THE FUNDAMENTAL RIGHT TO INVIOLABILITY OF TELEPHONE DATA AND INTERVENTION WITHIN THE SCOPE OF PROTECTION IN THE LIGHT OF HIGHER COURTS
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10049349
Jean Carlos Falcão Manosso1
RESUMO:
A proteção do direito fundamental à inviolabilidade de dados telefônicos mostra-se em voga na atualidade, havendo diversas decisões judiciais tratando do tema sob a ótica da extração de dados em aparelhos celulares de investigados e acusados, por parte de órgãos de persecução penal. Logo, o tema será analisado à luz da ciência processual penal, bem como sob a ótica do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos. Nessa senda, para a construção de uma base sólida, deve-se analisar, por meio de pesquisa doutrinária específica no assunto, o âmbito de proteção do direito à inviolabilidade de dados telefônicos, bem como à intervenção em seu âmbito de proteção. Nesse viés, deve-se analisar se a medida estatal se trata de uma restrição ao direito fundamental, hipótese em que haveria uma conduta lícita, ou se está diante de uma violação, hipótese em que haveria conduta ilícita. Com efeito, para se aferir se a intervenção é constitucionalmente fundamentada, ou seja, se os órgãos de persecução penal podem extrair provas de dados telefônicos, deve-se proceder pela abordagem à luz do posicionamento das Cortes Superiores, as quais abordam o tema de acordo com o grau de intensidade da intervenção no âmbito de proteção do direito fundamental, a fim de se catalogar como uma conduta licita ou ilícita dos órgãos de persecução penal.
Palavras chaves: Acesso de dados telefônicos. Cláusula de reserva de jurisdição. Direito à privacidade.
ABSTRACT
The protection of the fundamental right to privacy of telephone data is currently in vogue, with several judicial decisions dealing with the issue from the perspective of data extraction on cell phones of those being investigated and accused, by criminal prosecution bodies. Therefore, the topic will be analyzed in the light of criminal procedural science, as well as from the perspective of Constitutional Law and Human Rights. Along this path, in order to build a solid foundation, it is necessary to analyze, through specific doctrinal research on the subject, the scope of protection of the right to privacy of telephone data, as well as intervention within its scope of protection. In this sense, it must be analyzed whether the state measure is a restriction on fundamental rights, in which case there would be lawful conduct, or whether it is a violation, in which case there would be unlawful conduct. In effect, to assess whether the intervention is constitutionally founded, that is, whether criminal prosecution bodies can extract evidence from telephone data, it must be approached in light of the position of the Superior Courts, which approach the issue in accordance with the degree of intensity of the intervention within the scope of protection of fundamental rights, in order to classify it as legal or illegal conduct by criminal prosecution bodies.
Keywords: Telephone data access. Jurisdiction reservation clause. Right to privacy.
INTRODUÇÃO
Tema que está em voga na ciência processual penal é o relativo à extração de dados inseridos em aplicativos de aparelhos celulares, havendo inúmeras decisões no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, em diversas situações, envolvendo a temática.
Sendo assim, para a análise do tema, além de abordá-lo à luz da ciência processual penal, será analisado sobre a ótica do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos, enfatizando a interdisciplinariedade entre as matérias.
Nessa senda, para a construção de uma base sólida, em um primeiro momento será analisado o âmbito de proteção do direito à inviolabilidade de dados telefônicos, o qual, conforme será visto, tem por objetivo proteger o conteúdo da comunicação contra qualquer intromissão indevida por parte de terceiros particulares e do Estado.
Todavia, como qualquer outro direito fundamental, à inviolabilidade de dados telefônicos não possui caráter absoluto, estando sujeito à intervenção em seu âmbito de proteção. Nesse caso, a intervenção pode ser caracterizada como restrição, hipótese em que haveria uma conduta lícita, ou violação, hipótese em que se estaria de uma conduta ilícita.
Com efeito, para se aferir se a intervenção é constitucionalmente fundamentada, ou seja, se os órgãos de persecução penal podem extrair provas de dados telefônicos, deve-se proceder pela abordagem à luz do posicionamento das Cortes Superiores, que, em regra, entendem pela necessidade de controlabilidade do ato pelo Poder Judiciário.
No entanto, conforme será exposto, há situações em que se entendeu que a intervenção ao âmbito de proteção não restou tão intensa ao direito fundamental à privacidade, hipótese em que sequer há necessidade de submissão à cláusula de reserva de jurisdição para a extradição de dados em aparelhos telefônicos.
Em outros casos, a intervenção ao direito fundamental à privacidade se mostra tão intensa em seu âmbito de proteção, que a extração de dados em aparelho celular é vedada em qualquer situação, mesmo que exista autorização judicial.
Sendo assim, conforme será abordado, a temática da possibilidade de extração de dados telefônicos deve ser analisada de acordo com o grau de intensidade da intervenção no âmbito de proteção do direito fundamental.
Para a presente investigação, utiliza-se do método dedutivo e da documentação indireta bibliográfica, subsidiada pela pesquisa doutrinária e jurisprudencial, sob o enfoque jurídico técnico.
1 ÂMBITO DE PROTEÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À INVIOLABILIDADE DE DADOS TELEFÔNICOS
O direito à inviolabilidade de dados telefônicos, que está abrangido no âmbito de proteção do direito fundamental à privacidade, assim como qualquer outro direito fundamental, não prescinde de um estudo dogmático aprofundado a respeito de seu conteúdo fundamental. Em razão disso, faz-se necessário um estudo aprofundado sobre seu âmbito de proteção.
Segundo a doutrina de Novelino (2016, p. 282) entende-se por âmbito de proteção qualquer estado, ação, posição ou fato que está agasalhada pelo direito fundamental, ou seja, não se exclui prima facie qualquer conduta de seu conteúdo normativo.
Com efeito, dispõe o art. 5°, X, da Constituição Federal ser invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Observa-se, assim, que o âmbito de proteção protege o conteúdo da comunicação, contra qualquer intromissão indevida (NOVELINO, 2016, p. 360). Logo, de se notar que o direito à inviolabilidade de dados está abrangido pelo direito à privacidade.
Todavia, deve-se consignar que há posicionamento do Supremo Tribunal Federal que entende pela incidência do direito à inviolabilidade de dados no manto da incidência do art. 5°, inciso XII, da Constituição Federal (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 461.366/DF, Rel. Min. Marco Aurélio. DJ 13 out. 2007).
A despeito disso, o entendimento prevalente é o de que a proibição de acesso de dados telefônicos não está abrangida no âmbito de proteção do direito fundamental previsto no art. 5, inciso XII, da Constituição Federal, mas é decorrente do direito fundamental previsto no art. 5°, inciso X, da Constituição Federal, que consagra o direito fundamental à privacidade e intimidade.
Inclusive, a adoção desse entendimento possui relevantes aspectos práticos, eis que ao se adotar que a proteção decorre da previsão do art. 5°, inciso X, da Constituição Federal, afasta-se a incidência da Lei n° 9.296/1996, que rege as interceptações telefônicas, sobre o meio de obtenção de provas. Logo, não haveria a necessidade de se observar as diversas restrições estabelecidas pela lei, a qual prevê a possibilidade de interceptação telefônica em apenas em determinados crimes, considerados de catálogo pela jurisprudência, eis que, nesse caso, apenas em crimes puníveis com reclusão a medida cautelar poderia surtir efeitos.
Sendo assim, adotando-se o posicionamento majoritário que afirma que o direito fundamental decorre do art. 5°, inciso X, da Constituição Federal, em relação ao seu âmbito de proteção, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao interpretar o art. 11 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no caso Escher v. Brasil, afirmou que “[…] o âmbito da privacidade caracteriza-se por estar isento e imune a invasões ou agressões abusivas ou arbitrárias por parte de terceiros ou da autoridade pública” (2009, p. 36).
Deve-se ressaltar que no caso investigava-se a violação das conversas telefônicas realizadas por autoridades brasileiras e, embora o art. 11, 3, da Convenção, não abrangesse expressamente as comunicações telefônicas, a Corte concluiu que se trata de uma forma de comunicação incluída no âmbito do direito à privacidade (2009, p. 36). Em relação à finalidade, a privacidade “[…] se concretiza com o direito a que sujeitos distintos dos interlocutores não conheçam ilicitamente o conteúdo das conversas telefônicas ou de outros aspectos, como os já elencados, próprios do processo de comunicação” (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2009, p. 36).
De igual modo, entendeu-se no caso Ituango Massacres v. Colômbia: “O Tribunal considera que a esfera da privacidade se caracteriza por ser isenta e imune a invasões ou ataques abusivos e arbitrários por terceiros ou pelas autoridades públicas” (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2006, p. 86, tradução nossa).
Logo, é possível observar que se compreende no âmbito de proteção do direito fundamental à privacidade a proibição ou isenção invasões ou ataques abusivos e arbitrários por terceiros ou pelas autoridades públicas em sua esfera de proteção, sendo que, em relação à proteção de dados telefônicos, protege-se o conteúdo da comunicação, contra qualquer intromissão indevida, sem o consentimento do titular do direito fundamental.
Superada tal análise, torna-se necessário o estudo das possíveis invenções, a fim de se analisar, posteriormente, se houve restrição legítima ou violação no direito à privacidade de dados telefônicos.
2. O ÂMBITO DE INTERVENÇÃO NO DIREITO FUNDAMENTAL À INVIOLABILIDADE DE DADOS TELEFÔNICOS
Constante dispõe a Constituição Federal “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Em razão da redação da norma constitucional, corrente doutrinária passou a advogar que apenas as comunicações telefônicas presentes seriam passíveis de intervenção no direito fundamental (nesse sentido: GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2009, p. 17).
Todavia, esse entendimento é criticado pela doutrina, que entende ser possível a intervenção no direito fundamental à inviolabilidade de dados, eis que, conforme adverte Damásio Jesus: “[…] bastaria para burlar a permissão constitucional ‘digitar’ e não ‘falar’” (1997, p. 458-473).
Com efeito, é assente na dogmática constitucionalista que não existem direitos e garantias com caráter absoluto, ou seja, podem ser objeto de limitações, quando em colisão com outros direitos e garantias (BRANCO; MENDES, 2016, p. 141).
Segundo Lima “[…] apesar do art. 5°, XII, da Constituição Federal ressaltar apenas a interceptação das comunicações telefônicas, não se deve compreender que o sigilo de dados tenha natureza absoluta”
É nessa ordem de ideias que se deve investigar as possíveis intervenções no direito fundamental à inviolabilidade de dados, bem como se configuram intervenção constitucionalmente fundamentada, hipótese em que haverá uma restrição, ou se se trata de uma intervenção não constitucionalmente fundamentada, caso em que haverá uma violação (NOVELINO, 2016, p. 280).
Registra-se que somente seria possível a restrição se a sua permissão decorrer diretamente da Constituição, seja por uma restrição diretamente constitucional, seja indiretamente constitucional (ALEXY, 2008, p. 286-291). Com efeito, entende-se que na restrição indiretamente constitucional, inclui a possibilidade de restrição nas hipóteses de reserva legal simples, qualificada e implícita, sendo que, neste último caso, a restrição deve almejar um fim constitucionalmente protegido (ALEXY, 2008, 291-295).
No âmbito do Direito brasileiro, pode-se compreender que o fim constitucionalmente protegido pela intervenção no direito fundamental à inviolabilidade de dados é a proteção do interesse público na investigação em detrimento da intimidade do indivíduo (LIMA, 2019, p. 776). Outrossim, outro argumento utilizado é de que os direitos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas. Nesse sentido, importante consideração é feita pelo Superior Tribunal de Justiça:
[…] está muito em voga, hodiernamente, a utilização ad argumentandum tantum, por aqueles que perpetram delitos bárbaros e hediondos, dos indigitados direitos humanos. Pasmem, ceifam vidas, estupram, seqüestram, destróem lares e trazem a dor a quem quer que seja, por nada, mas depois, buscam guarida nos direitos humanos fundamentais. É verdade que esses direitos devem ser observados, mas por todos, principalmente, por aqueles que impensadamente, cometem os censurados delitos trazendo a dor aos familiares das vítimas (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 6ª T., RHC nº 2.777-0/RJ, Rel. Min. Pedro Acioli, Ementário 08/721).
Sendo assim, segundo a melhor dogmática de direitos fundamentais, há possibilidade de intervenção sobre o âmbito de proteção do direito fundamental, consistente na possibilidade de acesso ao conteúdo das comunicações pretéritas, desde que ocorra de maneira constitucionalmente fundamentada.
Com efeito, conforme ensina a doutrina, em tal hipótese se estaria diante de uma restrição (NOVELINO, 2016, p. 280) no âmbito de proteção, eis que se trataria de uma conduta lícita. Ao contrário, não sendo constitucionalmente fundamentada, tratar-se-ia de intervenção na modalidade violação, sendo uma atividade ilícita. Nesse sentido, é admissível a restrição no direito fundamental se a permissão decorrer da Constituição, seja por uma restrição direta ou indireta (NOVELINO, 2016, p. 280).
Logo, compreende-se que não existem direitos e garantias fundamentais com caráter absoluto, podendo haver sua relativização, inclusive por normas constitucionais, infralegais e diante do caso concreto estabelecido, em virtude da colisão entre princípios consagradores de direitos fundamentais. Para a resolução de conflitos entre direitos fundamentais, em muitas decisões utilizam-se do princípio da proporcionalidade.
Nessa senda, com expressa menção à proporcionalidade para limitação de direitos, entendeu o juiz García Ramírez da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar o caso Escher v. Brasil:
Tem-se dito, com razão, que os direitos individuais não são absolutos. É possível restringi-los, limitá-los, condicionar seu exercício em função de bens e exigências de alto nível: direitos de terceiros, bem comum, por exemplo. No entanto, essa fronteira dos direitos individuais só cede sob o controle justificante e regulador de certos princípios, exatamente os mesmos que a Corte Interamericana tem explorado, com particular exigência, quando se refere às restrições legítimas do direito à liberdade, por exemplo, através de medidas cautelares: legalidade, necessidade (mais ainda, inevitabilidade: o meio empregado deve ser o único praticável), idoneidade, proporcionalidade, temporalidade (2009, p. 02).
Com efeito, é possível a restrição no direito fundamental se a permissão decorrer da Constituição, seja por uma restrição direta ou indireta (ALEXY, 2008, p. 286-291).
Todavia, deve-se destacar que por se tratar de uma restrição ao âmbito de proteção do direito fundamental à inviolabilidade, que é consectário lógico do direito à privacidade e intimidade, há necessidade que a medida seja adotada apenas em hipóteses excepcionais, quando o fato a ser provado não puder ser objeto de outros elementos de provas, sendo necessária, em regra, prévia autorização judicial. Nesse sentido, é a posição do Superior Tribunal de Justiça:
PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. QUEBRA DE SIGILO DE MENSAGENS (WHATSAPP). AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. IMPRESCINDIBILIDADE DA MEDIDA. VERIFICAÇÃO. SÚMULA N. 7 DO STJ. JUNTADA EXTEMPORÂNEA DE DOCUMENTOS. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZO CONCRETO. OITIVA DE TESTEMUNHA DA ACUSAÇÃO. NÃO IMPUGNAÇÃO DOS FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO. SÚMULA N. 283 DO STF. DILIGÊNCIAS DA DEFESA. SÚMULA N. 283 DO STF. CONEXÃO COM OUTROS PROCESSOS CRIMINAIS. SÚMULA N. 7 DO STJ. ATIPICIDADE DAS CONDUTAS. SÚMULA N. 7 DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. O acesso aos dados constantes de aplicativos de mensagens instalados em telefones celulares é legítimo mediante prévia autorização judicial e demonstrada a imprescindibilidade da medida. 2. A verificação da imprescindibilidade da medida implicaria a necessidade de revolvimento fático-probatório dos autos, o que é vedado de acordo com o estabelecido na Súmula n. 7 do STJ. 3. A defesa foi intimada sobre os documentos acostados aos autos pela acusação antes de apresentar suas alegações finais. A nulidade somente seria possível se houvesse sido demonstrada a relevância da referida documentação para o desfecho do processo e a impossibilidade de havê-los impugnados de forma efetiva, o que não ocorreu. 4. As partes não impugnaram, nas razões do recurso especial, os fundamentos do acórdão recorrido no tocante à alegada parcialidade da testemunha da acusação ouvida em juízo. Incidência da Súmula n. 283 do STF. 5. Os agravantes não contestaram os motivos explicitados pela Corte de origem sobre os fato de as diligências pleiteadas pela defesa haverem sido juntadas aos autos antes da prolação da sentença condenatória com a devida intimação. Aplicação do disposto na Súmula n. 283 do STF. 6. O exame da alegada conexão entre ações penais distintas, no caso concreto, implica a necessidade de revolvimento fático-probatório, o que é inviável pelo disposto na Súmula n. 7 do STJ. 7. A discussão sobre a ausência das elementares, do animus associativo e/ou do poderio econômico do grupo implicaria a necessidade de revolvimento fático-probatório dos autos. Incidência da Súmula n. 7 do STJ. 8. As questões invocadas nas razões do especial no tocante à atenuante genérica do art. 66 do CP e à desproporcionalidade na fixação das causas de aumento não foram prequestionadas na origem, o que atrai a aplicação do entendimento da Súmula n. 356 do STF. 9. Agravo regimental não provido. ( BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 1708679/MS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 26/10/2021, DJe 04/11/2021)
Logo, para a intervenção no direito fundamental à inviolabilidade de dados telefônicos por parte de órgãos de segurança pública, a medida deve ser adotada em hipóteses excepcionais, apenas em casos de imprescindibilidade do meio probatório. Demais disso, conforme será analisado no próximo tópico, a intervenção sobre o direito fundamental é considerado como legítima ou ilegítima a depender do grau de intervenção ao direito à privacidade.
3 A INTERVENÇÃO NO DIREITO FUNDAMENTAL À INVIOLABILIDADE DE DADOS TELEFÔNICOS À LUZ DOS POSICIONAMENTOS DAS CORTES SUPERIORES
De início, saliente-se que a possibilidade de extração de dados telefônicos de particulares por parte do Estado deve ser analisado de acordo com as peculiaridades do caso concreto, sendo que ora se exige submissão à cláusula de reserva de jurisdição, ora se dispensa. Inclusive, há situações em que a intervenção se torna tão intensa ao direito fundamental, que sequer é permitida, em qualquer hipótese, a medida estatal.
Nessa senda, adentrando no estudo da intervenção sobre o direito à privacidade, que é consectário do direito à inviolabilidade de dados telefônicos, à luz dos posicionamentos das Cortes Superiores, colaciona-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal ao julgar pela possibilidade de extração de dados privativos sem autorização judicial. No caso julgado, mensagens criminosas haviam sido enviadas, diretamente de uma lan house, contra a honra de determinada pessoa. Em razão do meio probatório relativo ao acesso aos dados, chegou-se ao criminoso, sendo a prova reputada como válida, notadamente porque não houve acesso ao conteúdo da comunicação criminosa, sendo autorizado pelo proprietário do estabelecimento. Colaciona-se a íntegra da ementa:
PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME MILITAR. MENSAGENS CRIMINOSAS ENVIADAS PELA INTERNET. ACESSO AO CONTEÚDO DAS COMUNICAÇÕES DISPONIBILIZADO PELOS DESTINATÁRIOS. ACESSO AOS DADOS DE COMPUTADOR EM LAN HOUSE COM AUTORIZAÇÃO DO PROPRIETÁRIO JUDICIAL. INTERROGATÓRIO POR PRECATÓRIA. INVALIDADES NÃO RECONHECIDAS. Envio de comunicações criminosas, contendo injúria, desacato e incitação à prática de crimes, por meio de computador mantido em Lan House. Só há intromissão na esfera privada de comunicações, a depender de prévia autorização judicial, na hipótese de interferência alheia à vontade de todos os participantes do ato comunicativo. Caso no qual o acesso ao conteúdo das comunicações ilícitas foi disponibilizado à investigação pelos destinatários das mensagens criminosas. Autoria de crimes praticados pela internet desvelada mediante acesso pela investigação a dados mantidos em computador de Lan House utilizado pelo agente. Acesso ao computador que não desvelou o próprio conteúdo da comunicação criminosa, mas somente dados que permitiram identificar o seu autor. Desnecessidade de prévia ordem judicial e do assentimento do usuário temporário do computador quando, cumulativamente, o acesso pela investigação não envolve o próprio conteúdo da comunicação e é autorizado pelo proprietário do estabelecimento e do aparelho, uma vez que é este quem possui a disponibilidade dos dados neles contidos. Não é inválida a realização de interrogatório por precatória quando necessária pela distância entre a sede do Juízo e a residência do acusado. Não se prestigia a forma pela forma e, portanto, não se declara nulidade sem prejuízo, conforme princípio maior que rege a matéria (art. 499 do Código de Processo Penal Militar). Ordem denegada (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 103.425/AM, Min. Rel. Rosa Weber, Brasília, DF, 26 jun. 2012).
Dezem, ao fazer comentários sobre o julgamento, anota que se fez consideração a dupla análise da perspectiva do direito à privacidade, conforme suas palavras ((2016, p. 508):
Apliquemos o teste da norte-americana a este caso: 1) o acusado teria acreditava estar abarcado pela proteção da intimidade> É possível que a resposta seja afirmativa, pois, em regra, as pessoas acreditam que no uso da internet estão protegidas. 2) a sociedade acredita como legítima esta expectativa de privacidade> A resposta só pode ser negativa, com efeito, a sociedade, pensando-se no padrão de quem transmite a outrem seus segredos em lan house, não aceita como legítima a expectativa de privacidade neste caso.
Com efeito, entendeu-se que não houve nenhuma expectativa de privacidade por parte do investigado, uma vez que as mensagens foram enviadas de uma lan house, sendo que o possuidor dos dados se tratava do proprietário, bem como não havia propriamente o acesso ao conteúdo da conversa, mas somente aos dados que permitem investigar seu autor. Logo, a intervenção no direito fundamental não se mostrou tão intensa, de sorte que houve restrição legítima ao âmbito de proteção da inviolabilidade de dados.
De igual forma, entendeu-se no caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça pela licitude da extração de dados e conversas em aparelhos celulares da vítima que havia sido morta – proprietário –, tendo o telefone sido entregue pela própria esposa, após o cometimento do ilícito. Entrementes, consignou-se que em primeiro lugar, não haveria ofensa ao direito à privacidade da vítima, detentora de eventual sigilo e, em segundo lugar, o que se protege no processo penal são os interesses do investigado, sendo que no caso sua privacidade não estaria sendo violada. Nesse sentido:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO E PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO PERMITIDO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. ART. 41, DO CPP. INOBSERVÂNCIA. DADOS E DE CONVERSAS REGISTRADAS NO WHATSAPP. EXTRAÇÃO SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL NÃO CONFIGURADO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. A denúncia não descreve a conduta do recorrente quanto à imputação de porte ilegal de arma de fogo, não sendo possível identificar como teria ele contribuído para a consecução desse delito. 2. Não há ilegalidade na perícia de aparelho de telefonia celular pela polícia na hipótese em que seu proprietário – a vítima – foi morto, tendo o referido telefone sido entregue à autoridade policial por sua esposa, interessada no esclarecimento dos fatos que o detinha, pois não havia mais sigilo algum a proteger do titular daquele direito. 3. Recurso parcialmente provido, apenas para trancar a ação penal em relação ao recorrente, quanto à imputação concernente ao crime previsto no art. 14 da Lei n. 10.826/2003, por inépcia formal da denúncia, sem prejuízo de que outra seja oferecida. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n° 86.076/MT, Min. Rel. Sebastião Reis Júnior, Brasília, DF, 15 set. 2016).
De igual forma, portanto, a intervenção no direito fundamental não se mostrou tão intensa, de sorte que houve restrição legítima ao âmbito de proteção do direito à inviolabilidade de dados.
Outrossim, ainda sobre a controvérsia sobre a necessidade de submissão à cláusula de reserva de jurisdição, destaca-se a distinção estabelecida quanto à necessidade de autorização judicial para a extração de dados e de conversas registradas em aparelhos celulares, em virtude da evolução da tecnologia.
Nessa linha, havia o entendimento inicial da possibilidade da extração de ‘dados em si mesmo’ em aparelhos celulares, independentemente de autorização judicial. Conforme posicionamento da 2ª turma do Supremo Tribunal Federal, em caso ocorrido em 2004, em que, logo após a prisão em flagrante, o telefone celular do investigado havia sido apreendido, sendo analisados os seus últimos registros telefônicos. Entrementes, decidiu-se que não haveria violação ao direito à intimidade, pois a consulta das chamadas recebidas e efetuadas nos aparelhos não violaria a norma constitucional:
HABEAS CORPUS. NULIDADES: (1) INÉPCIA DA DENÚNCIA; (2) ILICITUDE DA PROVA PRODUZIDA DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL; VIOLAÇÃO DE REGISTROS TELEFÔNICOS DO CORRÉU, EXECUTOR DO CRIME, SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL; (3) ILICITUDE DA PROVA DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS DE CONVERSAS DOS ACUSADOS COM ADVOGADOS, PORQUANTO ESSAS GRAVAÇÕES OFENDERIAM O DISPOSTO NO ART. 7º, II, DA LEI 8.906/96, QUE GARANTE O SIGILO DESSAS CONVERSAS. VÍCIOS NÃO CARACTERIZADOS. ORDEM DENEGADA. 1. Inépcia da denúncia. Improcedência. Preenchimento dos requisitos do art. 41 do CPP. A denúncia narra, de forma pormenorizada, os fatos e as circunstâncias. Pretensas omissões – nomes completos de outras vítimas, relacionadas a fatos que não constituem objeto da imputação –- não importam em prejuízo à defesa. 2. Ilicitude da prova produzida durante o inquérito policial – violação de registros telefônicos de corréu, executor do crime, sem autorização judicial. 2.1 Suposta ilegalidade decorrente do fato de os policiais, após a prisão em flagrante do corréu, terem realizado a análise dos últimos registros telefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos. Não ocorrência. 2.2 Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados. 2.3 Art. 6º do CPP: dever da autoridade policial de proceder à coleta do material comprobatório da prática da infração penal. Ao proceder à pesquisa na agenda eletrônica dos aparelhos devidamente apreendidos, meio material indireto de prova, a autoridade policial, cumprindo o seu mister, buscou, unicamente, colher elementos de informação hábeis a esclarecer a autoria e a materialidade do delito (dessa análise logrou encontrar ligações entre o executor do homicídio e o ora paciente). Verificação que permitiu a orientação inicial da linha investigatória a ser adotada, bem como possibilitou concluir que os aparelhos seriam relevantes para a investigação. 2.4 À guisa de mera argumentação, mesmo que se pudesse reputar a prova produzida como ilícita e as demais, ilícitas por derivação, nos termos da teoria dos frutos da árvore venenosa (fruit of the poisonous tree), é certo que, ainda assim, melhor sorte não assistiria à defesa. É que, na hipótese, não há que se falar em prova ilícita por derivação. Nos termos da teoria da descoberta inevitável, construída pela Suprema Corte norte-americana no caso Nix x Williams (1984), o curso normal das investigações conduziria a elementos informativos que vinculariam os pacientes ao fato investigado. Bases desse entendimento que parecem ter encontrado guarida no ordenamento jurídico pátrio com o advento da Lei 11.690/2008, que deu nova redação ao art. 157 do CPP, em especial o seu § 2º. 3. Ilicitude da prova das interceptações telefônicas de conversas dos acusados com advogados, ao argumento de que essas gravações ofenderiam o disposto no art. 7º, II, da Lei n. 8.906/96, que garante o sigilo dessas conversas. 3.1 Nos termos do art. 7º, II, da Lei 8.906/94, o Estatuto da Advocacia garante ao advogado a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia. 3.2 Na hipótese, o magistrado de primeiro grau, por reputar necessária a realização da prova, determinou, de forma fundamentada, a interceptação telefônica direcionada às pessoas investigadas, não tendo, em momento algum, ordenado a devassa das linhas telefônicas dos advogados dos pacientes. Mitigação que pode, eventualmente, burlar a proteção jurídica. 3.3 Sucede que, no curso da execução da medida, os diálogos travados entre o paciente e o advogado do corréu acabaram, de maneira automática, interceptados, aliás, como qualquer outra conversa direcionada ao ramal do paciente. Inexistência, no caso, de relação jurídica cliente-advogado. 3.4 Não cabe aos policiais executores da medida proceder a uma espécie de filtragem das escutas interceptadas. A impossibilidade desse filtro atua, inclusive, como verdadeira garantia ao cidadão, porquanto retira da esfera de arbítrio da polícia escolher o que é ou não conveniente ser interceptado e gravado. Valoração, e eventual exclusão, que cabe ao magistrado a quem a prova é dirigida. 4. Ordem denegada ( BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 91.867/PA, Rel. Gilmar Ferreira Mendes, Brasília, DF, 24 abril 2012).
No entanto, posteriormente, no ano de 2016, o Superior Tribunal de Justiça, afastando-se do precedente persuasivo do Supremo Tribunal Federal, decidiu que seriam nulas as provas obtidas por intermédio da extração de dados registrados no aplicativo whatsapp, sem prévia submissão à cláusula de reserva de jurisdição. Segundo apontou o Ministro Rogério Schietti Cruz haveria um distinguishing em relação à decisão proferida no HC 91.867 do Supremo Tribunal Federal:
Os fatos narrados nesse writ são de 2004, período em que os telefone celulares sabidamente não eram conectados à internet de banda larga como o são já há algum tempo – os chamados smartphones, dotados de aplicativos de comunicação em tempo real –, motivo pelo qual o acesso que os policiais teriam àquela época seria necessariamente menos intrusivo que o seria hoje. Atualmente, o acesso a aparelho de telefonia celular de pessoa presa em flagrante possibilita, à autoridade policial, o acesso à inúmeros aplicativos de comunicação em tempo real, tais como Whatsapp, Viber, Line, Wechat, Telegram, BBM, SnapChat, etc. Todos eles com as mesmas funcionalidades de envio e recebimento de mensagens, fotos, vídeos e documentos em tempo real (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n°. 51.531/RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Brasília, 19 jun. 2016, p. 16).
Nesse julgado, houve, inclusive, a citação da doutrina que nomeia o chamado direito probatório de terceira geração, que, segundo as palavras do Ministro: “[…] trata-se de provas invasivas, altamente tecnológicas, que permitem alcançar conhecimentos e resultados inatingíveis pelos sentidos e pelas técnicas tradicionais” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n°. 51.531/RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Brasília, 19 jun. 2016).
Colaciona-se, assim, a ementa do julgamento do Superior Tribunal de Justiça:
PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. NULIDADE DA PROVA. AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PARA A PERÍCIA NO CELULAR. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO 1. Ilícita é a devassa de dados, bem como das conversas de whatsapp, obtidas diretamente pela polícia em celular apreendido no flagrante, sem prévia autorização judicial.
2. Recurso ordinário em habeas corpus provido, para declarar a nulidade das provas obtidas no celular do paciente sem autorização judicial, cujo produto deve ser desentranhado dos autos ( BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n°. 51.531/RO, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Brasília, 19 jun. 2016).
Entrementes, em virtude do avanço tecnológico, que pode ser prejudicial ao direito fundamental à privacidade, as Cortes Superiores vêm conferindo interpretação restritiva ao acesso de dados telefônicos por agentes públicos relacionados à persecução penal.
Com efeito, é de se notar que, em virtude do avanço da tecnologia, a intervenção no direito fundamental à inviolabilidade de dados telefônicos mostra-se mais intensa. Logo, há necessidade de controlabilidade da extração de dados, por agentes públicos, em celulares que possuem aplicativos que operam em tempo real, sob pena de violação ilegítima no direito fundamental.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que, mesmo na hipótese de prisão em flagrante e após a apreensão do telefone celular por policiais, deve haver requerimento para a quebra do sigilo dos dados armazenados, em razão da garantia prevista no art. 5°, X, da Constituição Federal, sob pena de ilicitude das provas obtidas:
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. APARELHO TELEFÔNICO APREENDIDO. VISTORIA REALIZADA PELA AUTORIDADE POLICIAL SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL OU DO PRÓPRIO INVESTIGADO. VERIFICAÇÃO DE MENSAGENS ARQUIVADAS. VIOLAÇÃO DA INTIMIDADE. PROVA ILÍCITA. ART. 157 DO CPP. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO. 1. Embora a situação retratada nos autos não esteja protegida pela Lei n. 9.296/1996 nem pela Lei n. 12.965/2014, haja vista não se tratar de quebra sigilo telefônico por meio de interceptação telefônica, ou seja, embora não se trate violação da garantia de inviolabilidade das comunicações, prevista no art. 5º, inciso XII, da CF, houve sim violação dos dados armazenados no celular do recorrente (mensagens de texto arquivadas). 2. No caso, deveria a autoridade policial, após a apreensão do telefone, ter requerido judicialmente a quebra do sigilo dos dados armazenados, haja vista a garantia, igualmente constitucional, à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, prevista no art. 5º, inciso X, da CF. Dessa forma, a análise dos dados telefônicos constante do aparelho do recorrente, sem sua prévia autorização ou de prévia autorização judicial devidamente motivada, revela a ilicitude da prova, nos termos do art. 157 do CPP. 3. Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a ilicitude da colheita de dados do aparelho telefônico do recorrente, sem autorização judicial, devendo mencionadas provas, bem como as derivadas, serem desentranhadas dos autos (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n°. 78.747/RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, Brasília, 09 jun. 2017).
PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. PRISÃO EM FLAGRANTE. APARELHO TELEFÔNICO APREENDIDO. VISTORIA REALIZADA PELA POLÍCIA MILITAR SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL OU DO PRÓPRIO INVESTIGADO. VERIFICAÇÃO DE MENSAGENS (CONVERSAS DE WHATSAPP). VIOLAÇÃO DA INTIMIDADE. PROVA ILÍCITA. ART. 157 DO CPP. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO. 1. Embora a situação retratada nos autos não esteja protegida pela Lei n. 9.296/1996 nem pela Lei n. 12.965/2014, haja vista não se tratar de quebra sigilo telefônico por meio de interceptação telefônica, ou seja, embora não se trate violação da garantia de inviolabilidade das comunicações, prevista no art. 5º, inciso XII, da CF, houve sim violação dos dados armazenados no celular do recorrente (mensagens de texto arquivadas – WhatsApp). 2. No caso, deveria a autoridade policial, após a apreensão do telefone, ter requerido judicialmente a quebra do sigilo dos dados armazenados, haja vista a garantia, igualmente constitucional, à inviolabilidade da intimidade e da vida privada, prevista no art. 5º, inciso X, da CF. Dessa forma, a análise dos dados telefônicos constante do aparelho do investigado, sem sua prévia autorização ou de prévia autorização judicial devidamente motivada, revela a ilicitude da prova, nos termos do art. 157 do CPP. Precedentes do STJ. 3. Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a ilicitude da colheita de dados do aparelho telefônico do recorrente, sem autorização judicial, devendo mencionadas provas, bem como as derivadas, serem desentranhadas dos autos, exame que será feito pelo Juízo de 1º Grau. ( BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC n. 101.585/MG, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 18/10/2018, DJe de 26/10/2018).
Nessa senda, observa-se, assim, que houve evolução no entendimento pretoriano, com base no distinguishing, em virtude da diferença fática exposta no precedente julgado pelo Supremo Tribunal Federal e os demais precedentes citados por ambas as turmas do Superior Tribunal de Justiça, demonstrando que a necessidade de autorização judicial é condicionada à análise do grau de intervenção sobre o direito fundamental.
Todavia, há situações em que, mesmo com autorização judicial, não seria possível a extração de dados telefônicos.
Nesse sentido, trata-se do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça relativo ao espelhamento de conversas. Nesse caso, houve a apreensão de aparelho celular do suspeito da prática de crime equiparado a hediondo, porém, na devolução do celular ao dono, os agentes de segurança pública mantiveram o monitoramento das conversas pelo aplicativo, via WhatsApp Web, sendo que elas serviram de fundamento para a decretação de sua prisão preventiva. Em razão disso, o Superior Tribunal de Justiça declarou nula a decisão judicial que autorizou o espelhamento como forma de obtenção de provas, haja vista que se permite o acesso irrestrito, inclusive a mensagens antigas. Com efeito, sequer seria possível equiparar o meio de obtenção de provas à interceptação telefônica, haja vista que nesta hipótese é permitida a interceptação só após autorização judicial, enquanto na situação do espelhamento seria possibilitado aos agentes policiais o acesso irrestrito das conversas já registradas. Ademais, poderia haver a interferência ativa na troca de mensagens entre os usuários, o que não acontece com a interpretação telefônica:
RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO E TELEMÁTICO. ORDEM DE HABILITAÇÃO DE SIMCARD (CHIP) DA AUTORIDADE POLICIAL FEDERAL EM SUBSTITUIÇÃO AO DO TITULAR DA LINHA. PROCEDIMENTO ILEGAL. SEGURANÇA CONCEDIDA. INSURGÊNCIA MINISTERIAL. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA DA OPERADORA TELEFÔNICA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 284/STJ. ILEGALIDADE DA INCURSÃO INVESTIGATÓRIA. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO. 1. Para arguir suposta ilegitimidade ativa da Impetrante do writ originário, o Recorrente aponta como violado o art. 18 do Código de Processo Penal, contudo, em seguida, refere-se ao art. 18 do Código de Processo Civil, transcreve o teor deste, mas anota na transcrição “art. 6.º”. Ou seja: não há sequer indicação clara e precisa do artigo de lei supostamente violado, o que obsta a admissão do recurso especial por inescusável deficiência de fundamentação, a atrair a incidência da Súmula n.º 284/STF. Precedentes. 2. Sobre a mesma questão, alega ainda violação ao art. 1.º da Lei n. º 12.016/2009, mas sem desenvolver nenhuma tese, limitando-se o Recorrente a afirmar a suposta violação, denotando, mais uma vez, inescusável deficiência de fundamentação, fazendo incidir o óbice da Súmula n.º 284/STF. Precedentes 3. Ademais, sequer há correspondência entre o argumento da ilegitimidade ativa e o conteúdo normativo do art. 1.º da Lei n.º 12.016/2009, atraindo, novamente, a incidência da Súmula n.º 284/STF. Precedentes 4. Obiter dictum: a legitimidade ativa da empresa de telefonia foi reconhecida pelo Tribunal a quo não para “proteger direito dos usuários das linhas telefônicas que seriam prejudicados com a interceptação telefônica”, como afirmou o Recorrente, mas para discutir a ausência de lei específica para subsidiar a ordem judicial, que determinara inusitada interferência direta na própria prestação do serviço público pela concessionária 5. No mais, a ordem judicial, endereçada à concessionária de telefonia, consistiu na determinação de viabilizar à autoridade policial a utilização de “SIMCARD” (cartão “SIM”, sigla em inglês da expressão Subscriber Identity Module – módulo de identificação do assinante -, comumente referido no Brasil como “chip”), em substituição ao do aparelho celular do usuário investigado, “pelo prazo de 15 (quinze) dias e a critério da autoridade policial, em horários previamente indicados, inclusive de madrugada. 6. Pretendeu-se que a operadora de telefonia, quando acionada, habilitasse o chip do agente investigador, em substituição ao do usuário, a critério da autoridade policial, que teria pleno acesso, em tempo real, às chamadas e mensagens transmitidas para a linha originária, inclusive via WhatsApp. 7. A ação, se implementada, permitiria aos investigadores acesso irrestrito a todas as conversas por meio do WhatsApp, inclusive com a possibilidade de envio de novas mensagens e a exclusão de outras. Se não bastasse, eventual exclusão de mensagem enviada ou de mensagem recebida não deixaria absolutamente nenhum vestígio e, por conseguinte, não poderia jamais ser recuperada para servir de prova em processo penal, tendo em vista que, em razão da própria característica do serviço, feito por meio de encriptação ponta-a-ponta, a operadora não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários. 8. Ao contrário da interceptação telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero observador de conversas travadas entre o alvo interceptado e terceiros, na troca do chip habilitado, o agente do estado tem a possibilidade de atuar como participante das conversas, podendo interagir diretamente com seus interlocutores, enviando novas mensagens a qualquer contato inserido no celular, além de poder também excluir, com total liberdade, e sem deixar vestígios, as mensagem no WhatsApp. E, nesse interregno, o usuário ficaria com todos seus serviços de telefonia suspensos 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n°. 99735/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, Brasília, 27 nov. 2018).
Logo, considerou-se que na hipótese de espelhamento, a intervenção no direito fundamental seria tão interna, que toda a intervenção no direito fundamental seria considerada como violação.
Demais disso, ainda conferindo interpretação restritiva à possibilidade de intervenção ao âmbito de proteção da garantia fundamental da inviolabilidade de dados telefônicos, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que não podem ser usadas, no âmbito do processo penal, as mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web. Isso, pois, consoante entendeu o Tribunal, em tal situação seria possível, a critério do autor, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas ou recentes, tenham elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato. Ademais, afirmou que exclusão de eventual mensagem enviada, seja na opção “Apagar somente para Mim”, seja na mensagem recebida, não deixa qualquer vestígio. Portanto, para efeitos de provas, jamais poderia ser recuperada, uma vez que a própria empresa, em razão da tecnologia de encriptação ponta a ponta, não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. CORRUPÇÃO ATIVA E PASSIVA. NOTÍCIA ANÔNIMA DO CRIME APRESENTADA JUNTO COM A CAPTURA DA TELA DAS CONVERSAS DO WHATSAPP. INTERLOCUTOR INTEGRANTE DO GRUPO DE CONVERSAS DO APLICATIVO. POSSIBILIDADE DE PROMOÇÃO DE DILIGÊNCIAS PELO PODER PÚBLICO. ESPELHAMENTO, VIA WHATSAPP WEB, DAS CONVERSAS REALIZADAS PELO INVESTIGADO COM TERCEIROS. NULIDADE VERIFICADA. DEMAIS PROVAS VÁLIDAS. AGRAVO REGIMENTAL PARCIALMENTE PROVIDO.
1. Não há ilegalidade no inquérito policial, pois, após a notícia anônima do crime, foi adotado um procedimento preliminar para apurar indícios de conduta delitiva, antes de serem adotadas medidas mais drásticas, como a quebra do sigilo telefônico, sendo que as delações anônimas não foram os únicos elementos utilizados para a instauração do procedimento investigatório, conforme a transcrição do Relatório Técnico, datado de 30/12/2015, no acórdão proferido no RHC 79.848. Ademais, de acordo com as informações prestadas pelo Juízo de Direito da Vara Criminal da Comarca de Ipojuca/PE nos autos do RHC 79.848, “No IPL há a denúncia por escrito e assinada com a qualificação dos denunciantes, assim não há que se falar em que somente houve denúncia anônima para a instauração de um IPL” (fl. 736 do RHC 79.848). 2. Consta dos autos que os prints das conversas do WhatsApp teriam sido efetivados por um dos integrantes do grupo de conversas do aplicativo, isto é, seria um dos próprios interlocutores, haja vista que ainda consta no acórdão do Tribunal de origem que, “como bem pontuado pela douta Procuradoria de Justiça que ‘(…) a tese da defesa de que a prova é ilícita se contrapõe a tese da acusação de que as conversas foram vazadas por um dos próprios interlocutores devendo ser objeto de prova no decorrer da instrução processual'”. 3. Esta Sexta Turma entende que é invalida a prova obtida pelo WhatsApp Web, pois “é possível, com total liberdade, o envio de novas mensagens e a exclusão de mensagens antigas (registradas antes do emparelhamento) ou recentes (registradas após), tenham elas sido enviadas pelo usuário, tenham elas sido recebidas de algum contato.
Eventual exclusão de mensagem enviada (na opção “Apagar somente para Mim”) ou de mensagem recebida (em qualquer caso) não deixa absolutamente nenhum vestígio, seja no aplicativo, seja no computador emparelhado, e, por conseguinte, não pode jamais ser recuperada para efeitos de prova em processo penal, tendo em vista que a própria empresa disponibilizadora do serviço, em razão da tecnologia de encriptação ponta-a-ponta, não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários” (RHC 99.735/SC, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2018, DJe 12/12/2018). 4. Agravo regimental parcialmente provido, para declarar nulas as mensagens obtidas por meio do print screen da tela da ferramenta WhatsApp Web, determinando-se o desentranhamento delas dos autos, mantendo-se as demais provas produzidas após as diligências prévias da polícia realizadas em razão da notícia anônima dos crimes ( BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no RHC 133.430/PE, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 26/02/2021).
Ato contínuo, ainda sobre a análise do uso de tecnologia invasiva e da proteção do direito fundamental à privacidade dos dados telefônicos, o Superior Tribunal de Justiça tem posicionamento considerando ilícita a habilitação de chip da autoridade policial em substituição ao do acusado titular da linha:
RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO E TELEMÁTICO. ORDEM DE HABILITAÇÃO DE SIMCARD (CHIP) DA AUTORIDADE POLICIAL FEDERAL EM SUBSTITUIÇÃO AO DO TITULAR DA LINHA. PROCEDIMENTO ILEGAL. SEGURANÇA CONCEDIDA. INSURGÊNCIA MINISTERIAL. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA DA OPERADORA TELEFÔNICA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 284/STJ. ILEGALIDADE DA INCURSÃO INVESTIGATÓRIA. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA EXTENSÃO, DESPROVIDO. 1. Para arguir suposta ilegitimidade ativa da Impetrante do writ originário, o Recorrente aponta como violado o art. 18 do Código de Processo Penal, contudo, em seguida, refere-se ao art. 18 do Código de Processo Civil, transcreve o teor deste, mas anota na transcrição “art. 6.º”. Ou seja: não há sequer indicação clara e precisa do artigo de lei supostamente violado, o que obsta a admissão do recurso especial por inescusável deficiência de fundamentação, a atrair a incidência da Súmula n.º 284/STF. Precedentes. 2. Sobre a mesma questão, alega ainda violação ao art. 1.º da Lei n. º 12.016/2009, mas sem desenvolver nenhuma tese, limitando-se o Recorrente a afirmar a suposta violação, denotando, mais uma vez, inescusável deficiência de fundamentação, fazendo incidir o óbice da Súmula n.º 284/STF. Precedentes. 3. Ademais, sequer há correspondência entre o argumento da ilegitimidade ativa e o conteúdo normativo do art. 1.º da Lei n.º 12.016/2009, atraindo, novamente, a incidência da Súmula n.º 284/STF. Precedentes. 4. Obiter dictum: a legitimidade ativa da empresa de telefonia foi reconhecida pelo Tribunal a quo não para “proteger direito dos usuários das linhas telefônicas que seriam prejudicados com a interceptação telefônica”, como afirmou o Recorrente, mas para discutir a ausência de lei específica para subsidiar a ordem judicial, que determinara inusitada interferência direta na própria prestação do serviço público pela concessionária. 5. No mais, a ordem judicial, endereçada à concessionária de telefonia, consistiu na determinação de viabilizar à autoridade policial a utilização de “SIMCARD” (cartão “SIM”, sigla em inglês da expressão Subscriber Identity Module – módulo de identificação do assinante -, comumente referido no Brasil como “chip”), em substituição ao do aparelho celular do usuário investigado, “pelo prazo de 15 (quinze) dias e a critério da autoridade policial, em horários previamente indicados, inclusive de madrugada.” 6. Pretendeu-se que a operadora de telefonia, quando acionada, habilitasse o chip do agente investigador, em substituição ao do usuário, a critério da autoridade policial, que teria pleno acesso, em tempo real, às chamadas e mensagens transmitidas para a linha originária, inclusive via WhatsApp. 7. A ação, se implementada, permitiria aos investigadores acesso irrestrito a todas as conversas por meio do WhatsApp, inclusive com a possibilidade de envio de novas mensagens e a exclusão de outras.
Se não bastasse, eventual exclusão de mensagem enviada ou de mensagem recebida não deixaria absolutamente nenhum vestígio e, por conseguinte, não poderia jamais ser recuperada para servir de prova em processo penal, tendo em vista que, em razão da própria característica do serviço, feito por meio de encriptação ponta-a-ponta, a operadora não armazena em nenhum servidor o conteúdo das conversas dos usuários. 8. Ao contrário da interceptação telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero observador de conversas travadas entre o alvo interceptado e terceiros, na troca do chip habilitado, o agente do estado tem a possibilidade de atuar como participante das conversas, podendo interagir diretamente com seus interlocutores, enviando novas mensagens a qualquer contato inserido no celular, além de poder também excluir, com total liberdade, e sem deixar vestígios, as mensagem no WhatsApp. E, nesse interregno, o usuário ficaria com todos seus serviços de telefonia suspensos. 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, desprovido ( BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 1.806.792/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 11/5/2021, DJe de 25/5/2021).
Ademais, nos termos do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é possível o acesso ao whatsapp do preso, mesmo sem autorização judicial, em caso de telefone celular encontrado no interior de estabelecimento prisional. Isso porque se considerou que é proibida a comunicação do recluso com o ambiente externo, conforme regras no âmbito da execução penal. Logo, o recluso não teria direito à expectativa de privacidade, de sorte que a intervenção no direito fundamental à inviolabilidade de dados não seria intensa. Eis o julgado:
HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO PENAL. PEDIDO DE RECONHECIMENTO DA ILICITUDE DE PROVA OBTIDA APÓS O ACESSO A APARELHO CELULAR ENCONTRADO NO INTERIOR DE ESTABELECIMENTO PRISIONAL SEM A PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. PRECEDENTES DESTA CORTE SUPERIOR RELATIVOS À TEMÁTICA SÃO INAPLICÁVEIS NA HIPÓTESE. DISTINÇÃO. NORMAS FUNDAMENTAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. RESTRIÇÃO IMPOSTA PELA ORDEM JURÍDICA. POSSIBILIDADE. POSSE, USO E FORNECIMENTO DE APARELHO TELEFÔNICO E SIMILARES DENTRO DE ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS. ILICITUDE MANIFESTA E INCONTESTÁVEL. IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL PREVISTA NO ART. 5º. INCISO XII, DA CF/1988. DIREITOS FUNDAMENTAIS NÃO PODEM SER UTILIZADOS PARA A SALVAGUARDA DE PRÁTICAS ILÍCITAS. PRESCINDIBILIDADE DE DECISÃO JUDICIAL PARA O ACESSO AOS DADOS CONTIDOS NO OBJETO. CONTROLE JUDICIAL POSTERIOR. ATUAÇÃO DA POLÍCIA PENAL E DO PODER JUDICIÁRIO EM CONFORMIDADE COM O PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO PENAL E A REGRA DA VEDAÇÃO À SANÇÃO COLETIVA. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM DENEGADA.
1. Como é cediço, ambas as Turmas da Terceira Seção deste Tribunal entendem que é ilícita a prova obtida diretamente dos dados constantes de aparelho celular, sem prévia autorização judicial. O mencionado entendimento, todavia, deve ser distinguido da situação apresentada nesses autos. Os julgados do STJ concluem pela violação ao art. 5º, inciso XII, da Constituição Federal, quanto a dados obtidos, sem autorização judicial, de aparelhos celulares apreendidos fora de estabelecimentos prisionais. A controvérsia ora colocada, contudo, se refere à hipótese em que o aparelho é encontrado dentro de estabelecimento prisional, em situação de explícita violação às normas jurídicas que regem a execução penal. 2. De acordo com entendimento pacífico da Suprema Corte, os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto, sendo possível a existência de limitações de ordem jurídica. Os arts. 3º, 38 e 46, todos da LEP, representam hipóteses de restrição legal aos direitos individuais dos presos. Nesse cenário, uma das consequências da imposição da prisão – penal ou processual – é a proibição da comunicação do recluso com o ambiente externo por meios diversos daqueles permitidos pela lei. Para garantir a observância dessa restrição foram editadas diversas normas que têm por objetivo coibir o acesso do segregado a aparelhos telefônicos, de rádio ou similares. Exemplificativamente: art. 50, inciso VII, da Lei n. 7.210/1984; arts. 319-A e 349-A, ambos do Código Penal; art. 4º da Lei n. 10.792/2013 3. Conforme previsto no art. 41, inciso XV, da LEP, o contato do preso com o mundo exterior é autorizado por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. Mesmo no caso de comunicação por intermédio de correspondência escrita, permitida legalmente, a Suprema Corte firmou jurisprudência no sentido de que, diante da inexistência de liberdades individuais absolutas, é possível que a Administração Penitenciária, sem prévia autorização judicial, acesse o seu conteúdo quando houver inequívoca suspeita de sua utilização como meio para a preparação ou a prática de ilícitos. A necessidade de se resguardar a segurança, a ordem pública e a disciplina prisional, segundo a Corte Suprema, prevalece sobre a reserva constitucional de jurisdição. 4. Nessa conjuntura, se é prescindível decisão judicial para a análise do conteúdo de correspondência a fim de preservar interesses sociais e garantir a disciplina prisional, com mais razão se revela legítimo, para a mesma finalidade, o acesso dos dados e comunicações constantes em aparelhos celulares encontrados ilicitamente dentro do estabelecimento penal, pois a posse, o uso e o fornecimento do citado objeto são expressamente proibidos pelo ordenamento jurídico.
Tratando-se de ilicitude manifesta e incontestável, não há direito ao sigilo e, por consequência, inexiste a possibilidade de invocar a proteção constitucional prevista no art. 5º, inciso XII, da Carta da República. Por certo, os direitos fundamentais não podem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, não sendo razoável pretender proteger aquele que age em notória desconformidade com as normas de regência. 5. O controle pelo Poder Judiciário será realizado posteriormente e eventuais abusos cometidos deverão ser devidamente apurados e punidos pelos órgãos públicos competentes 6. No caso em questão, a Polícia Penal, durante procedimento de revista em uma das galerias do presídio, encontrou dois aparelhos celulares, “um escondido embaixo da escadaria próxima a porta do solário e outro em um vão aberto devido a corrosão no batente da ducha”. Como não foi localizado, naquele momento, o segregado, que usava e tinha a posse de um desses objetos, os agentes acessaram o conteúdo ali existente, ocasião em que foram encontrados dados do Paciente em aplicativos instalados no referido aparelho. Identificado o Paciente, o Juízo das Execuções Penais, na audiência de justificação, homologou a falta disciplinar de natureza grave e revogou 1/9 (um nono) dos dias remidos. A atuação da Polícia Penal e do Poder Judiciário foi legítima, estando, inclusive, em conformidade com o princípio da individualização da execução penal e com a regra de que é vedada a sanção coletiva (art. 45, § 3º, da Lei n. 7.210/1984). Assim, não havendo ilicitude da prova obtida por meio do acesso ao aparelho celular, inexiste nulidade a ser sanada 7. Ordem denegada ( BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 546.830/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 09/03/2021, DJe 22/03/2021).EXECUÇÃO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. FALTA GRAVE. APREENSÃO DE CELULARES. NULIDADE. ACESSO AOS DADOS SEM DECISÃO JUDICIAL. INEXISTÊNCIA DE VÍCIO. ORDEM DENEGADA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Não há no ordenamento, via de regra, direitos fundamentais de caráter absoluto. Assim, não há nulidade diante do acesso aos dados de celulares apreendidos ilicitamente em interior de estabelecimento prisional, uma vez que, em tais hipóteses, a garantia da inviolabilidade dos dados e comunicações fica mitigada em função da expressa proibição contida no art. 50, VII, da Lei de Execução Penal, sendo, portanto, tal garantia relativizada em favor das regras de disciplina prisional que norteiam as execuções penais. 2. “[…] se é prescindível decisão judicial para a análise do conteúdo de correspondência, a fim de preservar interesses sociais e garantir a disciplina prisional, com mais razão se revela legítimo, para a mesma finalidade, o acesso dos dados e comunicações constantes em aparelhos celulares encontrados ilicitamente dentro do estabelecimento penal, pois a posse, o uso e o fornecimento do citado objeto são expressamente proibidos pelo ordenamento jurídico. Tratando-se de ilicitude manifesta e incontestável, não há direito ao sigilo e, por consequência, inexiste a possibilidade de invocar a proteção constitucional prevista no art. 5º, inciso XII, da Carta da República. Por certo, os direitos fundamentais não podem ser utilizados para a salvaguarda de práticas ilícitas, não sendo razoável pretender proteger aquele que age em notória desconformidade com as normas de regência” (HC n. 546.830/PR, relatora Ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 9/3/2021, DJe 22/3/2021).
3. Agravo regimental desprovido ( BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC n. 661.489/MG, relator Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 29/3/2022, DJe de 4/4/2022).
Portanto, pelos posicionamentos das Cortes Superiores a respeito da possibilidade de extração de dados telefônicos por parte do Estado, afigura-se que sua análise deve ser abordada de acordo com as peculiaridades do caso concreto, haja vista que em determinadas situações exige-se a submissão à cláusula de reserva de jurisdição, sendo que ora se dispensa, havendo inclusive, situações em que a intervenção se torna tão intensa ao direito fundamental, que sequer é permitida, em qualquer hipótese, a medida estatal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Após a análise do presente estudo, observou-se que o âmbito de proteção do direito à inviolabilidade de dados telefônicos protege o conteúdo da comunicação contra qualquer intromissão indevida por parte de terceiros particulares e do Estado.
Todavia, como qualquer outro direito fundamental, a inviolabilidade de dados telefônicos não possui caráter absoluto, estando sujeito à intervenção em seu âmbito de proteção, podendo ser na modalidade de restrição, hipótese em que haveria uma conduta lícita, ou na modalidade de violação, hipótese em que se estaria diante de uma conduta ilícita.
Para a devida análise se a intervenção é constitucionalmente fundamentada, ou seja, se os órgãos de persecução penal podem extrair provas de dados telefônicos, procedeu-se pela abordagem à luz do posicionamento das Cortes Superiores, que, em regra, entendem pela necessidade de controlabilidade do ato pelo Poder Judiciário.
Não obstante, há situações em que se entendeu que a intervenção no âmbito de proteção não restou intensa ao direito fundamental à inviolabilidade de dados, sendo que sequer seria necessária a submissão à cláusula de reserva de jurisdição para a extradição de dados em aparelhos telefônicos. Nesse caso, observou-se que os julgados analisaram o tema sob a ótica da expectativa da privacidade.
Em outras hipóteses, a intervenção no direito fundamental à privacidade se mostra tão intensa em seu âmbito de proteção, que a extração de dados em aparelho celular é vedada em qualquer situação, mesmo que exista autorização judicial.
Portanto, pelos posicionamentos das Cortes Superiores a respeito da possibilidade de extração de dados telefônicos por parte do Estado, deve-se analisar o grau de intensidade da intervenção no âmbito de proteção do direito fundamental à inviolabilidade de dados, sob a ótica da expectativa da privacidade.
REFERÊNCIAS:
ALEXY, Robert. Teoria geral dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
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1Especialista em Direito Processual Penal e Prática Forense pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil(2020).