O DIREITO INDÍGENA NO BRASIL: AVANÇOS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ma10202509100802


Wilson Ramos do Carmo Filho


Resumo

O artigo analisa o direito indígena no Brasil a partir da evolução normativa, jurisprudencial e doutrinária, com enfoque na Constituição de 1988 e em instrumentos internacionais que consolidam a proteção dos povos originários. O estudo tem como objetivo compreender os avanços e desafios da tutela jurídica dos indígenas, considerando aspectos como identidade, registro civil, capacidade jurídica, proteção da infância, economia, cultura e território. A metodologia utilizada baseia-se na análise documental de legislações nacionais, como o Estatuto do Índio e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de resoluções do Conselho Nacional de Justiça, de tratados internacionais como a Convenção 169 da OIT e a Declaração da ONU, bem como da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Os resultados apontam a superação do modelo integracionista e o reconhecimento do Brasil como Estado pluriétnico e multicultural, assegurando aos povos indígenas direitos originários sobre suas terras e respeito às suas tradições. A pesquisa conclui que, apesar de significativos avanços, persistem desafios ligados à demarcação de terras, à proteção da diversidade cultural e à resistência de setores econômicos. Afirma-se, por fim, que o fortalecimento institucional e a efetiva participação indígena são fundamentais para consolidar a democracia pluralista.

Palavras-chave: Povos indígenas. Direitos fundamentais. Constituição Federal. Tradição.

Abstract

This article analyzes Indigenous law in Brazil based on normative, jurisprudential, and doctrinal developments, focusing on the 1988 Constitution and international instruments that consolidate the protection of Indigenous peoples. The study aims to understand the advances and challenges in the legal protection of Indigenous peoples, considering aspects such as identity, civil registration, legal capacity, child protection, economy, culture, and territory. The methodology used is based on documentary analysis of national legislation, such as the Indigenous Statute and the Child and Adolescent Statute, resolutions of the National Council of Justice, international treaties such as ILO Convention 169 and the UN Declaration of Human Rights, as well as the jurisprudence of the Federal Supreme Court and the Inter-American Court of Human Rights. The results indicate the overcoming of the integrationist model and the recognition of Brazil as a multiethnic and multicultural state, ensuring Indigenous peoples’ original rights to their lands and respect for their traditions. The research concludes that, despite significant progress, challenges remain related to land demarcation, the protection of cultural diversity, and the resistance of economic sectors. Finally, it asserts that institutional strengthening and effective Indigenous participation are fundamental to consolidating pluralistic democracy.

Keywords: Indigenous peoples. Fundamental rights. Federal Constitution. Tradition.

1. INTRODUÇÃO

O direito indígena no Brasil é marcado por tensões históricas entre a visão assimilacionista do Estado e a luta pela preservação das tradições e identidades dos povos originários. A Constituição Federal de 1988 representou um marco na superação de paradigmas integracionistas, ao reconhecer a diversidade cultural como valor fundante da ordem constitucional.

O objetivo deste artigo é analisar, à luz da legislação brasileira, da jurisprudência nacional e internacional, bem como da doutrina especializada, os principais aspectos do direito indígena no Brasil. Busca-se compreender como esse campo se consolidou, quais avanços foram obtidos e quais desafios ainda permanecem para a efetivação da proteção dos povos originários.

2. O DIREITO INDÍGENA NO BRASIL: AVANÇOS, DESAFIOS E PERSPECTIVAS

2.1 Terminologia e identidade

Uma das primeiras distinções a ser feita é entre “direito indigenista” e “direito indígena”. Segundo Vitorelli (2016), primeiro designa o conjunto de normas elaboradas pelo Estado e pela sociedade envolvente sobre a condição indígena; o segundo, por sua vez, refere-se às normas próprias produzidas pelas comunidades indígenas. Apesar da diferença, no Brasil os termos são utilizados sem essa separação conceitual.

O reconhecimento da identidade indígena envolve ainda a noção de autorreconhecimento e heterorreconhecimento. Enquanto o primeiro se baseia na autodeclaração do indivíduo, o segundo depende da aceitação pela comunidade a que pertence. Assim, Ramos (2018) defende que a identidade indígena não é meramente subjetiva, mas vinculada a critérios culturais e históricos.

2.2 Registro civil e capacidade jurídica

O registro de nascimento dos indígenas não integrados é facultativo, podendo ser feito por meio do RANI, administrado pela FUNAI. A Resolução Conjunta nº 3/2012 trouxe avanços, permitindo a inclusão de nomes indígenas, etnia e aldeia no assento de nascimento.

A capacidade civil das pessoas indígenas também merece destaque. Embora o Código Civil preveja legislação especial, a Constituição de 1988 assegurou a capacidade plena. O STF, no julgamento da Pet 3.388/RR, interpretou os artigos 231 e 232 como instrumentos de promoção da igualdade material e da preservação da identidade étnica.

2.3 Estatuto do Índio e a superação da visão integracionista

Editado em 1973, o Estatuto do Índio refletia a teoria assimilacionista, que via a condição indígena como transitória até a integração à sociedade nacional. Nesse modelo, os direitos eram garantidos apenas enquanto durasse o processo de “adaptação”.

Com a Constituição de 1988, esse paradigma foi abandonado. O Estado brasileiro passou a se reconhecer como pluriétnico e multicultural, rompendo com a ideia de integração compulsória. Assim, Ramos (2018) defende que os dispositivos assimilacionistas do Estatuto foram considerados não recepcionados pela nova ordem constitucional.

2.4 Economia, cultura e território

A monetarização das comunidades indígenas, com a inserção de dinheiro em suas relações sociais, gerou desigualdades internas e disputas por benefícios. Essa transformação, segundo Vitorelli (2016), ameaça a lógica tradicional de produção e partilha coletiva.

No que diz respeito à posse dos territórios, a Constituição reconhece os direitos originários dos povos indígenas às terras tradicionalmente ocupadas, assegurando-lhes usufruto exclusivo e inalienável. Conforme defende Ramos (2018), esse vínculo não é apenas físico, mas espiritual e cultural, aspecto que diferencia a posse indígena da posse civilista.

2.5 Direito penal e processual penal

O Estatuto do Índio prevê atenuação de penas para indígenas condenados, considerando o grau de integração, bem como a possibilidade de cumprimento em regime especial.

A Resolução nº 287/2019 do CNJ reforçou essas garantias, determinando perícias antropológicas, consulta às comunidades e adoção de mecanismos próprios de resolução de conflitos.

2.6 Direito Civil e processual civil

No âmbito civil, admite-se a anulação de negócios jurídicos entre indígenas e não indígenas quando houver má-compreensão por parte do indígena, aplicando-se a teoria do erro.

No processo civil, as comunidades indígenas têm prerrogativas semelhantes às da Fazenda Pública, como o prazo em dobro. Ademais, em litígios fundiários, são litisconsortes necessários.

2.7 Proteção à infância e juventude indígena

O Estatuto da Criança e do Adolescente garante que crianças e adolescentes indígenas sejam prioritariamente inseridos em famílias de sua comunidade ou etnia.

A Resolução nº 524/2023 do CNJ ampliou essa proteção, estabelecendo medidas socioeducativas adaptadas à realidade indígena e privilegiando práticas de justiça restaurativa.

2.8 Jurisprudência internacional e nacional

A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem desempenhado papel fundamental. No caso Mayagna Awas Tingni vs. Nicarágua, reconheceu a propriedade coletiva da terra (CIDH, 2001). Em Comunidade Moiwana vs. Suriname, reconheceu o dano espiritual causado pela impossibilidade de realizar rituais fúnebres (CIDH, 2005a).

Em Povo Xucuru vs. Brasil, ocorreu a primeira condenação brasileira, em razão da demora na demarcação (CIDH, 2018). Esse e outros casos consolidaram a consulta prévia, livre e informada como requisito essencial em empreendimentos que afetem comunidades indígenas (OIT, 1989).

No Brasil, a jurisprudência também avançou. O STF reconheceu a inconstitucionalidade do marco temporal na demarcação de terras (STF, Pet 3.388/RR, 2009). Além disso, a ADPF 709, durante a pandemia, determinou medidas de proteção à saúde e segurança de povos vulnerabilizados (STF, 2020).

2.9 Instrumentos internacionais

A Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, é marco fundamental, ao garantir o direito de consulta e o respeito aos sistemas jurídicos próprios (OIT, 1989).

A Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, embora seja soft law, desempenha função interpretativa, reforçando o dever dos Estados de respeitar costumes e tradições, desde que compatíveis com os direitos humanos (ONU, 2007).

2.9 Desafios contemporâneos

Apesar dos avanços constitucionais e jurisprudenciais, os povos indígenas ainda enfrentam pressões de setores econômicos interessados na exploração de seus territórios. O embate entre desenvolvimento econômico e preservação cultural é um dos grandes dilemas atuais.

O risco de etnocídio permanece, uma vez que práticas de aculturação forçada ainda ameaçam a transmissão de valores e tradições. Embora o tema seja discutido no âmbito internacional, ainda não há tipificação consolidada no direito internacional público.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito indígena no Brasil reflete um processo de constante construção, em que normas constitucionais, legislação especial, jurisprudência nacional e internacional se articulam para proteger a diversidade cultural e assegurar os direitos originários dos povos.

Consolidar esses avanços exige o fortalecimento das instituições, a efetiva participação das comunidades indígenas nas decisões que lhes afetam e a harmonização entre desenvolvimento e respeito aos direitos humanos. Mais que uma questão jurídica, trata-se de afirmar a dignidade e a pluralidade cultural como fundamentos da democracia brasileira.

REFERÊNCIAS

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