvez indefinidamente longo, para mostrar resultados (Bauman, 2022).
Segundo a visão de Bauman (2022), a busca pela segurança – como tudo na sociedade líquida – almeja respostas rápidas, imediatas.
4 O poder decorrente do medo e da insegurança gerados por práticas delituosas acena para uma cultura punitivista e um direito penal simbólico
Ao analisar o tema que trata das respostas rápidas à busca de segurança e erradicação do medo é importante explorar aspectos que se referem à tentativa de compreender o quanto o binômio medo/insegurança serve ao poder (de fato e de direito) estabelecido na sociedade e que resultados se impõem em decorrência disso.
De acordo com André Lozano Andrade (2019), medo e poder estão estreitamente ligados. O medo serve a várias frentes de poder simultaneamente. Incutido no imaginário popular, o medo tem força de controle e orientação da massa ao mesmo tempo que auxilia na condição de “cortina de fumaça” ao poder público para que este lance mão de medidas impopulares em condições despercebidas. O medo ainda é instrumento forte nas disputas midiáticas, assim como nas disputas eleitorais.
Segundo Luigi Ferrajoli, é possível exercer o poder e governar a partir do medo:
Há dois modos com os quais o poder pode se servir do medo e ser por este alimentado e reforçado: um modo direto e um modo indireto. Vale dizer que estes modos de maneira alguma se excluem, e sim podem perfeitamente competir entre eles. O poder, antes de tudo, pode, por si mesmo, causar medo. É o modelo dos regimes autoritários e totalitários, nos quais o poder está desvinculado da lei e manifesta-se como poder informal, gerando medo porque seu exercício é imprevisto e imprevisível. Este é o rosto demoníaco do poder, mais aterrados que o mal por ele prenunciado, pois é desconhecido, imprevisível e potencialmente ilimitado. O segundo modelo é aquele que, por sua vez, estimula o medo do crime, o dramatiza e o alimenta como fonte de legitimação do poder e da resposta punitiva, um poder que, neste caso, como antídoto do medo, o segundo agita, por sua vez, o espantalho do medo, construindo e demonizando inimigos internos, e legitimando, como seus instrumentos necessários, rupturas de legalidade, medidas emergenciais e, até mesmo, como no caso do terrorismo, a guerra,. Este segundo modelo expressa-se também nos países democráticos, por intermédio das políticas populistas sobre o tema de segurança (grifos nossos).
Andrade trata ainda a questão de como o universo do Direito Penal foi afetado por todo esse processo. Para o autor, há uma soma de vários aspectos explosivos decorrentes do medo e da insegurança e que influenciam a seara penal e processual penal: interesses do poder estatal estabelecido, interesses de poderes de grupo e classes sociais, interesses eleitorais, manipulação e espetacularização midiática. Tudo isso em conjunto dá origem ao populismo penal e ao direito penal simbólico (Andrade, 2019).
É inegável que o Direito Penal e o Direito Processual Penal foram e são afetados pela questão do medo e da insegurança disseminados na sociedade. Em tempos de “modernidade líquida” (Bauman, 2001), verifica-se a utilização do medo como justificativa para o advento de rápidas respostas à sociedade através da criação de novas e mais gravosas leis penais incriminadoras, bem como para a legitimação da pena e do sistema penal como medida eficaz de combate ao crime e solução dos conflitos.
Bauman (2021) tratou especificamente do medo e desconfianças causados pelo estrangeiro que é visto como “o outro”, potencial causador de riscos e perigos à sociedade. Na verdade, o estrangeiro constitui apenas um exemplo do “outro”, do estranho gerador de receios e de inseguranças. A ideia cabe perfeitamente no universo do Direito Penal, sobretudo em sua visão mais punitivista e expansiva de uma sociedade de risco e de propostas imediatistas de combate à violência e práticas delituosas. Em suma, no cenário do medo e da insegurança, o outro é visto como um alvo a ser evitado e afastado através do Direito Penal.
E quem seria, no Brasil, “o outro” a ser afastado e rechaçado por medidas relacionadas ao Direito Penal?
Atualmente há um fluxo de inúmeros refugiados no Brasil por razões diversas, mas com predominância de guerras. O Brasil não apresenta a xenofobia como elemento marcante em sua sociedade. Contudo, o racismo e a aporofobia são elementos muito presentes na escolha do “outro” a ser temido e excluído da sociedade. E, embora o tema aqui tratado não se refira especificamente a este tema, é importante registrar que, de fato, os sistemas penal e processual penal brasileiros são sabidamente seletivos e seus gravames têm destinação preponderante aos indivíduos pretos e pobres, aqueles que, aos olhos da sociedade e das instituições ligadas ao Direito Penal (mesmo de maneira velada), constituem a suposta classe de risco que impõe medo e a insegurança no país.
Fundamentalmente o medo de eventos criminosos constituem o ponto nevrálgico a provocar insegurança entre os indivíduos da sociedade líquida.
Sabe-se que o Direito Penal acaba exercendo uma função de controle da violência através da tutela dos bens jurídicos de maior magnitude para a sociedade. Todavia, quando o Direito Penal se mostra sob um aspecto apenas simbólico (em seu sentido pernicioso), ele se presta a instrumento inútil e de engano social.
De acordo com Rodrigo Fuziger (2015), o Direito Penal simbólico é uma disfunção do Direito Penal que ocorre mediante interpretação simbólica de conteúdos latentes de um ato, proporcionando um engano que contribui para a inefetividade do Direito Penal. Para o autor, a fim de compreender essa disfunção, é preciso compreender primeiro que o Direito Penal é sempre acompanhado de simbolismo. Aliás, a legitimação do próprio Direito passa por uma violência simbólica que possibilita a gênese de processos de consentimento e interiorização das normas. O Direito alcançaria, assim, a condição de uma violência simbólica legítima de monopólio estatal e que excepcionalmente pode ser combinado com a força física. Entretanto, “o contínuo processo de incorporação das normas, ou seja, da violência simbólica do Direito, permite que a combinação deste com a violência física se torne excepcional.” (Fuziger, 2015)
Para Fuziger (2015), o Direito Penal apresenta formas específicas de simbolismo que são próprias e legítimas aos seus objetivos e inerentes à sua estrutura básica. Neste contexto, expressa-se um forte traço de simbolismo quando se faz a comunicação entre o poder punitivo (o Estado) e a sociedade. Este simbolismo é claramente um componente essencial do Direito Penal, pois é vital ao seu funcionamento que seus destinatários tenham ciência da norma.
De acordo com o pensamento de Juarez Tavares, o uso do símbolo no Direito Penal funciona como justificativa à legalidade, esta que, concomitantemente, limita e legitima o Direito Penal. “Os códigos contém, sempre, uma natureza não apenas protetiva, como quer a doutrina, mas simbólica, e, portanto, justificativa.” (Tavares, Juarez, 2007)
A própria condenação, em si, é um símbolo comunicativo que, aliás, apresenta um componente estigmatizante bastante forte, já que atribui ao indivíduo o status de criminoso.
Portanto, a base simbólica comunicativa é da essência do Direito Penal.
Todavia, há que se refletir sobre a simbologia que não pertença às características imprescindíveis do Direito penal e o quão prejudicial pode se apresentar sua utilização.
Conforme destaca Fuziger (2015), o alto grau de aceleração da dinâmica social, especialmente quando faz com que as interações se tornam mais e mais complexas, gera um imenso desafio para controle social. Moral e religião perderam força com o advento da pós-modernidade. Então, no cenário de tantas dúvidas, a normatização ganhou e ganha cada vez mais espaço. Consequentemente o Direito Penal – independentemente se legítimo ou não – acaba ocupando, para a sociedade, um espaço de controles sociais (antes informais).
A questão é que, de acordo com Silva Sanchez, “recai sobre o Direito Penal, uma atribuição que não se coaduna com sua capacidade” (Sanchez, 2011).
De fato, o Direito Penal não tem como missão atuar enquanto controle social e formal. Não poderia jamais o Direito Penal sanar o fracasso estatal na oferta de políticas públicas de segurança e justiça. E é justamente deste fracasso estatal que se origina a “generalização de um sentimento coletivo de impunidade, isto é, um sentimento de que os crimes não estão sendo punidos, ou, quando o são, não o são devidamente” (Adorno, 1996)
É a partir deste raciocínio que se percebe que o Direito Penal recebe uma série de incumbências que não lhe cabem. Para Fuziger, sob uma ótica utilitarista (mas não exclusivamente), o Direito Penal passa a ser mais sensível às demandas da sociedade e mais maleável de acordo com tais exigências. É então que a sociedade, marcada pelos sentimentos de medo e insegurança, vê-se amparada pela possibilidade de um Direito Penal mais severo e punitivista. Sob tal escopo, o Direito Penal passou a expandir-se de maneira disfuncional (Fuziger, 2015).
Identifica-se, pois, que o Direito Penal simbólico está profundamente ligado à ideia de segurança, um valor que na sociedade pós-moderna deixou de ser condição prévia de vida para alcançar objetivos e assumiu posição de finalidade a ser perseguida. Este novo objetivo parece, de antemão, ignorar outros aspectos relevantes, como aqueles que o Direito Penal e o Direito Processual Penal muitas vezes atingem quando chamados à atuação, como a liberdade, por exemplo.
O Direito Penal simbólico tem laços muito estreitos com o punitivismo e a cultura da punição. Para além de fomentar na sociedade pensamentos recrudescedores em relação às penas impostas aos delitos já previstos, a sociedade também é influenciada e direcionada para uma busca ansiosa e emergencial cada vez maior de criação de tipos penais incriminadores. Neste sentido, a sociedade parece sequer enxergar o perigo direcionado a ela própria. Consequências graves desta postura, aliás, são a mitigação e flexibilização das garantias penais e processuais (Fuziger, 2015).
Enfim, no caminho da manipulação, o poder público parece buscar a transformação da visão pessimista da sociedade através da exasperação das leis penais. Desta forma o Estado almeja aplacar o descontentamento social sob a falsa ideia de que, ao introduzir leis penais mais rigorosas que promovam aumento de penas e supressão de garantias dos processados e condenados, o objetivo de aplacar medos, obter tranquilidade e segurança será alcançado.
Considerações finais
Sem dúvidas o medo e a insegurança sob a ótica de Zygmunt Bauman constituem elementos bem presentes no processo de elaboração das leis penais e processuais penais de nossa época pós-moderna.
A utilização do Direito Penal sob um viés populista e simbólico destroi suas bases, assim como as do processo penal. Restam prejudicados diversos princípios penais como a subsidiariedade e a lesividade, além de fundamentos processuais penais, como o devido processo legal, entre outros.
Normalmente o Direito Penal simbólico equivocado demonstra pretensões rápidas, imediatas e que dão ensejo a imensas falhas, uma vez que auxiliam na elaboração de normas penais sem o prévio estudo e verificação de possíveis impactos (até mesmo financeiros).
Há casos em que tais dispositivos penais almejam tão somente atingir específicos indivíduos, como se procede mediante o Direito Penal do autor ou do inimigo, mas sempre sob a justificativa de melhorias nas questões de segurança.
Uma das consequências de comportamentos dessa natureza é a própria insegurança jurídica.
No Brasil, ao longo do tempo, houve várias propostas para introdução de regras incompatíveis com o ordenamento penal e até constitucional. Foram envidados esforços para a implantação de institutos estrangeiros, como o plea bargain estadunidense que direciona ao sistema penal os desvalidos que não possuem condições de defesa comparável à dos mais ricos. Em casos assim, a população, mal informada e desconhecedora do tema, acaba por apoiar algo que ignora apenas em razão das influências discursivas de políticos e midiáticas, além de enxergar nas medidas um possível traço protetivo de segurança.
Enfim, tudo isto parece resultar muito mais da ânsia de aplacar com rapidez a insatisfação popular do que de uma sensata busca por melhorias no ordenamento jurídico e no sistema penal. Para atingir verdadeiros progressos nesta seara seria importante a promoção de estudos e debates que objetivassem uma compreensão melhor da lógica da violência e da criminalidade, bem como uma séria busca de soluções viáveis para as questões interligadas do medo e da insegurança social para além do recrudescimento de normas penais.
Infelizmente observa-se no país a tendência de se fazer uso do Direito Penal simbólico com propostas muitas vezes até inconstitucionais e que encontram óbices de impossível transposição para ser aprovadas junto ao Poder Legislativo (populismo penal legislativo).
A verdade é que o resultado de tal processo espúrio termina por produzir, afinal, desesperança e descrédito na própria população que, quase sempre, no momento em que é manipulada, não consegue detectar os verdadeiros e subterrâneos intentos políticos, eleitoreiros e grupais focados na criação de tais regras.
Neste cenário constata-se um círculo vicioso. Sem resultados de melhorias nas condições de segurança ou diminuição da violência, a sociedade é direcionada a fazer exigência de mais normas penais e ainda mais gravosas.
Assim, o Direito Penal abandona o status de ultima ratio para ocupar a posição de primeira opção na solução das questões mais variadas, dando origem a um processo verdadeiramente banalizador de criação de leis penais e processuais penais.
Em tais condições, parece não importar às mentalidades criadoras desse Direito Penal pouco autêntico se suas propostas são totalitárias ou ofendem a Constituição Federal, até mesmo em suas cláusulas imutáveis. É o caso, por exemplo, da persistência de alguns políticos e parlamentares em relação à tentativa de introdução de pena de morte no Código Penal Brasileiro ou diminuição da idade para estabelecer a maioridade penal. A tais indivíduos parece realmente importar apenas a satisfação do desejo popular e capaz de angariar votos.
De fato, o populismo legislativo, no Brasil, pautado no medo e na insegurança, detectados por Bauman é um indicador preponderante do Direito Penal simbólico.
3“Tudo o que é sólido se desmancha no ar” é uma frase de Karl Marx em seu livro “O Manifesto do Partido Comunista”. A frase se refere à renovação sequencial dos modos de produção e, consequentemente, da cultura e de todas as formas de conceber o mundo. A frase é uma forma de dizer que o que é sólido é passível de desmanche, especialmente as relações sociais, cujas relações de produção são abatidas a partir do fundamento do materialismo histórico de Marx.
4Bauman, 2017. p.109.
5Entre 2011 e 2016, a Europa foi marcada por uma série de ataques terroristas com diferentes motivações, como o extremismo islâmico e a supremacia branca, que geraram crescente preocupação com a segurança no continente e certamente foram motivadores para a obra de Bauman. Entre os episódios mais notórios, destacam-se o atentado na Noruega perpetrado por Anders Breivik, os ataques de Mohammed Merah na França, o assassinato do soldado britânico Lee Rigby em Londres, o ataque ao Museu Judaico de Bruxelas, os atentados ao jornal Charlie Hebdo e ao supermercado Hyper Cacher em Paris, e os ataques coordenados na mesma cidade, incluindo o ocorrido na casa de shows Bataclan. Em 2016, atentados em Bruxelas, Nice e no mercado de Natal de Berlim reforçaram o clima de insegurança. Esses eventos evidenciaram a ameaça representada tanto por redes terroristas organizadas quanto por “lobos solitários”, levando a uma intensificação das políticas de segurança e vigilância em vários países europeus (Rolim, 2023).
Referências
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1Mestranda em Direito Penal pela PUC/SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em convênio com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCRIM. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Orcid: https://orcid.org/0009-0005-4565-7393. E-mail: dccarmona@uol.com.br.
2Doutora em Direito Político e Econômico (Mackenzie/SP), Mestre em Direito Público (Unisinos/RS), Especialista em Gestão Pública (Unifesp) e Direito Digital e Proteção de Dados (IDP/Bsb) Bacharel em Direito (UFU). Advogada. Professora dos cursos de Direito e Economia da ESEG (Grupo Etapa) e do IDP/SP. Cofundadora da FADDH – Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos. Membro da Rede LAREF – Rede Acadêmica Latino- americana sobre Direito e Integração das Pessoas Refugiadas e RELATE Refugee Law Teaching Support Initiative. Integra o grupo de pesquisa Direitos Humanos e Vulnerabilidades da UniSantos. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1500-9270. E-mail: paula.brasil@eseg.edu.br