REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7838754
Gabriela Sant’Anna Barcellos1
Resumo
O direito fundamental e humano à moradia não é absoluto. No entanto, para a sua restrição é necessário ultrapassar barreiras hermenêuticas cujo sopesamento em face de conflito deve levar em conta valores humanitários. Por isso, através da análise da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828, ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2021 com a finalidade de evitar despejos forçados em razão do cenário pandêmico, elencam-se argumentos a favor do acerto da Arguição, bem como da decisão liminar que suspendeu os despejos temporariamente.
Palavras-chave: Direito à moradia. Pandemia. Despejos forçados. Inconstitucionalidade.
Abstract
The fundamental and human right of Housing is not absolute. However, for its restriction it is necessary to overcome interpretational barriers which balancing in case of conflict should take in account humanitarian values. In order accomplish that, throughout the analysis of ADPF 828, petitioned by the Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) in 2021 with the mission to avoid forced evictions due to the pandemic scenarium, it is listed arguments in favor of the ADPF, as well of its injuction which suspended forced evictions temporarily.
Keywords: Right to Housing. Pandemic. Forced Evictions. Inconstitucionality.
Introdução
O presente artigo busca expor os fundamentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, tramitando no Supremo Tribunal Federal desde 15 de abril de 2021, cujo assunto principal é a necessidade de garantia do direito à moradia, ainda que em situação de conflito com outros direitos fundamentais, quando presente situação de calamidade pública, tal qual a pandemia do Covid-19, caso em que a situação de desabrigamento representaria a restrição do núcleo essencial daquele direito.
1. O DIREITO À MORADIA NA ADPF 828
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde classificou como pandemia a disseminação e contaminação pelo COVID-19. Como medida de contenção do vírus, já que as medidas preventivas comprovadamente eficazes eram as de distanciamento social, o PSOL ajuizou a ADPF 828 com objetivo de suspender todos os processos e medidas de remoção, desocupação, reintegrações de posse ou despejos enquanto durar a pandemia.
Em pedido de habilitação na qualidade de amicus curiae, o GAETS, Grupo de Atuação Estratégica das Defensorias Públicas Estaduais e Distrital nos Tribunais Superiores, assim sintetizou a atuação das Defensorias Estaduais no tratamento da problemática antes da atuação do STF no sentido de suspender por seis meses desocupações de áreas habitadas antes da pandemia:
A Defensoria Pública do Estado de Pernambuco expediu, em 17.03.2020, o ofício 039/2020, requerendo informações ao Tribunal de Justiça de Pernambuco acerca de eventual orientação ou ato normativo expedido pela Presidência, pelo Conselho de Magistratura ou pela Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça, no sentido de evitar o cumprimento de mandados de reintegração de posse ao longo da existência da pandemia do Corona Vírus. Foi questionado também se houve algum tipo de comunicação formal à Polícia Militar para que se evitasse, durante o período de cautela quanto à disseminação do vírus, ações de planejamento e execução de despejo.
Em 31.08.2020, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro expediu o Of. DPGERJ/SEGAB/ N° 523/2020, no qual requereu à Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro a edição de ato normativo determinando a suspensão do cumprimento de ordens de desalijo coletivo, incluídos despejos, reintegrações de posse, remoções compulsórias e demolições de habitações multifamiliares ou unifamiliares no contexto de assentamentos precários, durante o período de emergência em saúde pública para enfrentamento da pandemia.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em duas ocasiões, oficiou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, propondo a suspensão, por tempo indeterminado, do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais coletivas ou individuais, dentre outros que tenham por condão a remoção de pessoas e ocupações, visando evitar o agravamento da situação de exposição ao vírus.
No Paraná, a Defensoria Pública expediu o Ofício Conjunto n° 001/2020/DPG/NUFURB/DPPR, endereçado à presidência do Tribunal de Justiça local. No ato, requereu-se a suspensão, com urgência, de qualquer ordem remocionista em todo o Estado do Paraná.
Logo no início da pandemia, a Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo expediu recomendações para a Presidência do Tribunal de Justiça, para o Secretário de Justiça, para o Secretário de Segurança Pública e Defesa Social e para o Comando-Geral da Polícia Militar do Estado do Espírito Santo, no sentido de se suspender e não se executar ordens de reintegração de posse, despejos e remoções judiciais ou mesmo extrajudiciais, no âmbito do Estado do Espírito Santo. Mais recentemente, a Defensoria Pública do Espírito Santo emitiu nota técnica se posicionando pela aprovação do Projeto de Lei Estadual nº 125/2021, o qual pretende a suspensão das medidas de despejo durante a pandemia de Covid-19.
Por fim, a Defensoria Pública do Estado do Amapá expediu o ofício 001/2020, requerendo informações ao Tribunal de Justiça local acerca de eventual orientação ou ato normativo expedido pela Presidência, pelo Conselho de Magistratura ou pela Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça, no sentido de evitar o cumprimento de mandados de reintegração de posse ao longo da existência da pandemia do Coronavírus. Foi questionado também se houve algum tipo de comunicação formal à Polícia Militar para que se evitasse, durante o período de tempo de cautela quanto à disseminação do vírus, ações de planejamento e execução de despejo2.
Em deferimento parcial de medida cautelar, o Ministro Luís Roberto Barroso suspendeu os despejos para “evitar que remoções e desocupações coletivas violem os direitos à moradia, à vida e à saúde das populações envolvidas.”3
Em 02 de novembro de 2022, em razão do arrefecimento dos efeitos da pandemia, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, referendou a tutela provisória incidental parcialmente deferida, para determinar a adoção de um regime de transição para a retomada da execução de decisões suspensas na presente ação. A Corte, na ocasião, se manifestou no seguinte sentido:
Decisão: O Tribunal, por maioria, referendou a tutela provisória incidental parcialmente deferida, para determinar a adoção de um regime de transição para a retomada da execução de decisões suspensas na presente ação, nos seguintes termos: (a) Os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais deverão instalar, imediatamente, comissões de conflitos fundiários que possam servir de apoio operacional aos juízes e, principalmente nesse primeiro momento, elaborar a estratégia de retomada da execução de decisões suspensas pela presente ação, de maneira gradual e escalonada; (b) Devem ser realizadas inspeções judiciais e audiências de mediação pelas comissões de conflitos fundiários, como etapa prévia e necessária às ordens de desocupação coletiva, inclusive em relação àquelas cujos mandados já tenham sido expedidos. As audiências devem contar com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública nos locais em que esta estiver estruturada, bem como, quando for o caso, dos órgãos responsáveis pela política agrária e urbana da União, Estados, Distrito Federal e Municípios onde se situe a área do litígio, nos termos do art. 565 do Código de Processo Civil e do art. 2º, § 4º, da Lei nº 14.216/2021; (c) As medidas administrativas que possam resultar em remoções coletivas de pessoas vulneráveis devem (i) ser realizadas mediante a ciência prévia e oitiva dos representantes das comunidades afetadas; (ii) ser antecedidas de prazo mínimo razoável para a desocupação pela população envolvida; (iii) garantir o encaminhamento das pessoas em situação de vulnerabilidade social para abrigos públicos (ou local com condições dignas) ou adotar outra medida eficaz para resguardar o direito à moradia, vedando-se, em qualquer caso, a separação de membros de uma mesma família. Por fim, o Tribunal referendou, ainda, a medida concedida, a fim de que possa haver a imediata retomada do regime legal para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo (Lei nº 8.245/1991, art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX). Tudo nos termos do voto do Relator, vencidos, parcialmente, os Ministros André Mendonça e Nunes Marques, nos termos de seus votos. Plenário, Sessão Virtual Extraordinária de 01.11.2022 (18h00) a 02.11.2022 (17h59)4.
Argumentos diversos fundamentam o pedido da ADPF ora analisada, bem como as decisões que foram tomadas até a presente data, dentre os quais destacamos o direito à moradia, à vida e à saúde. No entanto, dada a relevância do tema, consideramos importante destacar outros pontos a partir de agora, e, quiçá, conseguir reforçar com outros argumentos o do acerto da propositura da ação.
2. DIREITO À MORADIA – ABRANGÊNCIA NORMATIVA E NATUREZA JURÍDICA
Nos termos do art. 6º da Constituição Federal de 1988, “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição5.” [grifos nosso]
O referido direito não estava previsto no texto originário da CF/88, tendo sido introduzido na Constituição pela EC no 26/00. E, tal como destaca Guilherme Peña de Moraes, “é delineado como habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto, que promova o bem-estar de seus ocupantes”6.
Localizado topograficamente no Título II do texto constitucional, o direito à moradia se manifesta enquanto direito fundamental e, por isso, é possível afirmar que não é discricionário ao poder público a sua implementação, mas apenas a forma de realizá-la, dada a sua natureza jurídica e a sua localização no topo da pirâmide normativa. Nas palavras de Sarlet:
A fundamentalidade formal encontra-se ligada ao direito constitucional positivo e resulta dos seguintes aspectos, devidamente adaptados ao nosso direito constitucional pátrio: a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais situam-se no ápice de todo ordenamento jurídico, de tal sorte que – neste sentido – se cuida de direitos de natureza supralegal; b) na qualidade de normas constitucionais, encontram-se submetidos aos limites formais (procedimento agravado) e materiais (cláusulas pétreas) da reforma constitucional (art. 60 da CF), cuidando-se, portanto (pelo menos num certo sentido) e como leciona João dos Passos Martins Neto, de direitos pétreos, muito embora se possa controverter a respeito dos limites da proteção outorgada pela Constituinte, o que será objeto de análise na parte final desta obra; c) por derradeiro, cuida-se de normas diretamente aplicáveis e que vinculam de forma imediata as entidades públicas e privadas (art. 5º, § 2º. Da CF) que a noção da fundamentalidade material permite a abertura da Constituição e outros fundamentais não constantes de seu texto e, portanto, apenas materialmente fundamentais, assim como a direitos fundamentais situados fora do catálogo, mas integrantes da Constituição formal, ainda que possa controverter-se a respeito da extensão do regime da fundamentalidade formal a estes direitos apenas materialmente fundamentais, aspecto do qual voltaremos a nos ocupar de forma mais detida no próximo capítulo7. [grifos nosso]
Para além de um direito fundamental, o direito à moradia é também um direito humano e está presente na Declaração Universal de Direitos Humanos, que em seu art. 25.1 dispõe que:
Artigo 25
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle8. [grifos nosso]
Enquanto fundamental, o direito ora analisado se impõe como inalienável, histórico, irrenunciável, inviolável, imprescritível, complementar, indivisível, multifuncional, relativo e interdependente, o que implica na existência de conexões entre os diferentes direitos fundamentais. Portanto, aqui, deve-se perceber que o direito à moradia é também um meio para a concretização dos direitos à intimidade (art. 5º, XI, CF), à vida privada (art. 5º, X, CF), para a organização da sua família (arts. 226 a 230), além de apoiar o direito à felicidade e à dignidade da pessoa humana.
O direito à moradia é também tratado no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), que no art. 2º, I, dispõe:
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações9 [grifos nosso]
Em comentário sobre o artigo acima, Celso Antônio Fiorillo e Renata M. Ferreira asseveram que o direito à moradia garante o direito à casa, assim compreendido como o espaço de conforto e intimidade, o verdadeiro reduto de uma família, in verbis:
O direito à moradia apontado no art. 2º, I, do Estatuto da Cidade assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no País o uso de determinada porção territorial no âmbito das cidades (dentro de sua natureza jurídica de bem ambiental), denominado direito à casa (art. 5.º, XI, da CF), para que possam ter um local destinado a assegurar seu asilo inviolável com a finalidade de garantir fundamentalmente seu direito à intimidade (art. 5.º, XI), seu direito à vida privada (art. 5.º, X), assim como a organização da sua família (arts. 226 a 230). O direito à moradia, no plano das cidades sustentáveis, deve ser compreendido, portanto, como um direito a espaço de conforto e intimidade.
O direito à moradia, no plano das cidades sustentáveis, deve ser compreendido, portanto, como um direito a espaço de conforto e intimidade destinado a brasileiros e estrangeiros residentes no País, adaptado a ser verdadeiro reduto de sua família. Assegurado no plano do Piso Vital Mínimo, por força do que estabeleceu a Emenda Constitucional 26, de 14-2-2000, ao modificar a redação do art. 6.º da CF, o direito à moradia tem previsão constitucionalmente estabelecida, traduzindo de forma didática a determinação constitucional, prevista no art. 225, de assegurar a todos o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, ou seja, um direito à vida da pessoa humana relacionada com o local onde vive.
O direito à moradia, por estar associado ao direito à casa e por ser a casa, como já afirmamos, o reduto da família, refletirá, de uma forma mais abrangente, como já tivemos oportunidade de aduzir, a sociedade da qual essa mesma família faz parte, ao mesmo tempo que é sua geradora.” [grifos nossos]
3. LIMITAÇÕES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A IMPOSSIBILIDADE DE DESABRIGAMENTO EM FACE DE UM CENÁRIO DE MORTE
Em regra, duas teorias são estudadas quando se pensa nas limitações aos direitos fundamentais, a saber: teoria interna e teoria externa. Ambas buscam explicar qual é a amplitude de determinado direito fundamental e quais são os seus respectivos limites.
Por meio da teoria interna, ou teoria das limitações imanentes, de forma abstrata, ou seja, fora de qualquer caso concreto, é possível definir, aprioristicamente, por mecanismos hermenêuticos, qual é a amplitude do direito fundamental e quais são os seus limites. Segundo Alexy:
Um cenário completamente diferente é a base de sustentação da teoria interna. Segundo ela, não há duas coisas – o direito e sua restrição -, mas apenas uma: o direito com um determinado conteúdo. O conceito de restrição é substituído pelo conceito de limite. Dúvidas acerca dos limites do direito não são dúvidas sobre quão extensa pode ser sua restrição, mas dúvidas sobre seu conteúdo. Quando eventualmente se fala em ‘restrições’ no lugar de ‘limites’, então, se fala em ‘restrições imanentes’.10
Por outro lado, na teoria externa, ou teoria das limitações externas, é impossível fazer isto aprioristicamente, em abstrato, e com base em elementos meramente hermenêuticos. Assim, só se consegue identificar limites e alcance em concreto, quando o direito fundamental entra em rota de colisão com outro direito igualmente fundamental. Nas palavras de Alexy:
O conceito de restrição a um direito sugere a existência de duas coisas – o direito e sua restrição -, entre as quais há uma relação de tipo especial, a saber, uma relação de restrição. Se a relação entre direito e restrição for definida dessa forma, então, há, em primeiro lugar, o direito em si, não restringido, e, em segundo lugar, aquilo que resta do direito após a ocorrência de uma restrição, o direito restringido. Essa é a concepção que, normalmente de forma crítica, é denominada de teoria externa. Embora a teoria externa possa admitir que, em um ordenamento jurídico, os direitos apresentam-se sobretudo ou exclusivamente como direitos restringidos, ela tem que insistir que eles são também concebíveis sem restrições. Por isso, segundo a teoria externa, entre o conceito de direito e o conceito de restrição não existe nenhuma relação necessária. Essa relação é criada somente a partir da exigência, externa ao direito em si, de conciliar os direitos de diversos indivíduos, bem como direitos individuais e interesses coletivos11.
As referidas teorias, no entanto, não se confundem com as teorias absoluta e relativa. Isso porque, enquanto as teorias interna e externa buscam explicar o alcance e os limites dos direitos fundamentais como um todo, as teorias absoluta e relativa buscam explicar o que se denomina núcleo essencial, que é o conteúdo mínimo intransponível dotado de maior carga axiológica.
Pode-se afirmar que a teoria absoluta está para o núcleo essencial assim como a teoria interna está para o direito fundamental como um todo. À luz da teoria absoluta, em abstrato e aprioristicamente, por meio de mecanismos hermenêuticos, consegue-se definir exatamente qual é a fronteira de determinado núcleo essencial, que não pode ser ponderado.
Por outro lado, na teoria relativa, a busca pelos limites e alcance do núcleo essencial está para ele assim como a teoria externa está para os direitos fundamentais. No âmbito da teoria relativa, tem-se dois objetos e somente no caso concreto, por meio da ponderação, será possível identificar qual é o núcleo essencial de determinado direito fundamental. Ainda conforme Alexy:
Segundo a teoria relativa, o conteúdo essencial é aquilo que resta após o sopesamento. Restrições que respeitem a máxima da proporcionalidade não violam a garantia do conteúdo essencial nem mesmo se, no caso concreto, nada restar do direito fundamental. A garantia do conteúdo essencial é reduzida à máxima da proporcionalidade12.
No entanto, a despeito da teoria adotada, o núcleo essencial dos direitos fundamentais dispõe que, em nenhuma hipótese, ele pode ser violado.
Isso posto, parece-nos seguro afirmar que no caso do direito à moradia conforme ora analisado – ante ao cenário de morte que se apresentava em razão do COVID-19 – o não desabrigamento apresentava-se como seu núcleo essencial e como conditio sine qua non para a garantia da dignidade da pessoa humana.
Por fim, ressalta-se que os Comentários Gerais ao Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de números 413 e 714 tratam dos despejos forçados como violações de direitos humanos e afirmam que caso sejam necessários é obrigação do Estado prover alternativas de moradia adequadas, que devem ser entendidas dentro de um conceito de habitabilidade, acessibilidade, localização e adequação cultural:
b. Disponibilidade de serviços, materiais, facilidades e infra-estrutura. Uma casa adequada deve conter certas facilidades essenciais para saúde, segurança, conforto e nutrição. Todos os beneficiários do direito à habitação adequada deveriam ter acesso sustentável a recursos naturais e comuns, água apropriada para beber, energia para cozinhar, aquecimento e iluminação, facilidades sanitárias, meios de armazenagem de comida, depósito dos resíduos e de lixo , drenagem do ambiente e serviços de emergência.
c. Custo acessível. Os custos financeiros de um domicílio associados à habitação deveriam ser a um nível tal que a obtenção e satisfação de outras necessidades básicas não sejam ameaçadas ou comprometidas. Passos deveriam ser tomados pelos Estados-partes para assegurar que a porcentagem dos custos relacionados à habitação seja, em geral, mensurado de acordo com os níveis de renda. Estados-partes deveriam estabelecer subsídios habitacionais para aqueles incapazes de arcar com os custos da habitação, tão como formas e níveis de financiamento habitacional que adequadamente refletem necessidades de habitação. De acordo com o princípio dos custos acessíveis, os possuidores deveriam ser protegidos por meios apropriados contra níveis de aluguel ou aumentos de aluguel não razoáveis. Em sociedades em que materiais naturais constituem as principais fontes de materiais para construção, passos deveriam ser tomados pelos Estados-partes para assegurar a disponibilidade desses materiais.
d. Habitabilidade. A habitação adequada deve ser habitável, em termos de prover os habitantes com espaço adequado e protegê-los do frio, umidade, calor, chuva, vento ou outras ameaças à saúde, riscos estruturais e riscos de doença. A segurança física dos ocupantes deve ser garantida. O Comitê estimula os Estados-partes a, de modo abrangente, aplicar os Princípios de Saúde na Habitação, preparado pela OMS, que vê a habitação como o fator ambiental mais freqüentemente associado a condições para doenças em análises epidemológicas, isto é, condições de habitação e de vida inadequadas e deficientes são invariavelmente associadas com as mais altas taxas de mortalidade e morbidade.
e. Acessibilidade. Habitações adequadas devem ser acessíveis àqueles com titularidade a elas. A grupos desfavorecidos deve ser concedido acesso total e sustentável para recursos de habitação adequada. Assim, a grupos desfavorecidos como idosos, crianças, deficientes físicos, os doentes terminais, os portadores de HIV, pessoas com problemas crônicos de saúde, os doentes mentais, vítimas de desastres naturais, pessoas vivendo em áreas propensas a desastres, e outros deveriam ser assegurados um patamar de consideração prioritária na esfera habitacional. Leis e políticas habitacionais deveriam levar em conta as necessidades especiais de habitação desses grupos. Internamente, muitos Estados-partes, aumentando o acesso a terra àqueles que não a possuem ou a segmentos empobrecidos da sociedade, deveriam constituir uma meta central de políticas. Obrigações governamentais precisam ser desenvolvidas, objetivando substanciar o direito de todos a um lugar seguro para viver com paz e dignidade, incluindo o acesso para o terreno como um direito reconhecido.
f. Localização. A habitação adequada deve estar em uma localização que permita acesso a opções de trabalho, serviços de saúde, escolas, creches e outras facilidades sociais. Isso é válido para grandes cidades, como também para as áreas rurais, em que os custos para chegar ao local de trabalho podem gerar gastos excessivos sobre o orçamento dos lares pobres. Similarmente, habitações não deveriam ser construídas em locais poluídos nem nas proximidades de fontes de poluição que ameacem o direito à saúde dos habitantes.
g. Adequação cultural. A maneira como a habitação é construída, os materiais de construção usados e as políticas em que se baseiam devem possibilitar apropriadamente a expressão da identidade e diversidade cultural da habitação. Atividades tomadas a fim do desenvolvimento ou modernização na esfera habitacional deveriam assegurar que as dimensões culturais da habitação não fossem sacrificadas, e que, entre outras, facilidades tecnológicas modernas sejam também asseguradas.
Deve, ainda, ser garantido pelos Estados o que se tem por segurança legal da posse, expressão utilizada para definir a necessidade de tutela e proteção jurídica a toda posse exercida sob qualquer título contra despejos forçados, ameaças de esbulho e demais pressões e invasões.
4. IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O DIREITO À MORADIA
Uma vez estabelecida a natureza jurídica do direito à moradia como direito fundamental e humano, bem como a impossibilidade de reduzir o núcleo essencial dos direitos fundamentais, é importante apontar as consequências dessa demarcação teórica.
É que, enquanto direito fundamental – abordagem a que nos centraremos aqui – o direito à moradia é dotado de uma dimensão subjetiva, que está relacionada à concepção clássica dos direitos fundamentais, que se impõe ao Estado como um mecanismo de defesa do cidadão. Por outro lado, os direitos fundamentais também são dotados de uma dimensão objetiva, da qual deriva que o ente estatal deve adotar uma postura que proteja os direitos fundamentais, independentemente de seu titular exigir algo.
A noção de dimensão objetiva dos direitos fundamentais tem sua gênese com o caso Lüth, na Alemanha, e se liga à noção de direitos fundamentais funcionando como um complexo objetivo de valores encartados no texto da Constituição.
Assim, nessa dimensão, apresentou-se os direitos fundamentais como valores objetivos da comunidade, resultado do acordo dos diferentes interesses que existem em uma sociedade pluralista e democrática, prestando-se a alcançar metas comuns.
Com isso, pode-se afirmar que o aspecto funcional de tais normas, mormente no seu papel de competência negativa, é o elemento distintivo desta perspectiva. Logo, os direitos fundamentais exercem uma outra clara função, a saber: controlam a atuação estatal, que deve ser inteiramente pautada por tais direitos.
O referido controle, no entanto, não se confunde com a limitação imposta pela dimensão subjetiva, já que, sob o enfoque objetivo, as negativas de competência significam que aquelas condutas estatais que conflitem com os direitos fundamentais estão, automaticamente, retiradas da competência do Estado. Tal aspecto revela seu caráter preventivo, sendo uma nítida diferença em relação à função subjetiva, que depende de uma provocação daquele interessado no direito.
A partir da noção acima, portanto, é defensável a ideia de eficácia vinculante, irradiante e processual participativa dos direitos fundamentais.
A eficácia vinculante da dimensão objetiva significa que o Estado está obrigado a respeitar e a efetivar direitos fundamentais em suas três funções, o que determina uma pauta de conduta jusfundamental para os entes e órgãos públicos15. Aqui, portanto, reside a ideia de que o Estado deve buscar a máxima efetividade daqueles direitos.
A eficácia irradiante, por seu turno, extrai-se da adequação do ordenamento jurídico à Constituição. É a força jurídica capaz de modelar o ordenamento aos direitos fundamentais. Delineiam-se como consequências da eficácia irradiante, a constitucionalização do Direito e a aplicação de direitos fundamentais entre particulares.
A eficácia processual, ao fim, agrega um aumento de proteção aos direitos fundamentais e se manifesta em todas as formas processuais. Seus desdobramentos abrangem desde a proteção por meio de instrumentos objetivos, como a Ação Civil Pública, a Ação Popular e o Mandado de Segurança Coletivo, até a objetivação de processos tradicionalmente subjetivos e a abertura dos processos estatais à participação pública.
De se concluir, por isso, que a proteção ao direito à moradia, tal qual pleiteado na ADPF 828, com iniciativa de um partido político e posterior adesão das Defensorias Públicas por meio de seu Grupo de Atuação Estratégica, ambos ancorados na eficácia processual participativa, além de se apresentar como necessária para a efetivação de outros direitos fundamentais, como a vida, a saúde, a felicidade e a proteção à família, emergiu como conditio sine qua non para a garantia da dignidade da pessoa humana, tendo como seu núcleo essencial o direito de não ficar desabrigado ante um cenário de morte. Isso porque, tal como afirmou o GAETS, se omisso, o Estado poderia contribuir para um verdadeiro genocídio da população vulnerável.
Referências
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MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. 9ª Edição, reformulada, revista e atualizada. São Paulo: Atlas, 2017.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª Edição. Revista, ampliada e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
1Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-Graduada em Direitos Difusos e Coletivos, Direito Imobiliário, Direito Privado e Tribunal do Júri e Execução Penal
2ADPF 828. Supremo Tribunal Federal, Brasília, 15 de abril de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6155697. Acesso em: 13 de dezembro de 2022.
3ADPF 828. Supremo Tribunal Federal, Brasília, 15 de abril de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6155697. Acesso em: 13 de dezembro de 2022.
4ADPF 828. Supremo Tribunal Federal, Brasília, 15 de abril de 2021. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6155697. Acesso em: 13 de dezembro de 2022.
5BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Planalto Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 de dezembro de 2022.
6MORAES, Guilherme Peña de. Curso de Direito Constitucional. 9ª Edição, reformulada, revista e atualizada. São Paulo: Atlas, 2017. Pág. 186.
7SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª Edição. Revista, ampliada e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Pág. 74-75.
8BRASIL. [Lei 10.257/2001]. Declaração Universal de Direitos Humanos. Paris, França: Assembleia Geral das Nações Unidas. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 12 de dezembro de 2022.
9BRASIL. [Lei 10.257/2001]. Estatuto da Cidade. Brasília, DF: Planalto Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acesso em: 12 de dezembro de 2022.
10ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. Pág. 277-278.
11ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. Pág. 277.
12ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. Pág. 298.
13Estados Unidos da América. Comentário Geral número 7 ao PIDESC. Nova Iorque, Estados Unidos da América: Assembleia Geral das Nações Unidas. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/moradia/trabalhohabitacaopronto.html Acesso em: 2 de janeiro de 2023.
14Estados Unidos da América. Comentário Geral número 7 ao PIDESC. Nova Iorque, Estados Unidos da América: Assembleia Geral das Nações Unidas. Disponível em: http://www.direitoamoradia.fau.usp.br/wp-content/uploads/2012/05/General-Comment-7.pdf. Acesso em: 2 de janeiro de 2023.
15SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10ª Edição. Revista, ampliada e atualizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Pág. 146.