REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202504141039
Paulo Alexandre Rodrigues de Siqueira¹
Resumo
Este artigo analisa, à luz da Constituição Federal, da legislação infraconstitucional, dos tratados internacionais e da jurisprudência dos tribunais superiores, o direito das pessoas com deficiência ao acesso aos concursos públicos da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros. Com base em atuação concreta do Ministério Público do Tocantins, especialmente por meio de Ação Civil Pública e Agravo de Instrumento, discute-se a ilegalidade da omissão do Estado do Tocantins em reservar vagas às pessoas com deficiência nos editais de seus concursos militares. O texto traz ainda um panorama nacional e internacional sobre políticas de inclusão nas forças de segurança e reforça a necessidade de aplicação do controle de convencionalidade frente à legislação estadual incompatível com os tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento brasileiro.
Palavras-chave
Pessoa com Deficiência; Concurso Público; Polícia Militar; Corpo de Bombeiros; Controle de Convencionalidade; Direitos Humanos; Inclusão.
1. Introdução
O acesso das pessoas com deficiência a cargos públicos sempre foi desafiador, sobretudo nos concursos das forças de segurança, marcados historicamente por critérios excludentes e generalistas. A Constituição Federal de 1988 rompe com essa lógica ao afirmar o princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana. Somado a isso, a ratificação de tratados internacionais fortaleceu o entendimento de que a deficiência não pode ser, por si só, justificativa para exclusão.
No Tocantins, o edital de concurso para a Polícia Militar e o Corpo de Bombeiros, lançado em 2025, não previu a reserva de vagas para pessoas com deficiência, levando à atuação do Ministério Público do Estado, que propôs Ação Civil Pública e posteriormente interpôs Agravo de Instrumento, buscando garantir o cumprimento da norma constitucional e convencional.
2. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e o Controle de Convencionalidade
O marco jurídico internacional mais relevante sobre os direitos das pessoas com deficiência é, sem dúvida, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 13 de dezembro de 2006. Esta Convenção representa uma virada paradigmática: deixa de tratar a deficiência sob uma ótica exclusivamente médica ou assistencial e passa a reconhecê-la como questão de direitos humanos, com foco na autonomia, dignidade e inclusão social da pessoa com deficiência.
O Brasil assinou a Convenção em 30 de março de 2007 e a ratificou em 25 de agosto de 2009, com quórum qualificado do artigo 5º, §3º da Constituição Federal, o que lhe conferiu status de emenda constitucional. Assim, a Convenção passou a integrar o bloco de constitucionalidade brasileiro, devendo ser observada com o mesmo peso de normas constitucionais formais.
A ratificação foi realizada pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, e promulgada pelo Decreto Presidencial nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. O texto legal brasileiro traz, inclusive, o Protocolo Facultativo, que permite o envio de denúncias individuais ao Comitê da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, após esgotadas as vias internas.
A Convenção impõe obrigações claras aos Estados Partes. Destacam-se, entre outros:
- Artigo 3 – Princípios gerais: dignidade, autonomia individual, não discriminação, plena e efetiva participação e inclusão na sociedade.
- Artigo 4 – Obrigações gerais dos Estados: assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.
- Artigo 5 – Igualdade e não discriminação: obrigação de promover a igualdade de oportunidades e a proibição de todas as formas de discriminação.
- Artigo 9 – Acessibilidade: garantir o acesso ao meio físico, ao transporte, à informação e à comunicação.
- Artigo 27 – Trabalho e emprego: obrigação dos Estados de promover oportunidades de trabalho inclusivas, incluindo no setor público.
O artigo 27, em especial, afirma que os Estados devem “empregar pessoas com deficiência no setor público”, adotando ações afirmativas, como cotas em concursos públicos. Essa obrigação é clara, direta e incondicional. O não cumprimento implica violação de norma constitucional.
A Convenção também exige que a deficiência seja compreendida como uma interação entre as pessoas e as barreiras sociais. Assim, a aptidão para exercer um cargo público, inclusive militar, não pode ser presumida com base apenas em critérios médicos genéricos, mas deve ser avaliada individualmente e com base em parâmetros objetivos, respeitando o princípio da adaptação razoável.
Nesse contexto, o controle de convencionalidade passa a ser ferramenta indispensável. Conforme reiterado pela jurisprudência do STF e do STJ, todos os órgãos do Estado – inclusive os responsáveis por elaborar editais de concurso público – devem verificar a compatibilidade das normas infraconstitucionais com os tratados internacionais de direitos humanos, especialmente aqueles com status de emenda constitucional.
O Supremo Tribunal Federal já reconheceu esse entendimento em decisões paradigmáticas, como no RE 466.343/SP, que discutiu a incorporação dos tratados de direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro. O Tribunal concluiu que tratados ratificados com base no art. 5º, §3º da Constituição Federal possuem hierarquia constitucional, devendo prevalecer sobre normas ordinárias que lhes sejam contrárias.
Portanto, qualquer edital de concurso público – civil ou militar – que exclua genérica ou automaticamente pessoas com deficiência, sem fundamentação técnica e sem possibilidade de avaliação individual, viola não apenas a legislação brasileira, mas também a Constituição Federal e o ordenamento internacional de direitos humanos ao qual o Brasil se submeteu soberanamente.
3. Histórico dos Concursos Públicos para Pessoas com Deficiência nas Polícias e Corpos de Bombeiros no Brasil e no Mundo
A história da inclusão de pessoas com deficiência nas forças de segurança pública, especialmente nas Polícias Militares e Corpos de Bombeiros, é marcada por avanços legislativos lentos, resistências institucionais e, em muitos casos, conquistas obtidas apenas após forte mobilização social e judicialização. Em geral, as corporações de natureza militar foram tradicionalmente construídas sobre um modelo de padronização física, disciplina rígida e um ideal de força que excluía, por princípio, qualquer pessoa que fugisse desse molde estigmatizado de “plena capacidade”.
3.1. O Cenário Internacional: Ruptura com o Modelo Exclusivista
Nos países mais desenvolvidos, esse paradigma começou a ser quebrado a partir da década de 1990, com a disseminação do conceito de “ajustes razoáveis” e a reformulação das forças policiais para refletirem a diversidade da população que servem. Países como Canadá, Reino Unido, Alemanha, Austrália e Estados Unidos passaram a adotar políticas explícitas de inclusão nas suas corporações policiais e de bombeiros.
- Reino Unido: A polícia britânica adota desde os anos 2000 uma política clara de inclusão, especialmente após o Equality Act de 2010, que consolidou o dever legal de promover igualdade de oportunidades. Pessoas com deficiência podem se candidatar, com avaliação funcional do cargo e oferecimento de adaptação razoável.
- Canadá: As forças policiais canadenses adotam o princípio da equidade no emprego como diretriz constitucional, considerando a deficiência um dos pilares da diversidade a ser representada nos serviços públicos. As admissões são condicionadas a avaliações práticas e personalizadas, sem exclusão genérica.
- Estados Unidos: Após o Americans with Disabilities Act (ADA) de 1990, diversas corporações policiais e de bombeiros foram obrigadas a adaptar seus critérios de admissão. Em alguns estados, veteranos de guerra com deficiência passaram a ser acolhidos formalmente nas forças de segurança, com políticas de reabilitação ativa e valorização da experiência.
- Alemanha e França: Com políticas voltadas à reintegração de pessoas com deficiência adquirida em serviço, especialmente após missões militares, esses países passaram a garantir reengajamento em funções administrativas ou operacionais adaptadas.
Esses exemplos mostram que a presença de pessoas com deficiência nas forças de segurança não compromete o desempenho institucional, mas amplia o compromisso com os direitos humanos e a representatividade.
3.2. O Contexto Brasileiro: Da Invisibilidade ao Reconhecimento Legal
No Brasil, o direito das pessoas com deficiência de ingressarem nos quadros da administração pública somente ganhou contornos normativos claros a partir da Constituição de 1988, que introduziu, no artigo 37, inciso VIII, o princípio da reserva de vagas em concursos públicos. Entretanto, o dispositivo constitucional não foi imediatamente aplicado às corporações militares estaduais.
Até o início dos anos 2000, praticamente nenhum concurso público da Polícia Militar ou Corpo de Bombeiros previa vagas específicas para pessoas com deficiência. Os editais eram redigidos com cláusulas de exclusão genérica, sob o argumento de “incompatibilidade com a função militar”, sem qualquer análise técnica específica.
A jurisprudência ainda engatinhava nesse tema, e somente com a aprovação do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), é que se passou a exigir expressamente a aplicação da reserva de vagas também nos concursos militares, salvo comprovada incompatibilidade com as atribuições do cargo, e desde que precedida de análise individualizada e razoável, conforme previsto nos artigos 28 e 30 da referida lei.
3.3. Experiências Recentes nos Estados Brasileiros
Exemplos de Editais que Permitem a Participação de PcDs:
Polícia Militar do Estado de Sergipe (PM-SE): Em janeiro de 2025, o Governo de Sergipe anunciou a reserva de 5% das vagas do concurso da Polícia Militar para pessoas com deficiência. Essa medida foi fruto de negociações entre representantes das instituições envolvidas e demonstra o compromisso do Estado com a inclusão e a equidade. Sead
Polícia Militar do Estado de São Paulo (PM-SP): A Diretoria de Pessoal da PM-SP publicou um edital em março de 2024 que estabelece a abertura de inscrições para concurso público, incluindo a participação de pessoas com deficiência. Concursos PM SP
Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO): Em 2022, o MPGO propôs ação para suspender editais de concursos da Polícia Militar que não previam reserva de vagas para PcDs. A promotora de Justiça destacou que os editais não atendiam ao que prevê a Constituição Federal e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, ressaltando que atividades administrativas da Polícia Militar podem ser exercidas por pessoas com deficiência. A qual fora deferida e obrigada a se reservarem vagas para pessoas com deficiencia no próximo concurso da PMGO.
Deste modo verifica-se que ainda existem muitos desafios e resistências em alguns estados, há uma tendência crescente de adaptação dos editais de concursos da Polícia Militar para incluir a participação de pessoas com deficiência, em conformidade com a legislação vigente e decisões judiciais. Candidatos interessados devem estar atentos às publicações oficiais de cada estado e às possíveis atualizações nos editais que garantam seus direitos de participação.
Apesar desses avanços, muitos estados ainda resistem, como ocorreu no Tocantins, onde o edital do concurso da PM em 2024 não previu qualquer reserva de vagas para pessoas com deficiência, resultando na atuação firme e fundamentada do Ministério Público estadual.
3.4. Desafios e Caminhos para o Futuro
A resistência à inclusão de pessoas com deficiência nos concursos militares não encontra respaldo jurídico nem constitucional. Trata-se de um problema cultural e estrutural, que exige enfrentamento firme por parte das instituições de controle e da sociedade civil.
A ausência de política nacional clara para concursos militares com inclusão efetiva revela a necessidade de uniformização de critérios, com base em pareceres técnicos interdisciplinares, e de uma política pública nacional de inclusão nas forças de segurança, com critérios objetivos e avaliação individualizada das limitações e das potencialidades.
4. A Omissão dos Editais da PMTO e a Atuação do MPTO na Defesa das Vagas para Pessoas com Deficiência
Apesar da evolução normativa e jurisprudencial quanto ao direito de pessoas com deficiência participarem de concursos públicos em igualdade de condições, ainda se observam, no plano prático, graves omissões que comprometem a efetividade desse direito. Um exemplo emblemático é o recente concurso público promovido pelo Estado do Tocantins para ingresso na Polícia Militar, cujo edital não previu qualquer reserva de vagas para pessoas com deficiência, violando frontalmente a Constituição Federal, a legislação infraconstitucional e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
4.1. A omissão inconstitucional do edital da PMTO
O edital em questão foi publicado em 2024 e previa o provimento de centenas de vagas para o cargo de soldado da Polícia Militar. Entretanto, não houve previsão de cotas para pessoas com deficiência, nem tampouco a possibilidade de participação desses candidatos no certame, sequer para fins de eventual classificação fora das vagas reservadas.
Essa exclusão genérica representou uma discriminação institucionalizada, pois partiu do pressuposto — equivocado e inconstitucional — de que nenhuma pessoa com deficiência poderia desempenhar as funções policiais. O edital não apresentou qualquer justificativa técnica ou avaliação prévia sobre a natureza das funções, tampouco previu mecanismos de avaliação funcional individualizada ou a oferta de adaptações razoáveis, como exige a Lei nº 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com status de emenda constitucional.
A omissão também feriu o princípio da reserva legal de cotas em concursos públicos (art. 37, VIII da CF/88), bem como a igualdade material e o direito à não discriminação, previstos nos artigos 3º, 5º, 7º, 23 e 27 da Convenção da ONU ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 6.949/2009.
4.2. A atuação do Ministério Público do Estado do Tocantins
Diante dessa violação flagrante aos direitos fundamentais, o Ministério Público do Estado do Tocantins (MPTO), por meio da 15ª Promotoria de Justiça da Capital, com atribuição na defesa da pessoa com deficiência, instaurou Procedimento Administrativo para apurar a ilegalidade dos editais:
• EDITAL Nº 001/CFO-2025/PMTO (curso de formação de oficiais – CFO),
• EDITAL Nº 001/CFP/QPE-2025/PMTO (curso de formação de praças –
CFP, ao quadro de praças especialistas), e
EDITAL Nº 001/CFP/QPPM-2025/PMTO (curso de formação de praças –
CFP, ao quadro de praças).
O Estado do Tocantins e a Polícia Militar, lançou edital para concurso público visando o preenchimento de vagas no quadro de pessoal da corporação, o referido edital foi publicado em 10/03/2025, oferecendo 600 vagas para soldados sendo destas 20 reservadas para músicos e 60 vagas para oficiais. As inscrições para o Concurso Público da Polícia Militar do Estado do Tocantins iniciou-se em 17 de março de 2025 e irá até 15 de abril de 2025.
Após a inércia da Administração Pública e a manutenção da exclusão no certame, o MPTO ajuizou Ação Civil Pública (ACP) nº 0013549-40.2025.8.27.2729 com pedido liminar, requerendo:
- A imediata suspensão do concurso, até que fosse incluída a reserva de vagas para pessoas com deficiência;
- A abertura de novo prazo de inscrições para garantir a participação dos candidatos PCDs;
- A adoção de medidas de acessibilidade e avaliação funcional individualizada durante o processo seletivo.
A ACP foi fundamentada não apenas em dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, mas também no controle de convencionalidade, com destaque para a aplicação obrigatória da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e sua força normativa equivalente à Constituição.
4.3. O Agravo de Instrumento e o enfrentamento judicial
Em primeira instância, a liminar foi indeferida, o que ensejou a interposição de Agravo de Instrumento junto ao Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. No recurso, o MPTO reiterou que a omissão do Estado configura violação continuada e grave aos direitos humanos, exigindo a intervenção do Poder Judiciário para garantir a lisura e constitucionalidade do certame.
O agravo trouxe, ainda, decisões de outros tribunais brasileiros e pareceres técnicos demonstrando a viabilidade da inclusão de candidatos com deficiência nas carreiras policiais, desde que respeitados os princípios da razoabilidade, da avaliação individual e da adaptação razoável.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal foi amplamente citada, reforçando que:
- A ausência de reserva de vagas configura ato omissivo inconstitucional (RE 676.335, STF);
- A exclusão genérica de pessoas com deficiência, sem análise individual, é discriminatória (REsp 1.821.230/MG, STJ);
- O edital de concurso público deve se submeter ao controle de legalidade e convencionalidade, inclusive no que diz respeito à inclusão de grupos vulneráveis.
4.4. Uma atuação para além da letra da lei
A atuação do MPTO nesse caso concreto extrapola a defesa abstrata da legalidade. Trata-se de uma postura ativa, que reafirma o Ministério Público como instituição de transformação social, comprometida com os valores democráticos e com a dignidade da pessoa humana.
Ao buscar garantir o direito das pessoas com deficiência ao concurso da PM, o MPTO atua como agente indutor de inclusão e de respeito aos direitos humanos, promovendo uma sociedade plural, justa e livre de preconceitos estruturais.
5. O Controle de Convencionalidade e a Hierarquia Normativa frente à Lei Estadual nº 2.578/2012 que dispõe sobre o Estatuto dos Policiais Militares e Bombeiros Militares do Estado do Tocantins.
A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo paradigma no Direito brasileiro ao reconhecer o papel dos tratados internacionais de direitos humanos como normas integrantes do ordenamento jurídico nacional. Esse reconhecimento se consolidou com a Emenda Constitucional nº 45/2004, que introduziu o § 3º ao artigo 5º, conferindo status de emenda constitucional aos tratados de direitos humanos aprovados por quórum qualificado nas duas Casas do Congresso Nacional.
É nesse contexto que se insere a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), ratificada pelo Brasil com observância do rito constitucional e promulgada pelo Decreto nº 6.949/2009, com aplicação direta e imediata em todo o território nacional.
O reconhecimento dessa convenção como norma constitucional exige que todas as leis infraconstitucionais, inclusive as estaduais, estejam em conformidade com seus princípios e diretrizes. Aqui surge a importância do controle de convencionalidade, que impõe ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Administração Pública e às bancas examinadoras de concursos o dever de compatibilizar as normas internas com os tratados internacionais ratificados pelo país.
5.1. A Lei Estadual nº 2.578/2012 e a exclusão implícita
A Lei Estadual nº 2.578/2012, que dispõe sobre o Estatuto dos Policiais Militares do Estado do Tocantins, não faz qualquer menção à inclusão ou à reserva de vagas para pessoas com deficiência nos concursos da PMTO. Pelo contrário, ao estabelecer exigências físicas e psíquicas genéricas para ingresso na corporação, a norma foi utilizada por anos como justificativa para a exclusão automática de candidatos com deficiência dos certames públicos.
Essa omissão revela-se incompatível com a Constituição Federal, com a legislação nacional sobre a pessoa com deficiência (Lei nº 13.146/2015) e, sobretudo, com os tratados internacionais ratificados com status constitucional. A ausência de previsão de reserva de vagas ou de adaptações razoáveis é, por si só, uma violação ao controle de convencionalidade, pois contraria diretamente os seguintes dispositivos da CDPD:
- Art. 3º – Princípios da dignidade, autonomia e não discriminação;
- Art. 4º – Obrigação dos Estados de adaptar sua legislação aos compromissos internacionais;
- Art. 5º – Igualdade e proibição da discriminação;
- Art. 27 – Direito ao trabalho em igualdade de condições, inclusive no serviço público.
5.2. Hierarquia das normas e prevalência da norma constitucional internacional
Em uma sociedade juridicamente estruturada, as normas não coexistem de forma caótica. Elas se organizam em uma hierarquia normativa, que coloca a Constituição Federal e os tratados internacionais de direitos humanos (ratificados com quórum qualificado) no topo do sistema jurídico brasileiro. Isso significa que leis estaduais, como a nº 2.578/2012, devem obrigatoriamente se submeter a esse patamar superior, sendo passíveis de invalidação caso violem normas de hierarquia superior.
No presente caso, a Lei Estadual, ao não prever expressamente a possibilidade de ingresso de pessoas com deficiência nos quadros da Polícia Militar, deve ser interpretada conforme a Constituição e a Convenção, ou até mesmo afastada parcialmente, caso sua aplicação resulte em violação de direitos fundamentais.
5.3. Precedentes e doutrina: o dever de compatibilização normativa
A doutrina brasileira tem reiterado a importância do controle de convencionalidade como instrumento de harmonização entre o direito interno e os tratados internacionais. Autores como Flávia Piovesan, Ingo Sarlet e Valério Mazzuoli defendem que todos os agentes públicos devem exercer esse controle, inclusive os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário nos âmbitos estaduais.
Em decisões recentes, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a eficácia plena e direta da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, destacando que sua aplicação independe de regulamentação infraconstitucional (RE 678.162 e ADI 5357, ADI 6476).
Portanto, mesmo na ausência de norma estadual específica que regulamente a inclusão de pessoas com deficiência nos concursos da PMTO, deve-se aplicar diretamente a Convenção e a legislação nacional, sob pena de violação à supremacia constitucional.
5.4. A responsabilidade do Estado do Tocantins
O Estado do Tocantins, enquanto ente federado, tem responsabilidade direta pela promoção dos direitos fundamentais de sua população. A edição e a manutenção de leis incompatíveis com normas constitucionais ou convencionais representam ato de inconstitucionalidade por omissão, especialmente quando resultam na perpetuação de práticas excludentes.
A simples alegação de ausência de previsão na Lei Estadual nº 2.578/2012 não pode servir de escudo para o descumprimento das normas de hierarquia superior. A omissão do Poder Executivo estadual, ao não propor atualização legislativa compatível com os tratados internacionais, e do Poder Legislativo, ao não promover a reforma legal, reforça a urgência da atuação institucional do Ministério Público e do Judiciário.
6. Jurisprudência dos Tribunais Superiores sobre o Direito de Pessoas com Deficiência de Ingressarem na Polícia Militar e Corpo de Bombeiros
A interpretação constitucional e infraconstitucional do direito das pessoas com deficiência à inclusão nos concursos públicos, inclusive em carreiras militares estaduais, tem avançado significativamente nos Tribunais Superiores brasileiros, consolidando um entendimento protetivo, inclusivo e em sintonia com os tratados internacionais de direitos humanos.
Embora ainda existam decisões conflitantes em instâncias inferiores, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já firmaram posicionamentos que reconhecem o direito à participação de pessoas com deficiência em concursos para a Polícia Militar e Corpo de Bombeiros, desde que seja assegurada a avaliação individualizada da condição física e a possibilidade de adaptação razoável, sem exclusão automática e genérica. No julgamento da ADI 6476, o Supremo afastou interpretações do Decreto 9.546/2018 que retiravam o direito de candidatos com deficiência à adaptação razoável em provas físicas de concursos públicos. O Tribunal também considerou inconstitucional submeter candidatos com e sem deficiência aos mesmos critérios em provas físicas, sem demonstrar sua necessidade para o exercício da função pública.
6.1. O Supremo Tribunal Federal (STF) e a defesa da inclusão funcional
O STF tem interpretado o artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal — que trata da reserva de vagas em concursos públicos para pessoas com deficiência — de forma ampla, de modo a abranger todos os cargos e funções públicas, inclusive os de natureza militar. A Corte vem rechaçando critérios discriminatórios e cláusulas de exclusão genérica baseadas apenas na natureza do cargo.
Destaque-se a decisão no RE 676.335/MG, com repercussão geral reconhecida, na qual o STF enfrentou a exclusão de candidatos com deficiência em concursos públicos. O voto condutor do Ministro Luiz Fux destacou que:
“A mera alegação de que o cargo exige atividades físicas não é suficiente para afastar, de forma absoluta e abstrata, a possibilidade de que pessoas com deficiência concorram às vagas reservadas. Deve haver a análise caso a caso, observando-se o princípio da isonomia e a possibilidade de adaptação.”
Outra decisão importante é o julgamento Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5357 foi um processo no Supremo Tribunal Federal (STF) que determinou que escolas particulares devem incluir pessoas com deficiência no ensino regular. A ação foi Movida pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen).
O que a ADI 5357 decidiu?
- As escolas particulares devem cumprir as normas do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015); As escolas devem prover adaptações Necessárias sem repassar custos às mensalidades, anuidades e matrículas; A decisão é vinculante para todos os órgãos do poder judiciário e da administração pública
Considerações sobre a ADI 5357
- A decisão foi histórica e acolheu todo estudante com deficiência na rede regular de ensino. O Estatuto da Pessoa com Deficiência tem como objetivo que as pessoas com deficiência possam exercer seus direitos e liberdades fundamentais em condições de igualdade com as outras pessoas. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência concretiza o princípio da igualdade.
6.2. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e a vedação à exclusão genérica
O STJ, por sua vez, vem consolidando jurisprudência no sentido de que a eliminação de candidatos com deficiência em concursos públicos, com base em critérios genéricos e sem avaliação individualizada, é ilegal e discriminatória.
No REsp 945357 DF
“A exclusão automática de candidatos com deficiência, sem avaliação específica das funções do cargo e sem oportunização de adaptação razoável, viola o princípio da isonomia e os direitos fundamentais previstos na Constituição e nos tratados internacionais.”
A súmula 377 do STJ prevê:
O portador de visão monocular tem direito de concorrer, em concurso público, às vagas reservadas aos deficientes. (Súmula n. 377, Terceira Seção, julgado em 22/4/2009, DJe de 24/5/2013, DJe de 05/05/2009.)
6.3. Súmulas e entendimentos consolidados
Embora ainda não exista súmula vinculante específica sobre o tema, as decisões reiteradas do STJ e do STF indicam a consolidação de uma linha interpretativa progressista e alinhada aos direitos humanos, que deverá, futuramente, gerar uniformização ainda mais clara da jurisprudência.
As súmulas existentes que se aplicam indiretamente ao tema incluem:
- Súmula 683 do STF: “O limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do artigo 7º, XXX, da Constituição, quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido.”
Essa súmula reforça o princípio da justificativa técnica e funcional, que se estende à questão da deficiência.
6.4. O papel transformador das decisões judiciais
As decisões dos Tribunais Superiores refletem um papel transformador da jurisdição constitucional, que ultrapassa a letra fria da lei e dialoga diretamente com os valores democráticos, com a dignidade humana e com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Ao reconhecer que pessoas com deficiência podem, sim, exercer funções de natureza militar, desde que avaliadas de forma individualizada e respeitada a razoabilidade, o Judiciário brasileiro afirma que inclusão não é concessão, mas um direito constitucionalmente protegido.
Tais entendimentos são fundamentais para embasar a atuação do Ministério Público e para sustentar a judicialização de concursos públicos excludentes, como o da PMTO, demonstrando que há respaldo jurídico robusto para exigir a reserva de vagas e a garantia de acessibilidade em todas as fases do certame.
7. Experiências Brasileiras na Inclusão de Pessoas com Deficiência nos Concursos das Forças de Segurança
A trajetória da inclusão de pessoas com deficiência nas forças de segurança pública no Brasil é marcada por avanços recentes, especialmente a partir da promulgação da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) e da incorporação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ao ordenamento jurídico com status constitucional. Esses avanços normativos têm impulsionado a revisão de editais de concursos públicos e fomentado a atuação de instituições como o Ministério Público e o Poder Judiciário.
7.1. Inclusão garantida em âmbito federal: Polícia Federal, PRF e Polícias Civis
Ao contrário das polícias militares e corpos de bombeiros estaduais, que ainda apresentam resistência em muitos estados, os concursos federais e civis já incorporam de forma mais clara a reserva de vagas para pessoas com deficiência:
- Polícia Federal (PF): O concurso de 2021, regido pelo Edital nº 1 – DGP/PF, previu expressamente a reserva de 5% das vagas para pessoas com deficiência, conforme o artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal, e a Lei nº 8.112/90.
- Fonte: Edital da Polícia Federal – 2021
- Polícia Rodoviária Federal (PRF): No concurso de 2021, regido pelo Edital nº 1 – PRF, também foi assegurada a reserva de 5% das vagas para candidatos com deficiência, com previsão de adaptações no curso de formação.
- Fonte: Edital PRF 2021
- Polícias Civis Estaduais: Vários estados já asseguram a reserva de vagas. Destacam-se os concursos das Polícias Civis do Distrito Federal, São Paulo, Pará e Goiás, que preveem cotas específicas para PcDs, inclusive para cargos de investigador, escrivão e delegado.
- Exemplo: Polícia Civil do Distrito Federal – Edital de 2021 previa reserva de 20% das vagas para pessoas com deficiência, de acordo com a Lei Distrital nº 4.317/2009.
- Fonte: Edital PCDF 2021 – Delegado
Esses exemplos demonstram que não há incompatibilidade genérica entre a atividade policial e a deficiência, sendo plenamente possível compatibilizar as exigências da função com avaliações individualizadas e adaptações razoáveis.
7.2. Polícias Militares e Corpos de Bombeiros com previsão de reserva de vagas ou sob determinação judicial
Apesar de avanços pontuais, muitas Polícias Militares (PMs) e Corpos de Bombeiros Militares (CBMs) ainda não preveem reserva de vagas para PcDs, o que tem motivado intervenções judiciais. No entanto, alguns estados já avançaram:
- PM-SE (Sergipe): O concurso de 2024 previu 5% das vagas reservadas para pessoas com deficiência, após decisão judicial.
- CBM-RS (Rio Grande do Sul): O edital de 2025 não previa vagas para PcDs, o que gerou discussão jurídica sobre a legalidade da omissão, diante das obrigações constitucionais e convencionais.
- PM-PR (Paraná): O edital de 2025, publicado pelo IBFC, não incluiu reserva de vagas para PcDs, sob justificativa da natureza do cargo, gerando críticas por contrariar jurisprudência consolidada.
- Link do editalCBM-AM (Amazonas): O edital de 2023 também não previu vagas para pessoas com deficiência, sendo alvo de questionamentos de entidades da sociedade civil.
- TJ-RS (Rio Grande do Sul): Determinou judicialmente que concursos da PM e CBM fossem suspensos por ausência de vagas reservadas a pessoas com deficiência.
7.3. A realidade da exclusão como problema estrutural
A análise dos editais demonstra que a exclusão de pessoas com deficiência nos concursos das forças de segurança não decorre de impossibilidade técnica, mas de inércia legislativa e resistência institucional. Onde há vontade política, planejamento e cumprimento das normas, a inclusão é possível — como atestam os concursos da PF, PRF e diversas Polícias Civis.
Por outro lado, onde prevalece o argumento genérico de “incompatibilidade com o serviço militar”, sem avaliação funcional individualizada, persiste a exclusão e a violação aos direitos humanos.
8. Direito Comparado: Inclusão de Pessoas com Deficiência nas Polícias de Outros Países
A inclusão de pessoas com deficiência nas forças de segurança pública não é um fenômeno exclusivo do Brasil, mas parte de uma tendência global orientada pelos princípios da igualdade de oportunidades, não discriminação e valorização da diversidade funcional. A experiência internacional demonstra que é plenamente possível harmonizar a natureza operacional das polícias e corpos de bombeiros com a presença de profissionais com deficiência, desde que respeitados os critérios de avaliação individual e adaptação razoável.
8.1. Reino Unido: Política de igualdade nas forças policiais
O Reino Unido é referência mundial em políticas de inclusão funcional. Desde a promulgação do Equality Act de 2010, as forças policiais britânicas são legalmente obrigadas a garantir oportunidades iguais para candidatos com deficiência.
A Police Recruitment Policy estabelece que todas as candidaturas são avaliadas individualmente, com ênfase nas habilidades reais do candidato e nas possibilidades de adaptação. Candidatos com deficiência visual leve, auditiva parcial, transtornos de mobilidade, entre outros, são frequentemente incorporados em funções administrativas, de análise criminal, atendimento emergencial e planejamento operacional.
Além disso, há políticas específicas de suporte psicológico, acessibilidade física e acompanhamento profissional.
8.2. Estados Unidos: Inclusão com base no Americans with Disabilities Act (ADA)
Nos Estados Unidos, a legislação que rege a inclusão de pessoas com deficiência é o Americans with Disabilities Act (ADA), de 1990, que proíbe qualquer forma de discriminação no acesso a empregos públicos e privados, inclusive nas forças de segurança.
As police departments são obrigadas a garantir adaptações razoáveis nos processos seletivos, cursos de formação e ambientes de trabalho. Vários departamentos, como o da cidade de Nova York (NYPD) e Chicago Police Department, possuem unidades específicas de diversidade funcional e aceitam candidatos com diferentes tipos de deficiência, desde que aptos a desempenhar funções específicas.
Veteranos de guerra com amputações, deficiência auditiva ou transtornos pós-traumáticos são frequentemente reintegrados às funções civis ou técnicas dentro das corporações. O modelo norte-americano foca na função e não na limitação, valorizando o capital humano e a experiência.
8.3. Canadá: Equidade como critério institucional
O Canadá é outro país que aplica o conceito de Employment Equity nas agências públicas, incluindo as forças policiais. Desde os anos 2000, a Royal Canadian Mounted Police (RCMP) e outras polícias provinciais têm adotado sistemas inclusivos de recrutamento, respeitando as diretrizes da Employment Equity Act.
Candidatos com deficiência são incluídos com base na análise funcional do cargo e nos princípios de razoabilidade. Funções como inteligência, investigação cibernética, atendimento de emergência e gestão de crises são amplamente acessíveis e contam com agentes com diferentes tipos de deficiência.
8.4. Alemanha e França: Reintegração e mobilidade adaptada
Na Alemanha, a inclusão de pessoas com deficiência nas forças de segurança se dá sobretudo pela reintegração funcional, especialmente de servidores que adquiriram deficiência em serviço. A legislação prevê realocação em cargos administrativos, formação contínua e, quando necessário, requalificação profissional.
Na França, políticas similares são aplicadas. O Ministério do Interior mantém programas específicos para inclusão e promoção da diversidade na Police Nationale e na Gendarmerie, com base em laudos médicos e pareceres interdisciplinares. Há previsão expressa de ajustes físicos e tecnológicos para garantir o desempenho adequado nas funções não operacionais.
8.5. Lições do direito comparado: viabilidade e dever moral
A observação dessas experiências estrangeiras demonstra que não há obstáculo absoluto à participação de pessoas com deficiência nas forças policiais, quando há vontade política, investimento em acessibilidade e políticas institucionais de inclusão.
A aplicação de exames médicos genéricos, avaliações psicotécnicas subjetivas e critérios excludentes sem base científica têm sido superadas em vários países, que priorizam a avaliação por competências e a função real a ser exercida, e não um modelo idealizado e ultrapassado de força física.
Além disso, essas nações reconhecem que a presença de profissionais com deficiência nas corporações reforça a legitimidade institucional, a empatia no atendimento à população vulnerável e a inovação nas estratégias de segurança pública.
9. Análise Crítica e Considerações Finais: Possibilidade e Desafios para o Exercício da Função Policial e Bombeiro por Pessoas com Deficiência
A presença de pessoas com deficiência nos quadros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros do Brasil ainda está longe de ser uma realidade consolidada. A despeito da evolução legislativa e jurisprudencial, os concursos militares permanecem, em muitos estados, marcados por editais excludentes, exames psicofísicos inflexíveis e argumentos genéricos de incompatibilidade funcional.
É necessário afirmar, de forma crítica e responsável, que a exclusão de candidatos com deficiência não se sustenta juridicamente. Nenhuma norma constitucional, legal ou convencional autoriza a vedação abstrata ao exercício de funções de segurança pública por pessoas com deficiência. Ao contrário, o ordenamento jurídico impõe o dever de avaliar individualmente as condições do candidato e de oferecer adaptações razoáveis, conforme previsto na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 27), no artigo 37, VIII, da Constituição Federal e no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015).
9.1. A possibilidade concreta do exercício da função por pessoas com deficiência
Não se trata de admitir que qualquer pessoa com qualquer tipo de deficiência possa exercer toda e qualquer função policial ou de salvamento. Isso seria irresponsável e incompatível com o interesse público. Trata-se, sim, de reconhecer que há múltiplas funções dentro das corporações militares que podem ser desempenhadas por pessoas com limitações físicas ou sensoriais — desde que avaliadas dentro do contexto real de trabalho e com os apoios necessários.
Atividades como atendimento ao público, controle de operações, análise de dados, investigações, planejamento tático, inteligência, formação de pessoal, entre outras, são apenas alguns exemplos de áreas em que a deficiência não representa obstáculo. A presunção de inaptidão com base apenas em laudos ou padrões físicos uniformizados reflete mais preconceito estrutural do que critério técnico legítimo.
9.2. Os desafios estruturais: cultura institucional, formação e legislação
O principal desafio à inclusão não é físico, mas cultural e institucional. As Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros ainda são marcados por uma cultura organizacional baseada em estereótipos de força, resistência e prontidão, muitas vezes incompatíveis com os valores de diversidade, inclusão e acessibilidade.
É fundamental que a formação inicial e continuada das corporações incorpore conteúdos sobre direitos humanos, igualdade, deficiência e acessibilidade, promovendo um ambiente institucional que acolha a diferença em vez de rejeitá-la. Da mesma forma, é urgente que as legislações estaduais, como a Lei nº 2.578/2012 do Tocantins, sejam revistas e atualizadas à luz da norma constitucional internacional vigente, a fim de garantir plena eficácia às políticas de inclusão.
A ausência de protocolos específicos de acessibilidade nos concursos, de avaliação funcional individualizada e de estrutura adaptada nos cursos de formação reflete uma omissão do Estado que deve ser enfrentada com seriedade, técnica e compromisso institucional.
9.3. Considerações finais: para além da legalidade, a justiça
Mais do que uma exigência jurídica, a inclusão de pessoas com deficiência nos concursos das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros é uma questão de justiça social e dignidade humana. Garantir o acesso igualitário não significa abrir mão da qualidade do serviço público, mas reconhecê-la de forma mais ampla, plural e sensível à diversidade humana.
A atuação do Ministério Público do Estado do Tocantins ao questionar judicialmente a exclusão de PcDs do concurso da PM é um exemplo claro de compromisso com os direitos fundamentais e com o futuro de uma sociedade verdadeiramente inclusiva. A jurisprudência dos Tribunais Superiores já aponta o caminho. Os tratados internacionais já impõem essa obrigação. Falta agora o passo mais difícil: transformar mentalidades, reformar estruturas e abrir as portas das instituições para todos, sem exceção.
Incluir pessoas com deficiência nas forças de segurança não é uma concessão — é um dever constitucional e civilizatório.
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¹Promotor de Justiça da 15ª Promotoria de Justiça da Capital – Ministério Público do Estado do Tocantins (MPTO). Especializado em Direitos da Pessoa com Deficiência, Igualdade Social e Direitos Humanos. Palmas – TO, abril de 2025. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1309300864568391