O DEBATE SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS: IMPLICAÇÕES LEGAIS E SOCIAIS

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11663582


Daiane De Almeida Castro1
Orientador: Prof. Júlio Cesar Boa Sorte Leão Gama2


RESUMO: O debate sobre a descriminalização do porte de drogas envolve diversas dimensões legais, sociais e de saúde pública. A descriminalização refere-se à retirada de sanções criminais para o porte de pequenas quantidades de drogas para uso pessoal, diferenciando-se da legalização, que implica na regulamentação completa da produção, distribuição e venda de drogas. Este artigo examina as implicações negativas dessa política, argumentando contra a descriminalização com base em evidências empíricas e experiências internacionais, além de análise de dados de relatórios de organizações de saúde e segurança pública. Exemplos de países como Portugal e Uruguai são considerados para comparação. Os resultados indicam que a descriminalização pode levar ao aumento no consumo de drogas, criando um ambiente mais permissivo e potencialmente incentivando o uso entre jovens e populações vulneráveis. Legalmente, a mudança pode complicar a aplicação da lei e gerar incertezas jurídicas, além de sobrecarregar os serviços de saúde e programas de reabilitação. A medida pode enfrentar resistência significativa de setores conservadores e da comunidade em geral, preocupados com o impacto social e a percepção de segurança pública. Socialmente, a descriminalização pode não resolver os problemas de estigma e discriminação, mantendo os usuários de drogas em situações de vulnerabilidade sem o suporte adequado. Estudos indicam que, em alguns casos, houve um leve aumento nas taxas de uso de drogas após a descriminalização, questionando a eficácia da política em reduzir os danos sociais e de saúde associados ao uso de drogas. Além disso, a redução na criminalização pode ser vista como um sinal de fraqueza na luta contra o tráfico de drogas, potencialmente enfraquecendo a posição do sistema de justiça criminal. A análise sugere que, em vez de descriminalizar, deve-se focar em fortalecer as políticas de prevenção, educação e tratamento, mantendo o porte de drogas como uma infração penal, mas com penas alternativas que não envolvam encarceramento. A experiência internacional sugere que a mudança para a descriminalização pode trazer mais riscos do que benefícios, exigindo um equilíbrio cuidadoso entre medidas de repressão e de saúde pública para enfrentar o problema das drogas de forma eficaz e segura.

PALAVRAS-CHAVE: Descriminalização; Política de Drogas; Saúde Pública; Segurança Pública.

ABSTRACT: The debate on the decriminalization of drug possession involves several legal, social and public health dimensions. Decriminalization refers to the removal of criminal sanctions for the possession of small quantities of drugs for personal use, differentiating itself from legalization, which implies the complete regulation of the production, distribution and sale of drugs. This article examines the negative implications of this policy, arguing against decriminalization based on empirical evidence and international experience, as well as analysis of data from reports from public health and safety organizations. Examples from countries such as Portugal and Uruguay are considered for comparison. The results indicate that decriminalization can lead to an increase in drug consumption, creating a more permissive environment and potentially encouraging use among young people and vulnerable populations. Legally, the change could complicate law enforcement and generate legal uncertainty, in addition to overloading health services and rehabilitation programs. The measure may face significant resistance from conservative sectors and the community in general, concerned about the social impact and the perception of public safety. Socially, decriminalization may not solve the problems of stigma and discrimination, keeping drug users in vulnerable situations without adequate support. Studies indicate that, in some cases, there was a slight increase in drug use rates after decriminalization, questioning the effectiveness of the policy in reducing the social and health harms associated with drug use. Furthermore, the reduction in criminalization could be seen as a sign of weakness in the fight against drug trafficking, potentially weakening the position of the criminal justice system. The analysis suggests that, instead of decriminalizing, we should focus on strengthening prevention, education and treatment policies, maintaining drug possession as a criminal offense, but with alternative penalties that do not involve incarceration. International experience suggests that the move towards decriminalization may bring more risks than benefits, requiring a careful balance between enforcement and public health measures to tackle the drug problem effectively and safely.

KEY WORDS: Decriminalization; Drug Policy; Public health; Public security.

1. INTRODUÇÃO

O debate em torno da descriminalização do porte de drogas é uma questão de significativa importância que transcende fronteiras geográficas e culturais, ecoando nas esferas jurídicas, sociais e de saúde pública em todo o mundo. Nas últimas décadas, a crescente atenção acadêmica e pública voltou-se para o impacto das políticas de drogas e a necessidade premente de reformas substanciais nesse domínio. Esta discussão complexa está em constante evolução, com diferentes países e regiões adotando abordagens variadas para enfrentar o desafio do consumo e da posse de substâncias ilícitas.3

No cerne deste estudo encontra-se a busca por uma compreensão abrangente das implicações legais e sociais decorrentes da descriminalização do porte de drogas. A descriminalização, conceito distinto da legalização, implica a redução ou remoção das penalidades criminais associadas à posse de drogas, enquanto mantém intactas as restrições legais e regulamentações vigentes. Esta pesquisa pretende explorar os fundamentos teóricos que sustentam essas políticas, bem como analisar as experiências práticas e os desafios enfrentados por países e regiões que optaram por adotar abordagens mais progressistas em contraste com aqueles que persistem em políticas de repressão.4

No contexto legal, foi investigado como a descriminalização afeta diretamente as taxas de prisões por porte de drogas, as implicações para o sistema de justiça criminal e as transformações nas penas e sanções associadas. Além disso, foi analisado a evolução histórica das políticas de drogas, visando estabelecer um sólido arcabouço conceitual para a pesquisa.5

Do ponto de vista social, a análise dos impactos foi aprofundada com ênfase na saúde pública e na redução de danos, bem como na prevenção de problemas de saúde relacionados ao uso de drogas. Nesse estudo também foi realizada uma análise da relação entre a descriminalização e a segurança pública, incluindo a possível influência sobre a criminalidade associada às drogas. Além disso, investigou-se as mudanças no comportamento de uso de drogas em contextos de descriminalização.6

Este artigo científico não apenas oferece uma análise abrangente das implicações legais e sociais da descriminalização do porte de drogas, mas também busca contribuir de forma substantiva para o debate público e a formulação de políticas informadas por evidências. Ao analisar criticamente experiências nacionais e internacionais, objetivou-se fornecer compreensão valiosa para o desenvolvimento de políticas de drogas mais eficazes, justas e voltadas para a saúde pública.

Em um momento em que a reforma das políticas de drogas desperta crescente interesse global, esta pesquisa se revela oportuna e relevante, promovendo uma compreensão mais profunda e informada das implicações dessas políticas nas sociedades contemporâneas. Nas seções subsequentes, foi explorado detalhadamente os aspectos teóricos e práticos relacionados à descriminalização do porte de drogas, com base em uma revisão crítica da literatura e análises empíricas.

2. MATERIAIS E MÉTODOS

Com relação à metodologia utilizada no presente estudo, adotará uma abordagem de pesquisa qualitativa, buscando compreender em profundidade as implicações legais e sociais da descriminalização do porte de drogas. A natureza exploratória dessa pesquisa qualitativa permitirá uma análise detalhada de casos específicos, bem como a compreensão das perspectivas dos diferentes atores envolvidos.7

Será realizada uma revisão bibliográfica abrangente para identificar e analisar estudos acadêmicos, jurisprudências, legislações e tratados internacionais relacionados à descriminalização do porte de drogas. Esta revisão fornecerá um contexto teórico sólido para a pesquisa.

Ademais, o presente estudo será conduzido respeitando os princípios éticos da pesquisa, incluindo o consentimento informado dos participantes, a confidencialidade dos dados e a transparência na divulgação dos resultados.

3. BREVE HISTÓRICO DA POLÍTICA ANTIDROGAS NO BRASIL

A trajetória da política antidrogas no Brasil é marcada por diversas fases e mudanças ao longo do tempo. Inicialmente, o enfoque era predominantemente voltado para a criminalização e repressão ao consumo e tráfico de drogas, refletindo uma abordagem alinhada com a perspectiva global da época, notadamente durante as décadas de 1960 e 1970.8

A década de 1980 testemunhou um endurecimento significativo das leis antidrogas, notadamente com a promulgação da Lei de Tóxicos (Lei 6.368/1976), que instituiu penas mais severas para crimes relacionados a drogas. O aumento das penas e a criminalização mais rigorosa foram uma resposta à crescente preocupação com o tráfico de entorpecentes e o consumo, especialmente em meio ao contexto da epidemia de crack que assolava algumas regiões do país.9

A virada do século trouxe consigo uma reavaliação gradual dessa abordagem, senão vejamos:

Num cenário marcado pelo movimento de reforma psiquiátrica, promulgação da Constituição de 1988, da Lei orgânica da Saúde, o Ministério da Saúde formula um conjunto de proposições de enfrentamento às questões relativas aos usuários de drogas com ações nas áreas de prevenção e tratamento.10

A constatação de que a criminalização exacerbava problemas sociais, contribuía para o encarceramento em massa e não abordava eficazmente questões de saúde pública levou a uma reflexão mais crítica sobre a eficácia dessa política. Nesse sentido, iniciativas de redução de danos e programas de tratamento passaram a ganhar mais espaço nas discussões sobre drogas.11

O século XXI também foi marcado por debates sobre a descriminalização e legalização de certas substâncias, com um foco crescente na necessidade de políticas mais equilibradas e baseadas em evidências científicas. Notavelmente, em 2006, a Lei de Drogas (Lei n° 11.343/2006) trouxe algumas mudanças ao propor alternativas penais para usuários, buscando uma abordagem menos focada na punição e mais voltada para a saúde.12

Entretanto, apesar dessas evoluções, o Brasil ainda enfrenta desafios significativos relacionados à política antidrogas. Questões como o tráfico, o consumo excessivo e as disparidades sociais persistem, exigindo uma abordagem contínua e abrangente que concilie aspectos de segurança, saúde pública e direitos individuais.13

O histórico da política antidrogas no Brasil reflete, portanto, um caminho dinâmico e em constante evolução, sujeito a influências globais e demandas internas em constante transformação.

4. FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA CRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS

A criminalização do porte de drogas no Brasil é respaldada por uma complexa estrutura jurídica. Originado de uma variedade de documentos legislativos, jurisprudências e tratados internacionais que constituem a base legal do país. Uma análise dessa estrutura jurídica evidencia uma série de elementos que conferem legitimidade à abordagem punitiva adotada.14

Como já foi exposto no capítulo anterior, a criminalização das drogas percorreu um longo caminho até os dias atuais que gozam de lei específica. Diante disso é importante destacar:

Afinal, quando inventaram esse proibicionismo? Tudo indica que se trata de um fenômeno que aparece a partir do século XX (KARAM, 2009, p. 3). Apesar de haver proibições e até criminalização de drogas no Brasil desde o século XVI,2 o proibicionismo das drogas como ideologia, como política criminal, só é criado no início do século passado.15

A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) é o principal instrumento legal que criminaliza o porte de substâncias ilícitas. Essa legislação estabelece critérios específicos para distinguir usuários de traficantes, embora essa distinção muitas vezes suscite controvérsias e interpretações divergentes nos tribunais. A imposição de penalidades severas, como prisão, reflete a perspectiva de repressão adotada pelo sistema legal brasileiro.16

A jurisprudência relacionada ao tema contribui para a consolidação da interpretação das leis sobre drogas. Decisões judiciais proferidas em diferentes instâncias estabelecem precedentes que influenciam diretamente a aplicação da legislação. A ênfase na repressão ao tráfico de drogas, muitas vezes, resulta em penas rigorosas e em uma abordagem mais incisiva em relação aos casos de porte.17

Além das normas nacionais, o Brasil é signatário de tratados internacionais que orientam suas políticas de combate ao tráfico de drogas. Acordos como a Convenção Única de Entorpecentes de 1961 e a Convenção de Viena de 1988 estabelecem diretrizes globais que influenciam a legislação nacional, reforçando a orientação de repressão adotada pelo país.18

Os fundamentos para a criminalização do porte de drogas no Brasil refletem, assim, uma abordagem legal centrada na repressão ao tráfico e consumo de substâncias ilícitas.19

5. DISPARIDADES SOCIAIS E CRIMINALIZAÇÃO

A abordagem jurídica que criminaliza o porte de drogas não se desenrola de maneira homogênea na sociedade, tendo repercussões distintas e, muitas vezes, desproporcionais sobre diferentes grupos sociais. Este contexto dá origem a disparidades sociais marcantes, fomentando inequidades em termos de gênero, etnia e estrato socioeconômico.20

As desigualdades de gênero nesse cenário se revelam mediante análise das abordagens distintas entre homens e mulheres no sistema legal. Estudos indicam que as mulheres frequentemente enfrentam julgamentos mais severos e penalidades mais rigorosas em casos relacionados ao porte de drogas, refletindo uma desigualdade que merece investigação mais aprofundada.21

Sobre o tema, a doutrina assevera:

Dentre os países da América Latina, o Brasil está caracterizado por grandes desigualdades na distribuição de renda entre sua população, ocupando a 70ª posição na classificação de países, segundo o índice de desenvolvimento humano (IDH). Quanto às drogas, é considerado país de consumo médio, usado eminentemente como um país de trânsito(1-2). A legislação brasileira, relacionada às drogas, evoluiu de sistema totalmente proibicionista para um sistema menos repressor no que diz respeito aos usuários de drogas. O objetivo central deste artigo é identificar a percepção dos familiares e pessoas próximas a usuários de drogas da cidade de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, Brasil, sobre as leis e políticas relacionadas às drogas no país. Estudos (3-5) sobre o uso de drogas ilícitas em diferentes grupos da população e seus efeitos para os usuários, família e sociedade foram publicados previamente por este periódico. Nesse sentido, esta pesquisa inova ao apresentar a perspectiva de familiares e pessoas próximas a usuários de drogas ilícitas sobre as leis e políticas públicas que abordam as drogas no Brasil.22

No âmbito étnico-racial, observa-se uma injustiça sistemática. Minorias étnicas muitas vezes enfrentam uma aplicação mais incisiva da lei de drogas, resultando em taxas de prisão desproporcionalmente altas em comparação com grupos majoritários. A análise desse fenômeno requer uma compreensão das estruturas sociais subjacentes que perpetuam essas disparidades e alimentam um ciclo de desigualdade.23

As desigualdades socioeconômicas também se manifestam na interseção entre criminalização e classe social. Indivíduos de estratos socioeconômicos mais baixos frequentemente enfrentam consequências mais graves, revelando uma dimensão econômica nesse fenômeno. A falta de acesso a recursos jurídicos adequados e a condições socioeconômicas precárias contribuem para a perpetuação dessas disparidades.24

Além disso, é necessário considerar as disparidades geográficas que podem surgir em áreas urbanas e rurais. As políticas de criminalização podem impactar de maneira desigual comunidades em diferentes contextos, influenciando a eficácia percebida e a aplicação real das leis de drogas.25

5. EFEITOS DA CRIMINALIZAÇÃO NA SOCIEDADE

No âmbito da saúde pública, a criminalização se traduz em desafios significativos. A repressão ao porte de drogas muitas vezes resulta em práticas de consumo clandestinas e inseguras, exacerbando riscos à saúde dos usuários. A ausência de um ambiente regulamentado contribui para a falta de acesso a programas de prevenção, tratamento e redução de danos, agravando as consequências negativas para a saúde individual e coletiva.26

O sistema de justiça também experimenta efeitos substanciais. A criminalização do porte de drogas contribui significativamente para a sobrecarga dos sistemas judiciais, levando a um aumento nas taxas de encarceramento. A aplicação rigorosa das leis de drogas pode resultar em penas desproporcionais, impactando de maneira desigual comunidades vulneráveis e alimentando um ciclo de encarceramento massivo.27

No que tange à segurança, a criminalização muitas vezes desencadeia efeitos colaterais indesejados. A repressão policial intensificada em áreas afetadas pelo comércio de drogas ilícitas pode resultar em tensões comunitárias, desconfiança nas instituições policiais e até mesmo violência. O enfoque na criminalização pode, paradoxalmente, comprometer a segurança pública ao invés de fortalecê-la.28

Ainda sobre as implicações da comercialização e porte de drogas na segurança pública, Zaluar (2007) aduz que:

Surgiu, então, uma nova organização complexa, diversificada e muito bem armada, na qual os conflitos comerciais e pessoais foram resolvidos com armas de fogo, e na qual foram criados um culto viril e exibições violentas de poder. Isso criou as condições que atraíram muitos jovens pobres a se envolver nessa guerra mortal entre traficantes, mas que permaneceu restrita a algumas áreas da cidade. Contrariamente às máfias ítalo-americanas, essa organização no Rio de Janeiro jamais contou com os laços estáveis de lealdade que existem entre pessoas relacionadas por parentesco ritual ou de sangue. Se havia algum no jogo do bicho, o tráfico de drogas, como aliás também ocorreu na máfia italiana facilitando a sua desagregação (Luppo, 2002), tornou muito mais difícil de ser mantido qualquer elo de lealdade pessoal, vertical ou horizontal. Os conflitos, deveras, são muito mais comuns para acertar as contas e distribuir a riqueza e o poder. Hoje, então, o comércio de drogas tornou-se sinônimo de guerra em muitos municípios do Brasil, mas com diferenças regionais entre cidades e entre bairros na mesma cidade. No Rio, mesmo que não completamente coordenado por uma hierarquia mafiosa, o comércio de drogas tem um arranjo horizontal eficaz pelo qual, se faltam drogas ou armas de fogo em uma favela, essa imediatamente as obtém das favelas aliadas. Essas quadrilhas ou comandos conciliam os dispositivos de uma rede geograficamente definida, que inclui pontos centrais ou de difusão, e outros que se estabelecem na base da reciprocidade horizontal. Nessa cidade, as armas de fogo são mais facilmente obtidas por causa dos portos e vários aeroportos, assim como os mais importantes depósitos de armamentos das Forças Armadas que estão dentro do seu território. Muitos furtos ocorreram e continuam ocorrendo em tais depósitos, onde não impera o controle de estoque apropriado. Consequentemente, o tráfico de drogas tornou-se mais facilmente militarizado.29

Além disso, a criminalização pode agravar as desigualdades sociais existentes. Grupos marginalizados são frequentemente impactados de maneira mais severa, ampliando as brechas sociais já presentes. Essa dinâmica contribui para a perpetuação de ciclos de desigualdade e limita as oportunidades de reabilitação e reinserção social.30

6. DESCRIMINALIZAÇÃO DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES: PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS NAS DISCUSSÕES LEGISLATIVAS

A discussão contemporânea sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio ganha destaque à luz da recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 24 de março de 2023, no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 635659, com repercussão geral (Tema 506). Este processo judicial tem como objeto a análise da constitucionalidade da criminalização do porte de maconha para uso pessoal, suscitando considerável debate.31

No mencionado julgamento, registra-se que até o momento, cinco votos convergem pela inconstitucionalidade da criminalização do porte de maconha para consumo próprio, enquanto um voto posiciona-se pela validade da previsão contida no artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Essa decisão reflete um cenário jurídico em evolução, marcado por diferentes perspectivas sobre a abordagem legal em relação ao uso individual de substâncias entorpecentes.32

Ao mesmo tempo, é pertinente ressaltar a discussão sobre a competência do Poder Judiciário em lidar com essa temática. A decisão do STF suscita indagações sobre a divisão de competências entre os poderes constituídos. Tradicionalmente, questões relacionadas à elaboração e revisão de leis, como a descriminalização do porte de drogas, são atribuídas ao Poder Legislativo. O debate sobre a competência destaca a necessidade de uma abordagem interdisciplinar e de diálogo entre os diferentes poderes para alcançar decisões mais alinhadas com as complexidades sociais e de saúde pública associadas à questão das drogas.33

Portanto, a recente decisão do STF no RE 635659 destaca não apenas as nuances da discussão sobre a descriminalização do porte de drogas, mas também levanta questões essenciais sobre a divisão de competências entre os poderes e a necessidade de uma abordagem colaborativa para lidar com temas complexos que permeiam a sociedade.34

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A análise das implicações legais e sociais da descriminalização do porte de drogas revela um cenário complexo, onde os potenciais benefícios são acompanhados por desafios significativos. Este estudo focou nas possíveis consequências negativas da descriminalização, argumentando que a política pode trazer mais riscos do que vantagens para a sociedade.

A descriminalização pode levar a um aumento no uso de drogas, especialmente entre jovens e populações vulneráveis, criando um ambiente mais permissivo e potencialmente incentivando o consumo. Evidências de países que adotaram essa política mostram resultados mistos, mas há indicações de que a descriminalização pode não conter o aumento nas taxas de uso de drogas. A mudança na legislação pode complicar a aplicação da lei, gerando incertezas jurídicas e dificuldades na definição clara do que constitui uso pessoal versus tráfico. Isso pode enfraquecer o sistema de justiça criminal, criando lacunas que podem ser exploradas por redes de tráfico de drogas.

Além disso, a política de descriminalização pode sobrecarregar os serviços de saúde e programas de reabilitação, que podem não estar adequadamente preparados para lidar com um aumento no número de usuários de drogas buscando tratamento. Isso pode levar a uma redução na qualidade e na disponibilidade dos serviços oferecidos. A descriminalização, por si só, pode não resolver os problemas de estigma e discriminação enfrentados pelos usuários de drogas. Sem uma infraestrutura robusta de apoio social e programas educativos eficazes, os usuários podem continuar em situações de vulnerabilidade.

A percepção de que a descriminalização enfraquece a luta contra o tráfico de drogas pode diminuir a confiança pública no sistema de justiça criminal e nas políticas de segurança pública. Além disso, pode enviar um sinal de tolerância em relação ao uso de drogas, potencialmente minando esforços de prevenção.

Diante dos desafios identificados, recomenda-se uma abordagem equilibrada que combine medidas de repressão com políticas de saúde pública e programas educativos. Manter o porte de drogas como uma infração penal, mas implementar penas alternativas ao encarceramento, pode ser uma estratégia mais eficaz. É crucial fortalecer as políticas de prevenção, tratamento e reintegração social, garantindo que os recursos necessários estejam disponíveis para apoiar os usuários de drogas de forma abrangente e eficaz. Além disso, é importante continuar monitorando e avaliando as políticas implementadas, ajustando-as conforme necessário com base em evidências empíricas e nas experiências de outros países. A colaboração entre diferentes setores da sociedade, incluindo governos, organizações de saúde e comunidades, é essencial para desenvolver soluções sustentáveis e eficazes para os desafios associados ao uso de drogas.


3 BOITEUX, L. Brasil: reflexões críticas sobre uma política de drogas repressiva. Revista Sur, v. 12, n. 21, 2015. Disponível em <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/95772/brasil_reflexoes_criticas_boiteux.pdf > Acesso em 10 de mar. de 2024.

4 VENTURA, C. A. A. et al. Políticas e leis sobre drogas ilícitas no Brasil e a perspectiva de familiares e pessoas próximas a usuários de drogas: estudo na Cidade de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 17, p. 810-816, 2009.

5 LIMA, R. de C. C. O problema das drogas no Brasil: revisão legislativa nacional. Libertas, v. 10, n. 1, 2010. Disponível em< https://periodicos.ufjf.br/index.php/libertas/article/view/18199> . Acesso em 12 de abr. de 2024.

6 GOMES-MEDEIROS, D. et al. Política de drogas e Saúde Coletiva: diálogos necessários. Cadernos de Saúde Pública, v. 35, 2019. Disponível em< https://www.scielo.br/j/csp/a/JJ5FM4Lk4RctsyTwbhFpfdk/>. Acesso em 12 de abr. de 2024.

7 MOTTA-ROTH, D.; HENDGES, G. H. Produção textual na universidade. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.

8 DOS ANJOS, R. S. Porte de drogas para consumo pessoal e tráfico de drogas na legislação penal brasileira e a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. Revista de Estudos Jurídicos, v. 1, n. 26, 2016.

9 Ibidem.

10 GARCIA, M. L. T; LEAL, F. X.; ABREU, C. C. A política antidrogas brasileira: velhos dilemas. Psicologia & Sociedade, v. 20, p. 270, 2008. Disponível em< https://www.scielo.br/j/psoc/a/hjfwnNg6nTb3nZC6qd3PVbC/abstract/?lang=pt>. Acesos em 10 de abr. de 2024.

11 Ibidem.

12 BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Nova lei sobre drogas. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 28 out. 2023.

13 GARCIA; ABREU, op. cit.

14 BRANDÃO, G. S. A criminalização das drogas no Brasil: uma genealogia do proibicionismo. Revista de Direito, v. 9, n. 2, p. 87-117, 2017. Disponível em< https://periodicos.ufv.br/revistadir/article/view/1719> Acesso em 10 de mar. de 2024.

15 Ibidem., p. 94.

16 BOITEUX, op. cit.

17 VENTURA, op. cit.

18 BRANDÃO, op. cit.

19 Ibidem.

20 VENTURA, op. cit.

21 Ibidem.

22 Ibidem, p. 911.

23 Idem.

24 LIMA, op. cit.

25 VENTURA, op. cit.

26 GOMES-MEDEIROS, op. cit.

27 PAIXÃO, A. L. A criminalização do tóxico. O Alferes, v. 12, n. 41, 1994.

28 ZALUAR, A. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública. Estudos avançados, v. 21, p. 31-49, 2007.

29 ZALUAR, op. cit., p. 45.

30 LIMA, op. cit.

31 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Notícias STF. STF tem cinco votos para afastar criminalização do porte de maconha para consumo próprio. Disponível em:https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=512815. Acesso em: 30 nov. 2023.

32 Idem.

33 Idem.

34 Idem.

REFERÊNCIAS

BOITEUX, Luciana. Brasil: reflexões críticas sobre uma política de drogas repressiva. Revista Sur, v. 12, n. 21, 2015. Disponível em <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/95772/brasil_reflexoes_criticas_boiteux.pdf > Acesso em 10 de mar. de 2024.

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1Graduanda do curso de Direito do Centro Universitário FG – UNIFG.

2Docente do curso de Direito do Centro Universitário FG – UNIFG.