O CONTRATO DE NAMORO NO DIREITO DAS FAMÍLIAS CONTEMPORÂNEO E OS LIMITES DA AUTONOMIA PRIVADA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202411271149


Alessandra Lasmar Braga¹;
Cláudia de Moraes Martins Pereira².


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo analisar os limites da autonomia privada conferida às partes no contexto de um contrato de namoro, a fim de determinar quais parâmetros devem ser utilizados para que o referido instrumento contratual apresente a devida validade e se perpetue no marco temporal pretendido. Nesse contexto, o contrato de namoro é uma modalidade não prevista expressamente no Código Civil, sendo tão somente pactuado sob a égide dos parâmetros e normas gerais do Direito dos Contratos, o que não garante a observância da característica de ordem pública conferida ao Direito das Famílias, bem como a intervenção mínima do Estado nessas relações, fato que interfere diretamente na validade daquele. Para promover esse fim, foi realizada uma análise nos entendimentos doutrinários e da jurisprudência pátria, para que se compreenda como o assunto está sendo debatido e decidido, a fim de que se garanta a segurança jurídica nos pactos os quais seu objeto envolva relações familiares.

Palavras-chave: Autonomia Privada. Direito das Famílias. Contrato de Namoro. Requisitos.

INTRODUÇÃO

O Direito deve acompanhar as mutações sociais, econômicas, entre outras, ocorridas ao longo dos anos. Nesse contexto, constata-se o surgimento do fenômeno denominado “contratualização” do Direito das Famílias, o qual consiste no exercício da autonomia privada das partes nas relações familiares.

Na legislação brasileira, as normas que regem o assunto possuem características de ordem pública, ou seja, possui caráter coercitivo, haja vista estarem relacionadas diretamente com a própria concepção da pessoa.

Além disso, sabe-se, ainda, que os contratos regidos pelo Código Civil, quando preenchem determinados requisitos, criam lei entre as partes pactuantes.

Apesar da Constituição Federal da República do Brasil – CRFB/88 conferir a livre decisão do casal no planejamento familiar, fato que é corroborado pelo Código Civil vigente ao garantir a não interferência de qualquer pessoa de direito público ou privado na comunhão de vida instituída pela família, é imprescindível conhecer os limites desse exercício da autonomia privada, tendo em vista o cumprimento obrigatório do Estado de sua função de protetor especial da família e dos membros que a compõem.

Cumpre ressaltar que com a maior incidência da contratualização, verifica-se o surgimento de um contrato que ainda possui diversos questionamentos quanto às suas aplicações, qual seja, o contrato de namoro. Ante a lacuna legislativa, resta à doutrina e aos tribunais superiores determinarem os parâmetros e limitações do poder da autonomia privada, para fins de existência, sua validade e eficácia, balizados nas normas de ordem públicas, inerentes ao Direito das Famílias brasileiro.

A partir de tais considerações, o presente artigo visa analisar os limites da autonomia privada das partes ante a pactuação de um contrato de namoro, sob a ótica da doutrina aliada ao entendimento jurisprudencial pátrio, a fim de que seja garantida a existência, validade e eficácia do contrato a ser firmado entre os contratantes e eventuais terceiros envolvidos.

1. A EVOLUÇÃO E A CONTRATUALIZAÇÃO DO DIREITO DAS FAMÍLIAS

O Direito das Famílias contemporâneo é resultado de décadas de transformações nos valores sociais e na própria concepção de família, modificações essas que interferem diretamente na legislação, já que as normas precisam se adequar à realidade da sociedade (Rocha, Scherbaum, 2018).

Nesse contexto, tem-se que, sob a égide do Código Civil de 1916, apenas admitia-se a formação de uma família mediante o matrimônio, sendo assim (Farias, Netto, Rosenvald, 2023, p. 1183):

O Direito das famílias era o complexo de normas e princípios que regulam a celebração do casamento, sua validade e os efeitos que dele resultam, as relações pessoais e econômicas da sociedade conjugal, a dissolução desta, as relações entre pais e filhos, o vínculo de parentesco e os institutos complementares da tutela, curatela e da ausência.

A promulgação da CRFB/88 consagrou a dignidade da pessoa humana3 como pilar da República Federativa do Brasil e conferiu à família status de base da sociedade, tornando-a objeto de proteção especial do Estado, conforme previsto no artigo 226 da Carta Magna. Ademais, abordou questões relativas ao casamento, sua celebração e dissolução, bem como à reciprocidade e o dever de assistência entre pais e filhos, refletindo a intenção do legislador de promover a constitucionalização do direito familiar.

Houve a ampliação do que se entende por família ao contemplar a união estável como uma entidade familiar, que passou a dispor dos mesmos direitos aos conferidos ao casamento civil.  Além de estabelecer expressamente a igualdade entre os filhos, eliminando de vez, a distinção entre os filhos legítimos e ilegítimos e conferindo tutela jurídica a todos os membros da entidade familiar, independentemente de sua origem (Pereira, 2023).

O Código Civil de 2002, reforça a proteção da dignidade da pessoa humana ora conferida pela CRFB/88, princípio aquele que, aliado ao afeto, passaram a ser valores centrais e consolidaram a família como uma estrutura socioafetiva, a fim de garantir proteção especial aos integrantes do núcleo familiar, superando a excessiva formalidade ultrapassada do casamento.

Conquanto haja proteção especial do Estado à família, tem-se que sua intervenção apenas é legítima e justificada quando estiverem envolvidos os sujeitos de direito vulneráveis para o direito brasileiro, quais sejam a pessoa idosa, a criança e o adolescente.

Portanto, é inequívoca a característica privada da família e consequente valorização da autonomia privada de seus membros (Nery, 2019, p. 160), conforme a dicção do art. 1.5134, do Código Civil, que estabelece ser defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.

De igual modo, leciona o § 7.º do artigo 2265 da CRFB/88, ser de livre decisão do casal o planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável.

Nessa perspectiva, justamente considerando a expressa vedação da interferência do Estado aliada à impossibilidade da violação da dignidade da pessoa humana, que deve ser analisado em que medida pode ser mitigada tal autonomia dentro das relações jurídicas familiares.

Uma vez determinado o interesse do legislador em flexibilizar a estrutura formal dos vínculos dentro de um núcleo familiar ao conferir às partes o direito de criar normas jurídicas com base em suas vontades e interesses, surge  a contratualização do Direito das Famílias.

Isso reflete diretamente na adaptação do ordenamento jurídico brasileiro às transformações sociais e aos novos modelos familiares, aproximando o Direito das Famílias do Direito dos Contratos e promovendo uma visão mais pluralista e inclusiva das relações afetivas.

Nesse contexto, visto que o principal interesse do direito familiar contemporâneo é fundamentado, sobretudo, na regulação das relações originadas de vínculos afetivos, há uma abertura para que as partes deliberem sobre determinado assunto, na medida que julgarem necessário para constituir tais vínculos da forma que melhor lhes convier, a fim de atender às necessidades específicas dessas relações (Tepedino, 2023).

Em razão disso, “são consagrados os espaços de construção normativa própria a cada família, segundo as aspirações de seus membros (Teixeira; Moraes, 2021, p. 2). Da mesma forma, tem-se que “o próprio indivíduo decide quais normas jurídicas serão aplicadas ao seu cotidiano, englobando tanto questões afetivas quanto as patrimoniais” (Barbosa, 2016, p. 18).

Portanto, a contratualização do Direito das Famílias transcende a mera proteção patrimonial, abrangendo, igualmente, a promoção da segurança jurídica e a valorização da individualidade e do afeto, elementos que caracterizam a estrutura familiar contemporânea. 

É possível constatar no ordenamento jurídico, formas contratuais as quais, em sua maioria, são direcionadas para regulamentar interesses econômicos e patrimoniais. Dentre essas, a principal é o pacto antenupcial, que antecede uma união conjugal, e que “é um contrato solene e condicional, por meio do qual os nubentes dispõem sobre o regime de bens que vigorará entre ambos, após o casamento” (Gonçalves, 2023, p. 424).

De igual modo, tem-se a figura do contrato de convivência, por meio do qual os companheiros possuem a liberdade de reconhecer a existência de uma união estável, bem como de deliberar sobre o regime de bens a ser seguido na vigência dessa união. 

Ainda, em decorrência das transformações sociais, da limitação da tutela estatal no âmbito familiar, e da consequente abertura para as partes agirem conforme sua autonomia privada, constata-se o surgimento da figura do contrato de namoro, o qual possui dúvidas acerca da sua conceituação, do seu objeto tutelado, além da sua existência, validade e eficácia.

2. O CONTRATO DE NAMORO E SUA ATIPICIDADE

O contrato de namoro configura-se como um negócio jurídico atípico, por não haver previsão expressa no Código Civil, restando à doutrina e à jurisprudência delimitar seu objeto e definir os requisitos necessários para sua validade e eficácia.

Ainda que haja divergências quanto à sua conceituação e natureza jurídica, tem-se que tal instrumento busca regular o relacionamento afetivo de namoro entre as partes, podendo dispor também sobre questões patrimoniais. Portanto, a interpretação doutrinária e jurisprudencial é essencial para assegurar que o contrato de namoro seja reconhecido e aplicado dentro do ordenamento jurídico, desde que respeite os princípios de autonomia privada, boa-fé e função social dos contratos.

No que concerne à sua conceituação, uma defendida pela doutrina é que o contrato de namoro é um negócio jurídico que as partes estipulam a incomunicabilidade de seus patrimônios e afirmam a ausência de comprometimento recíproco, visando, com isso, obter segurança jurídica. No entanto, Tepedino ressalta que tal instrumento não possui o condão de impedir a eventual caracterização de uma união estável, caso presentes os elementos típicos desta relação familiar, tal qual o objetivo de constituir família (Tepedino, 2019).

De igual modo, Maria Berenice Dias pondera que:

[…] desde a regulamentação da união estável, levianas afirmativas de que simples namoro ou relacionamento fugaz pode gerar obrigações de ordem patrimonial provocaram pânico generalizado […] diante da situação de insegurança, começou a se decantar a necessidade de o casal de namorados firmar contrato para assegurar a ausência de comprometimento recíproco e a incomunicabilidade do patrimônio presente e futuro.(Dias, 2015, p. 257)

Já para Marília Xavier, tem-se a figura de um pacto, podendo ser firmado de forma verbal ou escrita, a fim de declarar que as partes não possuem o objetivo de constituir família, e, mencionada declaração, se trata de cláusula essencial para a configuração de um contrato de namoro. Para além disso, entende que as partes podem dispor de quaisquer questões de convivência e/ou patrimoniais, desde que compatíveis com o namoro. Ainda, verifica a possibilidade de constar que, caso haja evolução do namoro para uma união estável, qual regime de bens será adotado entre os conviventes (Xavier, 2022).

Assim, verifica-se que um ponto comum, qual seja, o contrato de namoro deve dispor acerca da intenção das partes em não constituir família, como cláusula essencial, caso contrário, sequer se trataria de um contrato de namoro.

Desse modo, por se tratar de um contrato em si, para que produza os efeitos perseguidos pelas partes, é necessário que esse perpasse os planos de existência, validade e eficácia, estes inerentes a tais negócios jurídicos.

No que tange à sua existência, tem-se como elementos constitutivos: manifestação de vontade das partes, objeto e forma. Já quanto a sua validade, conforme disposto no art. 104 do Código Civil, “requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei”.

Como mencionado, o objeto do contrato de namoro é justamente determinar que, dentro da relação de um namoro qualificado, as partes, no momento da pactuação, não possuem o interesse de constituir uma família. Isto posto, é imprescindível esclarecer o conceito de namoro qualificado, bem como diferenciá-lo da união estável.

2.1 UNIÃO ESTÁVEL X NAMORO QUALIFICADO

Em razão da liberdade conferida às partes de pactuarem dentro dos limites da função social da família, bem como em observância ao princípio da dignidade da pessoa humana, que surge o contrato de namoro, o qual, objetivamente, estabelece que a relação existente se trata de um namoro, e não de uma união estável.

2.1.1 Da união estável

A partir da promulgação da CRFB/88, consolidou-se a união estável como uma entidade familiar, diferenciando-se do casamento tão somente no que refere a existência de formalidades legais, sendo tratada pela doutrina como “uma situação fática, estabelecendo um vínculo afetivo entre pessoas, com intenção de viver como se casadas fossem” (Farias; Netto; Rosenvald, 2023, p. 1266).

Conforme exposto na lei civil6, a fim de que tal situação fática produza os efeitos jurídicos decorrentes dela, é necessário que seja reconhecida a presença dos seguintes elementos: 1) convivência pública; 2) continuidade; 3) durabilidade; e 4) animus familiae, ou seja, ânimo de constituir família.

Primeiramente, entende-se como convivência pública a exposição da relação de forma aberta e transparente de modo que o casal se apresente perante a sociedade como uma entidade familiar.

Tal aspecto implica que pessoas, sejam amigos, familiares e outros membros da sociedade, identifiquem os conviventes como parceiros que compartilham um vínculo de estabilidade e seriedade, podendo ser demonstrada por interações que denotam compromisso, quais sejam morar juntos, dividir responsabilidades financeiras, entre outros.

Isto posto, entende-se que relações secretas compromete diretamente o ânimo dos conviventes de viverem como se casal fossem.

Em seguida, a continuidade se relaciona à inexistência de interrupções na relação dos conviventes, até porque, ao considerar que a união estável é um fato jurídico despido de caráter formal, sua solidez é justamente determinada por sua continuidade.

Caso contrário, “a instabilidade causada por constantes rupturas desse relacionamento poderá provocar insegurança a terceiros nas suas relações jurídicas com os companheiros” (Gonçalves, 2023, p. 585).

Cumpre ressaltar que não é uma breve ruptura que descaracterizará a união estável, mas sim interrupções constantes ou de longa duração. 

Ainda, a durabilidade se refere à perpetuação da relação ao longo do tempo. Antes, a Lei n.º 8.971/94 expressamente determinava o prazo de cinco anos de convivência ou a existência de prole, para que fosse possível a constituição da união estável.

Todavia, tal prazo restou omisso com a promulgação da Lei n.º 9.278/96, com posterior repetição no Código Civil de 2002. Desta feita, ante a ausência de prazo mínimo exigido, o STJ decidiu que “exige a norma que a convivência seja duradoura, em período suficiente a demonstrar a intenção de constituir família, permitindo que se dividam alegrias e tristezas, que se compartilhem dificuldades e projetos de vida, sendo necessário um tempo razoável de relacionamento”7.

Nesse viés, cabe ao julgador analisar o caso concreto e verificar se a união perdurou por tempo suficiente apto a caracterizar como estável.

Por fim, tem-se o animus familiae, que se trata de elemento fundamental para caracterização da união estável, de caráter subjetivo, já que decorre diretamente do ânimo dos companheiros.

Justamente por se tratar de algo subjetivo, conquanto seja indispensável, não basta apenas o animus, sendo necessária a presença de efetiva constituição de família.

Esta pode ser evidenciada “a partir dos elementos de configuração real e fática da relação afetiva (a exemplo da convivência duradoura sob o mesmo teto), para determinar a existência ou não de união estável” (Lôbo, 2018, p. 121).

Feitas tais considerações, é possível aferir que uma vez preenchidos tais requisitos, resta configurada a união estável, da qual decorre diversos efeitos jurídicos, pessoais, patrimoniais, entre outros.

E, por se tratar de um ato-fato jurídico, “não será uma simples declaração negocial de vontade instrumento hábil para afastar o regramento de ordem pública que rege este tipo de entidade familiar” (Gagliano; Pamplona, 2014, p. 235).

Ao reconhecer a união estável como entidade familiar, a legislação brasileira, por meio da CRFB/88 e do Código Civil, confere-lhe valor jurídico equiparado ao casamento civil, proporcionando o necessário amparo e segurança jurídica aos conviventes.

É importante atestar essas repercussões, haja vista que desses decorrem os direitos e deveres dos companheiros, como por exemplo no plano pessoal, tais como lealdade, respeito e assistência mútua. Já no aspecto patrimonial, aplica-se automaticamente o regime de comunhão parcial de bens, conquanto não haja convenção contrária.

Assim, os efeitos da união estável englobam diversos aspectos essenciais da vida dos conviventes, proporcionando-lhes segurança jurídica e proteção social. Esse reconhecimento evidencia a evolução do Direito das Famílias brasileiro, que, ao se adaptar às transformações dos modelos familiares, promove a dignidade e a autonomia nas relações afetivas.

2.1.2 Do namoro qualificado

Já no que se refere ao namoro qualificado, apesar de não se tratar de um instituto jurídico, possui repercussões no direito brasileiro, pois, mediante a constitucionalização do direito das famílias, e a consequente valorização dos vínculos afetivos, tem-se o espaço para as partes de regularem sua relação, mesmo se tratando de um namoro.  

E, para que reste caracterizado um namoro qualificado, é imprescindível que inexista o objetivo de constituir família. Nesse contexto, decidiu o STJ8, que:

[…] o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável – a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado “namoro qualificado” -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família […] é de se reconhecer a configuração, na verdade, de um namoro qualificado, que tem, no mais das vezes, como único traço distintivo da união estável, a ausência da intenção presente de constituir uma família. Quando muito há, nessa espécie de relacionamento amoroso, o planejamento, a projeção de, no futuro, constituir um núcleo familiar.

Ou seja, caso presente o animus do casal em constituir família, não mais se tratará de um namoro qualificado, mas sim, uma união estável.

Isso posto, o contrato de namoro pode ser celebrado na medida em que os indivíduos, inseridos em uma relação afetiva, declarem expressamente a ausência de intenção de constituir uma família. Caso contrário, e estando presentes os demais requisitos previstos no art. 1.723 do Código Civil, configuraria uma união estável. Cumpre salientar que não se trata apenas da inexistência do animus familiae para afastar a caracterização da união estável, mas sim que esse elemento é essencial para a licitude do objeto do contrato de namoro.

3. OS LIMITES DA AUTONOMIA PRIVADA NO CONTRATO DE NAMORO

É de suma importância realizar a diferenciação entre namoro qualificado e união estável, pois uma vez consolidada uma entidade familiar, as partes não poderão mais se valer de um contrato de namoro para afastar os efeitos jurídicos da união estável, considerando a limitação do art. 1.513, do Código Civil, determinando ser “defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família”.

E é justamente neste ponto que se tem a análise da validade do contrato de namoro, pois, ao constatar a sua existência mediante expressa manifestação de vontade das partes e seu objeto, este deve ser lícito para que o contrato seja juridicamente válido.

Nesse contexto, entende-se como licitude do objeto, caso a avença não seja proibida pela moral ou pelo direito, questão esta ainda não pacificada na doutrina pátria. É que, por um lado, tem-se a ideia da impossibilidade jurídica do objeto no contrato de namoro, uma vez que não será válido um contrato que se propõe a afastar o reconhecimento de uma união estável, uma vez que esta detém caráter de norma cogente. 

Assim entende Maria Helena Diniz, que o contrato será inválido quando:

[…] violar norma de ordem pública; gerar enriquecimento indevido a um dos contratantes; lesar terceiro de boa-fé; apresentar, o relacionamento do casal, os elementos essenciais configuradores da união estável; houver fraude à lei, etc (Diniz, 2012, p. 404 405).

Por outro lado, entende-se que se as partes podem declarar a inexistência de uma relação jurídica, qual seja a união estável, já que o fazem de maneira expressa e inequívoca, pautando-se pelos princípios de probidade e boa-fé, e afastando qualquer conotação de fraude, intuito dissimulatório ou ilicitude, sem violar normas imperativas, a ordem pública e os bons costumes. (Veloso, 2016).

Feitas tais considerações, entende-se que, em que pese haver previsão da intervenção mínima do Estado sobre os núcleos familiares, esta não significa que as partes podem dispor livremente acerca de qualquer matéria dentro de um contrato, sendo imprescindível levar em conta as normas cogentes no direito brasileiro.

Dessa maneira, será ilícito o objeto do contrato se, no momento de sua pactuação, esteja consolidada a figura de uma entidade familiar, de igual modo, se contrariarem a dignidade humana e a função social do contrato, conforme princípios constitucionais e normativos. Caso contrário, podem as partes celebrar tal instrumento a fim de declarar que a relação afetiva entre elas, trata-se de um namoro.

Todavia, é necessário que haja uma análise pormenorizada de cada caso concreto, a fim de que se estabeleça qual relação paira sobre as partes contratantes, ante a presença ou ausência de elementos objetivos e subjetivos aptos para tal. E nessa linha de pensamento, o TJPR decidiu pela prevalência do contrato firmado entre as partes, uma vez ausentes requisitos legais para configuração integral da união estável, qual seja o objetivo de constituir família, pois tal elemento “depende da prova de interesse volitivo de ambas as partes em constituir família, uma vez que a affectio maritalis é o requisito que mais se assemelha à figura do casamento, elemento que identifica se o relacionamento se configura como um namoro ou já conviviam como se casados fossem”9.

Entretanto, a análise da validade do contrato não se limita aos aspectos referentes à união estável, devendo levar em conta também as cláusulas de natureza patrimonial. Tal verificação deve constatar se possui qualquer tentativa de fraude à lei ou à ordem pública e se as partes estão agindo de boa-fé. Analisa-se, de igual modo, cláusulas de natureza existenciais, as quais devem obrigatoriamente observar a dignidade das partes pactuantes.

Neste ponto, a interferência estatal em tal tipo de contrato é limitada, uma vez que a esfera íntima das partes é resguardada pelo princípio da autonomia privada, sendo a intervenção legítima apenas nos casos em que estejam presentes vulnerabilidades ou potencial violação de direitos fundamentais dos envolvidos, até porque o Estado possui o dever de resguardar as normas de ordem pública e a dignidade da pessoa humana.

Por fim, quanto a sua eficácia, produzirá os efeitos perseguidos pelas partes pactuantes, ou seja, caracterizar a relação afetiva de namoro e dispor sobre questões existenciais e patrimoniais que não violem princípios constitucionalmente garantidos, na medida em que não seja reconhecida uma união estável.

Diante disso, é possível afirmar que o contrato de namoro se configura como um negócio jurídico, percorrendo os planos de existência, validade e eficácia, condicionando-se à presença de um objeto lícito e à ausência de intenção por parte dos namorados contratantes de se utilizarem desse instrumento como forma de fraudar preceitos imperativos.

Tal exigência é imprescindível para assegurar a conformidade do contrato com os princípios legais e éticos que regem esses tipos de relações, garantindo, portanto, sua legitimidade dentro do ordenamento jurídico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho  analisou os limites da autonomia privada na celebração de um contrato, mais especificamente, de um contrato de namoro. Neste ponto, o estudo da evolução e da contratualização do Direito das Famílias é crucial para a compreensão das transformações pelas quais esse ramo do direito passou nas últimas décadas, processo esse que reflete uma transição a qual confere às partes maior liberdade para definir os termos de suas relações pessoais.

A promulgação da CRFB/88 representou um marco significativo para esse processo, visto que consagrou a dignidade da pessoa humana como princípio norteador das relações familiares, bem como conferiu proteção especial à família em suas múltiplas formas.

Do mesmo modo, o Código Civil de 2002 enfatizou a dignidade da pessoa humana e o afeto como valores centrais, os quais, aliados à valorização da autonomia privada, consolidaram a família como uma estrutura socioafetiva. Dessa forma, a proteção estatal, anteriormente restrita às formas tradicionais da família, passou a reconhecer a autonomia dos indivíduos na regulação de suas relações afetivas e patrimoniais.

Sob esse viés que a contratualização do Direito das Famílias se revela como uma ferramenta essencial para a adaptação do ordenamento jurídico a essas novas realidades familiares. Pois, ao possibilitar os indivíduos de celebrarem acordos que regulem suas relações, é promovido um espaço onde as partes podem estabelecer normas que atendam às suas necessidades e desejos.

O contrato de namoro, enquanto instrumento jurídico atípico, exemplifica essa nova abordagem nas relações familiares. Embora ausente de previsão expressa no Código Civil, sua utilização vem se consolidando na prática jurídica, refletindo a vontade das partes em definir os termos de sua relação afetiva.

Entretanto, tal autonomia deve ser balizada dentro dos limites da função social do contrato e da dignidade da pessoa humana, conforme preconiza a Constituição Federal e o Código Civil, de modo que sua validade está condicionada à inexistência de intenções fraudulentas ou à tentativa de afastar a configuração de uma união estável.

Além disso, faz-se necessária a distinção entre namoro qualificado e união estável, para que seja devidamente avaliado a presença ou ausência dos elementos objetivos e subjetivos constantes em cada relação. Assim, a inexistência do intuito de constituir família é requisito essencial para que se caracterize um namoro qualificado, evitando que a relação seja erroneamente configurada como união estável, que traz consigo uma gama de direitos e deveres que não se aplicam aos relacionamentos que se definem apenas como namoros.

Diante do exposto, conclui-se que o Direito das Famílias contemporâneo é marcado pela valorização da autonomia dos indivíduos frente a necessidade de adaptação do ordenamento jurídico às novas configurações sociais. Nesse contexto, a contratualização das relações familiares estabelece a necessidade de vigilância quanto aos limites impostos às partes, a fim de garantir que as normas celebradas respeitem os princípios constitucionais e a efetiva promoção de um direito que reflita as complexidades e pluralidades das novas formas de família.

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XAVIER, Marilia Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. 3. ed. Coleção Fórum Direito Civil e seus desafios contemporâneos, v. 3. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2022.   


3“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida” (Sarlet, 2011, p. 28).
4Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família.
5Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…) § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
6Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
7BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.761.887 – Mato Grosso do Sul. 4ª Turma. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Brasília, 06 de agosto de 2019.
8BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.454.643 – Rio de Janeiro. 3.ª Turma. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Brasília, 03 de março de 2015.
9TJPR. Apelação Cível nº 0002492-04.2019.8.16.0187. 11ª Câmara Cível. Relator: Des. Sigurd Roberto Bengtsson. Curitiba, 30 de novembro de 2022.


¹Discente do Curso de Direito na Escola de Direito da Universidade do Estado do Amazonas. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/5684873712682519. E-mail: alb.dir20@uea.edu.br.
²Doutora em Direito (UFMG). Mestre em Direito (UFPE). Professora da Universidade do Estado do Amazonas – UEA/AM. Coordenadora dos Cursos Especiais de Direito dos Municípios do Interior da UEA/AM.