O CREDENCIAMENTO NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES: UMA PORTA PARA A EFICIÊNCIA E A OPORTUNIDADE

ACCREDITATION IN THE NEW PUBLIC PROCUREMENT LAW: A GATEWAY TO EFFICIENCY AND OPPORTUNITY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202509042243


Pompilio Rodrigues Donato1


Resumo: Este artigo aborda o credenciamento como um procedimento auxiliar nas licitações e contratações públicas, conforme a Lei nº 14.133/2021. Analisa-se sua definição técnica e natureza jurídica, traçando sua evolução desde a Lei nº 8.666/1993, onde não possuía previsão expressa, até sua formalização como hipótese de inexigibilidade de licitação e procedimento auxiliar. Detalhamos as três principais situações de sua aplicação: contratações paralelas e não excludentes, com seleção a critério de terceiros, e em mercados fluidos. Descreve-se o rito procedimental, destacando a importância do edital de credenciamento e os requisitos de habilitação. Abordamos as significativas vantagens em termos de transparência, celeridade e economia, sem ignorar os desafios de controle e fiscalização. Comparamos o credenciamento com outros instrumentos auxiliares, como a pré-qualificação e o Sistema de Registro de Preços, ressaltando sua função estratégica na modernização da gestão pública. O objetivo é oferecer um guia prático e abrangente para gestores e empreendedores, reforçando a importância do conhecimento jurídico para a segurança e a credibilidade dos negócios.

Palavras-chave: licitações; credenciamento; Lei 14.133/2021; contratações públicas; inexigibilidade

Abstract: This article addresses accreditation as a auxiliary procedure in public procurement, according to Law No. 14.133/2021. It analyzes its technical definition and legal nature, tracing its evolution from Law No. 8.666/1993, where it had no express provision, to its formalization as a hypothesis of ineligibility for bidding and an auxiliary procedure. We detail the three main situations of its application: parallel and non-exclusive contracts, contracts with third-party selection, and contracts in fluid markets. The procedural rite is described, highlighting the importance of the accreditation edict and qualification requirements. We cover the significant advantages in terms of transparency, speed, and economy, without ignoring the challenges of control and oversight. We compare accreditation with other auxiliary instruments, such as pre-qualification and the Price Registration System, emphasizing its strategic role in modernizing public management. The aim is to offer a practical and comprehensive guide for managers and entrepreneurs, reinforcing the importance of legal knowledge for business security and credibility.

Keywords: bidding; accreditation; Law 14.133/2021; public procurement; ineligibility

1 INTRODUÇÃO

No cenário complexo e dinâmico das contratações públicas no Brasil, a inovação e a busca por maior eficiência são imperativos. Há um desejo crescente de simplificar processos sem comprometer a transparência e a segurança jurídica. É nesse contexto que a Lei nº 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC), surge como um marco, trazendo não apenas novas modalidades licitatórias, mas também formalizando e aprimorando procedimentos auxiliares que já se mostravam essenciais na prática. Entre eles, o credenciamento se destaca como uma ferramenta poderosa e adaptável.

Por muito tempo, o credenciamento foi uma figura construída e aplicada com base em interpretações doutrinárias e decisões dos Tribunais de Contas, especialmente o TCU, preenchendo uma lacuna legal que a Lei nº 8.666/1993 não cobria expressamente. A falta de um regramento específico em nível federal gerava incertezas, mas a necessidade prática de contratar múltiplos fornecedores para serviços padronizados, onde a competição inviável era a regra, impulsionou seu reconhecimento. Agora, com a NLLC, esse instituto ganha assento legal claro, o que confere maior segurança jurídica e um horizonte de oportunidades tanto para a Administração Pública quanto para o setor privado.

Este artigo se aprofunda no credenciamento, desvendando seu conceito, sua jornada legislativa, suas hipóteses de aplicação e os passos para sua correta implementação. Abordaremos como ele se diferencia de outros procedimentos auxiliares e, mais importante, como ele pode ser um vetor de crescimento, eficiência e transparência para a gestão de negócios e as contratações públicas no Brasil, reforçando a visão de que a legislação, quando bem compreendida e aplicada, transforma desafios em oportunidades de sucesso.

2 O CREDENCIAMENTO: CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

Para compreendermos a fundo o credenciamento, é essencial partir de sua definição e entender sua essência jurídica. A Lei nº 14.133/2021, no seu art. 6º, inciso XLIII, o define de forma clara como:

BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, art. 6º, XLIII: “processo administrativo de chamamento público em que a Administração Pública convoca interessados em prestar serviços ou fornecer bens para que, preenchidos os requisitos necessários, se credenciem no órgão ou na entidade para executar o objeto quando convocados”

Essa definição legal, embora concisa, revela características fundamentais que o distinguem de outras formas de contratação pública:

  • Chamamento Público e Adesão Voluntária: O credenciamento inicia-se com uma convocação aberta da Administração, permitindo que qualquer interessado que preencha os requisitos pré-definidos se inscreva voluntariamente. Não se trata de uma disputa competitiva tradicional onde se busca a “melhor” proposta entre as apresentadas por um número limitado de concorrentes. Pelo contrário, o objetivo é maximizar a quantidade de fornecedores aptos.
  • Ausência de Competição Excludente: A lógica central do credenciamento reside na “inviabilidade de competição” (BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, art. 74, IV). No entanto, essa inviabilidade não decorre da existência de um único fornecedor ou da singularidade do objeto (como em outras hipóteses de inexigibilidade). Ela surge da necessidade ou do interesse da Administração em contratar todos os interessados que atendam aos requisitos estabelecidos, sem exclusão. O foco não é a seleção de um vencedor, mas a formação de um universo de potenciais contratados. Como observado pelo Tribunal de Contas da União, “o processo de credenciamento é adotado quando não é viável ou adequado realizar uma licitação para selecionar o fornecedor” (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações & Contratos Administrativos, 2024). Joel de Menezes Niebuhr (2013) complementa que o credenciamento é empregado quando a Administração busca uma “grande quantidade de parcerias com pluralidade de contratos”. Carlos Ari Sundfeld (1995, p. 42) já sinalizava essa peculiaridade ao afirmar que “o credenciamento não pressupõe disputa, que é desnecessária, pois todos os interessados aptos serão aproveitados”.
  • Critérios Objetivos e Isonômicos: A qualificação dos interessados e a eventual convocação para a execução do objeto se dão por meio de critérios estritamente objetivos, garantindo tratamento isonômico. A avaliação se limita a verificar se o potencial credenciado atende aos padrões exigidos, sem juízo de valor comparativo. O Manual de Licitações & Contratos Administrativos do TCU ressalta que o princípio do julgamento objetivo no credenciamento implica julgar “apenas se o pretenso credenciado atende a todos os requisitos, os quais devem ser critérios objetivos de qualificação, sem avaliar seus aspectos pessoais” (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações & Contratos Administrativos, 2024).
  • Inexigibilidade de Licitação por Razão de Pluralidade: A natureza jurídica do credenciamento, enquanto hipótese de inexigibilidade, é peculiar. A inviabilidade de competição não reside na unicidade do fornecedor, mas na própria pluralidade desejada pela Administração. A Lei nº 14.133/2021, em seu art. 74, inciso IV, explicitamente estabelece que é inexigível a licitação para “objetos que devam ou possam ser contratados por meio de credenciamento”. O Superior Tribunal de Justiça (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2019a), mesmo antes da NLLC, reconhecia essa “inviabilidade de competição entre os credenciados”.

Em suma, o credenciamento é um procedimento auxiliar que, embora dispense a licitação formal, não abre mão dos princípios que regem a Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Essa abordagem inovadora permite uma gestão pública mais adaptável e responsiva às demandas, transformando a ausência de competição em uma estratégia deliberada para otimizar resultados.

3 A EVOLUÇÃO DO CREDENCIAMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A história do credenciamento no Brasil é um testemunho da capacidade do Direito de se adaptar às realidades e necessidades da Administração Pública, mesmo na ausência de regramento legal explícito. Por muitos anos, este instituto floresceu no campo da doutrina e da jurisprudência, antes de ser formalmente incorporado à Lei.

3.1 O Credenciamento na Vigência da Lei nº 8.666/1993

Durante a vigência da Lei nº 8.666/1993, o credenciamento não possuía uma base normativa direta em nível federal. Sua aplicação era um reflexo da interpretação extensiva das hipóteses de inexigibilidade de licitação e da busca por soluções mais eficientes para certas demandas públicas.

3.1.1 A Construção Jurisprudencial e Doutrinária

A ausência de previsão legal específica na Lei nº 8.666/1993 não impediu que o credenciamento se desenvolvesse como uma prática administrativa. Doutrinadores e juristas, diante de situações concretas que não se encaixavam perfeitamente nas modalidades tradicionais de licitação, nem nas hipóteses de dispensa por valor ou exclusividade, passaram a argumentar pela sua aplicação com base no caput do art. 25 da Lei nº 8.666/1993, que trata da inexigibilidade de licitação por inviabilidade de competição.

O cerne do argumento era que, em certas situações, o interesse público não residia em selecionar o “melhor” entre poucos concorrentes, mas sim em ter o maior número possível de prestadores de serviços ou fornecedores de bens aptos. Nesses casos, a competição, no sentido de “escolher um em detrimento de outros”, seria não apenas inviável, mas contraproducente ao interesse público.

FRANÇA, 2015 “O sistema de credenciamento por ser um instituto relativamente novo, não possui grandes debates pela doutrina de peso, embora estes autores reconheçam a sua existência. Os grandes confrontos da matéria têm ficado a cargo dos órgãos da Administração na gestão dos interesses públicos e suas Consultorias Jurídicas, bem como dos Tribunais de Contas.”

Essa construção teórica pavimentou o caminho para que órgãos de controle, como o TCU, legitimassem a prática, desde que observados princípios rigorosos de publicidade, isonomia e objetividade.

3.1.2 Primeiras Aplicações e a Decisão Pioneira do TCU

As primeiras aplicações do credenciamento surgiram em áreas onde a pluralidade de prestadores era essencial para o atendimento da demanda pública. Casos notórios incluíam:

  • Serviços de Saúde: Contratação de hospitais, clínicas e laboratórios para a rede de assistência a servidores ou usuários do SUS. A ideia era que quanto mais prestadores credenciados, maior a capilaridade e o acesso ao serviço.
  • Serviços de Treinamento e Capacitação: Contratação de profissionais para ministrar cursos e treinamentos, onde a Administração buscava uma rede de especialistas sem a necessidade de um processo licitatório individual para cada turma ou tema.
  • Serviços Bancários: Credenciamento de instituições financeiras para o processamento de folhas de pagamento, garantindo que o servidor tivesse a liberdade de escolha do seu banco.

A Decisão nº 656/1995 do Plenário do Tribunal de Contas da União (BRASIL. Tribunal de Contas da União, 1995) é um marco fundamental nessa evolução. Em resposta a uma consulta do Ministério da Educação sobre a contratação de serviços médicos assistenciais para servidores, o TCU se manifestou favoravelmente à adoção do credenciamento, mesmo na ausência de regulamentação específica, desde que observados princípios básicos da Administração Pública. Essa decisão abriu precedentes e consolidou a prática em diversas esferas da Administração.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Decisão nº 656/1995, 1995 “responder à Autoridade Consulente que, na falta de regulamentação específica da matéria tratada no art. 230 da Lei nº 8.112/90, os órgãos/entidades dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo poderão, a seu critério, adotar sistema próprio para a prestação de serviços de assistência complementar à saúde dos servidores, inclusive o de credenciamento de profissionais e instituições médico-hospitalares, com fulcro no art. 25 da Lei nº 8.666/93, observados os princípios básicos da administração pública.”

Essa decisão não apenas validou o credenciamento como hipótese de inexigibilidade, mas também estabeleceu diretrizes e requisitos mínimos para sua implementação, como a ampla divulgação do chamamento, a fixação de critérios e exigências mínimas para o credenciamento, a definição criteriosa da tabela de preços e a vedação de sobretaxas. A partir daí, o instituto foi sendo moldado por sucessivas decisões do TCU e pareceres jurídicos que buscavam conferir-lhe a necessária segurança e transparência.

3.2 A Consolidação Formal na Lei nº 14.133/2021

A Lei nº 14.133/2021 representa o ápice dessa evolução. Ela não apenas reconhece o credenciamento, mas o eleva à categoria de “procedimento auxiliar” (BRASIL. Lei nº 14.133, de 2021, art. 78, I), ao lado de outros mecanismos como a pré-qualificação e o registro de preços. Essa formalização em nível de lei federal traz maior segurança jurídica e uniformidade na aplicação do instituto em todo o país.

A NLLC detalha as hipóteses de aplicação do credenciamento (art. 79) e estabelece diretrizes claras para o seu procedimento (art. 79, parágrafo único), incluindo requisitos de publicidade, critérios de distribuição de demanda e vedação de subcontratação sem autorização. Essa mudança de paradigma do credenciamento, de uma figura construída pela jurisprudência para um instituto com base legal explícita, reflete a busca por uma Administração Pública mais eficiente, transparente e menos burocrática. Assim a clareza legislativa do credenciamento agora contribui para a respaldar da legalidade e da praticidade.

3.3 Comparativo Detalhado: Credenciamento na Lei nº 8.666/1993 vs. Lei nº 14.133/2021

Para compreender plenamente a relevância das mudanças trazidas pela NLLC, é fundamental analisar as diferenças entre o credenciamento sob a ótica da Lei nº 8.666/1993 e sua versão consolidada na Lei nº 14.133/2021. Este comparativo destaca a transição de um instituto informal para um procedimento formalizado e mais robusto.

CaracterísticaLei nº 8.666/1993 (Implícito)Lei nº 14.133/2021 (Explícito)
Base Legal PrincipalConstrução doutrinária e jurisprudencial (interpretação do art. 25, caput, de inexigibilidade por inviabilidade de competição).Previsão expressa no art. 6º, XLIII (definição), art. 74, IV, art. 78, I (procedimento auxiliar), e art. 79 (hipóteses de aplicação).
Status JurídicoFigura atípica, reconhecida como hipótese de inexigibilidade de licitação.Procedimento auxiliar formalizado das licitações e contratações.
Segurança JurídicaMenor, devido à ausência de texto legal explícito, gerando debates e litígios sobre sua aplicação. Dependente de pareceres e decisões casuísticas.Maior, com regras claras, detalhamento de hipóteses e procedimentos, reduzindo a subjetividade.
Hipóteses de AplicaçãoGeneralista, baseada na inviabilidade de competição por pluralidade de fornecedores aptos. Exemplos: serviços de saúde, treinamentos.Especificação de três hipóteses: (1) paralela e não excludente; (2) com seleção a critério de terceiros; (3) em mercados fluidos (Art. 79).
Fases ProcedimentaisMenos formalizadas, baseadas nas diretrizes do TCU. Etapas essenciais: chamamento público, habilitação, contratação.Fases bem definidas (preparatória, divulgação do edital, registro do requerimento, habilitação, recursal, divulgação da lista de credenciados) (Art. 5º do Decreto nº 11.878/2024).
PublicidadeRecomendação de ampla divulgação em DOU e jornais de grande circulação (Decisão TCU nº 656/1995).Obrigatória no PNCP, permitindo cadastramento permanente. Reforço da transparência ativa (Art. 79, parágrafo único, I, e Art. 174).
Critérios de PreçoFixação prévia de tabelas de preços, baseadas em pesquisa de mercado e aceitação dos prestadores. Necessidade de justificativa de preços.Edital define valores fixados ou percentual de desconto. Em mercados fluidos, registro de cotações no momento da contratação (Art. 79, parágrafo único, III e IV).
Controle e FiscalizaçãoDependente da interpretação dos órgãos de controle e da comprovação da isonomia e da não seleção. Maior risco de desvirtuamento.Maior clareza nos mecanismos de controle. Definição de responsabilidades (agente/comissão de contratação) e sanções (Art. 156, 158).
FlexibilidadeAdaptável via interpretação jurídica para novas situações.Flexibilidade incorporada na lei, com previsão de ajuste para mercados dinâmicos.

A transição de um instituto de “achado jurisprudencial” para uma figura “expressa em lei” é um avanço significativo. Ela reflete a evolução da maturidade da gestão pública brasileira, que, como a boa contabilidade e o direito empresarial, busca a previsibilidade e a otimização dos processos. A solidez agora se estende à base legal das contratações públicas.

4 HIPÓTESES DE APLICAÇÃO DO CREDENCIAMENTO NA LEI Nº 14.133/2021

A Lei nº 14.133/2021 é bastante específica ao elencar as hipóteses em que o credenciamento pode ser utilizado, superando a generalidade que marcava sua aplicação anterior. O art. 79 da NLLC define três cenários distintos, cada um com sua lógica própria de inviabilidade de competição e sua finalidade estratégica para a Administração Pública:

4.1 Contratação Paralela e Não Excludente

Esta é a hipótese mais clássica e intuitiva do credenciamento, sendo a mais amplamente aplicada e compreendida historicamente. Ocorre quando é viável e, principalmente, vantajoso para a Administração a realização de contratações simultâneas em condições padronizadas. A essência aqui é que a demanda da Administração é de tal magnitude ou natureza que pode ser atendida por múltiplos fornecedores, e o interesse público é maximizado com a pluralidade de contratados.

BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, Art. 79, I “paralela e não excludente: caso em que é viável e vantajosa para a Administração a realização de contratações simultâneas em condições padronizadas;”

Nesse modelo, a “inviabilidade de competição” reside no fato de que não há uma seleção para “excluir” ou “dispensar” ninguém, pois todos os interessados que preencham os requisitos previamente estabelecidos são credenciados e podem ser contratados. Não se busca um único vencedor, mas sim a formação de um universo de potenciais prestadores. A competição, se existisse, seria apenas para ver quem seria o único a fornecer, o que contraria o objetivo de ter múltiplos fornecedores.

Exemplos práticos e corriqueiros incluem:

  • Serviços médicos e laboratoriais: Hospitais, clínicas e laboratórios que atendem servidores públicos ou a população. A Administração busca ter a maior rede possível de prestadores para garantir capilaridade, acesso e a liberdade de escolha do usuário. O próprio TCU, em seu Manual de Licitações & Contratos Administrativos (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações & Contratos Administrativos, 2024), cita o credenciamento de médicos e hospitais como exemplo de inviabilidade de competição.
  • Manutenção veicular: Credenciamento de oficinas mecânicas para a manutenção de frotas de veículos públicos. O volume e a dispersão geográfica dos veículos justificam múltiplos prestadores, cada um atendendo uma fração da demanda.
  • Instituições financeiras mandatárias: Credenciamento de bancos para a gestão de folhas de pagamento, onde diversas instituições podem oferecer o mesmo serviço, e a escolha pode ser do servidor.
  • Serviços de treinamento e capacitação: Contratação de profissionais para ministrar cursos a servidores, permitindo que vários instrutores ou empresas sejam credenciados para atender às diversas necessidades de treinamento.

A Lei nº 14.133/2021, ao formalizar essa hipótese, reconhece que a maximização da concorrência, nesse caso, se dá pela pluralidade de ofertas qualificadas, e não pela disputa de preços entre poucos.

4.2 Contratação com Seleção a Critério de Terceiros

Esta modalidade é particularmente interessante por transferir a decisão final de escolha para o beneficiário direto do serviço ou bem. A Administração atua como um “curador” da qualidade e das condições, mas a seleção do fornecedor específico é descentralizada.

BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, Art. 79, II “com seleção a critério de terceiros: caso em que a seleção do contratado está a cargo do beneficiário direto da prestação;”

Nessa lógica, a inviabilidade de competição reside no fato de que a Administração não tem a prerrogativa de escolher o prestador, pois a decisão cabe ao terceiro (o usuário/beneficiário). A competição tradicional seria ineficaz, já que a preferência pessoal ou a conveniência do usuário são determinantes. A Administração define as condições e os parâmetros de qualidade e preço, e o usuário escolhe entre os credenciados.

Exemplos claros incluem:

  • Serviços de Saúde ou Psicológicos: O paciente escolhe o médico, dentista ou psicólogo credenciado que melhor atenda às suas necessidades, seja por proximidade, recomendação ou especialidade.
  • Serviços Jurídicos: O cidadão pode escolher um advogado credenciado para sua defesa ou representação em processos específicos, conforme as regras estabelecidas pela Administração.
  • Clínicas de DETRANs: O cidadão escolhe onde realizar exames médicos ou psicológicos para a obtenção de CNH. A Administração certifica a aptidão das clínicas, mas o usuário decide qual delas utilizar.
  • Gestão de Vale-Alimentação/Refeição: Credenciamento de empresas que oferecem redes de estabelecimentos para uso de benefícios, onde o funcionário escolhe o local de consumo.

Nesses casos, a Administração garante a qualidade e os valores padronizados da rede credenciada, mas a decisão final sobre quem prestará o serviço recai sobre o beneficiário, o que reforça a autonomia do cidadão e a eficácia do serviço público ao atender às necessidades individuais.

4.3 Contratação em Mercados Fluidos

Esta é uma inovação importante trazida pela NLLC, que busca adaptar as contratações públicas à realidade de mercados com alta volatilidade de preços e condições. É um reconhecimento da dinâmica de mercado que muitas vezes não se alinha aos modelos rígidos de licitação.

BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, Art. 79, III “em mercados fluidos: caso em que a flutuação constante do valor da prestação e das condições de contratação inviabiliza a seleção de agente por meio de processo de licitação.”

Em mercados fluidos, como o de passagens aéreas ou alguns tipos de commodities, o preço e as condições de contratação variam constantemente (por vezes, em questão de horas), tornando impraticável uma licitação tradicional que fixe um preço por um longo período. A inviabilidade de competição surge porque o preço de referência muda constantemente, e uma licitação tradicional se tornaria obsoleta rapidamente. O credenciamento permite que a Administração contrate pelo preço do dia ou pelas condições vigentes no momento da efetiva necessidade, aproveitando a dinâmica de mercado a seu favor.

Exemplos incluem:

  • Passagens aéreas: A Administração credencia diversas companhias aéreas ou agências de viagem, e a compra é feita com base na cotação mais vantajosa no momento da emissão, considerando as flutuações de tarifas. O Manual de Licitações & Contratos Administrativos do TCU (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações & Contratos Administrativos, 2024) menciona que o credenciamento de passagens aéreas foi admitido pela Corte de Contas “justamente pela dificuldade de se licitar produtos/serviços com preços dinâmicos e cambiáveis por diversos fatores”.
  • Serviços de leiloeiros oficiais: A Lei permite a seleção de leiloeiros por credenciamento, adotando o critério de maior desconto sobre as comissões. Isso se alinha à ideia de um mercado onde a flutuação de valores pode ser constante.
  • Certos insumos e commodities: Em mercados onde os preços são negociados em bolsas ou flutuam diariamente, o credenciamento permite agilidade na aquisição sem a necessidade de um processo licitatório demorado que resultaria em um preço já defasado.

É crucial que, nessas hipóteses, a Administração registre as cotações de mercado vigentes no momento da contratação, assegurando a transparência e a justificativa da escolha.

A formalização dessas hipóteses na NLLC demonstra uma maturidade regulatória que reconhece as particularidades do mercado e a necessidade de flexibilidade para que a Administração Pública atue de forma mais inteligente e eficiente, sempre com foco na obtenção do resultado mais vantajoso.

5 O PROCEDIMENTO DO CREDENCIAMENTO: Fases e Requisitos Essenciais

Apesar de ser uma alternativa à licitação tradicional, o credenciamento não é desprovido de formalidades. A Lei nº 14.133/2021 e os decretos regulamentadores, como o Decreto nº 11.878/2024 (para o âmbito federal) e Decretos municipais (como o de São Francisco/MG, 2024), estabelecem um rito procedimental claro que garante a publicidade, a isonomia e o controle. As fases do credenciamento, conforme os documentos analisados, são:

5.1 Fase Preparatória

Assim como em qualquer contratação pública, a fase preparatória é crucial para o sucesso do procedimento. É nela que a Administração define a necessidade, justifica a escolha pelo credenciamento e estabelece as regras do jogo, documentando de forma precisa todos os elementos.

BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 6º “A escolha pela contratação por credenciamento deverá ser motivada durante a fase preparatória e atender, em especial: I – aos pressupostos para enquadramento na contratação direta, por inexigibilidade, conforme previsto no inciso IV do caput do art. 74 da Lei nº 14.133, de 2021; e II – à necessidade de designação de agente de contratação como responsável pelo exame e julgamento dos documentos de habilitação.”

Isso significa que, antes de qualquer passo, o órgão precisa documentar:

  • Justificativa Técnica e Econômica: Deve-se demonstrar por que o credenciamento é a solução mais adequada e vantajosa para aquela demanda específica, alinhando-se à hipótese de inviabilidade de competição prevista no art. 74, IV da NLLC. Essa justificativa deve ser robusta e baseada em dados, não em meras suposições.
  • Designação do Agente/Comissão de Contratação: A Lei exige a designação formal de um agente de contratação ou de uma comissão responsável por conduzir o processo de credenciamento. Essa designação é fundamental para a atribuição de responsabilidades e para assegurar a condução técnica e imparcial das análises.
  • Definição Detalhada do Objeto: O objeto a ser credenciado precisa ser descrito de forma clara, objetiva e padronizada, evitando ambiguidades que possam gerar problemas na execução.
  • Estabelecimento das Condições de Contratação: Inclui a definição de preços (fixos ou com base em critérios de mercado), condições de pagamento, prazos, e outras cláusulas que regerão a relação com os credenciados.

5.2 Divulgação do Edital de Credenciamento

O edital de credenciamento funciona como a “lei interna” do processo e é o principal instrumento de comunicação com o mercado. Sua ampla e transparente divulgação é um pilar da isonomia e da publicidade, garantindo que o maior número possível de interessados tenha conhecimento da oportunidade.

SÃO FRANCISCO/MG, 2024, art. 8º do Decreto “O edital de credenciamento será divulgado e mantido à disposição no Portal da Transparência do Município de São Francisco/MG, de modo a permitir o cadastramento permanente de novos interessados.”

A NLLC inova ao exigir que os editais de credenciamento, bem como outros documentos relacionados a contratações, sejam publicados no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) (BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, art. 174, § 2º, III). Essa medida centraliza a informação e facilita o acesso para qualquer pessoa interessada.

O edital deve ser completo e detalhado, contendo, no mínimo:

  • Descrição Precisa do Objeto: Incluindo quantitativos estimados e unidades de medida.
  • Requisitos de Habilitação e Qualificação Técnica: Conforme o Art. 62 a 70 da NLLC, definindo a documentação necessária para comprovar a capacidade jurídica, técnica, fiscal e econômico-financeira do interessado.
  • Condições de Preço: Detalhamento dos valores ou percentuais de desconto, critérios de reajustamento (se aplicável) e condições de pagamento (BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 7º, § 1º).
  • Critérios de Distribuição da Demanda: Indispensáveis quando o objeto não permitir a contratação imediata e simultânea de todos os credenciados. Critérios objetivos como rodízio, sorteio ou ordem cronológica de inscrição são comuns (BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 9º).
  • Regras para Recurso e Impugnação: Informações sobre prazos e formas de interposição de recursos, impugnações e pedidos de esclarecimento, garantindo o direito ao contraditório e à ampla defesa.
  • Hipóteses de Descredenciamento e Sanções: Devem ser claramente estabelecidas as condições para a exclusão do credenciado (como perda de habilitação ou descumprimento injustificado do contrato) e as sanções aplicáveis (BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 23).

5.3 Registro do Requerimento de Participação

Após a divulgação do edital, os interessados que desejam fazer parte da rede de credenciados devem apresentar formalmente seu requerimento de participação, acompanhado de toda a documentação exigida.

BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 12 “A inscrição do interessado para o credenciamento mediante apresentação de requerimento de participação implicará a aceitação integral e irrestrita das condições estabelecidas no edital.”

Este ato de inscrição é crucial, pois formaliza o interesse do participante e vincula-o juridicamente a todas as condições e regras estabelecidas no edital. É um compromisso mútuo: o interessado aceita as condições, e a Administração se compromete a avaliar sua conformidade de forma isonômica.

5.4 Habilitação

Esta fase é o coração do credenciamento, onde a Administração verifica a capacidade do interessado em atender aos requisitos definidos no edital. Diferentemente de uma licitação tradicional, o objetivo não é comparar propostas para selecionar a “melhor”, mas sim verificar a adequação de todos os que se apresentaram.

BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 11 “Para habilitação como credenciado, serão exigidos os documentos necessários e suficientes para demonstrar a capacidade do interessado de realizar o objeto da contratação, nos termos do disposto nos art. 62 ao art. 70 da Lei nº 14.133, de 2021.”

A habilitação envolve a análise de diferentes tipos de documentos:

  • Habilitação Jurídica: Comprova a existência legal da empresa ou a identidade da pessoa física, sua regularidade perante a lei e sua capacidade para exercer direitos e assumir obrigações.
  • Qualificação Técnica: Demonstra a aptidão do interessado para executar o objeto. Pode incluir atestados de capacidade técnica, comprovação de experiência de profissionais, registro em conselhos de classe e licenças específicas para a atividade (BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, art. 67).
  • Regularidade Fiscal, Social e Trabalhista: Comprova a situação regular do interessado perante as fazendas federal, estadual e municipal, a seguridade social (INSS), o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e a Justiça do Trabalho (BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, art. 68). A comprovação da regularidade fiscal para microempresas e empresas de pequeno porte possui tratamento diferenciado, sendo exigida apenas para efeito de contratação e permitindo prazo para regularização (BRASIL, Lei Complementar nº 123, de 2006, art. 42 e 43).
  • Qualificação Econômico-Financeira: Visa demonstrar a saúde financeira do interessado para cumprir as obrigações do contrato, geralmente por meio de balanços patrimoniais, demonstrações de resultados e certidões negativas de falência (BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, art. 69).

É fundamental que o julgamento seja estritamente objetivo, baseando-se apenas nos critérios do edital. O Tribunal de Contas da União já enfatizou que a avaliação técnica no credenciamento se limita a verificar a capacidade da empresa para executar o serviço, e, uma vez preenchidos os critérios mínimos, ela deve ser credenciada em igualdade de condições, sem distinção ou pontuação comparativa (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 408/2012, 2012). Caso haja falhas sanáveis, a Administração poderá realizar diligências para a complementação de informações (BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 15, § 1º).

5.5 Fase Recursal

Garantindo a ampla defesa e o contraditório, a NLLC prevê a fase recursal para o credenciamento. Qualquer pessoa que se sinta lesada por uma decisão administrativa pode interpor recurso.

BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 5º, V “recursiva” (referindo-se à fase recursal)

A interposição do recurso geralmente possui prazos específicos e deve ser endereçada à autoridade que proferiu a decisão ou à autoridade superior, conforme o caso. Esse mecanismo é essencial para corrigir eventuais equívocos e assegurar a legalidade e a justiça do processo.

5.6 Divulgação da Lista de Credenciados

Após a análise dos recursos e a conclusão da fase de habilitação, a Administração divulga a lista final dos interessados credenciados.

BRASIL, Decreto nº 11.878, de 2024, art. 5º, VI “de divulgação da lista de credenciados.”

Essa lista deve ser publicada no PNCP e mantida constantemente atualizada. A publicidade é permanente, permitindo que novos interessados se credenciem a qualquer momento, desde que o edital de chamamento público esteja vigente. Essa abertura contínua é uma das grandes vantagens do credenciamento, pois permite que a Administração tenha sempre um rol atualizado de fornecedores aptos.

O rigor procedimental do credenciamento, embora menos focado na “competição de preços”, garante que a inclusão de fornecedores na rede pública seja baseada em critérios técnicos e jurídicos sólidos, promovendo a eficiência e a transparência em um modelo de contratação que atende às demandas modernas do Estado.

6 Vantagens e Desafios do Credenciamento para a Administração e Particulares

O credenciamento, ao ser formalizado e detalhado pela Lei nº 14.133/2021, apresenta um leque de vantagens significativas, mas também impõe desafios que exigem atenção e planejamento, tanto por parte da Administração Pública quanto dos particulares.

6.1 Vantagens Inegáveis

Para a Administração Pública, o credenciamento se traduz em:

  • Celeridade e Desburocratização: A principal vantagem é a agilidade nas contratações. Uma vez que o edital de credenciamento é publicado e os interessados se habilitam, a contratação subsequente de serviços ou bens é muito mais rápida, pois dispensa o complexo processo licitatório tradicional para cada demanda individual. Isso otimiza o tempo e os recursos públicos, essenciais para uma gestão eficiente. José Antônio Remédio e Davi Pereira Remédio (2021) confirmam que o credenciamento “contribui para tornar as contratações administrativas mais rápidas, com economia de tempo e de recursos financeiros em favor da Administração Pública”.
  • Economia de Recursos: A redução da burocracia e da necessidade de múltiplos processos licitatórios para demandas contínuas gera economia de recursos humanos (que podem ser realocados para atividades mais estratégicas) e financeiros. Além disso, a padronização de preços e condições, e a possibilidade de se adaptar a mercados fluidos, podem garantir a obtenção de condições mais vantajosas e o combate ao sobrepreço.
  • Transparência e Isonomia: Embora não haja competição direta entre os credenciados, o processo é amplamente transparente. O edital é público, os requisitos são objetivos e todos que os cumprem são aceitos. Isso assegura a igualdade de oportunidade para todos os interessados e a visibilidade dos princípios da isonomia, legalidade, moralidade e impessoalidade (BAHIA. Secretaria da Educação, 2016).
  • Ampliação e Capilaridade da Rede de Fornecedores: O credenciamento permite que a Administração forme uma vasta rede de prestadores, o que é crucial para atender demandas que exigem pluralidade de opções (como serviços de saúde ou manutenção de veículos). Isso reduz o risco de desabastecimento ou de falta de especialistas para certas necessidades, aumentando a capacidade de resposta do Estado. O Acórdão nº 3567/2014 do TCU (BRASIL. Tribunal de Contas da União, 2014) destaca a busca pela “maior rede possível de prestadores de serviço” como um objetivo do credenciamento.
  • Flexibilidade e Adaptação a Mercados Dinâmicos: Em mercados de preços voláteis, o credenciamento oferece a flexibilidade necessária para que a Administração se adapte às variações de preço e disponibilidade, garantindo a contratação mais vantajosa no momento da necessidade real. Isso é particularmente benéfico em cenários de rápida mudança, como em crises ou setores de alta inovação.

Para os Particulares (Empresas e Profissionais Autônomos), o credenciamento oferece:

  • Acesso Simplificado ao Mercado Público: Para muitos empreendedores e profissionais, o ambiente licitatório tradicional é um emaranhado complexo, com altas barreiras de entrada. O credenciamento simplifica o acesso, permitindo que mais empresas e profissionais, incluindo micro e pequenas empresas, atuem como fornecedores do setor público.
  • Previsibilidade e Menor Custo de Participação: Ao saberem previamente os requisitos de habilitação e os preços fixados ou critérios de precificação, os interessados têm maior previsibilidade sobre as condições de contratação. O custo para participar é significativamente menor, pois não há necessidade de investir em propostas complexas ou estratégias de disputa. Jorge Ulisses Jacoby Fernandes (2013, p. 45) aponta que a fixação prévia da tabela de preços impede a negociação de valores diferentes, dando clareza aos participantes.
  • Oportunidade Contínua de Negócios: Diferente de uma licitação com “vencedor único”, o credenciamento permite que, uma vez habilitado, o fornecedor seja convocado várias vezes para prestar serviços ou fornecer bens, enquanto o edital estiver vigente. Isso gera um fluxo de trabalho mais estável e previsível para o setor privado.

6.2 Desafios a Serem Superados

Apesar das vantagens, o credenciamento não está isento de desafios, especialmente na sua implementação, gestão e fiscalização, que exigem um esforço contínuo da Administração:

  • Rigor na Definição dos Requisitos e Padronização: A clareza e objetividade dos requisitos no edital são absolutamente fundamentais. Requisitos muito amplos podem atrair fornecedores despreparados ou inadequados, enquanto requisitos excessivamente restritivos podem desvirtuar o princípio da pluralidade e reduzir a rede de credenciados, comprometendo a finalidade do instituto. A padronização dos serviços e bens a serem credenciados é crucial.
  • Controle e Fiscalização da Execução: Como o credenciamento visa a uma pluralidade de contratados, o ônus da fiscalização da execução contratual se intensifica. A Administração deve ter mecanismos robustos e uma equipe capacitada para garantir a qualidade dos serviços prestados por todos os credenciados, individualmente. Ludmilla de Oliveira França (2015) alerta que a falta de regramento específico para alguns aspectos pode levar a “insegurança, dificuldade de controle e fiscalização e possível direcionamento dos prestadores de serviços”. Assim deve o Ente Público sempre buscas mitigar através de governança sólida.
  • Gestão Eficiente da Demanda e Distribuição: Em cenários de contratação paralela e não excludente, a distribuição equitativa e eficiente da demanda entre os credenciados exige um sistema bem definido e transparente, evitando favorecimentos (o chamado “solar”) ou, inversamente, a ociosidade de parte da rede, o que desincentivaria a participação de novos interessados.
  • Atualização Contínua do Rol de Credenciados: A natureza de “chamamento permanente” do credenciamento exige que a Administração mantenha o edital e as condições sempre atualizadas, além de realizar a constante avaliação e, se necessário, o descredenciamento de fornecedores que não cumpram as regras. Isso demanda recursos, tempo e atenção contínua.
  • Risco de Má Aplicação e Desvirtuamento: O maior desafio é o risco de o credenciamento ser utilizado de forma indevida, desvirtuando sua finalidade de inviabilidade de competição para situações que, de fato, comportariam uma licitação tradicional. O TCU, por exemplo, já anulou o uso de “critérios de pontuação” em credenciamentos, pois eles introduzem uma competição que não deveria existir nesse modelo (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 408/2012, 2012). O uso indevido pode gerar nulidade dos atos e responsabilização dos agentes públicos.

Superar esses desafios exige não apenas o cumprimento da letra da lei, mas uma mentalidade de gestão proativa, focada em governança, integridade e resultados.

7 O CREDENCIAMENTO E OUTROS PROCEDIMENTOS AUXILIARES

A Lei nº 14.133/2021 estabelece um conjunto de procedimentos auxiliares (BRASIL, Lei nº 14.133, de 2021, art. 78) que servem para apoiar e otimizar as licitações e contratações. É fundamental compreender as distinções entre o credenciamento e esses outros institutos, pois cada um possui uma finalidade e lógica específicas, sendo a escolha do procedimento correto crucial para a legalidade e eficiência da contratação.

  • Pré-Qualificação (Art. 78, II):
    • Conceito: A pré-qualificação é um procedimento seletivo prévio à licitação, convocado por edital, para analisar as condições de habilitação (parcial ou total) dos interessados ou a qualidade de bens e serviços. O objetivo é agilizar futuras licitações, criando um rol de licitantes ou bens já verificados e aptos.
    • Diferença para o Credenciamento: A pré-qualificação não dispensa a licitação subsequente. Ou seja, os pré-qualificados ainda competirão entre si em um processo licitatório tradicional. Ela funciona como um filtro prévio, mas a disputa competitiva ainda ocorrerá. O credenciamento, por sua vez, é utilizado justamente quando a competição é inviável por pluralidade, e todos os credenciados aptos podem ser contratados sem a necessidade de uma disputa de preços entre eles.
    • Quando usar: Quando a Administração deseja simplificar a fase de habilitação de futuras licitações para objetos complexos ou de grande vulto, ou para certificar a qualidade de bens que serão adquiridos repetidamente.
  • Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) (Art. 78, III):
    • Conceito: O PMI permite que a Administração solicite à iniciativa privada a proposição e realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras para questões de relevância pública. É uma ferramenta para coletar informações, fomentar a inovação e auxiliar na modelagem de um futuro objeto contratual.
    • Diferença para o Credenciamento: O PMI é um mecanismo de “coleta de inteligência” e ideação, e não obriga a Administração a realizar a contratação subsequente, nem confere direito de preferência ao proponente no processo licitatório futuro. É uma etapa anterior à decisão de contratar, enquanto o credenciamento já é um procedimento de contratação de múltiplos fornecedores.
    • Quando usar: Quando a Administração Pública identifica uma necessidade, mas não possui o conhecimento técnico ou as soluções internas para atendê-la, ou busca soluções inovadoras ainda não padronizadas no mercado.
  • Sistema de Registro de Preços (SRP) (Art. 78, IV):
    • Conceito: O SRP é um conjunto de procedimentos para o registro formal de preços de serviços, obras e bens para contratações futuras, mediante licitação (pregão ou concorrência) ou contratação direta. Seu resultado é uma Ata de Registro de Preços (ARP), da qual diversos órgãos podem “aderir”.
    • Diferença para o Credenciamento: O SRP, ao contrário do credenciamento, pressupõe a competição por menor preço ou maior desconto para a formação da ARP. A seleção dos fornecedores é feita com base no critério de preço, e os registrados na ARP são convocados conforme a demanda. No credenciamento, todos os aptos são contratáveis sem disputa de preço, pois a lógica é de inclusão e não de competição para ser o “melhor preço” único.
    • Quando usar: Para a aquisição de bens e serviços comuns, de alta demanda e padronizados, onde o principal critério é o preço e a Administração busca otimização e escala.
  • Registro Cadastral (Art. 78, V):
    • Conceito: Consiste no registro de dados de habilitação (jurídica, fiscal, técnica, econômico-financeira) de fornecedores em um sistema unificado (como o SICAF, no âmbito federal).
    • Diferença para o Credenciamento: O registro cadastral em si não é um procedimento de contratação, mas uma base de dados de fornecedores. Sua finalidade é facilitar e agilizar a fase de habilitação em licitações e contratações diretas, evitando a repetição de documentos. Embora o credenciamento utilize a etapa de habilitação (e, portanto, se beneficie de registros cadastrais), ele é o procedimento que efetivamente leva à contratação, enquanto o registro cadastral apenas organiza as informações dos potenciais contratados.
    • Quando usar: Permanentemente, para manter uma base de dados atualizada de fornecedores, facilitando a consulta de documentos de habilitação em todos os processos de contratação pública.

Essa distinção clara entre os procedimentos auxiliares é crucial para que gestores públicos façam a escolha correta do instrumento a ser utilizado, garantindo a legalidade, a eficiência e a economicidade das contratações. Para o setor privado, compreender essas nuances significa identificar as melhores portas de entrada para o mercado público, alinhando suas estratégias de negócio às oportunidades que cada procedimento oferece. A compreensão profunda das regras do jogo é o que separa o sucesso da estagnação, e isso se aplica diretamente ao universo das contratações públicas.

8 CONCLUSÃO

O credenciamento, agora solidamente ancorado na Lei nº 14.133/2021, transcende a mera formalidade legal e se posiciona como um pilar estratégico para a modernização das contratações públicas no Brasil. Sua jornada, de uma prática embasada em doutrina e jurisprudência para um instituto com previsão expressa em lei, demonstra a notável capacidade de adaptação do Direito Administrativo às necessidades reais da gestão e do mercado. Esse processo de formalização, que se estendeu por décadas, culminou em um mecanismo que promete mais agilidade e transparência para o Estado.

Para a Administração Pública, o credenciamento é sinônimo de celeridade, economia e transparência, permitindo a construção de uma rede robusta e diversificada de fornecedores. Essa agilidade na contratação, sem abrir mão da conformidade legal, é um diferencial competitivo que se traduz em serviços públicos mais eficazes e eficientes para o cidadão. Eliminar a fricção excessiva e o “custo transacional” do processo licitatório é um ganho substancial, transformando desafios em oportunidades de sucesso e de eficiência.

Para o empreendedor e o profissional liberal, o credenciamento abre portas para o mercado público, oferecendo oportunidades contínuas e previsibilidade em um ambiente menos burocrático. Saber que, uma vez cumpridos os requisitos, a contratação é uma possibilidade real, e não uma disputa de “tudo ou nada”, estimula a participação e o investimento em qualidade. A Lei nº 14.133/2021, ao detalhar as hipóteses de aplicação (contratação paralela e não excludente, com seleção a critério de terceiros, e em mercados fluidos), oferece um mapa claro para o acesso a essas oportunidades, permitindo que empresas e profissionais planejem suas estratégias com maior segurança.

Os desafios, como a necessidade de rigor na fiscalização da execução e na gestão da demanda, são inerentes a qualquer processo complexo que envolve a pluralidade de agentes. No entanto, com a clareza da Lei e o suporte de regulamentos, como o Decreto nº 11.878/2024, a Administração tem as ferramentas necessárias para mitigar esses riscos. A designação de agentes de contratação e a adoção de critérios objetivos para distribuição da demanda são exemplos de mecanismos que promovem a integridade e a governança. 

Em um país tão vasto e com demandas tão diversas, o credenciamento é mais do que um procedimento; é um convite à inovação na gestão pública. É a materialização da ideia de que o sucesso se constrói não apenas pela excelência individual de um fornecedor, mas pela capacidade de integrar e multiplicar talentos, criando ecossistemas de serviços que respondam de forma ágil e eficiente às necessidades da sociedade. Ao abraçar essa ferramenta com inteligência e estratégia, a Administração e o setor privado podem, juntos, construir um futuro de mais oportunidades e resultados concretos.

Referências

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1Graduado em Contabilidade pela Centro Universitário FG – UNIFG
Graduado em Direito pela Centro Universitário FG – UNIFG
Pós-Graduado em Licitações e Contratos Administrativos com Ênfase na Lei 14.133/2021 – Faculdade Polis Civita
Direito Público – Centro de Ensino e Pesquisa UNIGRAD Ltda