O DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE EM FACE DA RESERVA DO POSSÍVEL. ANÁLISE DA SITUAÇÃO DAS CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA NO CENÁRIO BRASILEIRO 

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10382958


Rafael Rodrigues Salgado;
Wagner William Felipe;
Orientadora: Profª. Ma. Pamella Regina Carvalho.


Resumo: A presente pesquisa tem como tema o direito constitucional à saúde em  face da Reserva do Possível, possuindo como foco de análise a situação das crianças  com deficiência no cenário brasileiro. O tema em pauta se justifica pela sua atualidade,  visto a crescente judicialização da saúde perante a negativa da prestação estatal por  parte da Administração Pública, assim como pela necessidade de estudo deste objeto  como fomento da educação e consequente transformação social. O objetivo geral é  analisar quais os limites para a restrição da saúde pública no país devido a  insuficiência de recursos financeiros estatais. Utiliza-se do método de pesquisas  bibliográficas e análises normativas para a potencialização do desenvolvimento do  trabalho. 

Palavras-chave: Direito à saúde; Princípio da Reserva do Possível; Mínimo  Existencial; Vedação ao Retrocesso; Estado de Coisas Inconstitucional; ativismo  judicial. 

Abstract: This research delves into the constitutional right to health in the context of  the Reservation of the Possible, particularly examining the plight of children with  disabilities in Brazil. The topic’s timeliness is underscored by the increasing legal  challenges against the Public Administration’s denial of healthcare services, as well as  the need to explore this subject as a catalyst for education and subsequent social  transformation. The overarching goal is to scrutinize the boundaries of public health  restrictions due to inadequate financial resources by the Brazilian government.  Bibliographical review and normative analysis methodologies are employed to  strengthen the work done in this paper. 

Keywords: Right to health; Reservation of the Possible’s Principles; Existential  Minimum; Prohibition of Retrogression; Constitutional State of Affairs; Judicial  Activism. 

INTRODUÇÃO 

Entre os serviços públicos de prestação estatal de maior necessidade de  fruição pela população, pode-se considerar a saúde como o ápice do rol. Isso se deve  a relevância desse aspecto da vida humana, que condiciona o bom desenvolvimento  de todos os demais âmbitos da existência. 

Fazendo parte de um grupo minoritário de nações que adotam a mesma  política, o Brasil possui um sistema público de saúde que busca atender as  necessidades de toda sua população, que conta atualmente com mais de 214 milhões  de habitantes. 

A escolha dos detentores de poder pela criação do SUS (Sistema Único de  Saúde), que veio a se tornar o maior sistema público de saúde do mundo, tem suas  consequências negativas no que se refere aos gastos públicos. Não são todas as  demandas sociais que podem ser supridas pelo Estado, que dispõe de recursos  financeiros insuficientes para tanto.  

Sob esta ótica, o presente trabalho pretende elucidar se a escassez de recursos  financeiros do Estado pode impedir a materialização do direito constitucional a saúde.  O Princípio da Reserva do Possível passa a ser analisado em conjunto com os  princípios do Mínimo Existencial e da Vedação ao Retrocesso para uma melhor  compreensão do cenário em pauta. 

Nesta conjuntura, busca-se abordar a situação específica das crianças com  deficiência e como os seus direitos positivados e a jurisprudência dos tribunais podem  ajudá-las a minimizar suas dificuldades e viver de forma mais digna. 

A relevância em debater o tema em apreço se dá na crescente judicialização  da saúde no país, que, além de sobrecarregar a máquina pública, implica em um maior  ativismo judicial, fazendo com que o Poder Judiciário tenha que atuar de forma incisiva  em âmbito estatal administrativo. 

Este artigo utiliza-se do método científico e desenvolve sua temática com base  na metodologia de pesquisas bibliográficas, analisando outros artigos, dissertações e  teses recentes, bem como obras de juristas renomados no meio nacional. Tem-se  como objetivo verificar até que ponto a falta de recursos financeiros do Estado pode  restringir o direito material à saúde, e ponderar o âmbito de atuação estatal obrigatório  quando se trata da saúde de crianças com deficiência.

1 – O DIREITO CONSTITUCIONAL A SAÚDE E SUA EXTERIORIZAÇÃO AO  PLANO SOCIAL 

O centro de todo o ordenamento jurídico da República Federativa do Brasil,  assim como ocorre na maioria dos Estados Soberanos, é a Constituição Federal. Tal  normativa, com o processo conhecido como Neoconstitucionalismo, adquiriu uma  função que ultrapassa a simples posição de topo da Pirâmide de Kelsen, tornando-se  o mais importante filtro interpretativo de todos os demais ramos do direito. 

Neste cenário, os direitos fundamentais sociais, em especial o direito à saúde,  encontra dificuldades no que se refere a sua aplicabilidade e adequação ao plano das  realidades fáticas. Não basta uma norma ser positivada e estar em vigência, devem  haver condições jurídicas, financeiras e operacionais capazes de garantir sua eficácia. 

1.1 – CONCEITUAÇÃO E CLASSIFICAÇÕES DO DIREITO À SAÚDE 

Os direitos sociais, elencados no artigo 6° da CRFB de 1988, são classificados  pela doutrina como direitos fundamentais de segunda geração (ou dimensão), o que  significa que, para a efetiva fruição de seus efeitos, é necessária uma prestação  positiva do Estado, que se traduz por meio de políticas e serviços públicos. 

Não é por acaso que, dentre tais direitos, a saúde, dada a sua grande  importância, foi o segundo a ser expresso pelo legislador do Poder Constituinte  Originário. A necessidade de utilização dos serviços públicos de saúde se dá,  principalmente, nas situações de maior vulnerabilidade da raça humana, as de  enfermidades. Diante da presença de doenças que venham a acometer o organismo  de determinado indivíduo ou de seus familiares, quaisquer outros direitos parecem se  tornar insignificantes perante à saúde. 

Assim manifesta a Constituição Federal em seu artigo 196:  

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas  sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros  agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua  promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988). 

Ao falar em saúde, é importante salientar que não se trata apenas de bem estar  físico ou mental, mas sim de uma análise do indivíduo como um todo, levando em conta o âmbito social, conforme o entendimento da Organização Mundial da Saúde, nos seguintes termos: 

A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não  consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor  estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais  de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político,  de condição econômica ou social (OMS, 1946). 

Ao enxergar o ser humano sob essa mesma perspectiva, de um ser social,  percebe-se que o que torna sua vida digna é o exercício integral da cidadania, que  possui como condição a saúde. Para que o indivíduo tenha acesso ao trabalho, que  gerará renda e, consequentemente, fornecerá o acesso a outros direitos, como a  educação, a alimentação e a moradia, é mister a concretização do direito à saúde, e  não apenas a presença de uma garantia formal (UNIJUI et al, 2023). 

Outra classificação a ser atribuída a este direito tão valioso se refere a sua  eficácia e aplicabilidade. Considerada pela doutrina como norma constitucional de  eficácia limitada de princípio programático e de aplicabilidade diferida, o direito à  saúde não possui eficácia plena e, deste modo, não tem a força suficiente para ser  aplicado integralmente sem o advento de uma norma infraconstitucional que o regule. 

Diante de tal classificação, o STF, ao longo dos dez primeiros anos de vigência  da Constituição Federal de 1988, não decidia questões de saúde por não considerar  este direito, por si só, como direito público subjetivo, passível de demanda judicial para  exigir o cumprimento estatal. Conjuntamente com este argumento, foi utilizado a  justificativa da reserva do possível como fator financeiro limitador de sua aplicabilidade (CUNHA, 2020).  

1.2 – A RESERVA DO POSSÍVEL COMO FATOR LIMITADOR DOS  DIREITOS SOCIAIS 

A reserva do possível, também denominada como reserva do financeiramente  possível, não é um princípio expresso no texto constitucional, mas é amplamente  discutido e utilizado pela doutrina e pela jurisprudência para justificar a ausência da  prestação estatal em casos que envolvam os direitos sociais. 

O instituto em questão se refere a falta de condições financeiras por parte do  poder público para arcar com todas as necessidades individuais que envolvam direitos constitucionais sociais. Desse modo, tais direitos, embora explícitos no texto da Carta  Magna, só são implementados na realidade fática a medida de sua possibilidade  perante as previsões orçamentárias. 

A reserva do possível (Vorbehalt dês Möglichen) é entendida como limite ao  poder do Estado de concretizar efetivamente direitos fundamentais a  prestações, tendo por origem a doutrina constitucionalista alemã da limitação  de acesso ao ensino universitário de um estudante (numerus-clausus  Entscheidung). Nesse caso, a Corte Constitucional alemã (Bundesver fassungsgericht) entendeu existirem limitações fáticas para o atendimento de  todas as demandas de acesso a um direito (CALIENDO, apud PAIXÃO, 2019,  p. 2169). 

A existência do ser humano em sociedade se traduz de forma complexa de  modo a frustrar expectativas criadas por seus membros, pois as garantias previstas  de forma abstrata em normas podem se tornar impraticáveis em virtude de que o plano  da vida exige a concretude destes dispositivos (UNIJUI et al, 2023). 

Neste sentido, a vida em sociedade, muitas vezes, gera nas pessoas a falsa  ideia de que todas as suas necessidades devem ser supridas pelo ente coletivo. No  entanto, os recursos públicos, assim como os privados, são limitados e, como regra,  não são suficientes para gerir toda a demanda social. 

Neste contexto, a Administração Pública utiliza-se da reserva do possível como  forma de se esquivar da prestação assistencial à saúde em diversas situações,  deixando, por vezes, os particulares em situação de vulnerabilidade e fragilidade  diante do sistema. Em meio a tal conjuntura, a doutrina traz a ideia do Mínimo  Existencial, princípio que serve de contrapeso à reserva do possível. 

Em que pese o mínimo existencial não seja um princípio expresso no texto  constitucional, o constituinte marca sua presença no ordenamento jurídico através de  outros dispositivos como o salário mínimo, externado no artigo 7°, IV da CRFB/88, in  verbis:  

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que  visem à melhoria de sua condição social: 
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender  a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia,  alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e  previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder  aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim (BRASIL, 1988). 

Segundo Unijui (2023), ao se falar em mínimo existencial, deve-se considerar  não apenas o básico que o ser humano precisa para não definhar e sucumbir a morte, mas levar em conta tudo o que pesa para a existência de uma vida digna, com saúde  física e mental. 

No mesmo sentido, Barroso (2010) manifesta que o mínimo existencial se  compõe de um conjunto de condições materiais cuja presença é pressuposto de  dignidade para qualquer indivíduo, sendo um desrespeito à ordem constitucional se  alguém viver abaixo daquele patamar. 

Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e  à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao  vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços  sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença,  na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de  subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade (ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). 

Utilizando como referência esta norma de suma importância presente na  Declaração Universal dos Direitos Humanos, pode-se extrair que, embora a reserva  do possível seja um fator que gere limitação ao exercício dos direitos sociais, é dever  do Estado realizar a prestação dos serviços públicos de modo a garantir um bem estar  geral da população, que necessita não apenas dos suprimentos materiais básicos,  mas de todo suporte suficiente para uma vida com dignidade. 

1.3 – O CONFLITO DOS DIREITOS SOCIAIS COM OS DEMAIS  INTERESSES DA COLETIVIDADE 

Consoante ao que já foi exposto, os recursos públicos utilizados para a  efetivação dos direitos positivados não são infinitos. Ao realizar a alocação das verbas  por via orçamentária deve-se utilizar da ponderação necessária a satisfação dos  interesses prioritários da comunidade. 

Utilizando da linguagem conotativa como meio exemplificativo, ao puxar a  toalha de uma mesa para um lado descoberto, o outro lado se descobre, pois esta não  é grande o suficiente para cobrir toda a sua superfície. Do mesmo modo, ao  resguardar as necessidades individuais, o Estado tende a suprimir a efetiva tutela de  direitos da coletividade. 

Quando um medicamento ou tratamento cirúrgico de alto custo, necessário a  manutenção da vida digna de uma criança com deficiência, é demandado pela via administrativa ou judicial, as autoridades competentes se encontram em situação de  difícil decisão. Cada conceção realizada implica no aumento da escassez de  medicamentos e de serviços realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). 

Tal decisão, no entanto, não dispõe de puro juízo de discricionariedade, já que  o princípio da razoabilidade deve ser utilizado como parâmetro. De acordo com  BRASIL e ALMEIDA, a razoabilidade exige a adoção de prudência, e busca evitar  comportamentos absurdos, bizarros e que fogem do interesse popular. Sendo assim,  o Estado só é livre para fazer escolhas dentro das opções razoáveis, ficando impedida  a utilização do que é considerado irracional ou individualista (2022). 

Nesta conjuntura, conforme o entendimento de PANDOLFI, Isaac et al, o que  se percebe é um cenário de tradição jurídica que protege determinados direitos em  detrimento de outros, utilizando do argumento da limitação orçamentária. Para eles, a  escassez absoluta de recursos não pode ser alegada devido a captação contínua de  tributos. O problema, portanto, passa a ser a sua distribuição ideologicamente  influenciada (2021).  

Os direitos fundamentais de segunda geração não são os únicos a  demandarem recursos financeiros devido a necessidade de atuação ativa do poder  público. Os direitos de primeira geração, embora se refiram a uma conduta comissiva  do Estado, necessitam de uma estrutura administrativa básica para a sua tutela. 

Neste sentido, não há questionamento jurídico quanto a destinação  orçamentária para a manutenção do direito à liberdade ou à propriedade que, embora  reduzidos, geram gastos à Administração Pública, mas a contabilidade dos valores  destinados à saúde é sempre vista pelo Estado como sendo um problema  (PANDOLFI, Isaac et al, 2021). O orçamento público, deste modo, deve ser observado  como o meio de efetivação das políticas públicas e não como um fator limitador destas. 

Um ordenamento jurídico que limita os direitos fundamentais sociais,  mediante o fundamento de seus custos, e, simultaneamente, atribuiu  proteção plena os direitos de primeira geração, protegidos sem qualquer  menção aos valores para isso despendidos, carece de lógica-jurídica, e até  mesmo de racionalidade. Em outros termos, é admitir que há distinção e  níveis de direitos fundamentais (PANDOLFI, Isaac et al, p. 77). 

A falta de planejamento, a gestão ineficiente dos recursos públicos, e os gastos  realizados sem necessidade, são fatores responsáveis pela aparente falta de  condições financeiras estatais e consequente descaso com a implementação de  direitos sociais (OTERO; RAVAIOLI, 2019). 

Os direitos da coletividade são considerados foco da prestação do Estado que,  pela evolução da sociedade, não podem ser apagados pelo pretexto da escassez de  recursos, mas sim garantir-lhes a máxima aplicabilidade para que não esvaziem seus  conteúdos (NETO, 2019). Na mesma linha de pensamento Otero e Ravaioli entendem  que a limitação dos direitos sociais não pode atingir seu núcleo essencial de modo a  ferir a dignidade humana (2019). 

O chamado Princípio da Vedação ao Retrocesso, garante que o direito  incorporado ao meio social não pode ser totalmente suprimido. O mesmo princípio é  violado ao se utilizar da reserva do possível como supressão de política pública que  já concretizou direitos sociais (OTERO; RAVAIOLI, 2019). 

Desse modo, sendo a gratuidade da saúde pública brasileira e sua prestação  de forma universal (garantida a todos) um pilar fixado em meio a cultura social e,  tendo, dessa forma, logrado êxito na satisfação de diversas necessidades individuais  e coletivas ao longo dos anos, não pode o poder público se eximir de sua efetiva  prestação sob a alegação da falta de recursos financeiros. Tal atitude viola os  princípios supracitados e, assim, o ordenamento jurídico como um todo. 

1.4 – O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E A  JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE 

Como pôde-se perceber, o Poder Estatal encontra grandes dificuldades no que  tange a efetivação de direitos consolidados no ordenamento jurídico pátrio. Tais  dificuldades tendem, aos poucos, a se tornarem justificativa para a omissão e a  negligência, fazendo com que o direito planejado pelo legislador se transforme em  uma forma esvaída de qualquer conteúdo, imputando a falsa sensação de proteção  jurídica na sociedade. 

Quando essa infringência aos direitos fundamentais se expõe de modo a  prejudicar um grande número de pessoas, evidenciando uma falha estrutural do  Estado e deterioração da ação dos poderes, é reconhecida a presença do instituto  chamado de Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) (BRASIL; ALMEIDA, 2022). 

Trata-se de um mecanismo utilizado em situações excepcionais em que a  violação à direitos previstos constitucionalmente é tão grave que se faz necessária  uma intervenção da corte constitucional na atuação dos agentes políticos, de modo a suprir a omissão constatada para que os princípios basilares do direito, como a  Dignidade da Pessoa Humana, não sejam reduzidos a simples termos jurídicos. O instituto em questão foi introduzido ao ordenamento jurídico brasileiro por  meio da ADPF 347, em que o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) questionou  perante o STF quanto a existência dos pressupostos na situação do sistema  penitenciário brasileiro. Os ministros reconheceram se tratar de um ECI, devido a total  dissonância entre a realidade carcerária com os direitos previstos constitucionalmente  (BRASIL; ALMEIDA, 2022). 

No âmbito da saúde pública, embora o instituto em questão ainda não tenha  sido reconhecido, verifica-se, em muitas situações e em diversas localidades, uma  afronta generalizada aos direitos fundamentais, devido à falta de medicamentos, à  demora do atendimento e a uma infraestrutura deficiente para atender à população.  

Neste contexto, diante da necessidade de tratamento específico, cujo custo não  pode ser arcado pelo particular sem que ocorra prejuízo ao sustento de sua família,  este tende a buscar a tutela de seus direitos pela única via cabível, a judicial. 

O princípio da inafastabilidade da jurisdição, previsto no art. 5°, XXXV, da  Constituição da República Federativa do Brasil, garante ao administrado o  acionamento da máquina pública para fazer valer seus direitos, embora o Poder  Judiciário tenha que, por vezes, se distanciar de sua função típica para exercer um  papel ativo na administração pública.  

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,  garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a  inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à  propriedade, nos termos seguintes: 

XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça  a direito (BRASIL, 1988). 

A chamada judicialização da saúde tem crescido em ritmo preocupante que  aponta para uma sobrecarga da atividade do Poder Judiciário. Os dados do CNJ,  disponibilizados em seu sítio eletrônico, mostram que o número de novos processos  referentes à saúde pública no país subiu de 208 mil em 2020 para 293 mil em 2022.  Somente no tocante ao fornecimento de medicamentos o número subiu de 37 mil para  46 mil neste mesmo período (BRASIL, 2023). 

Neste cenário, levando em conta a importância da prestação estatal para a  efetivação do direito à saúde, e considerando a insuficiência de recursos públicos financeiros, o magistrado se vê em situação complexa, em que o conflito pujante não  se dá em torno da responsabilidade fiscal, mas sim entre o direito à saúde de uns  pacientes contra o direito à saúde de outros (PAIXÃO, 2019). 

2 – O DIREITO À SAÚDE DAS CRIANÇAS COM DEFICIÊNCIA E O  ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO 

O direito à saúde no âmbito jurídico da criança com deficiência é uma questão  de extrema importância, que envolve desafios complexos e necessidade de garantir a  proteção adequada para essa população vulnerável. 

Se o drama que envolve a saúde pública no país gera sofrimento a toda a  sociedade, a parcela social mais frágil tende a sentir seus efeitos de forma mais  drástica. 

A infância é a fase inicial da vida humana, momento no qual os indivíduos  passam por descobertas, crescem e se desenvolvem em meio social. No entanto, este  ciclo pode ser marcado por dificuldades específicas para um certo grupo minoritário  de crianças, as que sofrem com deficiência. 

Nesta conjuntura, ações devem ser tomadas no sentido de buscar igualar ao  máximo possível, de acordo com cada realidade, as experiências de vida dos  indivíduos em pauta com as crianças que não desenvolveram tais patologias. 

2.1 – A SAÚDE COMO POLÍTICA PÚBLICA 

Almeida e Bosi (2016) discutem o direito à saúde e a equidade, ressaltando a  importância de garantir um acesso igualitário aos serviços de saúde. Eles destacam  que as políticas de saúde devem considerar as particularidades e necessidades  específicas das crianças com deficiência, buscando eliminar as desigualdades  existentes nessa área.  

Dito isso, pode-se afirmar que o direito à saúde é reconhecido  internacionalmente como um direito humano fundamental. A saúde é essencial para o  bem-estar e a qualidade de vida das pessoas, e garantir o acesso igualitário aos serviços de saúde é um mecanismo fundamental para promover a equidade. A  equidade refere-se à justiça distributiva, ou seja, garantir que todos tenham a  oportunidade de alcançar seu potencial máximo de saúde, independentemente de sua  origem socioeconômica, gênero, etnia ou deficiência. 

É importante, portanto, avançar nessa discussão para estabelecer diretrizes  claras que resultem na prática de promover a equidade necessária para alcançar a  plenitude do direito à saúde. Essas diretrizes devem conseguir gerar melhorias  mensuráveis nos indicadores estatísticos de saúde pública, bem como na percepção  individual de satisfação em relação ao próprio estado de saúde, tanto para os  indivíduos que necessitam de tratamento como para suas famílias e comunidades.  Além disso, é essencial buscar um sistema de saúde ideal que forneça o cuidado  necessário a todos, considerando as diferenças e necessidades de cada pessoa. 

Feres (2015) aborda a proteção jurídica dos direitos fundamentais da criança  com deficiência. O autor ressalta a importância de uma abordagem abrangente, que  englobe não apenas os aspectos médicos, mas também as dimensões sociais,  educacionais e culturais da saúde dessas crianças. Ele destaca que é fundamental  promover a inclusão e garantir a igualdade de oportunidades para que elas possam  usufruir plenamente do direito à saúde. 

2.2. A LEGISLAÇÃO E A JURISPRUDÊNCIA REFERENTES À SAÚDE  NO ESTADO BRASILEIRO 

No Brasil, o marco legal do direito à saúde das crianças com deficiência é  estabelecido por dois documentos fundamentais: a Constituição Federal de 1988 e o  Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990. Esses  instrumentos legais garantem direitos e proteções essenciais às crianças com  deficiência, assegurando-lhes o acesso adequado à saúde. 

A Constituição Federal de 1988 reconhece a saúde como um direito  fundamental e estabelece a proteção integral à criança e ao adolescente como um  preceito basilar. O artigo 227 afirma que é dever da família, da sociedade e do Estado  assegurar à criança, com absoluta prioridade, o direito à saúde, à alimentação, à  educação, ao lazer, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e  comunitária (BRASIL, 1988). Isso significa que o Estado deve fornecer condições para garantir a saúde e o bem-estar físico, mental e emocional das crianças com  deficiência. 

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por sua vez, complementa a  Constituição ao estabelecer um conjunto abrangente de direitos e garantias às  crianças e adolescentes. O ECA estabelece que toda criança e adolescente tem direito  à vida, à saúde e à dignidade, sendo dever da família, da comunidade, da sociedade  em geral e do poder público assegurar esses direitos (BRASIL, 1990). 

No que diz respeito especificamente à saúde das crianças com deficiência, o  ECA determina que elas têm o direito de receber atendimento especializado e integral  no sistema de saúde, garantindo a prevenção, promoção, tratamento e reabilitação  adequados às suas necessidades. Além disso, o Estatuto proíbe qualquer forma de  discriminação contra crianças com deficiência no acesso aos serviços de saúde,  assegurando-lhes igualdade de oportunidades (BRASIL, 1990). 

Esses marcos legais estabelecem um sólido arcabouço de proteção aos  direitos à saúde das crianças com deficiência. No entanto, é importante ressaltar que  a efetivação desses direitos muitas vezes enfrenta desafios na prática. Para garantir  o acesso pleno e igualitário à saúde, é necessário um esforço conjunto entre o poder  público, a sociedade civil e a família para a implementação de políticas públicas  eficazes, a capacitação dos profissionais de saúde e a conscientização da sociedade  sobre a importância da inclusão e do respeito aos direitos das crianças com  deficiência. 

Oliveira e Garcia (2020) discutem os desafios e perspectivas relacionados ao  acesso à saúde para crianças com deficiência. Eles destacam a falta de estrutura  adequada nos serviços de saúde, a necessidade de uma abordagem multidisciplinar  e inclusiva, a importância da conscientização dos profissionais de saúde e a  relevância de políticas públicas efetivas. Em resumo, os autores apontam a  necessidade de superar as barreiras existentes e promover um atendimento de  qualidade e acessível para crianças com deficiência. 

Em um estudo realizado por Bertoche et al. (2018), a legislação e a  jurisprudência relacionadas ao direito à saúde da criança com deficiência são  minuciosamente analisadas, enfatizando a necessidade de uma abordagem inclusiva  nesse contexto. 

Os autores examinam os instrumentos normativos brasileiros que versam sobre  o tema, como a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) e outras normas  específicas. Eles destacam que esses marcos legais estabelecem a garantia do direito  à saúde como fundamental para as crianças com deficiência, reforçando a  necessidade de uma proteção integral e igualitária. 

Além disso, Bertoche et al. (2018) analisam a jurisprudência, ou seja, as  decisões judiciais relacionadas ao direito à saúde das crianças com deficiência que  convergem para um mesmo entendimento. Eles destacam casos em que o Poder  Judiciário atuou para garantir o acesso a tratamentos, medicamentos e terapias  essenciais, quando o sistema de saúde público não estava atendendo  adequadamente a essas demandas. Essas decisões judiciais têm o papel de reforçar  e ampliar os direitos já estabelecidos pela legislação, buscando assegurar a  efetivação do direito à saúde das crianças com deficiência. 

A partir dessa análise, os autores ressaltam a importância de uma abordagem  inclusiva no âmbito do direito à saúde. Isso significa considerar as necessidades  específicas das crianças com deficiência, suas particularidades e o impacto que as  limitações podem ter em seu acesso aos serviços de saúde. Esse enfoque deve  garantir a igualdade de oportunidades, a não discriminação e a participação ativa  dessas crianças e suas famílias no planejamento e no cuidado de sua saúde. 

O estudo de Bertoche et al. (2018) destaca, portanto, a importância de uma  análise abrangente da legislação e da jurisprudência relacionadas ao direito à saúde  das crianças com deficiência, evidenciando a necessidade de uma abordagem  inclusiva nesse contexto e considerando as peculiaridades de cada caso. A partir  dessa compreensão, é possível fortalecer a proteção legal e garantir que tais  indivíduos tenham acesso pleno e igualitário aos serviços de saúde, visando o seu  desenvolvimento e bem-estar. 

É fundamental mencionar a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com  Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que visa garantir a inclusão social e o acesso aos  direitos fundamentais, incluindo a saúde, para as pessoas com deficiência. 

Tal normativa, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, representa um marco importante na promoção dos direitos das pessoas com  deficiência no Brasil. A lei estabelece uma série de obrigações tanto para o governo  federal, quanto para os estados e municípios, no sentido de garantir um bom  atendimento a esta parcela específica da população (BRASIL, 2015). 

No que diz respeito aos encargos dos estados e municípios, a Lei de Inclusão  prevê a necessidade de implementação de políticas públicas inclusivas e de  acessibilidade em diversas áreas, incluindo a saúde. O atendimento adequado às  pessoas com deficiência no âmbito da saúde é uma das questões centrais abordadas  pela lei (BRASIL, 2015). 

Entre os deveres dos entes federativos regionais e locais em relação ao  atendimento à saúde das pessoas com deficiência destacam-se: a promoção do  acesso igualitário aos serviços de saúde; a oferta de serviços especializados para  atender às suas necessidades próprias; a capacitação dos profissionais de saúde,  visando o atendimento adequado e inclusivo; a disponibilização de informações  acessíveis sobre os serviços de saúde, garantindo que as pessoas com deficiência  possam ter acesso aos dados necessários para utilizar os serviços de forma plena e  autônoma; a promoção de ações de prevenção e promoção da saúde voltadas para  essa comunidade, buscando evitar complicações de saúde e garantir uma melhor  qualidade de vida. 

Essas são algumas das atribuições vinculadas aos estados e municípios  previstas na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência no que se refere ao  atendimento à saúde. É importante ressaltar que a implementação efetiva dessas  obrigações depende da articulação entre os diferentes níveis de governo e das  políticas públicas. 

Nesse sentido, é fundamental que a legislação e a jurisprudência continuem  sendo analisadas e discutidas, visando fortalecer a proteção normativa e, desse  modo, garantir o acesso pleno e igualitário à saúde das crianças com deficiência.  Somente assim será possível assegurar seu desenvolvimento e bem-estar,  promovendo uma sociedade mais inclusiva e justa para todos. 

2.3 – A IMPLICAÇÃO DAS DEFICIÊNCIAS EM CRIANÇAS NO  PLANO JURÍDICO 

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao  ordenamento jurídico nacional através do Decreto n° 6.949 de 2009, preconiza que as  Pessoas com Deficiência têm direito a igual reconhecimento em todos os lugares  como pessoas perante a lei e que têm o direito de “gozar da capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida” (ONU,  2007). 

Conforme estabelece o artigo 12 da referida norma, os indivíduos com  deficiência devem possuir capacidade legal em igualdade de circunstâncias com  outros. A capacidade legal engloba o direito de ser identificado como cidadão perante  a legislação, assim como o direito de representação legal, isto é, ter suas decisões  reconhecidas legalmente (SZMUKLER, 2019). Segundo o Comitê das Nações Unidas  sobre os Direitos das Pessoas com deficiência, preservar a “capacidade legal” implica  respeitar os direitos, a vontade e as preferências dos Indivíduos com deficiência  (SZMUKLER, 2019). 

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com deficiência ainda adiciona  que todos os Estados Partes devem adotar medidas “para garantir o acesso dos  Indivíduos com Incapacidade ao suporte que possam necessitar no exercício de sua  capacidade legal” (ONU, 2007). 

Assim como as normas do direito internacional, a legislação brasileira  reconhece a importância de proteger os direitos das crianças com deficiências e  promover sua inclusão social. Algumas das implicações jurídicas incluem o direito à  educação inclusiva, assegurando que crianças com deficiências tenham acesso a  escolas regulares. Além disso, o Sistema Único de Saúde (SUS) fornece tratamento  e acompanhamento médico especializado para crianças com deficiências. A Lei n.  8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu  artigo 11 prevê a garantia desse acesso, in verbis: 

Art. 11. É assegurado acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde  da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde,  observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para  promoção, proteção e recuperação da saúde (Redação dada pela Lei nº  13.257, de 2016). 

§ 1 o A criança e o adolescente com deficiência serão atendidos, sem  discriminação ou segregação, em suas necessidades gerais de saúde e  específicas de habilitação e reabilitação (BRASIL, 1990). 

Instituído pela Constituição Federal de 1988 (art. 203, V) e regulamentado pela  Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), nº 8742, de 07 de dezembro de 1993, o  Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social (BPC), é um benefício não  vitalício, intransferível, que se destina aos idosos (a partir de 65 anos) e às pessoas  com deficiência, consideradas incapacitadas para a vida independente e para o trabalho, cuja renda familiar per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo, que vem  sendo implementado desde 1996. Até 1998, para fins do BPC era considerado idoso  qualquer pessoa a partir de 70 anos de idade (BRASIL, 1993). 

Além disso, a legislação proíbe a discriminação com base na deficiência,  assegurando que crianças com deficiências sejam tratadas com igualdade e respeito.  Crianças com deficiências têm o direito de serem adotadas e terem a sua guarda  concedida, desde que isso seja considerado o melhor interesse da criança, de acordo  com o ECA (BRASIL, 1993).  

Em casos de violação de direitos, as crianças com deficiências têm o direito de  receber apoio jurídico para garantir a proteção de seus interesses. É importante que  o Estado e a sociedade em geral estejam cientes dessas implicações jurídicas para  efetivar a proteção e o pleno desenvolvimento de crianças com deficiências no Brasil. 

3 – DA PREVALÊNCIA DA PRESTAÇÃO ESTATAL NA SAÚDE INFANTIL 

O pleno desempenho dos direitos essenciais constitui o cerne do Estado de  Direito Democrático. Trata-se de um paradigma que busca, principalmente, resguardar  o indivíduo diante da atuação estatal. A existência do Estado, enquanto comunidade,  destina-se à consecução de um propósito: o bem coletivo.  

A viabilidade do livre exercício dos Direitos Fundamentais está  substancialmente ligada à ideia de bem comum. A preservação da vida humana digna  é inseparável do conceito de Estado de Direito Democrático. A dignidade,  circunstância intrínseca a todo ser humano, constitui o ponto central em torno do qual  gravitam todos os direitos e garantias fundamentais. Todos os direitos têm como  objetivo, de alguma maneira, assegurar ao cidadão uma existência digna. 

Embora as condições financeiras do ente estatal comumente não colaborem  para a efetivação dos referidos direitos, o Poder Público tem o dever de assegurar sua  aplicação com base nesse princípio que funciona como base para a própria existência  do Estado.

3.1 – A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO  BASILAR DO ESTADO 

Em nosso ordenamento jurídico o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,  insculpido no artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal 1988, se apresenta como  fundamento da República Federativa do Brasil e está ligado a diversos outros  dispositivos legais, bem como o art. 7º do Estatuto da Criança e Adolescente.  

Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde,  mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o  nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas  de existência (BRASIL, 1990). 

O Estado deverá agir para implementar, promover e garantir os meios  necessários para que todas as pessoas (universalidade) tenham as mesmas  oportunidades (igualdade) para alcançar uma vida com qualidade. 

Este é o objetivo primordial que os direitos fundamentais sociais buscam  efetivar, implementar e garantir. Mas, como uma vida com qualidade funda-se na  dignidade da pessoa humana, somente poder-se-á falar em efetiva tutela de tais  direitos quando forem concedidos às pessoas todos os meios materiais e espirituais  para o desenvolvimento pleno da personalidade humana, oferecendo a todos os  indivíduos o mínimo necessário para alcançar aquele objetivo (qualidade de vida). 

Neste cenário, o Princípio do Mínimo Existencial exerce perante às constantes  invocações da Reserva do Possível, pela Administração Pública, o freio necessário à sua utilização, mantendo como prevalente a dignidade humana, principalmente no que  tange à saúde de crianças com deficiência.  

O ser humano precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em razão  dele. Nesse sentido, a pessoa humana deve ser concebida e tratada como valor-fonte  do ordenamento jurídico, como assevera Miguel Reale (1994), sendo a defesa e  promoção da sua dignidade, em todas as suas dimensões, a tarefa primordial do  Estado Democrático de Direito.  

Nesta linha, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana representa o  epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o  ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a  miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado. A despeito do caráter compromissório da Constituição, pode ser dito que o princípio em questão é o que confere unidade de sentido e valor ao sistema  constitucional, que repousa na ideia de respeito irrestrito ao ser humano, razão última  do Direito e do Estado. 

Garantir uma vida com qualidade como corolário da dignidade da pessoa  humana é o objetivo dos direitos fundamentais sociais, que encontram nos princípios  insertos na Constituição Federal, assim como na Declaração Universal dos Direitos  Humanos, os fundamentos para a concretização de seus preceitos e do seu núcleo  essencial. 

Sendo assim, embora a Reserva do Possível exerça sua função primordial de  conscientização para a boa utilização dos recursos públicos, relembrando sua finitude,  tal instituto não pode esvaziar preceitos constitucionais que derivam do direito natural,  ou seja, anteriores e superiores ao próprio Estado. Portanto, a dignidade humana  sobressai ao argumento estatal de falta de verbas, que nada mais expressa que uma  má gestão dos governantes instituídos. 

Urge salientar, como já mencionado anteriormente, que uma vida com  qualidade, como fim da dignidade da pessoa humana, não significa o mero existir ou  sobreviver, mas viver com padrões mínimos de alimentação, vestuário, habitação,  saúde, educação e segurança. O mero sobreviver com fome, na miséria, sem moradia,  sem educação, sem tratamento médico, representa a negação do próprio direito à vida  e a violação da dignidade da pessoa humana. Pertinente a pergunta de Francis  Delpérée (1999): “Para que serve o direito à vida, se esta for desprovida de  dignidade?”.  

3.2 – TUTELA JUDICIAL NA SAÚDE: GARANTINDO O ACESSO A  PROCEDIMENTOS E EQUIPAMENTOS PARA CRIANÇAS COM  DEFICIÊNCIA. 

A busca por procedimentos e equipamentos não fornecidos pelo SUS tornou se uma realidade para muitas crianças com deficiência, que encontram na  judicialização uma alternativa para suprir suas necessidades. Entretanto, os Estados  e Municípios frequentemente recorrem à reserva do possível como justificativa para  limitar o acesso a tais recursos, negligenciando o tema 106 do STJ, que destaca o  seguinte: 

Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não  incorporados em atos normativos do SUS. 

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do  SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: 
i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado  expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou  necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento  da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; 
ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; 
iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência. 
Tese definida no acórdão dos embargos de declaração publicado no DJe de 21/9/2018

É crucial destacar também a importância do laudo médico, respaldado pela  Resolução 2217/2018 do código de ética, que reafirma a autonomia do profissional de  saúde na escolha de tratamentos e recursos necessários para o paciente. Esta  resolução salienta que nenhuma disposição estatutária ou regimental de hospital,  público ou privado, deve limitar a decisão do médico. 

Assim, a defesa dos direitos das crianças com deficiência envolve não apenas  a compreensão da legislação vigente, mas também a conscientização sobre a  necessidade de respeitar a autonomia médica, assegurando o acesso a  procedimentos e equipamentos essenciais para o pleno desenvolvimento e qualidade  de vida desses indivíduos. Em verdade, os servidores responsáveis pela conceção  em questão não dispõem de conhecimento técnico para interferir em condutas  médicas, possuindo o profissional da saúde mais aptidão e discernimento com relação  às medidas a serem efetivadas.  

Ademais, é fundamental considerar o tema 793 do STF, que esclarece que a  parte autora detém autonomia para escolher a qual ente federativo recorrer, seja ao  Estado, Município ou União. Esta autonomia na escolha do órgão responsável reforça  a necessidade de flexibilidade por parte das instâncias governamentais para atender  às demandas específicas das crianças com deficiência, evitando entraves  burocráticos que possam comprometer o acesso rápido e eficaz a procedimentos e  equipamentos imprescindíveis. 

Dessa forma, a interseção entre as normativas do tema 106 do STJ e a  jurisprudência destacada pelo tema 793 do STF ressalta a importância de garantir o  pleno exercício dos direitos dessas crianças com deficiência, reconhecendo não apenas a obrigatoriedade do fornecimento, mas também a flexibilidade necessária  para adequar as soluções às particularidades de cada caso. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Mediante toda a análise realizada, pôde-se extrair a relevância do tema em  debate no plano fático e suas implicações no mundo jurídico, bem como compreender  a complexidade envolvida na prestação estatal de direitos sociais.  

Em que pese o Princípio da Reserva do Possível, originário da doutrina alemã,  possa ser aplicado no ordenamento jurídico brasileiro para definir os moldes do  fornecimento de serviços públicos, garantir que atividades essenciais sejam  priorizadas e relembrar os administrados que os recursos públicos são finitos, tal  instituto não pode restringir o pleno acesso ao direito à saúde, que, com fulcro no  princípio da Dignidade da Pessoa Humana, deve garantir a vida com dignidade em  todos os seus aspectos. 

As leis e os entendimentos jurisprudenciais mencionados formam o  sustentáculo normativo capaz de apoiar as crianças com deficiência e seus familiares  no que tange ao fornecimento de medicamentos, realização de procedimentos  médicos e laboratoriais, assim como a prestação, por parte da Administração Pública,  de todas as medidas cabíveis e possíveis para uma melhora significativa na qualidade  de vida destes indivíduos. 

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