REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202501231901
Débora Jael De Souza Resende1,
Maria Eliza Alves Guerra2
RESUMO
O direito à moradia, pilar da dignidade humana e do direito à cidade, encontra-se em um momento crítico no âmbito do Plano Diretor de Uberlândia. Em análise, evidenciam-se as fragilidades e potencialidades das normativas que o preveem no âmbito municipal, o que destaca a necessidade de planejamento estratégico e ações integradas para superar desafios persistentes, apesar das inovações e potencialidades que o texto do Plano Diretor de Uberlândia 2006 considerada a legislação que o antecedeu.
O estudo reconhece avanços no Plano Diretor, como instrumentos de regularização fundiária e gestão democrática, mas também aponta limitações estruturais e políticas que comprometem sua eficácia, especialmente em contextos de desigualdades históricas. As diretrizes do Estatuto da Cidade, embora consistentes, têm sido insuficientes para atender às populações mais vulneráveis.
Propõe-se uma abordagem integrada, alinhada à Agenda 2030 e à Nova Agenda Urbana, para fortalecer a sustentabilidade, inclusão e equidade. Entre as medidas sugeridas estão políticas públicas voltadas a grupos marginalizados, maior participação cidadã e promoção da urbanização sustentável com governança efetiva.
Conclui-se que o direito à moradia é um compromisso ético e social que vai além da normativa. A revisão do Plano Diretor deve priorizar justiça social e sustentabilidade, transformando o direito à cidade em uma realidade concreta, alinhada aos compromissos globais e ao objetivo de um futuro mais justo e inclusivo.
Palavras-Chave: Direito a moradia. Estatuto da Cidade. Plano Diretor de Uberlândia.
ABSTRACT
The right to housing, a cornerstone of human dignity and the right to the city, finds itself at a critical juncture within the framework of Uberlândia’s Master Plan. The analysis reveals the weaknesses and potentialities of the municipal regulations governing this right, emphasizing the need for strategic planning and integrated actions to address persistent challenges, despite the innovations and opportunities presented by the 2006 Master Plan, especially when compared to prior legislation.
The study acknowledges progress in the Master Plan, such as the implementation of land regularization tools and democratic management mechanisms, but it also highlights structural and political limitations that hinder its effectiveness, particularly in contexts marked by historical inequalities. While the guidelines of the City Statute are consistent, they have proven insufficient to meet the needs of the most vulnerable populations.
An integrated approach aligned with the 2030 Agenda and the New Urban Agenda is proposed to enhance sustainability, inclusion, and equity. Suggested measures include public policies targeting marginalized groups, increased citizen participation, and the promotion of sustainable urbanization through effective governance.
Keywords: Right to Housing. City Statute. Master Plan of Uberlândia.
RESUMEN
El derecho a la vivienda, pilar de la dignidad humana y del derecho a la ciudad, se encuentra en un momento crítico en el contexto del Plan Director de Uberlândia. El análisis evidencia las fragilidades y potencialidades de las normativas que lo contemplan a nivel municipal, destacando la necesidad de planificación estratégica y acciones integradas para superar desafíos persistentes, a pesar de las innovaciones y potencialidades introducidas por el texto del Plan Director de Uberlândia de 2006 en comparación con la legislación que lo precedió.
El estudio reconoce avances en el Plan Director, como los instrumentos de regularización fundiaria y la gestión democrática, pero también señala limitaciones estructurales y políticas que comprometen su eficacia, especialmente en contextos marcados por desigualdades históricas. Aunque las directrices del Estatuto de la Ciudad son consistentes, han resultado insuficientes para atender a las poblaciones más vulnerables.
Se propone un enfoque integrado, alineado con la Agenda 2030 y la Nueva Agenda Urbana, para fortalecer la sostenibilidad, la inclusión y la equidad. Entre las medidas sugeridas se encuentran políticas públicas dirigidas a grupos marginados, una mayor participación ciudadana y la promoción de la urbanización sostenible con una gobernanza efectiva.
Se concluye que el derecho a la vivienda es un compromiso ético y social que trasciende el ámbito normativo. La revisión del Plan Director debe priorizar la justicia social y la sostenibilidad, transformando el derecho a la ciudad en una realidad concreta, alineada con los compromisos globales y el objetivo de un futuro más justo e inclusivo.
In conclusion, the right to housing is an ethical and social commitment that transcends regulatory frameworks. The revision of the Master Plan must prioritize social justice and sustainability, transforming the right to the city into a concrete reality aligned with global commitments and the goal of a more just and inclusive future.
Palabras clave: Derecho a la vivienda. Estatuto de la Ciudad. Plan Director de Uberlândia.
INTRODUÇÃO
A efetivação do direito à moradia nas cidades brasileiras, especialmente em Uberlândia/MG, desponta como um dos maiores desafios contemporâneos no âmbito do planejamento urbano e das políticas públicas. Tal direito, alicerçado na dignidade da pessoa humana e consagrado em múltiplos marcos normativos, destaca-se como elemento fundamental para a concretização de cidades sustentáveis, conforme preconizado no inciso I do artigo 2º da Lei nº 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade. Este diploma legal não apenas redefine a função social da propriedade e da cidade, mas também introduz diretrizes inovadoras que visam à gestão democrática, à regularização fundiária e ao desenvolvimento equilibrado do espaço urbano.
O Estatuto da Cidade, fruto de um processo evolutivo que remonta aos avanços da Constituição Federal de 1988, constitui marco jurídico de relevância ímpar na ordenação das cidades brasileiras. Sua abordagem multifacetada — que abrange aspectos conceituais, instrumentais, institucionais e de regularização fundiária — impõe ao poder público a responsabilidade de coordenar o uso do solo urbano em conformidade com os interesses coletivos, o equilíbrio ambiental e os princípios da justiça social. Essa coordenação, por sua vez, deve considerar as diretrizes gerais previstas no Estatuto, que englobam aspectos governamentais, sociais, econômicos e jurídico-urbanísticos, configurando-se como balizas para a formulação e execução de políticas públicas eficazes. Dentre elas está a instituição do Plano Diretor como norma municipal basilar de ordenação da política urbana municipal. Sendo por conseguinte responsável em dar efetividade em seu texto a cada direito estabelecido no Estatuto da Cidade.
A construção de cidades sustentáveis, como desdobramento direto das diretrizes do Estatuto da Cidade, exige a integração de elementos essenciais, tais como terra urbana, moradia, saneamento básico, infraestrutura, transporte, serviços públicos, trabalho e lazer. Esses componentes estruturam o conceito de urbanismo responsável, promovendo condições de vida dignas e sustentáveis. Nesse contexto, o direito à moradia assume posição de destaque, não apenas como prerrogativa fundamental prevista na ordem constitucional, mas também como compromisso ético-jurídico reafirmado por normas internacionais e compromissos globais, como a Agenda 2030 e a Nova Agenda Urbana.
Historicamente, as políticas habitacionais brasileiras refletem um trajeto permeado por avanços e retrocessos, em que, à semelhança da política agrária nacional, predominam práticas marcadas pelo coronelismo e pelo favorecimento aos grandes proprietários. Essas políticas, em raros momentos, priorizaram iniciativas voltadas à ampliação do acesso à moradia, apenas para retrocederem à manutenção de profundas desigualdades sociais e à perpetuação da especulação imobiliária como característica estrutural do cenário urbano brasileiro.
A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova fase no tratamento do direito à moradia, alçando-o ao patamar de direito social, enquanto legislações específicas, como o Estatuto da Cidade, buscaram operacionalizá-lo no âmbito local. Todavia, a aplicação desse arcabouço normativo ainda enfrenta dificuldades, especialmente nas grandes cidades, onde a segregação socioespacial e as limitações na implementação de políticas habitacionais se fazem mais evidentes.
Uberlândia/MG, cidade de médio porte com relevância regional, é um caso emblemático na análise do direito à moradia em nível municipal. O Plano Diretor de 2006, enquanto instrumento de planejamento e ordenação urbana, apresenta tanto potencialidades quanto fragilidades no tratamento do tema. À luz do Estatuto da Cidade, o presente estudo buscará analisar em que medida o Plano Diretor atende ao objetivo de garantir o direito à moradia como elemento essencial das cidades sustentáveis, evidenciando os desafios estruturais e as oportunidades para aprimoramento.
Assim, se propõe a explorar, de forma sistemática e crítica, os elementos centrais do direito à moradia no Brasil e suas intersecções com o direito às cidades sustentáveis, partindo da análise teórica das normativas nacionais e internacionais até a aplicação prática no contexto de Uberlândia. Este estudo, estruturado investigará desde as bases conceituais e históricas do Estatuto da Cidade até as especificidades do Plano Diretor de Uberlândia, concluindo com a análise das suas fragilidades e potencialidades, visando contribuir para a formulação de políticas urbanas mais eficazes e justas. Ao final, com base nas orientações da Agenda 2030 e da Nova Agenda Urbana, e com a devida vênia, propõe-se adendos, ajustes e complementações ao texto do Plano Diretor, a fim de oxigená-lo às novas demandas da ordem mundial no que tange ao direito à moradia.
1. O ESTATUTO DA CIDADE: CONSIDERAÇÕES E IMPACTOS
A promulgação do Estatuto da Cidade, pela Lei nº 10.257/2001, marcou um ponto de inflexão no Direito Urbanístico brasileiro, consolidando instrumentos normativos essenciais para o planejamento urbano e a gestão territorial. Em resposta ao comando constitucional de 1988, a norma conferiu aos municípios autonomia para legislar e organizar o uso do solo, promovendo o desenvolvimento sustentável, a justiça social e a inclusão. Além disso, incorporou princípios de regularização fundiária e gestão democrática, redefinindo o papel do Poder Público e da sociedade civil na construção de cidades inclusivas e democráticas.
1.1 O ESTATUTO E SEU PROCESSO EVOLUTIVO DE APLICAÇÃO
Conforme Sundfeld (2002), o Direito Urbanístico brasileiro evoluiu de forma gradativa, inicialmente absorvendo inovações globais e passando por fases de consolidação normativa. A teoria de Sundfeld (2002) sobre o desenvolvimento do Direito Urbanístico utiliza as metáforas de “adolescência” e “fase adulta” para explicar como essa disciplina evolui no Brasil. Inicialmente, o Direito Urbanístico surge como um conjunto de regulamentos pontuais, absorvendo inovações globais dentro do Direito tradicional, mas ainda sem identidade normativa consolidada.
A “fase adolescente”, que abrange as décadas de 1930 a 1970, é marcada por esforços para definir uma identidade normativa própria, especialmente com a incorporação do princípio da função social da propriedade. Contudo, essa fase é caracterizada pela ausência de um arcabouço jurídico totalmente integrado e critérios claros para regulamentar as políticas urbanas.
A “fase adulta” tem início com a promulgação do Estatuto da Cidade, que consolida os avanços normativos anteriores e estabelece uma base articulada para o Direito Urbanístico. Esse marco normativo fixa diretrizes gerais, regulamenta instrumentos específicos e conecta o Direito Urbanístico a outros ramos jurídicos, como o direito imobiliário e registral. Além disso, o Estatuto atribui ao Poder Público a responsabilidade de gerir o uso do solo urbano, com vistas a assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade.
Sundfeld (2002) ressalta que o Estatuto da Cidade promove uma visão holística do ordenamento urbanístico, superando o individualismo do Direito Civil ao equilibrar o crescimento urbano com a proteção de direitos coletivos. Assim, o Direito Urbanístico alcança sua maturidade normativa, orientando-se pelo objetivo de atender às funções sociais da cidade, como moradia, trabalho, saúde, educação e lazer.
Essa visão holística e madura do Direito Urbanístico, consolidada pelo Estatuto da Cidade, não se realiza apenas no plano teórico, mas se desdobra em diretrizes práticas que orientam a aplicação dos seus preceitos. Tais diretrizes são fundamentais para garantir que o ordenamento urbano seja capaz de concretizar as funções sociais da cidade, promovendo equilíbrio entre os interesses coletivos e individuais, bem como entre o desenvolvimento urbano e a justiça social. Assim, o Estatuto da Cidade estrutura suas orientações em categorias abrangentes que norteiam a ação do Poder Público, assegurando coerência e eficácia no planejamento e gestão urbanos, como detalhado a seguir.
1.2 AS DIRETRIZES GERAIS DO ESTATUTO DA CIDADE
As diretrizes gerais, conforme Carvalho Filho (2009), agrupam-se em cinco categorias principais: governamentais, sociais, econômico-financeiras, relativas ao solo urbano e jurídicas.
Diretrizes Governamentais:
Determinam a intervenção do Poder Público em áreas como planejamento urbano, integração rural-urbana, proteção ambiental e oferta de serviços públicos (CARVALHO FILHO, 2009).
O planejamento (art. 2º, inciso IV) orienta a distribuição populacional e econômica, enquanto a oferta de serviços urbanos (inciso V) garante condições de vida adequadas. A integração rural-urbana (inciso VII) visa o equilíbrio socioeconômico e o desenvolvimento sustentável.
A proteção ao patrimônio ambiental e cultural (inciso XII) e a isonomia entre agentes públicos e privados (inciso XVI) reforçam a promoção de uma ordem urbanística justa.
Diretrizes Sociais:
Aqui adentra-se ao assunto afeto a nossa pesquisa; o direito a cidades sustentáveis (art. 2º, inciso I) abrange acesso a terra urbana, saneamento, infraestrutura e lazer para todas as gerações. Esse direito reflete um equilíbrio entre desenvolvimento urbano e bem-estar coletivo (CARRERA, 2005).
A gestão democrática (inciso II) assegura a participação cidadã na formulação e execução de políticas urbanas, enquanto a cooperação público-privada (inciso III) promove parcerias voltadas ao interesse social.
A justa distribuição de benefícios e ônus (inciso IX) e a necessidade de audiências públicas (inciso XIII) garantem transparência e inclusão no processo de urbanização.
Diretrizes Econômico-Financeiras:
Regulam a aplicação de recursos para fomentar o desenvolvimento urbano e preveem a recuperação de investimentos públicos que valorizem imóveis urbanos (art. 2º, incisos X e XI).
Instrumentos como a contribuição de melhoria e a desapropriação por zona reforçam a redistribuição equitativa de benefícios, conforme princípios de justiça social e impessoalidade (COELHO, 1999).
Diretrizes Relativas ao Solo Urbano:
Regulam o uso e ocupação do solo para combater a especulação imobiliária e promover a regularização fundiária em áreas de baixa renda.
A função social da propriedade, como eixo central, integra interesses privados e coletivos, garantindo o desenvolvimento sustentável e harmonioso do espaço urbano (CARVALHO FILHO, 2009).
Diretrizes Jurídicas:
Simplificam a legislação urbanística para reduzir custos e ampliar o acesso à habitação. A Lei nº 6.766/1979 e suas limitações são superadas pelo Estatuto, que amplia a autonomia municipal para ordenar o território, sempre com foco na inclusão e sustentabilidade (CARVALHO FILHO, 2009).
No entanto, a efetivação dessas diretrizes depende de uma gestão urbana eficiente, protagonizada pelo poder público e ancorada no planejamento integrado e participativo. Assim, o plano diretor emerge como ferramenta indispensável, estruturando a gestão em etapas interdependentes – diagnóstico, prognóstico, definição de metas, elaboração de propostas, implementação e monitoramento – que serão aprofundadas a seguir.
1.3 Gestão da Política Urbana pelo Poder Público
Conforme Fernandes (1998), o Estatuto aborda aspectos conceituais, instrumentais, institucionais e de regularização fundiária, articulando direitos e deveres do Poder Público e dos particulares. A gestão urbana, ancorada no plano diretor, exige fases estruturadas: diagnóstico, prognóstico, formulação de metas, elaboração de propostas, implementação e monitoramento. Cada fase reflete o compromisso do Estatuto com uma governança democrática e transparente.
O Estatuto também introduz instrumentos inovadores, como a outorga onerosa do direito de construir e o IPTU progressivo, que possibilitam ao Poder Público intervir efetivamente no processo de urbanização, promovendo justiça social e inclusão. Contudo, Moreira (2002) destaca limitações, como a falta de diretrizes específicas para áreas rurais e regiões metropolitanas, sugerindo a necessidade de ajustes legislativos.
O Estatuto da Cidade inaugura um novo paradigma no Direito Urbanístico brasileiro, promovendo o equilíbrio entre desenvolvimento urbano, inclusão social e sustentabilidade ambiental. Entretanto, sua plena efetividade requer uma gestão robusta, comprometida com a participação popular e a articulação entre diferentes esferas do poder. No próximo capítulo, serão explorados os elementos constitutivos do direito a cidades sustentáveis e suas implicações para a concretização de uma urbanização justa e democrática.
2. O DIREITO A CIDADES SUSTENTÁVEIS E SEUS ELEMENTOS
O Estatuto da Cidade, por meio do inciso I do artigo 2º, consagra o direito a cidades sustentáveis, abrangendo o acesso à terra urbana, moradia, saneamento básico, infraestrutura, transporte, serviços públicos, trabalho e lazer. Esse direito visa promover condições de vida dignas e sustentáveis, englobando as necessidades das gerações presentes e futuras, conforme Carvalho Filho (2009). Trata-se de um modelo de planejamento urbano orientado pela justa distribuição de recursos e oportunidades, essencial para a convivência equilibrada no espaço urbano.
O Estatuto preconiza a gestão democrática como elemento central, assegurando a participação ativa de diversos segmentos sociais na formulação, execução e monitoramento das políticas urbanas, como destacado por Sundfeld (2002). Essa abordagem fortalece a legitimidade das decisões públicas e evita medidas desalinhadas das reais necessidades da população. Além disso, o Estatuto estabelece a cooperação entre o poder público e a iniciativa privada, garantindo uma repartição justa de ônus e bônus decorrentes das intervenções urbanísticas, sempre pautada pela transparência e pela equidade (Carvalho Filho, 2009).
As audiências públicas, obrigatórias para empreendimentos com impacto ambiental significativo, são apontadas por Carvalho Filho (2009) como instrumentos que ampliam a corresponsabilidade entre os atores sociais e asseguram um urbanismo responsável. Essas medidas são cruciais para combater problemas como dispersão urbana, segregação socioespacial e especulação imobiliária, que fragilizam a organização territorial e comprometem a sustentabilidade urbana.
As estratégias implantadas pelo Estatuto da Cidade, como as audiências públicas e os instrumentos de gestão urbana, vão além da busca por um urbanismo responsável; elas também visam enfrentar as raízes estruturais das desigualdades sociais e territoriais, que comprometem o direito à cidade. Ao integrar mecanismos que promovem a inclusão e a participação social, o Estatuto se conecta a uma dimensão mais ampla da justiça social, em que o direito à moradia se destaca como elemento central. Essa abordagem reflete um esforço para superar o histórico de exclusão habitacional no Brasil, tema que será explorado no próximo capítulo.
3. O DIREITO À MORADIA
A evolução da política habitacional no Brasil, analisada sob uma perspectiva jurídico-científica, evidencia um percurso desigual e excludente. Ferreira (2002) aponta que a Lei de Terras de 1850 inaugurou a mercantilização do solo, restringindo o acesso das populações vulneráveis e institucionalizando a desigualdade fundiária. No período da República Velha, conforme Bonduki (1998), o controle privado do setor habitacional priorizou interesses lucrativos em detrimento das demandas sociais, agravando a exclusão habitacional.
No século XX, a criação do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), pela Lei nº 4.380/64, visou ampliar o acesso à moradia, mas privilegiou as classes média e alta, negligenciando as populações de baixa renda, conforme Lopes (2014). Durante o regime militar, a centralização das políticas habitacionais, associada à ausência de critérios inclusivos, intensificou a segregação socioespacial e a proliferação de assentamentos informais, como destacam Oliveira (2003) e Maricato (1982). Posteriormente, o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), instituído em 2009, procurou corrigir essas desigualdades, mas sua execução inadequada, sobretudo em cidades como Uberlândia, agravou a segregação urbana, conforme analisado por Maricato (2017) e Ferreira (2018).
O direito à moradia, reconhecido como autônomo e fundamental, encontra respaldo na dignidade humana e na função social da propriedade, que condiciona o uso patrimonial a uma utilidade coletiva (SARLET, 2003; Carvalho Filho, 2009). Tratados internacionais, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), consolidam a moradia como elemento integrante do bloco de constitucionalidade, conforme reforçado pelo Comentário Geral nº 4 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que estabelece padrões de adequação habitacional. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e instrumentos como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1969) ratificam a obrigatoriedade estatal de assegurar condições habitacionais dignas, enfatizando a igualdade e a não discriminação.
No plano normativo brasileiro, a Constituição de 1988, por meio da Emenda Constitucional nº 26 de 2000, elevou o direito à moradia ao status de direito social fundamental (art. 6º), fundamentando-se nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da função social da propriedade (art. 5º, XXIII). Internacionalmente, as declarações Habitat I (1976) e Habitat II (1996) e a Nova Agenda Urbana, oriunda da Habitat III (2016), aprofundaram as diretrizes para políticas habitacionais inclusivas e sustentáveis, vinculando o direito à moradia ao desenvolvimento urbano equilibrado. Contudo, conforme SARLET (2003) e Bonduki (1998), essas agendas apresentam limitações em sua aplicabilidade concreta devido à ausência de mecanismos vinculativos e à predominância de interesses econômicos que perpetuam dinâmicas excludentes.
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, ao estabelecer o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 11 (ODS 11), reafirma o compromisso de promover cidades inclusivas, seguras e sustentáveis, com habitação adequada e acessível para todos. Entretanto, a meta 11.1 enfrenta críticas por adotar uma abordagem genérica e não abordar, de forma contundente, as estruturas que sustentam as desigualdades habitacionais, conforme apontado por Maricato (2017).
A Nova Agenda Urbana, em seus artigos 31, 32, 33 e 105, reforça o compromisso global com a moradia digna, articulando segurança de posse, proteção contra despejos forçados e a participação social nas políticas habitacionais. Apesar dos avanços conceituais, sua implementação continua dependente de estruturas normativas locais robustas e de uma vontade política que enfrente os interesses de mercado. Essa evolução normativa reflete o desafio contínuo de equilibrar inclusão social, sustentabilidade urbana e funcionalidade econômica, garantindo a efetivação do direito à moradia como prerrogativa essencial para a dignidade humana e a justiça social.
3.1 Legislações e o Direito à Moradia no Brasil: sua importância e desafios de aplicação
A evolução do direito à moradia no Brasil, embora marcada por marcos normativos progressistas revelou uma dicotomia entre avanços legais e obstáculos práticos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 consolidaram a moradia digna como direito humano e orientaram o arcabouço jurídico brasileiro. A Constituição de 1988, posteriormente explicitada pela Emenda Constitucional nº 26 de 2000, e o Estatuto da Cidade de 2001, estabeleceram bases sólidas, impondo a função social da propriedade e instrumentos como o Plano Diretor e o IPTU Progressivo. Contudo, a aplicação efetiva desses instrumentos permanece desigual, minada pelas disparidades socioeconômicas e a insuficiência de políticas públicas inclusivas.
No plano internacional, a Agenda 2030 e a Nova Agenda Urbana de 2016 reafirmam o direito à moradia sob princípios de inclusão e sustentabilidade. Todavia, no Brasil, a execução desses compromissos enfrenta barreiras significativas, como a escassez de recursos, a segregação socioespacial e a persistência de assentamentos informais. A legislação, apesar de robusta em seus objetivos, encontra-se refém da realidade social, onde interesses econômicos, especialmente do setor imobiliário, sobrepõem-se à efetividade do direito à moradia digna.
A proliferação de assentamentos informais e a localização periférica dos empreendimentos habitacionais expõem a falência da governança urbana em combater a exclusão social. A política habitacional, demasiadamente focada na construção de unidades, falha em integrar o acesso a serviços essenciais e a uma infraestrutura adequada e perpetuam a desigualdade. Portanto, a efetividade do direito à cidades sustentáveis exige uma governança assertiva, comprometida com uma inclusão real, onde a moradia transcenda o mero abrigo e promova a justiça social e urbana.
Isso posto, a aplicação do direito à moradia adequada, com segurança jurídica da posse e acesso a serviços essenciais são vitais para a efetividade do direito à cidades sustentáveis, ao assegurar habitação salubre, financeiramente acessível e culturalmente adequada, pois, inclui de grupos vulneráveis, fomenta a equidade urbana e possibilita o pleno exercício da cidadania o que integra a moradia digna às políticas de desenvolvimento urbano sustentável e à coesão social.
Nesse contexto, a efetivação do direito à moradia digna se conecta diretamente ao planejamento estratégico urbano, que encontra no Plano Diretor um instrumento essencial para traduzir as demandas sociais em diretrizes concretas de desenvolvimento municipal. Em Uberlândia/MG, a revisão do Plano Diretor de 2006 exemplifica essa integração, ao estruturar propostas de desenvolvimento orientadas por diagnósticos detalhados e pela construção de cenários que conciliam as necessidades atuais com as aspirações futuras da comunidade local.
4. O PLANO DIRETOR DE 2006
A revisão do Plano Diretor de 2006 de Uberlândia, embasada em metodologia de planejamento estratégico, estruturou-se em cenários prospectivos denominados “Cenário Atual”, “Cenário Ideal” e “Cenário Desejado”, refletindo os anseios da sociedade local para uma cidade sustentável, socialmente justa, economicamente viável e ambientalmente equilibrada (UBERLÂNDIA, 2006 apud JUSTINO, 2016). Esses princípios orientaram-se por um urbanismo compacto, policêntrico e voltado à manutenção da forma urbana com limites claros, sendo amplamente fundamentados nas diretrizes do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e nos compromissos assumidos pela Nova Agenda Urbana (Habitat III) e pela Agenda 2030 das Nações Unidas, notadamente o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 11 (ODS 11), que preconizam cidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis. Contudo, apesar do avanço teórico e conceitual, identificaram-se fragilidades no engajamento popular e na capacitação para a gestão democrática, aspectos que impactaram a plena implementação das diretrizes normativas (JUSTINO, 2016).
O Plano Diretor fundamenta-se em compromissos com a promoção de cidades sustentáveis, amparando-se nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da função social da propriedade (art. 182, Constituição Federal de 1988) e na integração regional. Uberlândia, enquanto cidade-polo, exerce protagonismo na cooperação intermunicipal em áreas como saúde, educação e saneamento, conforme exemplificado pelo Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC-UFU), referência no Sistema Único de Saúde (SUS) e no ensino superior (UBERLÂNDIA, 2006). Apesar dessas potencialidades, críticas apontam para a ausência de um zoneamento rural inclusivo e a falta de atenção às necessidades dos pequenos agricultores, o que compromete a promoção do desenvolvimento regional e social sustentável (SOUZA et al., 2017).
Na esfera ambiental, o Plano Diretor incorpora princípios consagrados na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade, sendo regulamentado pelos artigos 10º a 15º. As diretrizes incluem a proteção da biodiversidade, a recuperação de áreas degradadas e a criação de espaços de lazer, reforçando a gestão integrada e sustentável dos recursos naturais (UBERLÂNDIA, 2006). Essas medidas alinham-se aos compromissos do Comentário Geral nº 4 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da Nova Agenda Urbana (Habitat III) e ao ODS 11, que destacam a interdependência entre habitação digna, sustentabilidade ambiental e acesso equitativo aos recursos naturais.
No âmbito rural, destacam-se iniciativas como a criação de Áreas de Proteção Ambiental (APAs) junto às Bacias dos Rios Uberabinha e Bom Jardim, o monitoramento ambiental com base em indicadores e a implementação de um Sistema Integrado de Informações, que promove a gestão transparente e participativa (UBERLÂNDIA, 2006). Contudo, conforme apontado por Souza et al. (2017), o predomínio do agronegócio como principal abordagem política limita a consideração das demandas sociais e a luta pela terra, comprometendo a função social do território rural.
No que tange ao uso e à ocupação do solo, o artigo 19 do Plano Diretor estabelece diretrizes para harmonizar o adensamento urbano com a preservação ambiental e a valorização do patrimônio cultural. Os artigos 21 e 22 detalham o macrozoneamento municipal, identificando zonas como a Proteção de Áreas de Mananciais (MZP) e as Zonas Rurais Sudoeste (MZS) e Nordeste (MZN), essenciais para o equilíbrio entre urbanização e conservação ambiental. A criação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), prevista nos artigos 79 a 82, é apontada como potencialidade significativa para a inclusão social e a regularização fundiária, cumprindo o disposto no artigo 2º, inciso XIV, do Estatuto da Cidade (UBERLÂNDIA, 2006).
No campo da mobilidade, os artigos 25 e 26 do Plano Diretor estabelecem diretrizes para um sistema de transporte sustentável e acessível, priorizando transportes não motorizados e a integração intermodal de bens e mercadorias. Essas medidas alinham-se ao artigo 2º, inciso VI, do Estatuto da Cidade e ao ODS 11.2, que preconiza sistemas de transporte acessíveis e sustentáveis (UBERLÂNDIA, 2006). Contudo, a plena efetividade dessas diretrizes depende de investimentos contínuos, monitoramento e cooperação intergovernamental.
O turismo e o desenvolvimento econômico são tratados nos artigos 27 e 28, que reconhecem Uberlândia como um polo estratégico para o turismo de negócios e eventos. A infraestrutura diversificada, incluindo o segundo maior aeroporto de Minas Gerais, e a classificação na categoria “A” do Mapa do Turismo Brasileiro destacam seu potencial competitivo (MARQUES; ANDRADE, 2023). A implementação de Arranjos Produtivos Locais (APLs) e a gestão de recursos hídricos refletem o compromisso com um desenvolvimento integrado e sustentável, em consonância com os princípios da Nova Agenda Urbana e do ODS 11 (UBERLÂNDIA, 2006).
As políticas sociais públicas delineadas nos artigos 29 a 40 reforçam a prioridade dada à educação, saúde, assistência social e lazer. Destacam-se ações como a universalização do ensino fundamental, a modernização das unidades de saúde e a expansão do Programa Saúde da Família, promovendo a inclusão e o bem-estar social (UBERLÂNDIA, 2006). A gestão democrática, consolidada no artigo 89, complementa essas diretrizes ao estabelecer mecanismos participativos e transparentes, conforme preconizado pelos artigos 43 e 44 do Estatuto da Cidade.
Por fim, o direito à moradia, consagrado no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 e regulado pelo Estatuto da Cidade, é tratado de forma robusta no Plano Diretor, especialmente nos artigos 41 e 77, que enfatizam a função social da propriedade e a transferência de potencial construtivo. Contudo, a ausência de uma regulamentação detalhada sobre os loteamentos irregulares representa uma lacuna significativa, violando os compromissos internacionais assumidos na Nova Agenda Urbana e no ODS 11.1, que preveem o acesso universal à habitação digna e regularização fundiária.
Portanto, embora o Plano Diretor de Uberlândia de 2006 apresente avanços normativos significativos, sua implementação carece de ajustes estruturais e regulamentares que garantam a concretização plena do direito às cidades sustentáveis. A inclusão de normas mais detalhadas sobre a regularização de loteamentos irregulares, acompanhada de medidas de planejamento integrado e gestão participativa, é essencial para assegurar que os compromissos assumidos pelo município se traduzam em práticas urbanas efetivas, inclusivas e resilientes.
5. ANÁLISE DO DIREITO A MORADIA CONTIDO NO PLANO DIRETOR DE 2006 À LUZ DO ESTATUTO DA CIDADE: POTENCIALIDADES E ENTRAVES CRÍTICOS
O direito à moradia, elevado à condição de direito social pelo artigo 6º da Constituição Federal de 1988, é amplamente fortalecido pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) e pelo Plano Diretor de Uberlândia (Lei Complementar nº 432/2006), que juntos oferecem instrumentos normativos para integrá-lo ao ideal de uma cidade sustentável. Este direito transcende a garantia de abrigo, vinculando-se diretamente à função social da propriedade, à inclusão social e à sustentabilidade, princípios indispensáveis para um planejamento urbano comprometido com a justiça espacial.
Em seu texto o Plano Diretor em diversos momentos efetivou o direito a moradia, dando ao cidadão a possibilidade de exercê-lo. Senão vejamos.
a) Potencialidades
O artigo 5º, inciso I, do Plano Diretor é emblemático ao resguardar a função social da cidade, assegurando direitos fundamentais, incluindo a moradia. Este dispositivo reflete o artigo 2º, inciso II, do Estatuto da Cidade, que determina a promoção da justiça social e a função social da propriedade como diretrizes para o desenvolvimento urbano. Assim, ao consagrar essa premissa, o Plano Diretor estabelece uma base normativa sólida para políticas habitacionais que promovam habitações dignas, integradas à infraestrutura urbana e aos serviços essenciais, como saúde, educação e transporte.
O artigo 6º, inciso I, reforça essa potencialidade ao prever a melhoria das condições habitacionais como parte da infraestrutura municipal. Alinhado ao artigo 4º do Estatuto da Cidade, que exige a utilização de instrumentos de política urbana para assegurar urbanização ordenada, este dispositivo favorece a regularização fundiária e a ocupação de vazios urbanos. Além disso, incentiva a criação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), previstas no Estatuto, que promovem a inclusão habitacional de populações vulneráveis.
A inclusão social é também ressaltada pelo artigo 6º, inciso VII, que prioriza o acesso à habitação para munícipes de baixa renda. Este dispositivo está em sintonia com o artigo 2º, inciso XIV, do Estatuto da Cidade, que incentiva programas habitacionais em áreas urbanizadas. Ao integrar as políticas habitacionais às ações de planejamento urbano, o Plano Diretor fomenta o adensamento sustentável, combatendo a expansão desordenada e fortalecendo o acesso igualitário à cidade.
A mobilidade urbana, elemento essencial para o exercício pleno do direito à moradia, é abordada no artigo 25, inciso V, que destaca a integração entre habitação e transporte, priorizando projetos que facilitem o deslocamento casa-trabalho. Este dispositivo reflete o artigo 2º, inciso VI, do Estatuto da Cidade, que prevê a mobilidade urbana sustentável como diretriz para o desenvolvimento urbano. A implementação de redes cicloviárias e o incentivo ao transporte coletivo garantem proximidade entre habitação e trabalho, melhorando a qualidade de vida e reduzindo os custos de deslocamento.
O artigo 39, inciso XIX, evidencia uma visão regional ao prever programas em cooperação com municípios vizinhos para atender às necessidades habitacionais. Essa diretriz encontra respaldo no artigo 2º, inciso VII, do Estatuto da Cidade, que enfatiza a articulação intermunicipal no planejamento urbano. A colaboração entre entes federativos amplia a eficácia das políticas habitacionais, atendendo a populações vulneráveis e promovendo soluções integradas para o déficit habitacional.
Instrumentos urbanísticos modernos são também destacados no Plano Diretor. O artigo 58 regula o usucapião especial urbano, em consonância com o artigo 9º do Estatuto da Cidade, promovendo segurança jurídica da posse e regularização fundiária. Já o artigo 59 estabelece a concessão de uso especial para moradia, conforme o artigo 8º do Estatuto, permitindo a inclusão de áreas ocupadas no tecido urbano formal. O parágrafo único do artigo 68 autoriza a utilização da outorga onerosa para a produção de habitação de interesse social, alinhando-se aos artigos 4º, incisos V e VII, do Estatuto, como um mecanismo eficiente para financiar projetos habitacionais inclusivos.
As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), regulamentadas pelos artigos 79 a 82, constituem um dos maiores avanços do Plano Diretor. O artigo 79 define as ZEIS como regiões destinadas à implementação de padrões diferenciados de ocupação, conforme o artigo 2º, inciso XIV, do Estatuto da Cidade. O artigo 80 estabelece objetivos claros, como a inclusão de populações marginalizadas, a extensão de serviços urbanos e a promoção da equidade social, alinhando-se aos artigos 4º, incisos II e IV, do Estatuto. A exigência de Planos Urbanísticos específicos para cada ZEIS, prevista no artigo 81, garante a participação popular, em conformidade com o artigo 2º, inciso II, do Estatuto, assegurando que as intervenções sejam inclusivas e representem os interesses da comunidade.
Assim, o Plano Diretor de Uberlândia articula, de forma exemplar, diretrizes normativas que dialogam diretamente com o Estatuto da Cidade, evidenciando uma estrutura robusta e inovadora para a promoção do direito à moradia. Ao adotar instrumentos urbanísticos modernos, regulamentar as ZEIS e integrar políticas habitacionais e de mobilidade, o Plano reafirma seu compromisso com a inclusão social, a justiça territorial e a sustentabilidade. Este conjunto de dispositivos normativos fortalece a função social da propriedade e consolida Uberlândia como referência em planejamento urbano voltado à concretização do direito à cidade sustentável.
b) Entraves Críticos
No artigo que fala da transferência de Potencial Construtivo há uma potencialidade Inexplorada. O art. 77 do Plano Diretor estabelece a possibilidade de transferência de potencial construtivo para programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por populações de baixa renda e habitação de interesse social. Este dispositivo está alinhado aos princípios do art. 4º do Estatuto da Cidade, que preconiza o uso de instrumentos urbanísticos para assegurar a função social da propriedade. No entanto, a ausência de regulamentação detalhada que defina critérios objetivos, áreas prioritárias e processos administrativos inviabiliza sua plena aplicação.
Além disso, a falta de estrutura técnica e resistência política de setores econômicos ligados à especulação imobiliária agravam a ineficácia desse instrumento. Sem regulamentação clara, a transferência de potencial construtivo permanece como uma medida formal sem impacto prático na promoção da inclusão urbana e na redução do déficit habitacional.
No que diz respeito às Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) regulamentadas pelos artigos 79 a 82 do Plano Diretor, elas representam um avanço normativo ao prever padrões diferenciados de uso e ocupação do solo para populações de baixa renda. Em consonância com o art. 2º, inciso XIV, do Estatuto da Cidade, essas zonas promovem a inclusão social e a regularização fundiária. Contudo, a falta de regulamentação complementar para delimitação, planejamento e financiamento das ZEIS compromete sua efetividade.
A insuficiência de recursos financeiros e técnicos para implementar planos urbanísticos específicos nas ZEIS também constitui um entrave significativo. A ausência de destinação prioritária de recursos do Fundo Municipal de Habitação e a limitada gestão participativa dificultam a integração dessas áreas ao tecido urbano, perpetuando desigualdades socioespaciais.
Não menos importante, o IPTU progressivo no tempo é inoperante. O art. 52 do Plano Diretor, que regulamenta o IPTU Progressivo no Tempo, alinha-se aos artigos 5º, 6º e 7º do Estatuto da Cidade como uma medida para combater a retenção especulativa de imóveis urbanos. Apesar de seu potencial para promover o uso racional do solo e reduzir o déficit habitacional, sua implementação em Uberlândia é prejudicada pela falta de fiscalização e regulamentação detalhada. Sem mecanismos eficazes para identificar imóveis ociosos e aplicar alíquotas progressivas, o instrumento se torna incapaz de atingir seus objetivos, perpetuando grandes vazios urbanos em áreas centrais e bem estruturadas.
5.1 Desapropriação por Títulos da Dívida Pública: Instrumento Ignorado
A desapropriação por títulos da dívida pública, por sua vez, prevista no art. 55 do Plano Diretor e nos artigos 7º e 8º do Estatuto da Cidade, que é essencial para destinar imóveis subutilizados à produção de habitação de interesse social, apesar de sua relevância normativa, é ausente de regulamentação e encontra resistência de setores econômicos que comprometem sua aplicação em Uberlândia. Essa omissão mantém imóveis ociosos em áreas com infraestrutura consolidada, violando o princípio constitucional da função social da propriedade e exacerbando o déficit habitacional.
Com maior vultosidade, temos o não tratamento a contento da questão dos loteamentos irregulares. Não diz-se aqui, um aprofundamento exagerado, que sabe-se caber a lei específica. Mas, previsões um pouco mais detalhadas e norteadoras de ações reais em prol de medidas que efetivem o direito a moradia através da legalização das propriedades irregulares. Apesar de o Estatuto da Cidade estabelecer a regularização fundiária como uma prioridade, o Plano Diretor carece de diretrizes específicas que abordem a integração dessas áreas ao tecido urbano de forma clara e operacional.
A falta de detalhamento sobre como identificar, priorizar e executar ações de regularização perpetua a precariedade em que vivem muitas famílias. A ausência de infraestrutura básica, como saneamento, iluminação e transporte público, nesses loteamentos demonstra a fragilidade de políticas públicas voltadas para essa parcela da população.
5.2 Propostas para o Plano Diretor de Uberlândia: Uma Perspectiva Jurídico-Social
Conforme visto a efetivação do direito a moradia no contexto do Plano Diretor de Uberlândia (Lei Complementar nº 432/2006) apresenta lacunas críticas que demandam soluções normativas concretas, especialmente em temas como a desapropriação por títulos da dívida pública, regularização fundiária e integração de loteamentos irregulares. Abaixo traz-se algumas possibilidades de disposições normativas que supririam tais lacunas dando maior aplicabilidade a esse direito, e por conseguinte acessibilidade a todos os demais conteúdos do direito à cidades sustentáveis.
A desapropriação por títulos da dívida pública, conforme disposto no artigo 55 do Plano Diretor e no artigo 8º do Estatuto da Cidade, apresenta-se como um mecanismo essencial para a realização da função social da propriedade. No entanto, sua aplicação encontra significativos entraves, como a ausência de regulamentação detalhada, resistência política e insuficiência técnica-administrativa. Para superar essas dificuldades, é fundamental que o Poder Executivo Municipal estabeleça regulamentações baseadas em critérios objetivos, incluindo a criação de um cadastro atualizado de imóveis subutilizados, a notificação dos proprietários e a destinação prioritária desses imóveis à habitação de interesse social. A vinculação dessas desapropriações a projetos de infraestrutura básica, associada à supervisão por um conselho municipal representativo, asseguraria maior transparência e eficiência na aplicação desse instrumento, em consonância com o artigo 4º, inciso VII, do Estatuto da Cidade.
Por sua vez, o IPTU Progressivo no Tempo, regulamentado pelo artigo 52 do Plano Diretor e pelos artigos 5º, 6º e 7º do Estatuto da Cidade, constitui uma ferramenta jurídica relevante para desestimular a retenção especulativa de imóveis. Contudo, a eficácia dessa medida é comprometida em Uberlândia devido à ausência de fiscalização adequada e regulamentação operacional, perpetuando grandes vazios urbanos em áreas centrais. A implementação de um sistema de georreferenciamento, combinado com notificação rigorosa e a destinação dos recursos arrecadados ao Fundo Municipal de Habitação, teria o potencial de promover a função social da propriedade e reduzir o déficit habitacional, como previsto no artigo 182 da Constituição Federal.
As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), regulamentadas pelos artigos 79 a 82 do Plano Diretor, destacam-se como um instrumento indispensável para a inclusão de populações vulneráveis no tecido urbano. Entretanto, a ausência de regulamentação detalhada para a delimitação, planejamento e execução de planos urbanísticos específicos impede sua plena implementação. A alocação prioritária de recursos do Fundo Municipal de Habitação, de acordo com o artigo 41, inciso III, do Plano Diretor, aliada à ampliação da participação popular na gestão das ZEIS, tem o potencial de transformá-las em efetivos polos de inclusão social, alinhando-se ao disposto no artigo 2º, inciso XIV, do Estatuto da Cidade.
Os loteamentos irregulares configuram-se como um dos maiores desafios urbanísticos enfrentados por Uberlândia, comprometendo a efetividade do direito à moradia. Apesar de instrumentos como as ZEIS e a regularização fundiária estarem previstos no Plano Diretor, a ausência de uma regulamentação específica para enfrentar essas situações perpetua desigualdades socioespaciais. A falta de segurança jurídica, de infraestrutura básica e de integração ao tecido urbano formal é incompatível com os compromissos assumidos pelo Brasil na Agenda 2030, especialmente no ODS 11.1, que busca assegurar habitação segura, adequada e acessível para todos. Além disso, as disposições da Lei Federal nº 6.766/1979 e da Lei Federal nº 11.888/2008, que tratam do parcelamento do solo urbano e asseguram assistência técnica para habitação de interesse social, carecem de aplicação prática no município, reforçando a exclusão de populações vulneráveis e violando o princípio da função social da propriedade, conforme o artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal.
Diante dessas fragilidades, propõe-se a inclusão, no Plano Diretor, de um Plano Municipal de Regularização Fundiária que contemple diretrizes como a garantia de segurança jurídica de posse, seja por titulação coletiva ou individual, em conformidade com o Compromisso 31 da Nova Agenda Urbana; a provisão de infraestrutura e serviços essenciais, como saneamento básico, energia elétrica, transporte público e acesso à saúde e educação, alinhados ao ODS 11.1; a criação de subsídios habitacionais para famílias de baixa renda; e a instituição de uma Comissão Permanente de Regularização Fundiária, composta por representantes da sociedade civil e moradores, em consonância com o Compromisso 105 da Nova Agenda Urbana.
A regulamentação dos instrumentos centrais, como a desapropriação por títulos da dívida pública, o IPTU Progressivo no Tempo e as ZEIS, é imprescindível para assegurar a efetividade do direito à moradia em Uberlândia. Além disso, a inclusão de um plano abrangente para regularizar loteamentos irregulares representa um avanço normativo essencial para cumprir os compromissos estabelecidos na Agenda 2030 e na Nova Agenda Urbana. Com medidas que promovam segurança jurídica, infraestrutura básica e inclusão social, o município estará mais próximo de consolidar uma cidade sustentável, justa e inclusiva, assegurando dignidade e qualidade de vida para todos os seus cidadãos.
CONCLUSÃO
Concluir a presente análise exige não apenas a reafirmação da relevância dos instrumentos normativos consagrados pelo Estatuto da Cidade e pelo Plano Diretor de Uberlândia, mas também a reflexão crítica sobre as lacunas, desafios e possibilidades de efetivação de uma governança urbana que se alinhe ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao direito à cidade sustentável e ao planejamento humano inclusivo e eficiente.
O Estatuto da Cidade, ao promover uma ruptura paradigmática no Direito Urbanístico brasileiro, instituiu ferramentas essenciais para o equilíbrio entre a função social da propriedade e o desenvolvimento sustentável, amparando a organização das cidades em uma base normativa sólida e progressista. No entanto, a materialização desses preceitos, especialmente no contexto de Uberlândia, revela desafios estruturais e operacionais que comprometem a concretização plena de suas diretrizes. A análise crítica do Plano Diretor de 2006 expõe um cenário de potenciais inexplorados, entraves regulatórios e ausência de políticas públicas efetivamente integradas.
No âmbito do princípio da dignidade da pessoa humana, a garantia do direito à moradia adequada transcende o provimento de abrigo, constituindo-se como fundamento para a inclusão social, a segurança jurídica e o acesso equitativo aos serviços essenciais. Nesse sentido, a insuficiência de regulamentações operacionais para instrumentos como a desapropriação por títulos da dívida pública, o IPTU progressivo no tempo e as ZEIS evidencia a omissão do poder público em assegurar que as cidades sejam espaços de convivência justa e sustentável. Essa lacuna normativa não apenas viola preceitos constitucionais, mas também perpetua desigualdades socioespaciais, negando a parcela mais vulnerável da população o exercício pleno da cidadania.
O direito à cidade sustentável, por sua vez, exige que o planejamento urbano seja orientado pela justiça social e pela integração entre desenvolvimento econômico, proteção ambiental e inclusão social. Todavia, a análise revela que a implementação prática das diretrizes do Plano Diretor encontra-se fragilizada pela ausência de planejamento estratégico robusto e de mecanismos participativos que contemplem efetivamente as demandas locais. Essa desconexão entre teoria e prática compromete a realização dos objetivos da Nova Agenda Urbana e da Agenda 2030, os quais enfatizam a interdependência entre sustentabilidade, equidade e governança democrática.
Ademais, o planejamento humano demanda uma abordagem holística que articule instrumentos normativos com práticas de gestão inovadoras, promovendo a integração de políticas setoriais e a participação ativa da sociedade civil. No entanto, a análise das políticas urbanas de Uberlândia demonstra que o planejamento ainda está preso a estruturas tradicionais, incapazes de enfrentar os desafios contemporâneos, como a urbanização desordenada, a especulação imobiliária e a exclusão habitacional.
Portanto, a efetivação do direito à moradia digna e à cidade sustentável em Uberlândia exige uma mudança de paradigma que supere as limitações identificadas. Isso passa pela revisão do Plano Diretor, de modo a incluir diretrizes mais claras e detalhadas sobre a regularização fundiária, a ocupação dos vazios urbanos e a destinação prioritária de recursos para habitação de interesse social. A regulamentação de instrumentos já previstos, como a transferência de potencial construtivo e a desapropriação por títulos da dívida pública, é imperativa para garantir a função social da propriedade e promover o uso eficiente do solo urbano.
A construção de um planejamento urbano verdadeiramente humano, centrado no princípio da dignidade da pessoa humana, requer não apenas uma abordagem normativa, mas também a articulação de políticas públicas que promovam a inclusão, a equidade e a sustentabilidade. Dessa forma, Uberlândia pode consolidar-se como um exemplo paradigmático de cidade sustentável, justa e inclusiva, onde o direito à moradia digna e ao pleno exercício da cidadania deixa de ser uma utopia e se torna uma realidade concreta, reafirmando os compromissos assumidos em prol de uma urbanização ética e solidária.
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1Especialista em Direito Público; Advogada; Mestranda do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, debora_jael@ufu.br
2Doutora em Geografia; Arquiteta Urbanista; Professora Dra. PPGAU – FAUeD/UFU meliza.guerra@ufu.br