O CONCEITO DE DISTANCIAMENTO NA NOÇÃO DE TEXTO COMO FUNDAMENTO PARA A SUPERAÇÃO DA APORIA ENTRE O ‘EXPLICAR’ E O ‘COMPREENDER’ EM PAUL RICOEUR

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.7351681


Péricles Ayres Schutz1


Resumo

Conjectura-se, no presente trabalho, uma análise de caráter bibliográfico do problema do ‘conflito das interpretações’ de função epistemológica e de função metodológica da hermenêutica a partir do pensamento de Paul Ricoeur, na obra ‘Interpretação e Ideologia’. Para tanto, descrever-se-á, num primeiro momento, o que é a hermenêutica e como se constitui o problema frente à dicotomia no plano epistemológico da nefasta aporia entre o explicar e o compreender. Diante da visão histórica da hermenêutica, Ricoeur percebe a tentativa de se inserir as hermenêuticas regionais (epistêmicas) numa hermenêutica geral (ontológica). Desse modo, haveria, nesse movimento, uma preocupação em constituir esse saber hermenêutico não apenas no seio de uma notoriedade científica que busca a verdade, mas também, de tornar tal modo de conhecer em uma maneira de ser e de relacionar os seres com o Ser. Como seria possível praticar essa relação dialética entre a atitude metodológica e a atitude de verdade numa síntese que arranja essas duas mediações hermenêuticas? Num segundo momento, na tentativa de superar tal antinomia, desenvolver-se-á os argumentos utilizados por Paul Ricoeur na elaboração da noção de texto. O texto, como se observará, caracteriza-se como uma operação interpretativa mais desenvolvida que o discurso verbal, sendo muito mais que um caso particular de comunicação inter-humana, o qual produz o paradigma, estabelecido já por Gadamer, do distanciamento no diálogo interpretativo. Por fim, analisar-se-á a Função Hermenêutica do Distanciamento em sua forma de organização, no pensamento de Ricoeur, a qual estabelece uma crítica tanto ao cogito cartesiano quanto ao conceito de intuição imediata do sujeito no processo de conhecer-se a si mesmo, pela qual o sujeito apenas se (re)conhece e se compreende diante daquilo que Ricoeur chama de ‘o mundo da obra’. 

Palavras chaves: Compreender; Distanciamento; Explicar; Hermenêutica; Texto;

Abstract

We conjecture in this paper a typical bibliographic analysis of the ‘interpretation conflict’ problem of a hermeneutic methodological and epistemological function considering Paul Ricoeur’s thought in the work ‘Interpretation and Ideology’. For that, we will describe in a first moment what Hermeneutic is and how the problem is constituted in face to the dichotomy in the epistemological plan of the nefarious difficulty between explaining and understanding. In face of the hermeneutic historical vision Ricoeur captures the intent of inserting the regional hermeneutics (epistemic) in a general hermeneutic (ontological). In this way there would be in this movement a preoccupation in constituting that hermeneutic knowledge not only in the sein of a scientific notoriety which searches the truth but also to transform such way of knowing in a way to be and relate the beings to the Being. How would it be possible to practice that dialethic relationship between a methodological attitude and the attitude of truth in a synthesis which arranges those two hermeneutic mediations? The arguments used by Pau Ricoeur in the elaboration of the text notion will be developed in an attempt to surpass such antinomy in a second moment. The text as it will be observed is characterized as a more developed interpretative operation than the verbal speech, being much more than a particular case of inter-human communication which produces the paradigm of the estrangement in the interpretative dialog already established by Gadamer. Finally, the Hermeneutic Function of the Estrangement will be analyzed in its way of organization in the thought of Ricoeur which establishes a critic as well to the cartesian cogito as the concept of the immediate intuition of the subject in the process of self- knowing by which the subject only (re)cognizes and understands himself or herself in face of what Ricoeur calls ‘the world of the work’. 

Keywords: Understanding; Estrangement; Explaining; Hermeneutics; Text;

A desregionalização da hermenêutica

A primeira parte da obra ‘Interpretação e Ideologia’ intitulada de ‘Funções da Hermenêutica’, a qual o presente texto se delimita ocupar, foi dividida por Paul Ricoeur em dois estudos, a saber: o primeiro trata-se da pretensão de conduzir a reflexão hermenêutica no sentido de inseri-la numa discussão com as ciências do texto (semiologia à exegese). Esse primeiro estudo tem o propósito de problematizar os métodos epistemológicos e ontológicos que configuram a tentativa de dizer quais são os lugares e qual é a tarefa da hermenêutica; por outro lado, o segundo momento, consagra o estudo dessa revisão da problemática hermenêutica que tem como objetivo demonstrar a elaboração das categorias do texto a fim de fundamentar a função hermenêutica do distanciamento conforme a compreensão e a relação com a interpretação dos textos. Esses dois momentos sintetizam a busca de desenvolver uma resolução da aporia central da hermenêutica: a alternativa de correlacionar as atitudes do explicar e do compreender, as quais a hermenêutica de origem romântica tende a separar.

A fim de preparar o terreno para uma melhor compreensão deste artigo, dispõe-se necessário preestabelecer o que vem a ser o problema da aporia da distinção entre o explicar e o compreender na seara hermenêutica aqui discutida: a distinção entre o compreender e o explicar nasceu da exigência de se fazer a diferenciação entre o procedimento explicativo das ciências morais e históricas e o procedimento das ciências naturais. Como ir-se-á demonstrar no desenvolvimento do texto, tal exigência nasce da dificuldade de aplicar a técnica causal (própria da ciência natural do século XIX) ao domínio dos eventos humanos (como são, por exemplo, os fatos históricos e as relações inter-humanas) (ABBAGNANO, 2012, p.184). Nesse sentido, a técnica metodológica do explicar se desenvolve frente ao projeto epistemológico da hermenêutica. Por outro lado, a estrutura da técnica do compreender se desenvolve como método das ciências do espírito, isto é, em face ao projeto ontológico da hermenêutica. Em vista disso, a aporia central da hermenêutica se determina: haveria uma preeminência do compreender sobre o explicar ou uma preeminência do explicar sobre o compreender? O que Paul Ricoeur busca é uma complementariedade entre essas duas metodologias. É o que, portanto, se passa a investigar.

Historicamente, Ricoeur veria a hermenêutica orientada, até então, sob duas perspectivas. Há, num primeiro momento, no século XIX, com F. Schleiermacher e W. Dilthey, uma tentativa de anexar todas as hermenêuticas regionais, como por exemplo a filologia e a exegese bíblica, num modo de hermenêutica geral. Ocorre que esse movimento de desregionalização, segundo Ricoeur, teve apenas o caráter de encaixar a hermenêutica no campo epistemológico-científico, isto é, houve apenas a preocupação de estabelecer uma reputação metodológica de caráter científico para a disciplina da hermenêutica. Já, no século XX, com M. Heidegger e H. G. Gadamer, a hermenêutica deixa apenas de ter o caráter epistemológico-científico e passa a se subordinar a questões ontológicas, ou seja, o compreender deixa de aparecer apenas como um simples modo de conhecer e torna-se uma forma, um jeito, de ser e de se relacionar com os outros seres e com o próprio Ser. Há, nessa segunda perspectiva histórica, uma radicalização da hermenêutica, a qual lhe acondiciona um caráter de cunho não só geral, mas fundamental.

Mas como se daria, então, num primeiro momento histórico, esse movimento de obter um caráter geral, mais amplo, à hermenêutica? Em outras palavras, qual seria o ‘primeiro lugar’ dessa hermenêutica que se desregionaliza e que se configura uma hermenêutica de reputação epistêmica-científica, segundo Paul Ricoeur? 

No século XIX, partiu-se do pressuposto de que a hermenêutica deveria se desvincular do âmbito da linguagem, sobremaneira da linguagem escrita. Com efeito, percebe-se que há uma relação frontal e precisa de que as questões hermenêuticas envolvem questões de cunho linguístico. Entretanto, há um problema no trabalho de interpretação que se substabelece em relação à particularidade léxica da língua, a saber: as palavras apresentam um caráter polissêmico, e por isso, pode-se, no trabalho interpretativo, atribuir mais de uma significação quando se considera a utilização de tais palavras fora do seu uso de contexto. 

Nesse sentido, Ricoeur nos dirá que o que interessa, nesta discussão, é entender que a polissemia das palavras recorre, em contrapartida, ao papel seletivo dos contextos relativos à determinação do valor atual que adquirem as palavras numa mensagem determinada, veiculada por um locutor preciso a um ouvinte que se encontra numa situação particular. Logo, segundo ele, a sensibilidade do contexto é o complemento necessário e a contrapartida inexorável da polissemia (RICOEUR, 1983, p.19). 

Então, em que consiste esse ‘primeiro lugar’ que a interpretação se constitui? Ora, segundo o autor em questão, a interpretação, nesse primeiro momento, se configura na atividade de reconhecer qual é a mensagem unívoca que o locutor constrói a partir de uma base léxica polissêmica. Já se tem aí, nessa compreensão, o distanciamento, que é relativamente unívoco, que possibilita identificar diante da polissemia das palavras a intenção (unívoca) de uma determinada mensagem (polissêmica) recepcionada pelo trabalho daquele que interpreta. 

No discurso dialógico essa atividade de discernimento da intenção unívoca e da relação polissêmica do aparato léxico se dá, propriamente, na medida em que se exerce a troca concreta de mensagens entre os interlocutores por meio de perguntas e respostas. 

Já na condição escrita, de um texto, não se dá pela mesma forma o dinamismo interpretativo. No texto não se observa o modelo dialógico de perguntas e respostas para discernir aquilo que vem a ser a intenção unívoca em relação à riqueza polissêmica de uma determinada mensagem. Assim, são necessárias técnicas interpretativas que possibilitam a decodificação das mensagens que se estabelecem em um texto.

A hermenêutica epistemológica-científica

Conforme o entendimento de Paul Ricoeur, é a partir do pensador F. Schleiermacher que é possível visualizar o movimento de desregionalização da atividade hermenêutica. Tanto a filologia quanto a exegese dos textos sagrados, chamadas de hermenêuticas regionais, ganham uma nova roupagem, de nível mais elevado. Direcionam-se a uma categoria de técnica mais geral, isto é, mais apurada: a hermenêutica epistemológica-científica.

F. Schleiermacher fundamentou o problema da hermenêutica diante da relação de duas possíveis formas de interpretação, a saber: a interpretação ‘gramatical’ e a interpretação ‘técnica’. A primeira fundamenta-se na representação característica do discurso que são comuns em uma determinada cultura.; a segunda, ampara-se à representação singular, original e excêntrica de uma mensagem de um determinado escritor. Segundo esse autor, as duas formas de interpretação, por possuírem iguais direitos, não podem ser praticadas ao mesmo tempo. Explica Schleiermacher que a interpretação gramatical, ao considerar apenas a língua comum, deve esquecer o escritor e, em contrapartida, ao levar-se em consideração apenas a compreensão de um autor, que é singular, implica esquecer sua língua, que é apenas atravessada. Em outros termos, Ricoeur afirma que para Schleiermacher, ou percebe-se aquilo que é comum, isto é, aquilo que é objetivo, ou então, percebe-se aquilo que é próprio, aquilo que individual e subjetivo.

 Ou seja, a primeira forma de interpretar é objetiva e negativa pois caracteriza-se pela apresentação dos caracteres linguísticos comuns de uma cultura, apontando os limites da compreensão. Esses limites da compreensão se estabelecem na medida em que o valor crítico da compreensão se refere apenas aos erros concernentes ao sentido das palavras (RICOEUR, 1983, p21).

Já a segunda forma de interpretar revela aquilo que realmente caracteriza o projeto de uma hermenêutica. Isto porque, é a partir dessa segunda forma de interpretar, denominada de técnica, que é possível atingir a subjetividade daquele que fala. Logo, a língua é esquecida e torna-se o órgão a serviço da individualidade. Essa interpretação é chamada de positiva, porque atinge o ato de pensamento que produz o discurso (RICOEUR, 1983, p. 22).

 A primeira aporia que aqui se identifica, segundo Paul Ricoeur, a qual Schleiermacher não supera, é a de que o excesso da primeira forma de interpretar gera um pedantismo, enquanto o excesso da segunda forma de interpretar gera uma nebulosidade. Explica que, segundo Schleiermacher, a interpretação técnica (da qual resulta a hermenêutica) ganha um caráter adivinhatório. A individualidade do autor jamais pode ser limitada e apreendida por uma interpretação psicológica, subjetiva que se caracteriza por um cunho adivinhatório. É somente por meio da comparação, do contraste e da diferença das subjetividades, que se relacionam com a própria obra e com o autor, que poderia ser possível dar um sentido de universalidade à hermenêutica. Logo, há aqui uma dificuldade em delimitar a hermenêutica técnica. E isto se dá devido ao duplo caráter das subjetividades que se revelam díspares, a saber: o caráter adivinhatório e o caráter comparativo. Tal problema configura o embaraço a ser superado.

 Outro importante filósofo da hermenêutica epistemológica é W. Dilthey, e suas reflexões críticas a Hegel se alinham com a escola neokantiana do século XIX. Dilthey é o primeiro a introduzir a atividade interpretativa dos textos junto à noção de história. A história, diante da filosofia idealista e da cultura alemã, conquista um espaço de grande êxito a partir da problematização de se avaliar em quais condições seriam possíveis projetar um encadeamento histórico que expressasse a vida do ser humano da forma mais fundamental. A questão essencial que se propõe é: como o conhecimento histórico, isto é, o conhecimento da ciência do espírito, é possível? Tal problematização se dá, nesse contexto, devido à exigência da adversidade de aplicar a técnica epistemológica da causa, proeminente nas ciências naturais, nas relações do domínio dos eventos humanos, como, por exemplo, os fatos históricos e os encadeamentos do homem às relações inter-humanas2.

Dilthey, influenciado pela ascensão do positivismo e consciente do problema acima apresentado, de que as causas que incorrem nas relações inter-humanas diferem das causas que incidem nas relações humanas com a natureza, inclina-se a superar tal impasse, não pela busca da questão do ser, isto é, não pelo lado da ontologia, mas sim, por uma reforma da própria epistemologia para explicar as relações das realidades humanas. Em outras palavras, Dilthey aponta para uma objetivação radical do próprio sujeito e de suas experiências vivas. Há, nesse sentido, a caracterização de que o único modo de se elaborar um conhecimento histórico corresponderia outorgar-lhe uma metodologia científica epistemológica empírica, uma vez que, “o sujeito do saber é idêntico ao seu objeto, e este é o mesmo em todos os graus de objetivação” (DILTHEY, 1883, p. 191). A partir de sua obra é possível notar a distinção e a oposição entre o conhecer racional da explicação das ciências da natureza e a compreensão das ciências da história (espírito).

Segundo Paul Ricoeur, W. Dilthey buscará o traço distintivo do compreender baseado, num primeiro momento, na psicologia, e, posteriormente, fundamentando-o no conceito de intencionalidade estipulado por Husserl.

Por meio da ordem psicológica, pressupõe-se que o conhecimento do compreender se manifesta através da capacidade do homem de se transpor na vida psíquica de outrem. Diferentemente do que ocorre no conhecimento das ciências naturais – a natureza sempre permanece como algo externo ao homem –, nas ciências do espírito o sujeito não se encontra perante a uma realidade estranha a ele, mas sim, diante de si mesmo. O homem é quem pergunta e, ao mesmo tempo, o homem é quem responde, ou seja, o homem passa a ser tanto o sujeito quanto o objeto do dilema. Há aí sinais de sua própria existência. Logo, compreender esses sinais é compreender o próprio homem. 

 Já num segundo momento, Dilthey se socorre em Husserl, uma vez que Husserl estipula que o psiquismo dependeria do conceito de intencionalidade para determinar a estrutura psíquica a qual designaria o caráter idêntico do objeto intencional, isto é, o sentido de significação do ser identificado. 

Com efeito, Paul Ricoeur explica porque Dilthey sustentou apenas o lado psicológico da hermenêutica de Schleiermacher. Uma vez que Dilthey assimilou que a passagem da compreensão, definida amplamente pela capacidade psíquica do homem de transpor-se em outrem, possibilitava a reprodução de um encadeamento histórico daquilo que era interpretado, percebeu também que a noção da hermenêutica comportava um procedimento estrutural. Esse procedimento estrutural baseava-se na comunicação de categoria de signos fixados pela escrita, os quais atravessavam no decorrer da história. Isso significa dizer que, tanto para Schleiermacher quanto para Dilthey, o papel essencial da hermenêutica, contra o subjetivismo cético e o relativismo, se dava pela validade universal dada pela compreensão objetiva das estruturas essenciais do texto.

Em resumo, nota-se que ao verificar a incompatibilidade de metodologias entre as ciências naturais e as ciências do espírito, Dilthey recorre ao conceito de encadeamento a fim de formar um modelo estruturante do conhecimento das ciências do espírito que se baseia na determinação da passagem ou do encadeamento dos signos – fixados pela escrita nos textos – os quais indicariam o papel essencial da hermenêutica como camada objetiva da compreensão histórica humana. 

Em contrapartida a essa teoria hermenêutica baseada sobre a perspectiva psicológica, Paul Ricoeur fundamenta uma crítica no que diz respeito à noção da autonomia do texto como característica que estipula uma objetividade na interpretação dos signos que formam o texto. Ele expõe que a autonomia do texto nunca é um fenômeno objetivo por se tratar de um aspecto contextual, ou seja, provisório, passageiro e superficial. Logo, a questão da objetividade, em Dilthey, permanece um problema insuperado.  

Portanto, ao mesmo tempo que Dilthey penetra no problema decisivo de entender a incompatibilidade da metodologia das ciências naturais com metodologia das ciências do espírito e reconhece o papel essencial da hermenêutica para superação do problema, ele vincula o destino da hermenêutica à noção puramente psicológica, isto é, a hermenêutica volta-se à modalidade de uma teoria do conhecimento, uma vez que o desvelamento do texto segue não mais em direção a seu autor, mas em direção ao sentido imanente do próprio texto. Por consequência, o debate entre o explicar e o compreender são mantidos nos limites do conhecimento humano. 

Apresentar-se-á, a partir de agora, como essa pressuposição hermenêutica epistemológica é posta em questão e resilida pelas contribuições de Heidegger e Gadamer.  

A hermenêutica ontológica

No século XX, é a partir de Heidegger e sua filosofia existencialista, que se torna possível visualizar a virada hermenêutica de um caráter epistemológico para um caráter ontológico. Ao utilizar o sentido metodológico da descrição fenomenológica, Heidegger consolida, na obra ‘Ser e Tempo’, o predicado maiúsculo da hermenêutica através do esclarecimento ontológico e existencial do Ser. Isto porque, para ele, é a partir do λόγος (logos) que a hermenêutica se apresenta como uma estrutura geral do Dasein. Essa estrutura geral do Dasein ampara a possível investigação ontológica acerca do Ser e do mundo no qual esse Ser se encontra.

‘Ser e Tempo’ destaca-se pela volta da questão do Ser. A indagação sobre o sentido e a compreensão do Ser revela a peculiaridade na qual o empreendimento epistemológico é questionado: o Ser não é mais notado como apenas um sujeito que julga e se relaciona com o objeto a ser apreendido. Ou seja, testemunha-se que a partir da exigência da pergunta pelo sentido do Ser estabelecida pela estrutura do Dasein3, há, em contrapartida, a possibilidade de manifestar e encontrar as maneiras de interpretação do mundo e da própria existência. Logo, a questão do Ser antecede o modo como um ser se relaciona epistemologicamente com um determinado objeto, isto é, que faça face a um determinado sujeito. Em outras palavras, Ricoeur explica que o Dasein não é um sujeito para quem há um objeto, mas um Ser no ser, isto é, o Dasein designa o peculiar lugar da manifestação da pergunta do Ser e, por isso, compete à sua estrutura, como ser, ter uma pré-compreensão ontológica do Ser.

Toda essa organização estruturante do Dasein em Heidegger possibilitou o desarranjar de duas transformações: a primeira viabilizou a ruptura do modelo metodológico fundado na caraterística epistemológica de explicar a relação entre sujeito-objeto-conceitos; a segunda permitiu a criação de uma nova estruturação metodológica das ciências do espírito pautada na filosofia hermenêutica que, em consequência da ruptura, dispôs a tarefa metodológica, traçada pela questão ontológica do ser, a busca de outros fundamentos fora daquela relação dos métodos científicos-positivos que pudessem, então, explicitar a relação efetiva entre o ente e a sua constituição de ser. Logo, segundo Ricoeur, a hermenêutica não é somente uma reflexão sobre as ciências do espírito, mas uma explicitação do solo ontológico sobre o qual essas ciências podem se edificar.

O compreender se torna algo existencial que precede o explicar. Diferentemente do que pensava Dilthey, Heidegger determina que os fundamentos do problema ontológico devem ser procurados na relação do Ser com o mundo, e não na relação do Ser com outrem. Paul Ricoeur elucida que a proposta de Heidegger foi a de demonstrar que é na relação consigo, isto é, da minha situação, na compreensão fundamental de minha posição no Ser que está implicada a compreensão. Os outros, assim como eu mesmo, são mais desconhecidos inclusive do que qualquer outro fenômeno da natureza. Logo, se existe uma região do Ser onde reina o ser inautêntico de Nietzsche, é justamente na relação de indivíduos com outros indivíduos. Ao entender a importância desse problema, Heidegger desloca a questão da relação psicológica do Ser com outrem para a relação do Ser com o mundo. Heidegger despsicologiza a teoria fundada por Dilthey.

Quais são as implicações dessa transferência do lugar filosófico desse deslocamento do problema de método para a questão do ser? Em outras palavras, quais são os encadeamentos da preeminência do compreender sobre o explicar? 

O compreender como fundamento da questão do ser deve ser descrito como um ‘poder-ser’. Segundo a análise ricoeuriana, a primeira função do compreender é a de nos orientar numa situação, o compreender não se dirigiria apenas à apreensão de um fato, mas à de possibilidades de ser. Desta forma, o compreender heideggeriano é um projetar-se num Ser, o qual é lançado previamente. Mais claramente, Paul Ricoeur exemplifica que as consequências metodológicas dessa análise, num sentido textual, seria a de que o compreender em um texto transforma-se não mais em uma tentativa de descobrir aquele sentido inerte, inexorável, que poderia estar nele contido. Trata-se agora de revelar a partir de cada leitura do texto uma nova possibilidade de Ser que é indicada pelo próprio texto.

A partir dessa análise, poderia se perguntar a respeito de como, então, podemos conhecer as coisas? Isto é, como se dá a teoria do conhecimento diante da preeminência do compreender sobre o conhecer?

Paul Ricoeur expressa que pelo conhecimento colocamos os objetos diante de nós, entretanto, existe um sentimento de uma situação que é anterior a essa relação entre o objeto e o sujeito diante da ordenação do mundo. Esse sentimento é o de encontrar-se, ou melhor, encontrar-se aí e sentir-se (de certa maneira) antes mesmo o de orientar-se e de julgar os objetos do mundo. Isso significa dizer que é a partir da presencialidade do Ser que se extrai por meio das experiências reveladoras um elo do Ser com o real mais fundamental que a relação sujeito-objeto (RICOEUR, 1983, p. 33).

Em consequência dessa relação dialética entre a situação e a compreensão forma-se a tríade situação-compreensão-interpretação. É nesse momento que se desenvolve a assimilação da exegese do ser em relação às coisas do mundo e dos textos. A interpretação é, inicialmente, uma explicitação, e, num segundo momento, apresenta-se como um desenvolvimento da compreensão do ser. Esse desenvolvimento da compreensão é a própria revelação da coisa mesma, isto é, do objeto ao sujeito. Na medida em que o sujeito se revela ao objeto, o objeto também se revela ao sujeito. Há aqui uma volta à teoria do conhecimento e uma vinculação da epistemologia à estrutura ontológica, ou seja, a epistemologia insere-se num só bloco, o da ontologia. 

Em outros termos, esse desenvolvimento da compreensão que se apresenta pela interpretação foi enunciado, posteriormente, em Gadamer, pela perspectiva do círculo hermenêutico. Há no círculo hermenêutico também esse envolvimento mútuo do sujeito e do objeto. Há, novamente aqui, uma relação de que na mesma medida em que o sujeito conhece o objeto e o objeto se desnuda e se revela ao sujeito. E isso ocorre em virtude de uma estrutura de pré-compreensão do sujeito que foi já estabelecida pela filosofia analítica do Dasein heideggeriana.

Entretanto, Paul Ricoeur manifesta-se criticamente a respeito dessa subordinação da epistemologia à ontologia e argumenta que a aporia entre o compreender e o explicar ainda não pode ser superada. Para ele, a aporia foi simplesmente deslocada e agravada, isto porque, agora, ela não se encontra mais no campo da epistemologia entre duas modalidades de conhecer, mas situa-se entre a ontologia e a epistemologia. Isso significa que a aporia se estabelece no contraste de dois blocos da filosofia, a episteme e a ontologia.

Ricoeur afirma que “com a filosofia heideggeriana, não cessamos de praticar o movimento de volta aos fundamentos, mas tornamo-nos incapazes de proceder ao movimento de retorno, que dá ontologia fundamental, conduziria à questão propriamente epistemológica do estatuto das ciências do espírito” (RICOEUR, 1983, p. 36). Há um rompimento do diálogo com as ciências e, por isso, a ontologia se reduziria a si mesma. A questão que, portanto, fica não resolvida, em Heidegger, para Paul Ricoeur, é a de entender como é possível tomar consciência e desvendar a problemática do trajeto do retorno do círculo hermenêutico, que está fundado sobre uma estrutura de pré-compreensão no plano ontológico, uma vez que esse trajeto de retorno possibilitaria uma não elucidação de uma questão crítica geral exegética num contexto de uma hermenêutica fundamental? 

É com H. G. Gadamer, na obra ‘Verdade e Método’ que, a partir da ontologia heideggeriana, o filósofo de Heidelberg predispõe-se a analisar o problema central que impossibilitava a hermenêutica reivindicar o seu caráter de universalidade. A filosofia de Gadamer anuncia o movimento de retorno da ontologia em direção aos problemas epistemológicos. Inclusive, Paul Ricoeur afirma que o próprio título da obra ‘Verdade e Método’ rivaliza o conceito de verdade heideggeriano com o conceito de método diltheyniano. 

Com efeito, foi Gadamer quem permitiu a formulação de uma síntese da reformulação epistemológica das ciências do espírito feita por Dilthey com a convicção da estrutura da pré-compreensão da experiência humana formulada por Heidegger. O compreender fundamental se origina na demonstração da teoria da consciência histórica. Paul Ricoeur explica que a consciência histórica se trata da consciência de ser exposto à história e à sua ação, de tal forma que não se pode objetivar essa ação sobre nós, porque faz parte do próprio fenômeno histórico, aquilo que Gadamer se refere a ‘Somos sempre situados na história’.

‘Estar situados na história’ refere-se a um momento decisivo na formulação da teoria hermenêutica, pois é a partir desse conceito, da consciência histórica, que se pode determinar um devir histórico real, o qual Gadamer incorpora um outro conceito, a saber: o de distanciamento (distância temporal)4. Afirma Gadamer que a condição para a elaboração da reflexão da consciência histórica se realiza na medida em que se compreende que não se pode abstrair do devir histórico a objetificação do passado, isto porque, segundo ele, não se tem a liberdade de escolher situar-se em face ao passado. Em contrapartida, é a partir da tomada de consciência da ação que esse passado (que se experencia) exerce sobre nós que é possível conferir à nossa capacidade assumir e realizar a verdade estabelecida pelo passado. Trata-se aí da consciência de ser exposto à história e à sua ação, de tal forma que não se pode objetificar essa ação sobre nós, porque faz parte do próprio fenômeno histórico (RICOEUR, 1983, p.38).

Paul Ricoeur, ao certificar-se de que a consciência da história contém, em si mesma, esse elemento de distância, percebe, num primeiro momento, que há uma oposição entre dois conceitos: pertença e distanciamento alienante. Isto é, ao mesmo tempo em que pertencemos e construímos a história, essa construção só pode ser feita diante da tomada de consciência da nossa distância em relação à história, que é sempre alienante5. Constata-se que tomar consciência a partir dessa condição metodológica implica uma relação paradoxal que ele denominou de proximidade do longínquo. Há uma tensão entre pertencimento à história e o distanciamento da história que é própria e essencial da tomada de consciência histórica. 

Paralelamente, para explicar como a noção de distanciamento colaborou para a elaboração da teoria da consciência histórica, Paul Ricoeur sustenta que Gadamer fertilizou um outro conceito importante para a hermenêutica, a saber: o conceito de fusão de horizontes. Ora, segundo Ricoeur, essa ideia possibilitou o estabelecimento da comunicação e da distância entre duas consciências diferentes situadas na história, as quais se fundem a partir de uma relação paradoxal de proximidade e de longinquidade. Esse fator entre o próximo e o longínquo viabiliza uma abertura para um novo horizonte e que, consequentemente, elimina a ideia de um saber, um conhecimento total e único como previa aquela síntese histórica hegeliana. As condições para o conhecimento, portanto, se atribuem a partir da noção de distância e de fusão dos horizontes. 

Por fim, Gadamer, segundo Paul Ricoeur, resguarda a noção do distanciamento como a justificação do caráter universal da linguagem e da experiência humana. Esclarece que a possibilidade de dar significado a nossa pertença a uma determinada tradição passa, necessariamente, pela interpretação dos signos, isto é, interpretação das obras, dos textos e das instituições que associam e se oferecem à essa decifração das nossas heranças culturais. Nesse sentido, o que Paul Ricoeur herda e aprofunda de Gadamer, que é objeto de análise na próxima seção do presente texto o exame de como a comunicação do conceito de distância feita pela mediação da linguagem dialógica em Gadamer se converte em mediação dada pelo texto e, consequentemente, como no texto essa distância se elucida de uma melhor forma devido à expressão do texto não pertencer nem mesmo ao autor e nem ao leitor daquele texto.

A função do distanciamento na hermenêutica a partir da relação metodológica do ‘mundo’ do texto

Paul Ricoeur apresenta uma proposta de reelaborar o problema hermenêutico na busca de outorgar um novo diálogo entre a hermenêutica e as disciplinas semiológicas e exegéticas. É a partir da contradição entre o distanciamento alienante e a participação por pertença, isto é, a relação paradoxal entre proximidade e longinquidade, explicitada por Gadamer, que ele suscita a refutação a ser superada. Ora, essa antítese é uma anomalia pois estabelece uma alternativa insustentável, a saber: por um lado, a longinquidade é a atitude pela qual se torna possível a objetificação que reina nas ciências do espírito; por outro lado, esse distanciamento preserva a degradação que danifica a relação fundamental e primordial que nos faz pertencer e participar da realidade histórica que pretendemos construir em objeto. Assim, Ricoeur sustenta a crítica a Gadamer expressando que, ou se pratica uma atitude metodológica e perde-se a densidade ontológica da realidade estudada, ou se realiza a atitude de verdade e somos forçados a renunciar à objetividade humana. 

Paul Ricoeur apresenta uma alternativa para superar essa problemática que se torna a questão central de sua tese. O caminho para resolver o distanciamento alienante e a participação por pertença se dá, segundo ele, na dimensão interpretativa do texto que tem o efeito de expressar um aspecto positivo da noção de distanciamento. Mas o que é o texto? “O texto é, para mim, muito mais que um caso particular de comunicação inter-humana: é o paradigma do distanciamento na comunicação” (RICOEUR, 1983, p. 44). Isto significa dizer que o texto6 é a própria historicidade da experiência humana, é uma comunicação na e pela distância. Diante disso, como se observa, a noção de texto torna-se funcionalmente primordial para se construir o fundamento da hermenêutica que é o cerne da historicidade e da experiência humana.

Então, aqui não se busca mais pela intenção psicológica do outro que se presume por traz do texto, como estipulara Dilthey, e também não se reconhece a hermenêutica como um processo de desconstrução de estruturas, e o que se estabelece a partir de Paul Ricoeur é a reelaboração de como a hermenêutica desenvolve o desdobramento do tipo de ser-no-mundo que se manifesta, na verdade, diante do texto, e não escondido dele. 

Para fundamentar sua teoria, Paul Ricoeur, elabora cinco tópicos que organizam a noção de texto como função metodológica do distanciamento para a filosofia hermenêutica, a saber:

– Efetuação da linguagem como discurso;

– Efetuação do discurso como obra;

– A relação da fala com a escrita no discurso e nas obras;

– A obra de discurso como projeção de um mundo;

– O discurso e a obra de discurso como mediação da compreensão de si.

Inicialmente, Ricoeur apresenta, na efetuação da linguagem como discurso, que o discurso oral é um traço absolutamente primitivo de distanciamento, o qual caracteriza-se pela dialética do evento e da significação. Por um lado, o discurso se dá como evento, ou seja, num primeiro momento, realiza-se temporalmente no presente, o discurso acontece como ‘instância’ e algo ocorre quando alguém fala7. Em segundo lugar, o discurso como evento se vincula ao seu locutor, à pessoa que fala, e por isso é autorreferencial. Num terceiro sentido, Ricoeur afirma que o discurso é evento enquanto os signos da linguagem só se remetem a outros signos e fazem com que a língua não se apodere mais de um mundo, isto é, a língua não possui tempo e subjetividade. O discurso é sempre discurso a respeito de algo e, por esse motivo, ocupa-se de um mundo que pretende descrever, exprimir ou representar. Com efeito, a língua é a condição prévia da comunicação, à qual ela fornece seus códigos, e é no discurso que todas as mensagens são trocadas. (RICOEUR, 1983, p. 46)

Por outro lado, a significação é o sentido ou a maneira de como tal discurso é compreendido. A dialética do evento e da significação que produz o discurso como obra se dá na medida em que há uma tensão entre esses dois polos. O que se estabelece na hermenêutica é a pretensão de compreender não o evento, na medida em que é efêmero, mas sua significação que permanece. Ricoeur certifica-se que é na linguística do discurso que o evento e significação se vinculam um ao outro ao ponto de revelar a intencionalidade do discurso enquanto tal, o qual desdobra-se na relação do noema com a noese indicada à linguagem.

Desse modo, ele propõe três traços distintivos da efetuação do discurso como obra: a) composição; b) pertença a um gênero; c) estilo individual. Primeiro, a obra é desenvolvida e corresponde a algo maior do que uma frase; há uma complexidade proporcionalmente maior de compreensão, a obra se classifica como uma totalidade finita e fechada que a constitui como uma obra enquanto tal. Segundo, uma obra é compelida sob uma forma de codificação que se aplica a sua estruturação e faz com que o discurso seja uma poesia, um relato ou um ensaio. Essa codificação denomina-se gênero literário. Em terceiro, uma obra sempre recebe um arranjo único característico do autor que a escreve, trata-se do estilo individual discursivo da obra. Todo o discurso que é produzido numa obra revela-se como objeto de uma práxis e de uma techné. Dessa forma, Ricoeur aponta que a obra literária é o resultado de um trabalho que organiza a linguagem, isto porque o ser humano, ao trabalhar o discurso executa a determinação prática de uma categoria de indivíduos: as obras de discurso recebem uma especificação da noção de significação que resulta no fenômeno estilístico de cada autor. Por isso, observa-se que há um problema de interpretação das obras que é irredutível à simples compreensão das frases isoladas. (RICOEUR, 1983, p. 52)

A efetuação do discurso como obra situa-se, para Paul Ricoeur, na medida em que se introduz, na dimensão do discurso, categorias próprias à ordem da produção e do trabalho e que, desse modo, a noção de obra opera como uma mediação prática entre a irracionalidade do evento e a racionalidade do sentido. A estilização do autor, que é própria do evento, configura-se, numa relação dialética com a situação concreta complexa, isto é, uma experiência já estruturada, mas que comporta aberturas, possibilidades, indeterminações e contingências. A configuração singular da obra e a configuração singular do autor são análogas, “o homem se individualiza produzindo obras individuais. A assinatura é a marca dessa relação”. (RICOEUR, 1983, p. 52)

No tópico da relação da fala com a escrita no discurso e nas obras, Ricoeur elabora a tese de que é a partir da fixação da fala que coloca o evento do discurso em um abrigo, isto é, uma obra se estabelece que a escrita da fala em texto adquire uma autonomia frente àquela intenção do autor. “O que o texto significa, não coincide mais com aquilo que o autor quis dizer” (RICOEUR, 1983, p. 54). Por meio dessa libertação da obra em relação ao autor visualiza-se novos tipos de significações verbais, textuais, mentais e psicológicas. Em outras palavras, diz Ricoeur que graças à escrita, o ‘mundo’ do texto pode transcender o mundo do autor. O resultado é que essa autonomia do texto gera uma consequência hermenêutica fundamental: visualiza-se que o distanciamento entre o escrever e o ler, mais até mesmo do que o falar e ouvir, não é o produto da metodologia, mas torna-se ao mesmo tempo condição da interpretação. Isto significa que há uma relação muito menos dicotômica entre a objetivação e a interpretação, uma vez que a passagem da fala à escrita promove ao discurso a possibilidade de novas interpretações.

Diante dos tópicos acima expostos, Paul Ricoeur procura responder o problema da tarefa fundamental da hermenêutica a partir da explicitação dos dois próximos tópicos: o do ‘mundo’ do texto e do compreender-se diante da obra. Inicialmente, a noção do ‘mundo’ do texto vincula-se a seguinte questão: o que ocorre com a referência8 quando o discurso se torna texto? Essa questão indica um problema decisivo na tarefa fundamental da hermenêutica, isto porque, a escrita, mas sobretudo na estrutura da obra, modifica-se a referência a partir das leituras possíveis do texto. Por um lado, pode se observar que no discurso oral esse problema se resolve na medida em que o discurso se perfaz deliberadamente, visto que, na expressão da fala, a referência se determina no poder presencial de mostrar a realidade contextual comum aos interlocutores. “Finalmente, é o “aqui” e o “agora”, determinados pela situação do discurso, que conferem a referência última a todo discurso” (RICOEUR, 1983, p. 50). De outra forma, com a escrita não há mais essa situação comum entre o escritor e o leitor, uma vez que o caráter da referência à realidade dada pode ser anulada e abolida. Essa possibilidade de abolição da referência torna viável, segundo Ricoeur, o fenômeno da ‘literatura’, à qual a realidade do mundo pode ser desfeita e nulificada.

É na literatura, portanto, que se observa a ruptura da referência com a realidade do mundo. Os gêneros literários da ficção e da poesia, por exemplo, levam a essa abolição da referência ao mundo dado às suas mais extremas condições. Entretanto, para Ricoeur, essa abolição que se dá num primeiro nível, empregada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo, que vai em direção com aquilo que Husserl denominava de Lebenswelt (o mundo da vida) e Heidegger entendia por ‘ser-no-mundo’ (RICOEUR, 1983, p. 56). 

 A partir dessa análise, Paul Ricoeur deduz duas consequências: a primeira de que o momento do ‘compreender’ situa-se, dialeticamente, como sendo a ‘projeção dos possíveis mais próximos’ absorvido por uma estrutura do ser-no-mundo aplicado à teoria do texto. Explica Ricoeur: 

De fato, o que deve ser interpretado, num texto, é a proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próximos. É o que chamo de o mundo do texto, o mundo próprio a este texto único (RICOEUR, 1983, p.56).

A segunda consequência é a de que o distanciamento produzido pelo mundo do texto estabelece aquilo que se poderia dizer entre o real e si mesmo. Isto porque, o referente da ficção (o conto, o mito, o romance e a poesia) é, ele mesmo, uma ruptura com a linguagem cotidiana. Assim, diferentemente do discurso oral que é fechado em seu próprio acontecimento espaço-temporal, o texto fictício suspende a realidade de tal modo que, em contrapartida, a linguagem metafórica por ele produzida abre-se em novas possibilidades de ser-no-mundo na realidade quotidiana. Tanto a ficção e quanto a poesia visam ao ser, mas não sob o modo de ser-dado, mas sob a perspectiva do poder-ser. “Sendo assim, a realidade quotidiana se metamorfoseia em favor daquilo que poderíamos chamar de variações imaginativas que a literatura opera sobre o real” (RICOEUR, 1983, p. 57).

Portanto, para Paul Ricoeur, a ficção literária torna-se o caminho privilegiado para a descrição da realidade na qual se fundamenta um dos tipos de distanciamento que a hermenêutica deve absorver para que a partir da interpretação do texto se esclareçam os tipos de modos de ser-no-mundo que liberta o Ser e que intermedia a compreensão de nós mesmos. 

O compreender-se diante da obra marca a entrada da subjetividade do leitor na cena do texto. Diferentemente daquilo que pensava a filosofia cartesiana, a tradição do cogito, isto é, a reivindicação do sujeito de conhecer-se a si mesmo por intuição imediata, Paul Ricoeur solidifica em seu projeto filosófico a caracterização da tomada de consciência por meio da desmistificação da própria consciência como ilusão. Para ele, conhecer a si mesmo representa compreender-se a partir dos próprios sinais da humanidade que são depositados nas obras de cultura. Saber sobre o amor e sobre o ódio, sobre os sentimentos, sobre a ética, sobre os nossos comportamentos e tudo o que chamamos de si, só é possível por meio de uma linguagem articulada pela literatura e pelas obras. A leitura e a interpretação de um texto é a condição, o medium, para compreender a si mesmo. Assim, dirá Ricoeur:

Aquilo de que finalmente me aproprio é uma proposição de mundo. Esta proposição não se encontra atrás do texto, como uma espécie de intenção oculta, mas diante dele, como aquilo que a obra desvenda, descobre, revela. Por conseguinte, compreender é compreender-se diante do texto (RICOEUR, 1983, p. 58).

Com efeito, a hermenêutica de Ricoeur estabelece uma consciência mediata: o cogito só se compreender a partir da mediação dos signos. Por isso, não se trata de impor uma objetificação finita da maneira de como se deve compreender um texto, mas de, ao se expor a ele, receber dele um si mais amplo, isto é, explicitar a partir e diante do texto um tipo de ser-no-mundo que se manifesta.

Portanto, por intermédio da relação dialética da objetificação e da compreensão que se estruturam nos níveis do texto é possível verificar como a obra escrita nos leva a um método de interpretar a linguagem humana que se liquida numa interpretação dos símbolos como estrutura da própria consciência e que, por sua vez, nos leva a uma filosofia da compreensão do sujeito, a qual tem como prerrogativa e condição o distanciamento. “Em todos os níveis de análise, o distanciamento é a condição da compreensão” (RICOEUR, 1983, p.59).

Considerações Finais

 Pode-se chegar ao desfecho do presente artigo observando que a análise feita por Paul Ricoeur não impõe ao texto uma capacidade finita, delimitada e definida de uma única compreensão. O texto, como foi apresentado, caracteriza-se como uma operação interpretativa mais elaborada e desenvolvida que a do discurso verbal. E, por isso, Ricoeur estabelece que a compreensão ontológica do ser se dá a partir da autonomia da obra. A obra, ao mesmo tempo que toma certo distanciamento do leitor, revela na sua leitura a metamorfose entre o mundo que ela constitui e o cogito que a lê. Ou seja, há uma relação dialética na qual o leitor cria seu próprio vis-a-vis subjetivo com a obra, o que, consequentemente, condiciona a sua própria compreensão de si.

Diante disso, o problema da apropriação ou da objetificação da interpretação se resolve diferentemente do que havia sido pensado pela tradição hermenêutica. Primeiro, a objetificação do discurso não se determina pela estrutura explicativa, afetiva e intencional de um autor para a obra, mas relaciona-se dialeticamente com o movimento típico e fundamental entre aquele que lê, o leitor, e o texto. É a compreensão que marca esse distanciamento; compreensão pela distância. Logo, aquilo de que o leitor se apropria no texto é a síntese dialética entre à objetivação fundamental da obra e a preposição de mundo que ela condiciona. Isto é, conheço-me pelo texto, compreendo-me a partir daquilo que a obra revela. Em outras palavras, o caráter ontológico e epistemológico, e a própria dicotomia entre o ‘compreender’ e o ‘explicar’ se resolvem por meio da dialética da objetificação e da compreensão no nível do texto que resulta na compreensão de si e o texto passa a ser a mediação de uma função hermenêutica para o sujeito.

Por fim, Ricoeur, estipula a tragédia, que imita a realidade através do mito, como o tipo de distanciamento específico que a experiência hermenêutica deve incorporar. A tragédia apresenta um tipo de distanciamento, fundamental na natureza do texto, que tem o poder de redescrever a realidade por meio de uma ruptura com a linguagem quotidiana, a qual estipula um novo modo de ser-no-mundo, sob a transparência do ‘poder-ser’ que, consequentemente, leva-nos a uma abertura e uma tomada de consciência da pluralidade dos modos de discurso que implicam a configuração do revelar do texto a compreensão do ser. 

Referências:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução por Alfredo Bosi. 6ª Edição. São Paulo-SP. Martins Fontes. 2012.

DILTHEY, Wilhelm. Ideias acerca de uma psicologia descritiva e analítica. Tradução Artur Morão. Covilhã – Portugal. Universidade Beira Interior. 2008.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio P. Meurer. 3ª edição. Petrópolis-RJ. Vozes. 1997.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução Márcia Sá Cavalcante. 10ª edição. Petrópolis-RJ. Vozes. 2015.

RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologias. Tradução Hilton Japiassu. 2ª edição. Rio de Janeiro-RJ. Editora Francisco Alves. 1983.

RICOEUR, Paul. Da Interpretação: ensaio sobre Freud. Rio de Janeiro-RJ. Imago Editora Ltda. 1977.


2 “Dilthey observou que as nossas relações com a realidade humana são de todo diferentes das nossas relações com a natureza. A realidade humana, tal como aparece no mundo histórico-social, é tal que podemos compreendê-la de dentro, porque podemos representá-la sobre o fundamento dos nossos próprios estados. A natureza, ao contrário, é muda e permanece sempre como algo externo. Portanto, nas ciências do espírito, que têm por objeto a realidade humana, o sujeito não se encontra diante de uma realidade estranha, mas diante de si mesmo, porque é homem que indaga e é homem que é indagado.” (ABBAGNANO, 2012, p. 184).

3O Dasein é um termo utilizado por Heidegger para expressar uma determinada qualidade que designaria a existência do próprio homem: “Esse ente, que nós mesmos sempre somos e que, entre as outras possibilidades de ser, possui a de questionar, designamos com o termo Dasein” (Ser e Tempo, §2º). O Dasein se estabelece como um primado ôntico, no sentido de que a ele pertence originariamente certa compreensão do Ser. (ABBAGNANO, 2012, p. 268).

4A distância temporal é uma expressão usada por Gadamer para ressaltar que a distância cronológica entre interpretante e interpretado não representa um obstáculo por transpor, mas uma condição básica da compreensão. Essa distância temporal representa um espaço preenchido pela tradição, que funciona como ponte ou cordão umbilical entre os dois termos (ou mundos distantes) da relação interpretativa (ABBAGNANO, 2012, p.341).

5Esse distanciamento é sempre alienante na medida em que se tenta pressupor uma ontologia que valoriza a objetificação da condição histórica nas ciências humanas.

6Vale ressaltar que não se identifica o texto apenas puramente como escrita. Paul Ricoeur sustenta a ideia de que a linguagem se efetua como discurso e por isso a dialética da fala e da escrita se sintetizam na realização do discurso como obra estruturada. Para ele, a objetificação da linguagem, nas obras de discurso, constitui a condição mais próxima do apontamento do discurso na escrita. Por isso, desenvolve a tríade do discurso-obra-escrita que representa aquilo que ele denomina ‘o mundo da obra’, a qual se estabelece como objeto de centro da questão hermenêutica e que, por sua vez, prepara o deslocamento do problema do texto em direção ao do mundo que ele abre (RICOEUR, 1983, p. 44).

7Esta noção de discurso como evento impõe-se desde que se leve em consideração a passagem de uma linguística da língua ou do código a uma linguística do discurso ou da mensagem […] Se o “signo” (fonológico e léxico) é a unidade da base da língua, a “frase” é a unidade da base do discurso. É a linguística da frase que suporta a dialética do evento e do sentido. (RICOEUR, 1983, p.46)

8A denotação do discurso, como estabeleceu Frege, acontece por meio da distinção entre seu sentido e sua referência. O sentido é o objeto real, é puramente imanente ao discurso. A referência é seu valor de verdade, sua pretensão de atingir a realidade. Somente o discurso visa às coisas, aplica-se à realidade, exprime o mundo (RICOEUR, 1983, p. 55).


1Possui graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2019) e pós-graduação lato sensu em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) (2021). Atualmente é graduando do curso de Filosofia pela Pontífica Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Responsabilidade Civil. É membro da comissão organizadora de eventos da graduação em filosofia pela PUC-RS