O DIREITO DAS AMANTES FORMANDO NOVOS NÚCLEOS FAMILIARES

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8064116


Eduarda Hilário Machado
Verônica Silva do Prado Disconzi


RESUMO

A sociedade brasileira, desde os primórdios, está fundada na formação e manutenção das famílias, pequenas comunidades que dão aos indivíduos o primeiro contato com a ideia de convivência social. Em razão de sua importância, possui uma ampla proteção legal, que vai desde a Constituição Federal de 1988 até a legislação infraconstitucional. Por muitos anos, as famílias constituídas por um homem, uma mulher, casados, e seus filhos foram a única forma de entidade familiar admitida. Contudo, com o passar dos anos, várias outras famílias foram ganhando reconhecimento legal, tornando-se titulares de direitos. Neste contexto, a questão das amantes foi colocada em análise nesta pesquisa científica, uma vez que, das uniões extraconjugais se constituem outras entidades familiares, com o advento de filhos, os quais possuem os mesmos direitos dos demais. Realizada através de revisão de literatura, a pesquisa foi redigida segundo o método dedutivo e objetiva principalmente a exposição acerca dos direitos que as amantes e seus filhos possuem na legislação nacional, uma vez que, via de regra, as relações concomitantes não são reconhecidas legitimamente no direito de família, em razão da monogamia vigente nos casamentos e uniões estáveis. A matéria é controversa e se representa em posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais nacionais.

Palavras-chave: Amantes. Concubinas. Famílias paralelas. Direitos. Patrimônio.

ABSTRACT

Brazilian society, since the beginning, families is founded on the formation and maintenance of small communities, communities that gave doctors from the first contact with the idea of ​​social coexistence. Due to its importance, it has extensive legal protection, ranging from the Federal Constitution of 1988 to infra-constitutional legislation. For many years, families consisting of one man, one woman, married, and children were the only form of their admitted family entity. Families, with other families, with other years, were recognized by other authors of legal recognition, passing up the rights. In this case, the question of lovers was raised by which, in the analysis of this scientific research, extramarital unions constitute other family entities, with the advent of children, who have the same. Conducted through a literature review, the research was written mainly according to the exposure of rights that as lovers and their children have in national legislation, since, via the literature method, as concomitant relationships are not legitimately recognized in family law, due to the prevailing monogamy in marriages and stable unions. The matter is controversial and represents national doctrinal and jurisprudential positions.

Keywords: Lovers. Concubines. Parallel Families. Rights. Patrimony.

INTRODUÇÃO

Desde os primórdios da humanidade que a ideia de família como uma entidade de proteção divina atribui a esta pequena comunidade uma série de garantias legais, inclusive patrimoniais. Todavia, a infidelidade sempre existiu, restando à terceira pessoa um local de invisibilidade social.

Por muito tempo, alguns relacionamentos afetivos não eram reconhecidos pelo ordenamento jurídico como legítimos, fato este que impedia que, das relações havidas em um contexto diverso do observado nos casamentos, surgissem efeitos legais para todos os envolvidos.

Naquele momento da sociedade, era inconcebível que as relações amorosas havidas fora do casamento, união oficial aceita pela sociedade, fossem capazes de gerar direitos para os filhos havidos em situação de traição.

Ocorre que, a evolução social e jurídica levantou questionamento acerca dos direitos que as amantes possuem quando da relação se constituem novos núcleos familiares. O motivo da celeuma decorre do fato de que a proteção constitucional dos filhos extinguiu o que anteriormente se atribuía o título de filhos ilegítimos, colocando todos em uma situação de igualdade.

Na forma de revisão literária, essa pesquisa apresenta um estudo sobre as recentes posições adotadas pela doutrina e jurisprudência acerca dos direitos que as amantes passam a possuir a partir da constituição de um novo núcleo familiar.

1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA PROTEÇÃO À FAMÍLIA NO BRASIL

O que se tem hoje de proteção das famílias não surgiu de uma hora pra outra. Pelo contrário, é resultado de anos de regulamentação acerca da formação de núcleos de convivência, constituídos pela parentalidade e pelo afeto, gerando para os envolvidos uma série de direitos e deveres.

Nas sociedades mais antigas, por interferência de conceitos e normas religiosas, somente as famílias constituídas através do casamento religioso eram reconhecidas. No entanto, isso mudou com o passar do tempo.

[…] aos poucos o Estado começou a se afastar das interferências da
igreja e passou a disciplinar a família sob o enfoque social; a instituição familiar deslocou-se do posto de mero agente integralizador do Estado, para peça fundamental da sociedade. Nesse compasso, inicia-se a mudança do ideal patrimonialístico, com indícios ligados ao modelo familiar estatal, além do caráter produtivo e econômico, abrindo espaço para a estrutura afetiva embalada pela solidariedade. Até a promulgação da Carta Magna de 1988, o rol era totalmente taxativo e limitado, vez que apenas aos grupos gerados por meio do casamento era conferido o ‘status familiar’, preconizado pelo Código Civil de 1916 que, sob forte influência francesa, traçava parâmetros matrimonializados (NORONHA e PARRON, 2017, p. 5-6). 

De fato, a Constituição Federal do ano de 1988 é um marco na regulação e proteção das famílias brasileiras, porque inovou ao falar sobre esse importante instituto.

A Constituição de 1988, no artigo 226, considera que a família é à base da sociedade civil e que a mesma tem proteção do Estado; ou seja, por meio deste artigo houve uma ampliação do conceito de família e o Estado passou a proteger a família, inclusive quando ela for formada por um dos pais e seus descendentes.

Diante do panorama até então vigente, pode-se afirmar que a Constituição atual atendeu aos reclamos da época, que já eram necessários em razão da estagnação do Direito de Família durante todo o período militar.

Entretanto, o conceito de família não reflete a sociedade atual, uma vez que tal conceito estabelece o casamento como fundamental para a formação da família, não levando em consideração os outros tipos de famílias existentes; mas, o constituinte tratou de proteger a família em si (LIMA, 2018, p.1).

Com a Carta Cidadã, veio a constitucionalização do direito das famílias, com mudanças que levaram à superação de paradigmas sobre os relacionamentos, não mais firmados apenas em questões que anteriormente estavam relacionadas a superstições acerca da ilegitimidade da prole, a inferioridade feminina e a indissolubilidade do casamento; mas com maior preponderância do afeto (NORONHA e PARRON, 2017).

Com a afetividade como elemento suficiente à caracterização de uma entidade familiar, as relações extraconjugais passaram a ser consideradas possíveis núcleos familiares, motivo pelo qual elevam essas pessoas à qualidade de titulares de direitos advindos da formação de família. Na prática, é necessário distinguir a situação do concubinato e das uniões estáveis simultâneas.

2 AS RELAÇÕES EXTRACONJUGAIS: CONCUBINATO E UNIÃO ESTÁVEL

Conforme foi dito no tópico anterior, as relações afetivas entre os seres humanos não se limitam aos relacionamentos oficializados com a celebração de casamentos. Não são poucas as situações em que, mesmo as pessoas já casadas, se relacionam com outras pessoas; que são denominadas amantes.

A pessoa é considerada amante quando “a mulher ou o homem que se encontra com um homem ou mulher com finalidade sexual, apenas” (SILVA, CORDEIRO e SAMPAIO, 2020, p.1). Sendo assim, se o relacionamento se torna duradouro, tem-se o que a legislação chama de concubinato.

Além do mais, é importante diferenciar uma relação concubina de uma relação entre amantes. O concubinato, para alguns doutrinadores, é um termo que menciona uma união que não se encontra formalizada pelo casamento civil. Acontece que quando uma mulher ou homem passa a viver com seu/sua parceiro/parceira, em caráter duradouro, como se fossem marido e mulher, presumivelmente sob o mesmo teto, considera-se concubinato. Concubino(a) e amante, para muitos, são sinônimos. Esse conceito é encontrado na jurisprudência brasileira (decisões de tribunais). […] Assim, pode-se concluir que todo concubino é amante, mas nem todo amante é concubino, pois não preenche a finalidade de ter uma relação duradoura, de companheirismo e impedimento em obter nova relação matrimonial, mas sim a finalidade de apenas atos carnais (SILVA, CORDEIRO e SAMPAIO, 2020, p. 1).

O concubinato está definido pelo Código Civil que no seu artigo 1.727, o define como sendo as relações não eventuais entre homens e mulheres que são impedidos de se casar (BRASIL, 2002).  Em razão deste conceito limitar significativamente as situações, restam ainda as uniões estáveis, que assim se diferenciam do concubinato:

A UNIÃO ESTÁVEL –  É reconhecida como entidade familiar, entre homem e mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de constituição familiar.( art. 1723cc, art. 226§ 3º)

CONCUBINATO – expressão usada hoje, para designar o relacionamento amoroso envolvendo pessoas casadas, que infringem o dever de fidelidade, também conhecida como adultério. Quando ocorrem relações não eventuais entre homem e a mulher, impedidos de casar. (art.1727cc). Denominado ̈concubinato impuro¨, não enseja a configuração de união estável, pois o objetivo desta e a constituição familiar.

Deixando claro que não são todos os impedimentos que regem a lei, que configura concubinato. A união Estável também pode haver impedimentos que não configuram concubinato (FERLA, 2018, p. 1). 

Apesar das distinções entre as espécies de relações possíveis entre pessoas casadas e uma terceira, o direito brasileiro tem se atualizado a fim de compreender as novas configurações familiares, com efeitos jurídicos adequados a cada situação.

Seja pelo instinto de perpetuação da espécie ou pelo repúdio à solidão, o fato é que a dimensão que a abarca as estruturas familiares é, sem dúvidas, muito ampla, haja vista que o seu conceito tem acompanhado as constantes transformações que permeiam a sociedade, sendo necessário princípios constitucionais que irão regê-las, em suas variedades, no âmbito jurídico. Destarte, faz-se necessário a aplicação de variados ramos do conhecimento, inclusive e principalmente a ciência jurídica, para que se compreenda as diferentes e múltiplas peculiaridades de cada agrupamento familiar, que se analisados sob uma ótica singular, desvirtuam de sua real aparência (NORONHA e PARRON, 2017, p. 2).

Dentre os efeitos de um relacionamento entre homens e mulheres está a reprodução, com o nascimento de filhos havidos na união, os quais, assim como os demais, são titulares de direitos. Com a formação de um novo núcleo familiar, todos os seus integrantes são atingidos com efeitos pessoais e patrimoniais, mas antes precisam ser reconhecidos juridicamente.

3 A (IM)POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO CONCOMITANTE AO CASAMENTO E UNIÃO ESTÁVEL

Havendo uma família reconhecida socialmente como oficial, não são raros os casos em que existem entidades familiares concomitantes, formadas por amantes e os frutos de relações extra conjugais. Nessas situações, questiona-se se seriam passíveis de reconhecimento as ditas relações concomitantes.

São concomitantes às entidades familiares constituídas de forma simultânea a um casamento ou a outra união estável. Diante do privilégio constitucional e infraconstitucional atribuído ao casamento, essas uniões geralmente não são reconhecidas pela jurisprudência pátria.

Isto porque o Código Civil deixa claro que a união estável somente é admitida quando inexistentes os impedimentos do artigo 1.521 do mesmo diploma legal, que se referem aos impedimentos para o casamento:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

§ 1 A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.

§ 2 As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável (BRASIL, 2002).

Ao conceituar as relações concomitantes, Laura de Toledo Ponzoni leciona sobre o motivo de não serem as mesmas passíveis de reconhecimento, qual seja a monogamia exigida nas relações familiares do Código Civil:

União Estável Plúrima ou Múltipla, Relações Paralelas ou Famílias Simultâneas é a situação em que o sujeito mantém relações amorosas, enquadradas no art. 1.723 do CC/02, com várias pessoas e ao mesmo tempo. Vale notar que tais relações múltiplas podem ocorrer concomitantemente a um casamento. Assim, pode tratar-se de um casamento simultâneo a uma ou mais uniões estáveis, ou mais de uma união estável concomitante. Como o princípio monogâmico é fundamental no direito de família brasileiro, enquanto persistir o vínculo matrimonial, a pessoa casada não pode se casar novamente. Não pode, igualmente, constituir família pela união estável. Da mesma forma, aquele que vive em união estável não pode constituir outras uniões concomitantes (2008, p. 1).

Acompanhando o entendimento comentado, as jurisprudências dos Tribunais de Justiça nacionais negam o reconhecimento das uniões estáveis e dos concubinatos paralelos a casamentos em pleno vigor, em razão da exigência de fidelidade entre as partes de um relacionamento afetivo.

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – APELAÇÃO CÍVEL – ALEGAÇÃO DE OMISSÃO – AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL “POST MORTEM” – CASAMENTO E RELAÇÕES EXTRACONJUGAIS SIMULTÂNEAS – MATÉRIA DE DIREITO JÁ ANALISADA – IMPEDIMENTO LEGAL RECONHECIDO NA APELAÇÃO CÍVEL Nº 201800812514 – IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL CONCOMITANTE AO CASAMENTO – SEPARAÇÃO DE FATO NÃO COMPROVADA – AUSÊNCIA DE VÍCIO – EMBARGOS CONHECIDOS E NÃO ACOLHIDOS (Embargos de Declaração nº 201900809085 nº único XXXXX-30.2013.8.25.0002 – 2ª CÂMARA CÍVEL, Tribunal de Justiça de Sergipe – Relator: José dos Anjos – Julgado em 14/05/2019)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. IMPROCEDÊNCIA. RELAÇÕES AFETIVAS SIMULTÂNEAS. REQUISITOS LEGAIS NÃO PREENCHIDOS. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE SEPARAÇÃO DE FATO DA MULHER COM QUEM O FALECIDO ERA CASADO. IMPOSSIBILIDADE DE EQUIPARAÇÃO A CASAMENTO. PRIMAZIA DA MONOGAMIA. RELACIONAMENTOS DIVERSOS. QUALIFICAÇÃO MÁXIMA DE CONCUBINATO. PRECEDENTES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MANUTENÇÃO DA SENTENÇA. DESPROVIMENTO DO RECURSO. – O direito não pode proteger situação estabelecida à margem da lei, ou seja, elevando à categoria de entidade familiar a relação de uma pessoa casada que não esteja, no mínimo, separada de fato. – Inexistindo a affectio maritalis relativamente à apelante, com quem o promovido mantinha relacionamento concomitante ao casamento, incabível o reconhecimento da união estável pretendida, eis que não pode subsistir paralelamente ao casamento em pleno vigor. – “RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO E CONCUBINATO IMPURO SIMULTÂNEOS. COMPETÊNCIA. ART, 1.727 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. ART. 9º DA LEI 9.278/1996. JUÍZO DE FAMÍLIA. SEPARAÇÃO DE FATO OU DE DIREITO. INEXISTÊNCIA. CASAMENTO CONCOMITANTE. PARTILHA. PROVA. AUSÊNCIA. SÚMULAS Nº 380/STF E Nº 7/STJ. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 2/STJ). 2. A relação concubinária mantida (TJPB – ACÓRDÃO/DECISÃO do Processo Nº XXXXX20128152001, 1ª Câmara Especializada Cível, Relator Des. José Ricardo Porto, Julgado em 06/2018)

Em que pese esse entendimento vigor no ordenamento jurídico nacional, a matéria tem sido objeto de constantes pedidos judiciais de reconhecimento, havendo entendimentos minoritários que reconhecem essas relações, especialmente porque o pensamento patriarcal somente prejudica as mulheres que mantêm relações paralelas, principalmente no sentido patrimonial.

4 OS EFEITOS PATRIMONIAIS DA CONSTITUIÇÃO DE NOVO NÚCLEO FAMILIAR: OS DIREITOS DAS AMANTES

Tal qual mencionado, os relacionamentos extraconjugais não são vistos como entidades familiares caso existam casamentos e uniões estáveis em vigor. Todavia, tal fato não significa de forma completa a inexistência da outra família para o direito, havendo divergências quando se trata do direito patrimonial da entidade paralela.

Quando o assunto é o concubinato, há quem afirme que “o concubino não tem direito a alimentos, direitos sucessórios ou direito à meação. Repita-se: não se trata de entidade familiar, mas sociedade de fato (PONZONI, 2008, p.1) ”.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina – TJSC reconheceu a união estável com pedido de pensionamento feito pela companheira, que viveu com um homem, hoje morto, por 40 anos. No mesmo período, teve um casamento civil e a esposa tinha ciência do outro relacionamento do marido. A decisão, que confirmou o julgamento em primeiro grau, preservou o interesse e a proteção de ambas as famílias, destacando que um formalismo legal não deve prevalecer sobre a situação fática.

A mulher ingressou com a ação após a morte do companheiro, alegando ter vivido com ele como se fosse casada por mais de 40 anos. Com estabilidade e coabitação, a relação familiar se tornou pública ao longo do tempo. Morto em 2012, o homem deixou cinco filhos, sendo que uma é fruto do relacionamento com a autora da ação.

Em contrapartida, os filhos do homem alegaram que jamais houve união estável entre a autora da ação e o falecido. Este, segundo os descendentes, viveu maritalmente por quase 50 anos, em momento algum houve separação de fato ou de direito e o casal nunca deixou de coabitar (IBDFAM, 2020, p. 1).

A questão é controversa porque a família “oficial” não poderia ser privada do desfrute dos bens decorrentes da relação de casamento e/ou união estável; ao passo que a amante e os filhos advindos de relacionamento extraconjugal também não poderiam ser prejudicados, especialmente quando era o indivíduo o responsável pelo sustento do lar e da família.

Entidades familiares formadas pela afetividade geram mútuo comprometimento pessoal e patrimonial, e por vezes são mantidas por um dos parceiros simultaneamente com outra família formal. A constituição de patrimônio para o companheiro infiel se dá nas duas entidades familiares, contudo, ocorrendo a dissolução da união extraconjugal, fica o parceiro do concubinato impuro desprovido de proteção jurídica.

O direito deve proteger a essência destas famílias, bem como as questões patrimoniais, analisando que o não reconhecimento destas famílias simultâneas, acaba por gerar o enriquecimento ilícito do parceiro infiel, restando apenas omissão da lei a seu respeito (SANTOS, 2017).

Apesar de muito se dizer sobre a ausência de direitos das amantes quanto ao patrimônio, importa mencionar que o que determinará o surgimento de efeitos patrimoniais é a caracterização da outra relação como uma entidade familiar pública e duradoura, tal qual os requisitos da união estável exigem. 

A jurisprudência nacional argumenta que os efeitos jurídicos só podem ocorrer caso haja a família paralela, e para isso, é necessário que a união seja considerada “pública, contínua e duradoura”. Sendo necessário essa averiguação, para que sejam gerados os direitos.

Porém, o amante vai ser caracterizado como um companheiro, não possuindo direito a metade do patrimônio do falecido da mesma forma que a esposa. O direito deste atingirá somente a cota da parte dos bens que pertencem ao falecido e que foram adquiridos a título oneroso na constância da união paralela, devendo ignorar não alcançando os bens que anteriores à formação dessa união estável (CAMARGO JUNIOR, 2022, p.01).

Em um exemplo jurisprudencial, tem-se um caso em que foi reconhecida a união estável simultânea, resguardando à outra companheira o direito à partilha de bens em caso de separação ou falecimento:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. COMPROVAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL SIMULTÂNEA. PARTILHA DE BENS. 1 – O reconhecimento da união estável é garantido tanto pela Constituição Federal quanto pelo Código Civil, estando sujeito à presença dos requisitos legais, quais sejam, convivência more uxório público, contínua e duradoura, com o objetivo de constituir família (art. 1723, CC), a qual, no caso dos autos, deve ser confirmada em todos os seus termos, ante a inegável ocorrência da união estável putativa, com base no artigo 1.561, §1º do Código Civil, pela boa-fé que da autora/apelada, que não tinha conhecimento de outra união estável de seu companheiro, o ora apelante. 2 – Constatada requisitos necessários à configuração da união estável do relacionamento em exame, no período reclamado, impõe-se a partilha dos bens adquiridos na sua constância, sendo que, no caso dos autos, como o veículo está sob a posse do réu/apelado, que se beneficia exclusivamente do mesmo, a dívida do respectivo financiamento, a partir da ruptura do relacionamento, fica ao seu encargo. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (TJ-GO – Apelação Cível: 03300541920148090175, Relator: Norival de Castro Santomé, Data de Julgamento: 25/10/2018, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 25/10/2018).

Para o estudioso Sérgio Lourenço de Camargo Júnior, a situação das uniões concomitantes se resume através do entendimento jurisprudencial majoritário nas seguintes palavras:

Em suma, entende-se que caso seja configurada essa união estável, o amante tem sim o direito à meação, que é a parte do patrimônio que cabe aos companheiros, assim como o direito à herança, desde que esses bens tenham sido adquiridos na constância do relacionamento (CAMARGO JUNIOR, 2022, p. 01).

Certo é que, independente do que se dê quanto ao direito das amantes e concubinas, aos filhos oriundos da relação extraconjugal, prevalecem os mesmos direitos dos demais herdeiros, inexistindo para o direito qualquer distinção entre os filhos de ambas as parceiras. 

Isto porque a Constituição Federal é clara quanto ao assunto ao estabelecer no artigo 227, § 6º: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” (BRASIL, 1988).

CONCLUSÃO

Diante da ocorrência contumaz de situações de infidelidade entre pessoas casadas e convivendo em regime de união estável, consequentemente, outros núcleos familiares acabam por se consolidar, uma vez que, o indivíduo infiel pode vir a ter filhos com suas amantes, gerando para o direito um problema a ser resolvido.

Em que pese haja um certo clamor pela análise dos eventuais direitos das amantes quando constituem seus núcleos familiares, é preciso em primeiro momento, analisar essa nova entidade a fim de saber se a mesma se constitui em uma união estável simultânea ou em um concubinato.

Isto porque, o concubinato não é reconhecido pela lei e pela jurisprudência como uma entidade familiar. Por sua vez, a união estável pode vir a ser reconhecida, até mesmo de forma simultânea, desde que seja comprovado o preenchimento de todos os requisitos legais. Apesar de serem situações excepcionais, existem na jurisprudência, vários exemplos práticos de reconhecimento das famílias paralelas.

Por outro lado, sem provas, o núcleo não será reconhecido como entidade familiar, persistindo apenas para o relacionamento oficial o percebimento de todos os direitos advindos do casamento ou união estável, inclusive os de natureza patrimonial em relação à amante. Situação diversa é a experimentada pelos filhos, uma vez que, independentemente de como se deu a concepção, são igualmente titulares de direitos, tanto afetivos (convívio, cuidado), como também patrimoniais (herança, alimentos).

Assim, conclui-se que, via de regra, às amantes não são atribuídos direitos, mas diante da comprovação de uma união estável, pode vir a ser beneficiada com o recebimento do patrimônio, inclusive com efeitos previdenciários, sem prejuízos aos descendentes, cujos direitos advém da relação de parentesco.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Embargos de Declaração nº 201900809085 nº único XXXXX-30.2013.8.25.0002 – 2ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça de Sergipe – Relator: José dos Anjos – Julgado em 14/05/2019.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. TJ-GO – Apelação Cível: 03300541920148090175, Relator: Norival de Castro Santomé, Data de Julgamento: 25/10/2018, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 25/10/2018.

BRASIL. TJPB – Tribunal de Justiça da Paraíba. ACÓRDÃO/DECISÃO do Processo Nº XXXXX20128152001, 1ª Câmara Especializada cível, Relator Des. José Ricardo Porto, Julgado em 06/2018.

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FERLA, Nara. União Estável x Concubinato. Jus.com, 23 de julho de 2018. Disponível em: < https://jus.com.br/artigos/67839/uniao-estavel-x-concubinato>. Acesso em 29 set. 2022.

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