O DIREITO AO CONTRADITÓRIO E A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7101334


Autores:
LAGE, Vanessa Harb,
SOUZA, Fernando Paulino Gomes Soares,
MESQUITA, Ana Carolina de Araújo.


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo fazer uma análise da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou Disregard Doctrine no direito brasileiro, antes e depois da edição do Código de Processo Civil de 2015, com ênfase no direito ao contraditório. Primeiramente, será analisada a aplicação do instituto no Brasil, no âmbito processual, antes da edição do novo CPC. Em segundo lugar, será demonstrado como o Poder Judiciário aplicava o instituto, através de exemplos jurisprudenciais. Posteriormente, será analisada a regulamentação da desconsideração da personalidade jurídica pelo novo CPC. Por fim, será feita uma análise jurisprudencial acerca da aplicação do instituto atualmente e uma reflexão sobre a importância da regulamentação do procedimento.

Palavras-chave: Direito ao contraditório. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Disregard Doctrine. Código de Processo Civil de 2015.

ABSTRACT

The present study aims to analyze the application of the theory of disregard of legal personality or Disregard Doctrine in Brazilian law, before and after the edition of the Civil Procedure Code of 2015, with emphasis on the right to contradictory. First, the application of the institute in Brazil will be analyzed, in the procedural scope, before the edition of the new CPC. Second, it will be demonstrated how the Judiciary applied the institute, through jurisprudential examples. Subsequently, the regulation of the disregard of legal personality by the new CPC will be analyzed. Finally, a jurisprudential analysis will be made about the application of the institute today and a reflection on the importance of regulating the procedure.

Keywords: Right to contradictory. Disregard of Legal Personality. Disregard Doctrine. Civil Procedure Code of 2015.

  1. INTRODUÇÃO

Uma das grandes inovações do novo CPC diz respeito à regulamentação do procedimento da desconsideração da personalidade jurídica, presente entre os arts. 133 e 137 sob o título “Do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica”. Não obstante a regulamentação do instituto no âmbito material, com diversas alterações em 2019, carecia a comunidade jurídica de uma regulamentação processual, já que, à falta de um procedimento geral a ser seguido, a aplicação do instituto se dava de variadas formas e exageradamente, muitas vezes sem provas concretas e sem qualquer garantia de um contraditório prévio.

O presente trabalho, portanto, irá se debruçar nesta inovação, analisando a relevância da regulamentação da desconsideração da personalidade jurídica pelo CPC/15 com o fim de evitar uma aplicação arbitrária e desmedida do instituto, como também para garantir o princípio do contraditório aos sócios atingidos. Para isso, foi realizada a leitura de diversas doutrinas de renomados autores brasileiros acerca do tema, bem como artigos jurídicos e pesquisada jurisprudência dos Tribunais de Justiça Estaduais e Tribunais Superiores, antes e depois da edição do novo diploma processual.

Primeiramente, iremos perpassar pela aplicação do instituto no Brasil antes da edição do CPC/15; depois, demonstrar como o Poder Judiciário aplicava o instituto à época; posteriormente, será demonstrado o que mudou com a sua regulamentação no novo diploma processual; por fim, iremos analisar o tratamento dessa nova previsão legal pela jurisprudência, quando então iremos concluir com uma reflexão sobre a necessidade e importância dessa previsão legal para a garantia de um procedimento justo e de acordo com os princípios e garantias constitucionais, em especial em relação ao princípio do contraditório.

  1. APLICAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO BRASIL ANTES DA EDIÇÃO DO CPC/15

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica (Disregard Doctrine) vem sendo acolhida no direito brasileiro desde o final dos anos 1960, sobretudo a partir dos estudos de Rubens Requião, não obstante a falta de previsão legal do instituto. Esta só veio a ocorrer, no âmbito material, em 1990, com a edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), seguido pela Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9605/98), e, por fim, pelo Código Civil de 2002. Com a Lei nº 13.874/19, o CC/02 sofreu diversas alterações, trazendo mais clareza para as hipóteses caracterizadoras de abuso da personalidade jurídica.

No entanto, o instituto carecia de regulação processual, motivo pelo qual coube à jurisprudência tratar do tema. A questão não era pacífica, o que ocasionou na sua aplicação de variadas formas, gerando uma grande insegurança jurídica para os envolvidos.

De forma geral, entendiam os Tribunais que a desconsideração da personalidade jurídica poderia ocorrer de modo incidental nos próprios autos da execução, desde que o credor demonstrasse a presença dos requisitos legais previstos no Código Civil ou na legislação extravagante (como exemplo, podemos citar os Recursos Especiais 418.385/SP, 9.925/MG, 331.478/RJ, 228.357/SP, dentre outros). Ressalte-se que, além do credor, admitia-se também como legitimado a requerer a desconsideração o Ministério Público, quando lhe cabia intervir no processo como parte ou custos legis. Quanto à possibilidade de o juiz agir de ofício, havia controvérsia doutrinária e jurisprudencial, sem prevalência para um determinado posicionamento.

Inicialmente, entendia-se que o sócio prejudicado não integrava a lide; assim, caso sofresse constrição sobre os seus bens, apenas poderia opor embargos de terceiro para discutir a viabilidade da desconsideração e sua consequente responsabilização patrimonial.

Posteriormente, passou-se a sustentar que ele deveria integrar o processo, devendo ser citado para apresentar embargos à execução.

Portanto, o sócio prejudicado pela desconsideração exercia o contraditório e a ampla defesa apenas posteriormente ao deferimento do pedido pelo magistrado, quando na maioria das vezes já havia constrição sobre seus bens. Ele se defendia, portanto, de forma precária e insatisfatória, posto que, em grau de recurso, não é possível a plenitude de defesa assegurada pelo devido processo legal.

  1. DO USO EXAGERADO DO INSTITUTO PELO PODER JUDICIÁRIO

A desconsideração da personalidade jurídica é uma medida excepcional, devendo o magistrado afastar a autonomia patrimonial da sociedade apenas quando necessário e quando presentes os requisitos autorizadores da medida.

Contudo, em busca da celeridade e efetividade ao sistema processual, não raro era a utilização pelo Poder Judiciário da Disregard Doctrine de modo excessivo, sendo tratada como regra geral quando ela deveria ser a exceção. Assim, afastava-se a personalidade jurídica sem se averiguar a presença concreta de provas que autorizavam a sua aplicação, o que levava muitas vezes a uma aplicação arbitrária do instituto e de forma exagerada, sem mencionar na grave violação ao contraditório e ampla defesa plenos dos sócios prejudicados.

Como exemplo, podemos citar os seguintes acórdãos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DE DÍVIDA. AUSÊNCIA DE INTENÇÃO DE PAGAR. AUSÊNCIA DE PATRIMÔNIO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA DEVEDORA PARA GARANTIR A EXECUÇÃO. ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. AGRAVO PROVIDO. UNÂNIME.
(…)
A sociedade empresária possui dívida, oriunda de descumprimento de contrato, cuja execução (do contrato) diz com seu objeto social, e declara ausência de bens para garantir a execução da sentença que condenou ao pagamento, não manifestando qualquer intenção de pagar. Ora, a existência de dívida, sem patrimônio capaz de garantir pagamento, por si só, data maxima venia de entendimentos em contrário, demonstra abuso de personalidade jurídica, pois, nada mais cômodo do que constituir dívida e dizer da incapacidade de pagamento. De dizer que a constituição de uma pessoa jurídica deve prever capacidade de pagamento de suas obrigações. (TJRS. Agravo de Instrumento nº 70046706511. Décima Sétima Câmara Cível. Relator: Bernadete Coutinho Friedrich. Julgado em 22/03/2012) (grifo nosso)

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO.
CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. AUSÊNCIA DE PATRIMÔNIO DA
PESSOA JURÍDICA. INDÍCIOS DE FRAUDE. APLICAÇÃO DA TEORIA
DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. RECURSO PROVIDO. 1. A documentação acostada ao presente instrumento leva à formação de uma convicção adequada quanto ao direito invocado, porquanto a ausência de patrimônio da agravada, por si só, já seria causa para a desconsideração de sua personalidade jurídica. 2. Na lição de Cristiano Chaves de Farias e de Nelson Rosenvald (…) o Código Civil, em seu art. 50, optou pela adoção da teoria maior objetiva, enquanto o Código de Defesa do Consumidor, no § 5º do seu art. 28, se perfilhou à teoria menor, ao chamar a desconsideração a possibilidade de atribuir responsabilidade ao sócio, em razão de prejuízo causado ao consumidor pela pessoa jurídica, quando a empresa for insolvente (isto é, pela simples ausência de patrimônio suficiente para honrar a dívida), independentemente de qualquer ato abusivo ou fraudulento praticado por ele. (In: Curso de Direito Civil. 10ª Ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2012,
v. 1, p. 455). 3. Recurso conhecido e provido. (TJDFT. Agravo de Instrumento nº 20140020214756. Primeira Turma Cível. Relator: Maria Ivatônia. Julgado em 11/03/2015) (grifo nosso).

Na grande maioria dos casos, vislumbrava-se a decretação da desconsideração da personalidade jurídica com base unicamente na inexistência de patrimônio suficiente para saldar a dívida, sem se averiguar a presença de outros fatores. Portanto, era evidente o prejuízo dos sócios que tinham a execução direcionada para si, tendo em vista que viam a constrição de seus bens por motivos insuficientes, sem ao menos poder se manifestar de forma prévia em relação a tal medida. Isso tudo demonstrava distorções na aplicação da teoria pelo Poder Judiciário, ocasionando na sua utilização de forma arbitrária e demasiada. O problema ainda se agravava pela falta de um procedimento geral a ser seguido, gerando grande insegurança jurídica para a sociedade, motivo pelo qual os estudiosos do direito clamavam pela sua regulamentação, que finalmente veio a surgir com o novo CPC.

  1. A REGULAMENTAÇÃO DO INSTITUTO PELO CPC/15

Com a edição do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15), o
procedimento para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no
direito brasileiro foi finalmente regulamentado. Dentro do Título III, referente à
intervenção de terceiros, a Disregard Doctrine recebeu um capítulo próprio, denominado
“Do Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica”, composto por cinco artigos. Vejamos:

CAPÍTULO IV
DO INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será
instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber
intervir no processo.

§ 1o O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os
pressupostos previstos em lei.

§ 2o Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do
processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

§ 1o A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.

§ 2o Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

§ 3o A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do §2o.

§ 4o O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.

Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para
manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.

Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por
decisão interlocutória. Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.

Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

A partir da simples leitura deste Capítulo, já podemos concluir que a
desconsideração da personalidade jurídica tem natureza de incidente processual, como já
vinham entendendo a doutrina e a jurisprudência. Logo, desnecessário o ajuizamento de
uma ação autônoma para tal.

É também uma forma de intervenção de terceiro, posto que integra à lide o sócio
ou pessoa jurídica atingidos pelos efeitos da desconsideração, que antes não figuravam na relação processual, na qualidade de responsáveis patrimoniais.

Importante ressaltar que a legislação processual também previu a possibilidade de a desconsideração da personalidade jurídica ser requerida já na petição inicial, caso em
que é dispensada a instauração do incidente (art. 134, §2º, do CPC). Aqui, o sócio ou pessoa
jurídica prejudicados figuram como réus desde o início, não havendo o que se falar em
intervenção de terceiros.

Segundo o novo Código, o incidente é cabível em todas as fases do processo de
conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução de título extrajudicial (art. 134,
caput, do CPC), podendo requerê-lo a parte ou o Ministério Público, quando lhe couber
intervir no processo (art. 133, caput, do CPC). Logo, deve haver um pedido para que o
magistrado proceda à desconsideração, não podendo esta ser deferida de ofício.

O requerimento de desconsideração da personalidade jurídica será dirigido ao
sócio ou à pessoa jurídica, cujo patrimônio se pretende alcançar, devendo a parte
demonstrar o preenchimento dos requisitos previstos na legislação material autorizadores da medida (arts. 133, §1º e 134, §4º, do CPC).

Sendo instaurado o incidente, o processo será suspenso, com exceção do caso
em que o requerimento é feito na petição inicial, (art. 134, §3º, do CPC) devendo ser
imediatamente comunicado ao distribuidor, para que proceda às anotações devidas (art.
134, §1º, do CPC).

O sócio e/ou a pessoa jurídica, então, serão citados para manifestar-se e requerer
as provas cabíveis, no prazo de 15 dias (art. 135 do CPC). O CPC consagrou, assim, a
exigência do contraditório tradicional, prévio à decisão do magistrado, encerrando intenso
debate acerca de seu momento. Logo, o terceiro interveniente poderá se defender e discutir
a presença dos requisitos autorizadores da medida antes de ver estendida a responsabilidade
patrimonial sobre seus bens, exercendo sua defesa de forma plena.

Contudo, como lembra Daniel Assumpção, o contraditório prévio é a regra
geral, nada impedindo um contraditório diferido, de caráter excepcional. Segundo o autor,
seria admissível a prolação da decisão de desconsideração da personalidade jurídica antes da intimação dos sócios e da sociedade para se manifestarem, quando preenchidos os requisitos da tutela de urgência, com base no poder geral de cautela do juiz.

Após ser concluída a instrução, o incidente será resolvido por decisão
interlocutória, impugnável por agravo de instrumento (arts. 136, caput, e 1.015, IV, do CPC). Caso a decisão seja proferida pelo relator, o recurso cabível é o agravo interno (art. 136,
parágrafo único, do CPC). Por fim, sendo o incidente decidido na sentença, caberá apelação
(art. 1009 do CPC).

Ressalte-se que o STJ já reconheceu legitimidade recursal à pessoa jurídica para
impugnar a decisão que desconsidere a sua personalidade, desde que o faça com o intuito
de defender sua regular administração e autonomia, sem se imiscuir indevidamente na
esfera de direitos dos sócios ou administradores incluídos no polo passivo por força de
desconsideração.

Sendo acolhido o pedido de desconsideração, a alienação em fraude à execução,
feita após a instauração do incidente, será ineficaz em relação ao requerente (art. 137 do
CPC).

O novo CPC ainda dispõe que todo o procedimento exposto se aplica à hipótese
de desconsideração inversa da personalidade jurídica, positivando uma das modalidades da disregard doctrine acolhidas pela doutrina e jurisprudência pátrias.

Por fim, há previsão expressa no novo diploma processual quanto à possibilidade de instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, a despeito de ser forma de intervenção de terceiro (art. 1.062 do CPC).

  1. tratamento da regulamentação da desconsideração da personalidade jurídica pela jurisprudência

A regulamentação de um procedimento para a desconsideração da personalidade
jurídica foi uma vitória para os estudiosos do direito, uma vez que trouxe maior segurança
jurídica para todos os envolvidos. Um de seus objetivos foi o de evitar arbitrariedades quando da sua aplicação, bem como frear o uso exagerado dessa teoria, uma vez que, à falta
de um procedimento legal, era comum o seu uso indiscriminado.

Isso também foi influenciado pela necessidade de se estabelecer uma sintonia com a Constituição Federal de 1988, que traz um modelo de processo civil preocupado com a observância dos princípios constitucionais, em especial o contraditório e a ampla defesa, que vinham sendo deixados de lado pelos magistrados quando estes decidiam por desconsiderar a personalidade jurídica em prol de um procedimento mais célere e eficaz.

Pode-se dizer que a jurisprudência atendeu bem aos comandos positivados pelo CPC/15. Corroborando a regulamentação legal, nos anos seguintes, os Tribunais passaram a reconhecer a obrigatoriedade da instauração do incidente e a citação dos sócios e/ou pessoas jurídicas prejudicados antes de qualquer decisão sobre o assunto, sob pena de nulidade. Ou seja, se prescreveu a necessidade de observância de um contraditório prévio, a fim de se evitar injustiças ou arbitrariedades por parte dos magistrados.

Vejamos:

CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. Desconsideração da personalidade jurídica. Decisão que rejeitou o pedido de desconsideração da personalidade jurídica, analisando mérito de confusão patrimonial arguido pela parte, sem a instauração de incidente. Obrigatoriedade da instauração de incidente para a análise do pedido de desconsideração. Art. 795, § 4º do CPC. Novo sistema jurídico processual que visa a prestigiar os princípios do contraditório e da ampla defesa nos pedidos de desconsideração da personalidade jurídica. Falta de fundamentação objetiva, atual e específica. Violação do art. 93, IX da CF. Recurso parcialmente provido para anular a decisão, com prolação de outra, fundamentada. (TJSP. Agravo de Instrumento nº 22053681620168260000. 4ª Câmara de Direito Privado. Relator: Teixeira Leite. Julgado em 03/03/2017) (grifo nosso)

AGRAVO DE INSTRUMENTO – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO ESTATUÍDO PELO NOVO CÓDIGO PROCESSUAL CIVIL – AUSÊNCIA DE PRÉVIA CITAÇÃO DOS SÓCIOS E ADMINISTRADORES – VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL – NULIDADE DA DECISÃO. I – O Novo Código de Processo Civil prevê que o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica poderá ocorrer em duas oportunidades: (i) na petição inicial, hipótese em que o sócio ou a pessoa jurídica será citado para contestar o pedido principal e aquele referente à desconsideração; (ii) em petição autônoma, protocolada de forma incidental no decorrer da marcha processual, hipótese em que o sócio ou a pessoa jurídica será citado para se manifestar sobre o pedido e requerer provas, no prazo de 15 (quinze) dias. II – Verificando-se que o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica se deu por meio de petição de emenda da inicial, deve o magistrado determinar a prévia citação do sócio para integrar a lide e para contestar o pedido de desconsideração, bem como para requerer a produção das provas que julgar necessárias, antes de apreciar o pleito de desconsideração, nos termos do art. 134, § 2º, do CPC. III – Constatando-se a ocorrência de vício insanável na aplicação do procedimento, diante da ausência de prévia citação dos sócios ou administradores, impõe-se a declaração de nulidade da decisão que apreciou o pedido de desconsideração da personalidade jurídica. (TJMG. Agravo de Instrumento nº 10000170213953001. 18ª Câmara Cível. Relator: João Cancio. Julgado em 16/05/2017) (grifo nosso)

Agravo de Instrumento. Ação de execução fundada em título executivo judicial. Pretensão de desconsideração da personalidade jurídica para atingimento dos bens de empresa alegadamente pertencente do mesmo grupo empresarial da devedora. Novo Código de Processo Civil que estabelece que a desconsideração da personalidade jurídica deve submeter-se à instauração de incidente processual com a citação da empresa a que se dirige o pedido. Aplicação dos arts. 133 a 137 CPC/15. Inobservância do rito procedimental que acarreta nulidade. Precedentes do TJRJ. Agravo a que se dá parcial provimento, na forma do art. 932 CPC/15. (TJRJ. Agravo de Instrumento nº 00300487820168190000. 5ª Câmara Cível. Relator: Cristina Tereza Gaulia. Julgado em 13/06/2017) (grifo nosso)

Atualmente, é entendimento tranquilo dos Tribunais que, no sistema processual vigente, em regra, o contraditório deve ocorrer de forma anterior à decisão de desconsideração da personalidade jurídica, diferentemente, portanto, do sistema anterior.

Recentemente, o assunto voltou à tona em caso de direito intertemporal. No caso que chegou no Superior Tribunal de Justiça, o juiz de 1º grau, por decisão interlocutória proferida e publicada na vigência do CPC/1973, havia decretado a desconsideração da personalidade jurídica de sociedade empresária sem prévio contraditório. A parte atingida foi intimada quando já estava em vigor o CPC/2015, que passou a exigir prévio contraditório. Entendeu o STJ que a decisão deveria ser mantida, à luz do princípio tempus regit actum e da Teoria do Isolamento dos Atos Processuais, tendo em vista que o ato foi praticado na vigência do antigo CPC, em que o contraditório era postergado. Vejamos:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. SOCIEDADES DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. DECISÃO PUBLICADA NA VIGÊNCIA DO CPC/1973. INTIMAÇÃO APÓS A VIGÊNCIA DO CPC/2015. CONTRADITÓRIO PRÉVIO. DIREITO INTERTEMPORAL. TEMPUS REGIT ACTUM. 1- Recurso especial interposto em 24/11/2020 e concluso ao gabinete em 17/8/2021. 2- O propósito recursal consiste em dizer se é possível o decreto de desconsideração da personalidade jurídica, sem o prévio contraditório, quando a referida decisão foi publicada na vigência do Código de Processo Civil de 1973, tendo a parte, no entanto, sido intimada somente após a vigência do Código de Processo Civil de 2015. 3- À luz do princípio tempus regit actum e da Teoria do Isolamento dos Atos Processuais, os atos do processo devem observar a legislação vigente ao tempo de sua prática, sob pena de indevida retroação da lei nova para alcançar atos pretéritos. Nesse sentido, as normas processuais incidem imediatamente nos processos em curso, mas não alcançam atos processuais anteriores. Precedentes. 4- Consoante reiterado no acórdão recorrido, ocorreu a formação de sucessão de “empresas” entre ARNOM PARTICIPAÇÕES e ARNON VEÍCULOS, ambas com os mesmos sócios, decisão que não foi objeto de recurso, apesar de possuírem também os mesmos advogados. Assim, não é crível o desconhecimento da decisão de desconsideração. Por sua vez, a recorrente ficou completamente inerte, e, assim, reveste-se preclusa a possibilidade de arguição de nulidade dos atos praticados, nos termos do art. 278 do CPC/2015. 5- A aplicação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, nos termos previstos no art. 133 do CPC/2015, não é exigível ao presente caso, pois a decisão que procedeu à desconsideração da executada originária foi proferida em meados de 2014, isto é, enquanto vigente o CPC/1973. 6- Não é possível defender o argumento no sentido de validar uma intimação ocorrida 5 (cinco) anos depois da decisão de desconsideração, entre empresas do mesmo grupo econômico, objetivando anular todos os atos processuais, com fulcro na vigência do CPC/2015, quando esse ato guarda, inequivocamente, nexo imediato e inafastável com o próprio ato praticado sob o regime da lei anterior, consubstanciado na decisão propriamente dita de desconsideração. Deve-se, pois, ser respeitada a eficácia do ato processual pretérito. 7. Recurso especial não provido. (STJ. 3ª Turma. REsp 1954015-PE. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Julgado em 26/10/2021) (grifo nosso)

Portanto, com essa decisão, o STJ confirmou tudo o que foi exposto ao longo deste artigo: enquanto na vigência do CPC/73, a regra era o contraditório diferido, na vigência do CPC/15, a regra deve ser o contraditório prévio. A aplicação do contraditório anterior à decisão de desconsideração da personalidade jurídica irá depender de quando esta foi proferida. Assim, não se pode arguir a nulidade da decisão que não seguiu o procedimento previsto no novo CPC se esta ocorreu na vigência do sistema anterior. A contrario sensu, a não observância do procedimento previsto em lei, como a ausência de prévia citação dos sócios ou administradores para se manifestarem, é causa de nulidade da decisão de desconsideração da personalidade jurídica.

  1. CONCLUSÃO

A teoria da Disregard Doctrine, ao chegar no Brasil, teve uma boa aceitação pela doutrina e jurisprudência, de modo que passou a ser aplicada mesmo sem que houvesse ainda uma regulamentação sobre o assunto.

Com a edição dos primeiros diplomas legais sobre a desconsideração da personalidade jurídica, o instituto foi crescendo cada vez mais no direito brasileiro. No entanto, começou a ser aplicado pelos magistrados sem uma análise cuidadosa sobre a presença dos requisitos autorizadores da medida, desvirtuando-se a teoria.

Ademais, primava-se pela celeridade processual, de modo que o contraditório era postergado: primeiro o magistrado decretava a desconsideração da personalidade jurídica para só depois dar oportunidade ao sócio e/ou pessoa jurídica prejudicados para se manifestarem e se defenderem.

Tudo isso se agravava pela falta de uma regulamentação processual, que trazia consequências indesejáveis, como a insegurança jurídica e sua utilização de modo arbitrário e desmedido pelo Poder Judiciário.

Com a edição do novo CPC, o procedimento para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica foi regulamentado. A jurisprudência consolidou a obrigatoriedade da instauração do incidente e a necessidade de citação dos sócios para se manifestarem, considerando a decisão e/ou o procedimento nulo caso não realizado em conformidade com a legislação processual. Prestigiou-se, assim, o contraditório e a ampla defesa, devendo o magistrado averiguar com cautela a presença dos requisitos autorizadores da medida.

Diante de todo o exposto, podemos concluir que a regulamentação do procedimento para a desconsideração da personalidade jurídica não foi só de suma importância, mas totalmente necessária para o mundo jurídico. De uma só vez, dificultou a aplicação arbitrária e indiscriminada da desconsideração da personalidade jurídica por parte dos aplicadores do direito e determinou a observância obrigatória dos princípios processuais constitucionais do contraditório e a ampla defesa durante o procedimento. Tudo isso na incansável busca de um processo mais justo para todos os envolvidos, hoje mais perto do possível do que ontem.

  1. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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