O COMPLEXO DA ARTE NA FORMAÇÃO DOS ESTUDANTES DAS ESCOLAS ESTADUAIS DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DO CEARÁ: UM ESTUDO ONTOMATERIALISTA

THE ART COMPLEX IN THE EDUCATION OF STUDENTS AT CEARÁ STATE PROFESSIONAL EDUCATION SCHOOLS: AN ONTOMATERIALIST STUDY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202504041922


Webster Guerreiro Belmino1
Henrique Tahan Novaes2


Resumo

As Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEP) no Ceará representam desde 2008 uma política educacional com expressiva dimensão. Enquanto escolas profissionais de tempo integral que integram o currículo propedêutico com o profissional, as EEEPs trabalham na perspectiva de formação integral do sujeito. No multifacetado currículo destas instituições, temos o componente da arte integrando os processos formativos dos alunos. A arte, enquanto parte das objetivações superiores (Santos, 2020) vai entrelaçar-se com os demais complexos na constituição do solo sobre o qual se ergue o ser social, em dimensões, composição e singularidades diferentes. É neste contexto que a pesquisa debruçou seus esforços, na compreensão do elemento arte na perspectiva formativa dos estudantes das EEEPs cujo objetivo principal foi delimitar os princípios, ações e resultados da formação dos estudantes.  Trabalhamos com o método do marxismo clássico que pressupõe o entendimento da historicidade humana na centralidade do trabalho, evidenciando a totalidade, a singularidade e a particularidade dos objetos, num trajeto analítico que parte do mais complexo para o mais simples. Ao estudarmos a arte nas EEEPs, deparamo-nos com uma realidade oposta ao que é expresso nos documentos oficiais e na retórica de autoridades políticas e educacionais. No máximo, podemos estabelecer que a arte é o adorno da formação dita integral nessas escolas. Serve como entretenimento oficial e oficioso, mantendo, alegoricamente, os sujeitos em uma ordem educacional.

Palavras-chave: Trabalho. Educação. Arte. Educação Profissional.

1 Introdução: “Nos deram espelhos e vimos um mundo doente3

A sociabilidade do capital, desde os seus primórdios até a contemporaneidade, entre os seus muitos meandros, tem se movimentado por meio de uma refinaria de ilusões. Nos mais diversos complexos sociais, utiliza-se de instrumentos que geram expectativas positivas que nunca se cumprem, tornando-se um mecanismo eficiente para manter o gênero humano em uma espera vã.

Mas, para início de conversa, de que humano é que estamos falando? Essa pergunta não tem a pretensão de compor uma retórica de cunho academicista. Aliás, os conceitos e temas estudados, que estarão dispostos ao longo deste relato, fruto da pesquisa realizada durante a realização do estágio pós-doutoral, na linha 4 – Políticas Educacionais, Gestão de Sistemas e Organizações, Trabalho e Movimentos Sociais, do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Estadual Paulista (UNESP), ancoram-se na ontometodologia marxista de análise da realidade social, o que implica a necessária busca pela essência do que se costuma abordar de modo aparente (Tonet, 2016).

Na esteira de grandes estudiosos que nos elucidaram os aspectos reais da vida humana em sua historicidade material, como Marx e Lukács, é possível compreender a natureza fundante do ser social: o trabalho. A história da humanidade pode ser considerada a partir de três pressupostos: I) para fazer história, o homem precisa viver. Assim, a primeira condição é a busca pela satisfação das necessidades essenciais da humanidade; II) após satisfazê-las, o homem cria outras necessidades, e também busca respostas para elas; III) no desenvolvimento histórico, o homem relaciona-se e procria, de modo que constitui uma relação social primeira: a família. Com isso, novas necessidades emergem, não mais restritas ao indivíduo, mas abrangendo a família, as classes sociais em formação, as nações e outros agrupamentos humanos (Marx apud Netto, 2012, p. 138-139).

Essa condição material em que são elaboradas as formas de produção, executadas a partir da força de trabalho, carrega nuances que precisam ser compreendidas se objetivamos, de fato, entender mais precisamente a realidade que nos cerca. Retomando o pensamento marxiano, o húngaro György Lukács (2013) defende a tese de que o trabalho é o complexo fundante do ser social, e mantém, com os demais complexos sociais (educação, direito, religião, arte etc.), uma relação de dependência ontológica e autonomia relativa.

Um complexo de complexos forma o ser humano. Isso não implica a composição de hierarquias ou sobreposições. Diante da complexidade da realidade, estabelecem-se interfaces de um sistema operacional multifuncional – para utilizar uma expressão da tecnologia contemporânea, tão sedutora aos ditos racionalistas. Compreender o trabalho como fundante do ser social é basilar para o entendimento do meio educacional, em particular, daquele sobre o qual nos debruçamos neste estudo.

A educação tem sido, ao longo da existência humana, o complexo social responsável por conservar o conhecimento acumulado pelas gerações anteriores, reproduzindo saberes às novas gerações. Essa ação se dá no aspecto amplo, ou seja, nas atividades do cotidiano, como, por exemplo, no ato de cozinhar; e no aspecto restrito, sendo a escolarização institucionalizada a sua maior expressão.

O surgimento das classes sociais, especialmente com a divisão social do trabalho, em que uma classe consegue acumular o produto das demais, acabou gerando o ócio, permitindo que indivíduos que integrassem a classe economicamente dominante tivessem condição de dedicar parte de seu tempo a atividades que não se resumissem à manutenção da própria existência propriamente dita. É nesse espaço/tempo que a educação restrita surge, separando dicotomicamente os sujeitos (Santos, 2020).

O desenvolvimento das forças produtivas e as mudanças no modo de produção da sobrevivência humana ao longo dos séculos criaram – ressaltando que isso não ocorreu de maneira linear, muito menos em etapas rígidas – as condições para a consolidação do capitalismo como sistema econômico e social. É nele que, de forma sistematizada e aprofundada, emerge a educação profissional escolarizada, um mecanismo de formação da mão de obra para atender às demandas contemporâneas do sistema do capital.

No capitalismo, a educação escolarizada, por meio de seus organismos gerenciadores – os governos –, ocupa um lugar central no processo de formação e, consequentemente, no controle das gerações humanas. Isso se reflete no acesso ao conhecimento histórico produzido e acumulado ao longo dos séculos, ou seja, ao que de mais significativo e valioso a humanidade construiu em seu percurso. Na panaceia social, da incontrolabilidade da exploração do capital e seus reflexos na vida cotidiana, a educação escolar é alimentada por outros complexos sociais que instrumentalizam o sujeito escolarizado a seguir padrões de comportamentos sociais, ou, em sua expressão romantizada, a formar cidadãos.

No Brasil, a educação profissional formal, ofertada pelo poder público, passou a ser mais sistematicamente estruturada como política pública com o Decreto n. 7.566, assinado em 1909 pelo presidente Nilo Peçanha, o qual criou as Escolas de Aprendizes Artífices. A partir desse marco, diversas iniciativas e reformulações foram realizadas ao longo do século XX no âmbito da educação profissional. Em 2008, o Ceará implementou, em sua rede estadual de educação, as escolas profissionais, ofertando o ensino profissionalizante integrado ao propedêutico e em tempo integral. As Escolas Estaduais de Educação Profissional (EEEPs), no ano de 2024, totalizaram 132 unidades, com 61.434 estudantes matriculados.

No multifacetado currículo das EEEPs, temos o componente da arte integrando os processos formativos dos alunos. A arte, enquanto parte das objetivações superiores (Santos, 2020), vai se entrelaçar com os demais complexos na constituição do solo sobre o qual se ergue o ser social, em dimensões e composições diversas, com acessos desiguais, conforme as condições históricas e sociais.

Com base nesse contexto brevemente exposto, a pesquisa concentrou seus esforços na compreensão do papel da arte na perspectiva formativa dos estudantes das EEEPs. Seu objetivo geral foi delimitar os princípios, ações e resultados da formação dos estudantes das Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará no campo da arte. Os objetivos específicos estabelecidos foram: a) categorizar como os conceitos de formação humana, estética e arte são organizados na política e currículo das EEEPs; b) analisar a legislação educacional e as orientações pedagógicas e curriculares das EEEPs em sua interseção com a arte; e c) levantar dados primários acerca de orçamento, profissionais, cursos e componentes curriculares que delimitam o objeto arte nas escolas.

O método do marxismo clássico pressupõe o entendimento da historicidade humana na centralidade do trabalho, evidenciando a totalidade, a singularidade e a particularidade dos objetos, num trajeto analítico que parte do mais complexo para o mais simples. A etapa de executar o caminho de volta aproxima o objeto de uma compreensão mais fiel do real, tendo em mãos os enriquecimentos já acumulados desde o ponto de partida.

Cientes desse desafio, pautamo-nos também no método ontomaterialista, porquanto ele é o único que pode, verdadeiramente, problematizar o objeto em questão: a formação em arte dos estudantes da rede estadual das escolas profissionais cearenses.

Problematizar, sim; responder, não. E o que fazem os pesquisadores se não podem oferecer respostas (definitivas) após longos períodos de investigação? Talvez uma reflexão suficiente, mas não completa acerca dessa questão, seja esta: eles aproximam ou distanciam as possíveis respostas sobre o objeto. O rótulo de verdade acabada, ou do relativismo gnosiológico, não cabe ao Materialismo Histórico e Dialético.

A concretude da existência e seu caminhar histórico se fazem presentes no objeto. Ele está em movimento. Mesmo quando recortamos o período a ser estudado, o próprio caminhar da história modifica-o continuamente, assim como aos sujeitos históricos que com ele se entrelaçam.

2 “O caos é uma ordem por decifrar4”: a sociabilidade do capital não suplanta a essência do complexo de complexos

O direito, assim como várias formas legislativas, as questões ambientais, o corpo do ideário religioso, as regras sociais de convivência, os saberes basilares da economia privada e comercial, os elementos de higienização corporal, os desafios da velhice, a movimentação do trânsito, dentre outros, são apenas alguns exemplos daquilo que a escola contemporânea assume como tarefa de adestramento dos sujeitos. De forma conjunta, a ciência é incorporada ao fazer educacional em suas mais diversas dimensões e formatos, com o intuito de tornar o humano, em sua vivência com o meio, em um ser operacional.

Se os diversos complexos coadunam no universo escolar, com a arte não seria diferente. Antes de discutirmos sobre a interseção entre arte e educação no campo escolar, cabe aqui uma breve, mas elucidativa reflexão sobre o complexo da arte na historicidade humana.

[…] a gênese histórica da arte, tomando como referência o seu produtor, bem como o referencial da recepção artística, precisa ser tratada no marco da história dos cinco sentidos humanos, que é, por sua vez, o marco da história universal da humanidade. E o desenvolvimento desses sentidos, inclusive seu refinamento e diferenciação, como escreve Lukács (1966), dependente completamente do trabalho. Por mais inconsciente que seja esteticamente esse desenvolvimento é, a certa altura, pressuposto para o início da atividade artística, que somente pode ocorrer de forma tardia em relação ao trabalho, conforme demonstrado através da influência do ritmo (Santos, 2014, p. 109).

A arte não funda o ser humano, mas, na materialidade histórica da humanidade, ela é um dos complexos indissociáveis de sua composição, enquanto singularidade de seu sujeito social.

A arte é, em todas as suas fases, um fenômeno social, tendo como objeto e fundamento a existência social dos homens e mulheres. O complexo artístico, portanto, tem o caráter de comprovar a imanência humana, visto que carrega em sua realização o ato de registrar a autoconsciência da humanidade (Santos, 2014, p 109).

Se a educação escolar carrega o intuito de fornecer instrumentos para que as novas gerações se adequem às necessidades primeiras da existência social controlada, o entendimento e a apreciação da arte, considerando sua amplitude na sociedade, não fugiria dos tentáculos dos bancos escolares. Os fenômenos sociais precisam ser reproduzidos e enquadrados na escola, garantindo sua continuidade sob a lógica do capital na formação humana.

Partimos da perspectiva de que a educação, em sentido escolar, possibilita ao ser humano se apropriar do conhecimento científico produzido ao longo da história, elevando-o a um concreto pensado. Ao retornar ao cotidiano, esse sujeito é capaz de modificá-lo, de modo a construir relações mais significativas no campo da existência. Nas palavras de Marx, “elevará a classe operária bastante acima do nível das classes superior e média” (1982, s/p). Mas a educação não tem a condição de mudar a estrutura social.

Para as massas dos trabalhadores, a escola jamais atendeu aos princípios de uma educação que primasse por uma qualidade educacional a fim de elevar a condição humana. A escola, numa sociedade capitalista, não possui essa finalidade. Mesmo aquelas frequentadas pelos donos dos meios produtivos têm como intuito instrumentalizar para a liderança, o controle, a organização produtiva, a ociosidade discursiva, a erudição vazia, entre diversas outras demandas de controle da burguesia sobre o conjunto de classe.

O capitalismo constrói uma educação particular com finalidade específica. Ela vem para atender à manutenção dos processos produtivos em curso, gerando acúmulo de capital através da exploração da força de trabalho. O interesse dessa classe de educação não é, nem poderá ser, no capitalismo, a expansão da psique humana, muito menos a emancipação dos sujeitos. A sociedade funciona para produzir, para circular e para consumir mercadorias.

O complexo da educação e o complexo da arte são incapazes de operar uma emancipação humana, pois eles não fundaram o ser social humano. O trabalho é o complexo social fundante. Sujeitos emancipados não são explorados em sua força de trabalho, para dizer o mínimo. Imagine, na perspectiva de uma grande abstração desligada da realidade material da vida, que um filho da classe trabalhadora frequente uma escola ou produza arte no nível mais “elevado” das condições: currículo estruturado em potência e harmonia para a produção de saberes, condições de tempo e espaço perfeitos para reflexão, nenhum tipo de preocupação com o mundo exterior à escola/ateliê. Esse mesmo sujeito idealizado, ao terminar sua formação, se insere no mundo real, onde sua força de trabalho será comprada e explorada pelos donos dos meios de produção. Ah, e se ele for o que explora? Sua vida cotidiana será também pautada por um processo de extração dos demais. Em síntese, sem diminuir a importância da luta e da defesa da elevação dos complexos sociais, dentre eles, o da arte e o da educação, o que chamamos de emancipação só poderá ocorrer mediante a radical transformação do complexo fundante.

Marx e Engels, em cuja filosofia se fundamenta a ciência materialista, não eram sujeitos emancipados, tampouco seres alienígenas, alheios ao cotidiano da vida humana na Terra. Sua condição financeira, embora distintas, não altera esse fato: eles estavam imersos na realidade concreta das relações sociais.

É diante desse contexto que precisamos refletir sobre os elementos que constituem o que se convencionou chamar de arte-educação. Os documentos que compõem esse campo educacional e político costumam colocar, em seus princípios, objetivos e finalidades, que esse campo didático proporciona a emancipação e o pleno desenvolvimento de uma catarse e autonomia estética em todas as dimensões artísticas. Existe um dito popular que afirma: no papel cabe tudo. O movimento idealista, fundamentado na visão racionalista de Descartes e Newton, opera num deslocamento da realidade, ainda que se manifeste retoricamente. A razão desse fenômeno já foi exposta nessa comunicação e fundamentada nos autores clássicos da análise ontológica do ser social. O que está expresso nos papéis legais da educação na vertente da arte-educação não é realizável, nem nos processos (estrutura de escolas, materiais didáticos, currículos, formação de professores, dentre outros), nem na finalidade (sujeito emancipado).

É necessário ressaltar que, ao elencar esses princípios fundamentais para compreender os limites da educação e da arte-educação, não nos colocamos numa trincheira oposta. Ao contrário, buscamos aprofundar as questões aqui abordadas. Nesse sentido, sem prejuízo aos estudos de outros teóricos, sugerimos a obra Arte-Educação e Formação Humana, do professor Deribaldo Santos (2020), como uma referência relevante.

No limite que a realidade nos impõe, a luta por espaços educativos que ampliem o acesso de estudantes a uma melhor formação, que inclua o contato com o objeto artístico e a produção da arte, é e sempre será uma dimensão do fazer educacional comprometido com as classes populares. E é nesse campo que seguiremos com as análises realizadas em consonância com os objetivos explicitados neste estudo em relação à arte na formação dos estudantes nas EEEPs.

3 “O que o mundo exigia de gente pobre, eles cumpriam até o ponto extremo5”: orientação política e curricular da arte nas EEEPs.

No ano de 2008, na gestão do então governador Cid Ferreira Gomes, foi iniciado, no Ceará, o projeto de implantação das Escolas Estaduais de Educação Profissional, com funcionamento em tempo integral. Essas escolas que integram, em sua matriz curricular, o ensino profissionalizante e o propedêutico, estavam entres as principais políticas públicas educacionais do Ceará.

Tabela 1 –Número de EEEP, municípios atendidos, cursos e matrículas de estudantes, de 2008 a 2024

Fonte: Elaboração própria, com base no Censo Escolar/Inep/SEDUC.

Entre os anos de 2008 até 2014, foram criadas 106 escolas profissionais. De 2015 a 2022, gestão do Governador Camilo Santana (atual Ministro da Educação), foram criadas 25 escolas, e na gestão (2023-2026) do atual Governador Elmano de Freitas, foi criada 1 escola. Desde a gestão Camilo Santana, o foco tem sido a criação de escolas em tempo integral não profissionalizantes.

Enquanto política pública educacional, as EEEPs se destacam no cenário cearense tanto pelo número de matrículas quanto pela visibilidade midiática, além dos resultados nos processos de avaliações externas de larga escala e, em particular, pelo protagonismo no cenário político, onde são apresentadas com uma retórica de ação assertiva do governo (Belmino, 2020).

3.1 “Pense, fale, compre, beba / Leia, vote, não se esqueça / Use, seja, ouça, diga / Não senhor, sim senhor”7: arte no currículo, legislação e orçamento das EEEPs

A legislação educacional é uma fonte de pesquisa que fornece, para esta investigação, uma condição substancial para inquirirmos as perguntas que cercam o nosso objeto. Esse movimento foi iniciado com uma busca para selecionarmos legislações que estivessem, de forma direta, circunscritas no universo da arte na formação dos estudantes nas EEEPs. Feita essa filtragem, foram selecionadas as seguintes legislações:

Quadro 1 – Legislação educacional no Ceará em referência à intersecção arte e EEEP, 2024

Fonte: elaboração própria (2024).

O Conselho Estadual de Educação publicou, em 2006, uma resolução específica para tratar sobre as normas regulamentadoras do ensino da Arte no Estado do Ceará (Ceará, 2006). Destaca-se a seguinte parte da resolução:

Art. 2º Entende-se por ensino de Artes as atividades que, a partir da sensibilização e criatividade em todas as suas formas, estimulem, provoquem, ensinem e, sobretudo, conduzam os estudantes para o conhecimento, os comportamentos éticos, a criatividade e a busca incessante do saber e do cumprimento de suas responsabilidades na construção da verdadeira cidadania(grifos nossos).

A instrumentalização da arte como objeto finalístico do exercício da cidadania, ou seja, o ensino de arte nas escolas, segundo a resolução do Conselho Estadual de Educação do Ceará, deve ser um instrumento que, de forma efetiva, faça o estudante se enquadrar no escopo da ordem social do capital.

Nas considerações que fundamentam a resolução, apontamos dois itens:

I – as aulas, na disciplina Artes, não se destinam a formar artistas e, sim, a dar oportunidade a todos, sem exclusão, de terem contato com a beleza, na natureza e nas obras de arte, para o desenvolvimento harmonioso de sua sensibilidade;
VI – por tudo isso, arte-educação é a própria essência do ato de ensinar e, sobretudo, de educar.

Percebe-se que a arte é tratada como elemento redentor do sujeito escolarizado, e, dentro das perspectivas funcionais de educação estética, esse papel é reflexivamente desnudado por Santos (2020).

No ano de 2016, em cumprimento à obrigatoriedade da Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, que instituiu o Plano Nacional de Educação (PNE), a Assembleia Legislativa do Ceará aprovou e o Governo do Estado sancionou o Plano Estadual de Educação, com vigência de 2016 a 2024.  

Nessa legislação estadual, que em grande parte reproduz a legislação nacional, destacam-se, especialmente por meio das metas, os trechos dedicados à arte. Antes de prosseguirmos com esses destaques, é relevante ressaltar que, em alguns momentos, o termo cultura aparece no sentido de artes. Aliás, vale enfatizar que o conceito de cultura, para além de sua definição etnográfica, é frequentemente utilizado para se referir à arte, à hierarquização de saberes, entre outros significados.

7.33. assegurar, progressivamente, a todas as escolas públicas de educação básica o acesso à energia elétrica, abastecimento de água tratada, esgotamento sanitário e manejo dos resíduos sólidos, garantir o acesso dos alunos a espaços para a prática esportiva, a bens culturais e artísticos e a equipamentos e laboratórios de ciências e, em cada edifício escolar, garantir a acessibilidade às pessoas com deficiência e uma alimentação especial para os portadores de patogenias alimentares […].
7.46. incluir, no ensino das práticas artísticas na educação básica, conteúdo que considere a diversidade étnico-cultural do Ceará, valorizando as matrizes de formação de nosso povo […].
7.51. garantir a implementação da oferta da disciplina de artes em todas as séries da educação básica, que deverá ser ministrada por profissionais habilitados considerando-se a formação específica dos professores nos componentes de Dança, Teatro, Música e Artes Visuais, garantindo-se a realização de concurso público para tanto (Ceará, 2016, s/p) (grifos nossos).

As estratégias aqui destacadas são todas da Meta 07, que trata sobre o fomento à “qualidade” da educação através do desempenho de proficiência nas avaliações externas em larga escala, como SPAECE, ENEM e SAEB.

No item 7.33, há um aspecto assertivo a ser mencionado: a mesma estratégia que, pelo imperativo da lei, se propõe a assegurar a todas as escolas condições básicas de funcionamento (eletricidade, água, esgotamento sanitário etc.), também inclui o acesso a bens culturais e artísticos. Apesar de termos aprendido com Drummond que “os lírios não nascem das leis”, é alentador perceber essa equiparação entre condições básicas e o espaço da arte. No entanto, os próprios indicadores do Censo Escolar revelam que, em 2024, oito anos após a promulgação da legislação, nem todas as escolas têm acesso ao básico.

Os outros dois itens vão estar relacionados a uma análise que será exposta mais adiante neste relatório, que tratará de forma mais direta sobre a composição curricular das artes nas EEEPs. Um destaque que precisamos mencionar é que a estratégia 7.51 estabeleceu a obrigatoriedade da oferta da disciplina de artes em todas as séries da educação básica. No recorte das EEEPs, até o ano de 2024, isso não foi cumprido, denotando a existência de ilegalidade, uma vez que, pelos meios legais, o plano estadual é bastante claro.

Com relação à Resolução n. 485 do Conselho Estadual de Educação (Ceará, 2020), que revisa uma normativa para regulamentar a Educação Profissional no Ceará, não há qualquer menção ao aspecto formativo em arte dos estudantes, seja nos fundamentos, seja no componente curricular. Entre os espaços obrigatórios, a resolução determina a existência de biblioteca, porém, sem referência à necessidade de um acervo literário, muito menos à promoção de atividades artístico-culturais. Ressaltamos, contudo, que há uma exigência quanto à obrigatoriedade de um acervo de livros alinhado ao perfil estabelecido no Plano de Curso.

A Lei n. 17.558 (Ceará, 2021a), que dispõe sobre a política de educação profissional articulada ao ensino médio no âmbito da rede pública de ensino do estado Ceará, não menciona a palavra arte nenhuma vez em seu corpo textual. A política, definida por essa Lei, que legalmente direciona as futuras ações, organizando os aspectos que constituem a educação profissional emanada pelo Governo do Estado, não traz para seu contexto os aspectos que devem postular a formação na arte.

Art. 1.º Esta Lei dispõe sobre a Política de Educação Profissional articulada ao ensino médio, no âmbito da Rede Estadual de Ensino do Ceará, objetivando garantir aos alunos a aquisição, conjugada ao ensino regular, de competências profissionais que os tornem aptos para a inserção e atuação no mercado trabalho e na vida em sociedade (grifos nossos).

 O objetivo geral da Educação Profissional não expressa, nem mesmo retoricamente, a formação integral, muito menos pressupõe qualquer aspecto da arte nessa dimensão. O parágrafo único que se segue estabelece dez objetivos específicos, detalhando o objetivo geral, e em nenhum deles existe a menção à arte.

Ainda no ano de 2021, um ano muito movimentado na política cearense – sendo o segundo ano da pandemia da Covid-19 e o que antecedeu as eleições gerais de 2022 –, o então governador Camilo Santana realizou uma série de eventos públicos para divulgar as ações do governo. Entre esses atos, destaca-se a aprovação da Lei n. 17.572, que instituiu o programa “Ceará Educa Mais”, um conjunto de medidas voltadas à política educacional do estado. A legislação prevê oito eixos e 25 ações, porém, em nenhum momento menciona a palavra “arte”, seja no contexto geral, seja no âmbito específico da educação profissional.

A análise expositiva realizada presentemente não exclui a possibilidade de outras legislações pertinentes. Toda seleção feita em uma pesquisa carrega um caráter arbitrário, definido a partir de determinados parâmetros. Tendo esse cuidado como princípio orientador, inferimos que, entre as legislações estudadas, a arte ocupa pouco ou nenhum espaço nos dispositivos legais da educação, e, possivelmente, também no cotidiano escolar. Dando continuidade à investigação do objeto, passaremos agora à análise dos componentes curriculares em si.

As diretrizes curriculares das Escolas Estaduais de Educação Profissional estão inseridas no contexto da política educacional. É no currículo que, em tese, deve se materializar o aspecto filosófico e legal estabelecido no âmbito geral do que se postula para formação dos sujeitos.

No caso específico deste objeto de estudo, a narrativa oficial sobre as EEEPs pressupõe uma formação integral do sujeito, apontando para a inovação do modelo curricular e estampando a publicidade e retórica daqueles que ocupam os cargos de dirigentes do governo e da educação. A arte, nessa narrativa, sempre ocupa um espaço que eles afirmam ser de fundamental importância para as práticas de formação dos jovens.

Aqueles que já tiveram a oportunidade de participar de algum tipo de evento da educação, um simpósio, encontro de gestores, inauguração de escola, abertura de feiras, dentre outros, devem ter percebido que o primeiro momento é sempre uma apresentação artística produzida em uma escola. Uma dança, um esquete teatral, uma aluna cantando o hino, um coral, um grupo de instrumentistas etc. Sempre uma abertura artística para acolher os presentes e, em seguida, a abertura formal, com os discursos das autoridades constituídas.

Essa configuração estrutural constrói um discurso de que a arte se faz presente no cotidiano escolar e de que aquele é o momento ideal para expor os talentos que pululam nas escolas. Cabem aqui algumas perguntas sobre o processo que culminou na apresentação artística: o tempo de preparo e os ensaios de professores e estudantes foram contemplados no currículo escolar? As condições materiais de figurino, instrumentos e outros foram supridas pelo poder público? De uma série de questões que poderíamos levantar, parece-nos que estas duas são centrais: tempo curricular assegurado e orçamento financeiro. Iniciemos pelo currículo escolar.

As EEEPs, com o funcionamento em tempo integral, constituem-se com 09 h/a diárias, sendo 45 h/a semanais durante 200 dias letivos (40 semanas, no mínimo), totalizando 1.800 h/a por ano. Ao final de 03 anos, o estudante cumpre 5.400 horas, sendo isso expresso em seu diploma de nível técnico. Essa carga horária total é composta por três grandes áreas curriculares: formação geral (área propedêutica), formação profissional (parte técnica específica do curso) e parte diversificada (formação para cidadania, mundo do trabalho, projeto de vida, empreendedorismo, projetos interdisciplinares etc.).

No ano de 2024, período temporal de estudo de nosso objeto, a distribuição do tempo curricular obedecia à lei n. 13.415/2071 – do “Novo Ensino Médio” – e a disciplina de artes contava com 40 h/a em uma das séries das EEEPs, geralmente o 1º ano.

A Formação Geral Básica inclui uma carga horária comum a todos os cursos, totalizando 2.160 horas/aula distribuídas entre as 12 (doze) disciplinas da BNCC, dentre elas a disciplina de arte. A adaptação na carga horária da formação geral (anteriormente 2.620 horas) atende às exigências do NEM, Lei n.º 13.415/2017. Conforme o § 5º do Artigo 3º dessa lei, estabelece-se um limite de 1.800 horas para a BNCC, equivalente a 2.160 horas/aula. É fundamental destacar que a carga horária total destinada à disciplina de Arte no EM é de 40 horas (Lira, 2024, p. 107).

As 40 horas/aula (cada uma com 50 minutos) destinadas ao componente curricular de arte representam 33,33 horas de relógio. Esse era o tempo total que um estudante de EEEP tinha em sua formação de 03 anos de ensino médio técnico profissional. Isso considerando que nenhuma hora seria destinada a provas, evento escolar ou sofreria falta de professor, ou seja, em condições ideais e perfeitas. Já é evidente o espaço formal que a arte ocupa na formação dos estudantes das EEEPs.

Pode ser que o aluno obtenha acesso ao estudo e ao fazer artístico em outro momento? No almoço, saindo de outra aula para ensaiar, por exemplo, após as aulas do dia, no final de semana? Pode sim. Mas não como projetado pelo desenho curricular oficial, e sim pela vontade/necessidade de estudantes e professores, contrariando a legislação vigente. As apresentações artísticas tão celebradas pelas autoridades nos eventos da educação não foram pensadas/montadas/ensaiadas no tempo pedagógico da disciplina de arte. Elas foram feitas apesar do currículo oficial.

O aluno tem em seu currículo apenas 40 horas/aula em toda a sua formação, o que significa dizer que o professor também só é lotado em 40 horas para 03 anos do ensino médio. Dito de outra forma, um professor que possuir uma carga horária semanal de 40 horas nas EEEPs, terá uma lotação de 04 horas/aula semanais em arte, ou seja, 10% de sua carga horária total.

Segue-se um exemplo prático da lotação de um professor de artes na EEEP:

Dentre as disciplinas da parte diversificada fui lotada em empreendedorismo, horário de estudo, Tecnologia Empresarial Socioeducacional, formação para a cidadania, projeto de vida e mundo do trabalho. Também tive a oportunidade de ser professora diretora de turma (PDT) (Lira, 2024, p.28-29).

Nenhum dos componentes curriculares mencionados na lotação possui uma carga horária de 1 h/aula por semana. Empreendedorismo (2h/a), Horário de Estudo (3 a 4 h/a), Tese (eram 2 h/a, não existe mais como disciplina do currículo), Formação para cidadania, que integra o Projeto Professor Diretor de Turma, têm 4 h/a na lotação do professor. Em síntese, na EEEP, o professor de artes tem como menor atribuição justamente o ensino de artes.

No ano de 2024, durante a realização desta pesquisa, foi aprovada a Lei n. 14.945/2024 (Brasil, 2024), que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/1996) e, consequentemente, reformou o Novo Ensino Médio. A mudança relevante para este recorte está na correção da carga horária da Formação Geral Básica, que havia sido reduzida para 1.800 horas e foi restabelecida para 2.400 horas. Com essa alteração, as redes escolares tiveram que adequar seus currículos para o ano letivo de 2025.

Nas EEEPs, como objeto específico deste estudo, passou a vigorar para os alunos ingressantes no ano de 2025 uma carga horária de artes total de 120 h/a, sendo que agora esse componente curricular está presente em todas as séries (1º, 2º e 3º ano) de todos os cursos. A mudança triplicou a carga horária de artes para os estudantes e, consequentemente, impactou a lotação dos professores, que passarão a ter 12 h/a aulas semanais dedicadas ao ensino de artes em um contrato de 40 h/a. No entanto, é importante analisar essa ampliação no contexto da carga horária total das EEEPs.

Gráfico 1 – Matriz curricular geral das 3 séries das EEEPs, 2024 e 2025

Fonte: Elaboração própria, com base no COEDP/SEDUC/CE (2024).

Assim como o compromisso metodológico ontomaterialista nos baliza para apresentarmos a mudança assertiva realizada na ampliação da carga horária de artes nas EEEPs, esse mesmo compromisso metodológico de análise do real nos impele ao movimento da totalidade, singularidade e particularidade, e, assim, aproximamos nossa análise do objeto. Dessa forma, mesmo com o aumento, a carga horária específica de artes (a partir de 2025, para os ingressantes) será de apenas 2,22% da carga horária total.

Outro aspecto relacionado ao exercício docente na arte relaciona-se ao que é determinado na composição dessa área do conhecimento no âmbito escolar. As Diretrizes Curriculares de Referência do Ceará (DRCR) (Seduc, 2021b) determinam que as linguagens obrigatórias no componente curricular Arte para o Ensino Médio são: dança, música, teatro e artes visuais. No Ceará, nas Instituições de Ensino Superior Públicas (IESP), as licenciaturas e/ou bacharelados que abrangem artes são de uma linguagem específica, por exemplo, Licenciatura em Artes Visuais. Não existe (ainda bem) no âmbito das IESP uma formação generalista. Na contramão disso, os professores da rede das EEEPs são obrigados, por lei, a serem polivalentes. Valentes sabemos que eles são, para encarar essa dura realidade.

Vamos agora com outro passo. Se os professores de artes têm formação específica e precisam lecionar as quatro linguagens, será que todo professor deste componente curricular é formado na área? Expliquemos. Mesmo um professor formado em uma linguagem já enfrenta o desafio das outras linguagens, imagine se existirem professores sem essa formação mínima? O estudo de Lira (2024) realiza uma análise com 16 professores de EEEPs de Fortaleza. São 132 escolas, portanto, a referida pesquisa conseguiu contemplar 12,12% do total de escolas, uma boa amostra estatística para inferências sobre esse objeto.

Cada participante foi questionado acerca de sua formação inicial, com o intuito de avaliar se a formação é adequada para que o docente possa ministrar a disciplina de arte no EM […]. Para essa pergunta, recebemos as seguintes respostas: 3 (três) participantes possuíam formação em artes visuais, 6 (seis) em teatro, 3 (três) em música, 1 (um) estava em processo de formação como graduando em música. Não identificamos nenhum professor com formação em dança. Além disto, 3 (três) professores tinham formação em letras e ministravam aulas de arte no EM, o que está em desacordo com a legislação atual (Lira, 2024, p. 112).

Se 03, de um total de 16 professores entrevistados, não possuem formação em artes, isso corresponde a 18.75%. Embora não seja possível extrapolar diretamente esse percentual para o conjunto das EEEPs, é fato que há professores lotados na disciplina de Artes sem a formação exigida por lei. É importante ressaltar que não existem dados públicos que permitam uma aferição precisa dessa realidade. Além disso, ao solicitarmos oficialmente essas informações, não obtivemos retorno específico até a conclusão desta pesquisa.

O estudo de Melo (2015) aponta que estudantes e professores, ao analisarem a prática do currículo da EEEP no cotidiano escolar, concordam que o tempo disponível para a Arte e o Esporte é pouco e insuficiente. Dado o caráter do estudo de Melo, existe a proposição de um plano de ação para “solucionar” a problemática encontrada, assim, a autora sugere a utilização de outros componentes curriculares para atividades e formação de arte, pelo professor específico e os demais.

No âmbito do componente curricular, a arte é ainda um fator decorativo, assim como as apresentações artísticas servem, na política governamental, como o entretenimento antes do início das atividades estabelecidas nos encontros. No diálogo com o objeto desta pesquisa, fomos levados a refletir sobre a existência, ou não, de cursos profissionais voltados para o campo da arte.

O Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos (Brasil, 2022) regulamenta a oferta de cursos técnicos no âmbito de instituições públicas e/ou privadas. Os cursos são divididos em Eixos Tecnológicos, agrupados a partir de perfis profissionais e também da Classificação Brasileira de ocupações, dentre outros. São 13 eixos profissionais, sendo um deles voltado para atividades profissionais artísticas.

Quadro 2 – Cursos do Eixo Tecnológico, Produção Cultural e Design nas Escolas Estaduais de Educação Profissional do Ceará, 2024

Fonte: Elaboração própria, com base em COEDP/SEDUC (2024_.

No ano de 2024, foram ofertados (Tabela 01) 53 cursos na rede das EEEPs. Destes, 5 cursos (9,43%) estão situados no campo da arte. Quando comparamos o componente curricular de arte com o currículo das EEEPs, percebemos que, no que se refere à proporcionalidade, este último tem menos representatividade.

Outro fator a ser destacado é que esses cursos estão distribuídos em 15 das 132 escolas e em 11 dos 109 municípios, sendo Fortaleza a cidade que concentra o maior número de cursos na área de artes, com a oferta de 5 cursos e a presença de 6 escolas.

Em relação ao plano orçamentário voltado para estabelecer condições de funcionalidade para a disciplina de arte dentro das EEEPs, é necessário relatar sobre as dificuldades em obter dados que pudessem aclarar melhor a situação. O Portal da Transparência, por exemplo, apresenta os elementos de despesa em agrupamentos, e não são estabelecidos níveis de detalhamentos que permitam acesso à informação clara, principalmente para quem não é um especialista em contabilidade pública, ou seja, justamente a população a quem se direciona o referido portal.

Utilizamos, então, a ação de consulta por meio do mecanismo da ouvidoria, com um conjunto de perguntas, na tentativa de obter as respostas que o estudo do objeto propunha. No entanto, ao recebermos a resposta à principal questão que formulamos (Qual a despesa orçamentária realizada no ano de 2023 para assegurar o funcionamento da arte nas escolas profissionais?), tivemos uma grande frustração, pois a orientação fornecida foi para acessar o Portal, o qual, conforme os elementos já expostos, não nos oferece a resposta desejada.

Também perguntamos se houve orçamento destinado à aquisição de livros literários e instrumentos musicais para as EEEPs no ano de 2023. A resposta foi que não houve nenhuma aquisição nesse sentido. A escolha desses dois elementos (livros e instrumentos) para efetuar a pergunta considerou que estes são basilares aos processos artísticos, além de que outros materiais utilizados nas artes visuais (tintas, cartolinas, massa de modelar, lápis de cor, pincéis, etc.) ou no plano do teatro (tecidos para figurinos, gesso, papéis variados etc.) podem ser encontrados em outros elementos de despesa que envolvem o material de uso comum nas escolas, os quais não possuem finalidade artística.

Por fim, destacamos que, na rede pública cearense, desde 2016, existe o Festival Alunos Que Inspiram, promovido pela Seduc, para toda a rede estadual, incluindo as EEEPs. Estruturado na forma de competição, o Festival teve, em 2024, as seguintes linguagens artísticas: desenho à mão livre, pintura, fotografia, grafite, poema, cordel, quadrinhos, crônica, dança, música intérprete, banda cover, música autoral, banda autoral e documentário em curta-metragem.

O Festival ocorre em três etapas: escolar (seleciona o trabalho que representará a escola), regional (seleciona o trabalho que representará as Coordenadorias Regionais de Desenvolvimento da Educação e as Secretarias Regionais de Fortaleza) e estadual (premia os vencedores a nível estadual).

Conforme o regulamento e o Portal da Transparência, não foi encontrado nenhum recurso orçamentário para que as escolas pudessem desenvolver os projetos participantes das linguagens artísticas. Existem orçamentos destinadas à realização do evento a nível regional e estadual, mas não de fomento artístico.

4 Considerações finais: a eternização do efêmero!

Bourdokan nos lembra de um ditado tuaregue: “Quando o machado entrou na floresta as árvores gritaram alegres: o cabo é um dos nossos” (2002, p. 114). É uma boa metáfora para a educação escolar na sociabilidade capitalista. A relação existente entre a aparente retórica educacional e um machado poderia ser menos afiada.

Isso não implica o abandono da perspectiva de superação de tal fardo histórico. O caminho, talvez, seja aquele de continuar caminhando e conhecendo, cada vez mais, o solo sob o qual nossos pés tocam.

Mas não é na ilusão romantizada da educação que reside a possibilidade de efetivação de uma sociabilidade humana que não seja pautada na exploração. Parece-nos ser o contrário disso. É no encontro com os limites objetivos da tarefa educacional que reside o limiar com uma consciente ação de superação do atual complexo do trabalho.

Ao estudarmos a arte nas EEEPs, deparamo-nos com uma realidade oposta ao que é expresso nos documentos oficiais e na retórica de autoridades políticas e educacionais. No máximo, podemos estabelecer que a arte é o adorno da formação dita integral nessas escolas. Serve como entretenimento oficial e oficioso, mantendo, alegoricamente, os sujeitos em uma ordem educacional.

Nas EEEPs, o espaço do componente curricular da arte é irrisório; a legislação e a política educacional mal a citam; os professores de arte têm sua carga horária de trabalho preenchida majoritariamente por outros componentes curriculares; inexiste orçamento para subsidiar o fazer artístico, isso sem adentrarmos na impossibilidade de que sujeitos inseridos nesta sociabilidade vivenciem o complexo artístico verdadeiramente. Mesmo na aparência, na superficialidade de uma educação fundamentada no capital, a arte não encontra espaço. O conceito propagado de arte-educação é tão palpável quanto o “país das maravilhas”.

Marx e Engels, para utilizar uma passagem clássica do Manifesto Comunista, ao analisarem o modo de produção feudal em seu declínio e o início do que viria a ser o modo de produção capitalista, afirmaram: “tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo que era sagrado é profanado (2005, p. 45). No estágio atual do capitalismo, é perceptível uma busca por eternizar tudo o que é efêmero. Estabelece-se a ideia de que a política educacional pode redimir as mazelas, de que as leis têm a potência de proteger os direitos sociais, de que as instituições religiosas são fontes de fé ou de que a arte pode ser a chave para a libertação. Nada mais vão do que essas e outras crenças de que o mundo, assim como está, é imutável, eterno.

A inevitabilidade da história, feita por sujeitos históricos, em movimento permanente, desde o salto ontológico do ser biológico para o ser social até os dias atuais, mostra-se implacável. Isso não implica prever o futuro, apenas nos assegura o desmanche do presente.


3 Legião Urbana. Índios. Rio de Janeiro: EMI Records Brasil Ltda. 1986.
4 SARAMAGO, José. O homem duplicado. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
5 KAFKA, Franz. Metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras. 1997.
6 Os dados da matrícula de 2024 foram solicitados diretamente à SEDUC, através da Coordenadoria da Educação Profissional (COEDP). Eles estão alinhados com as informações obtidas na base do Censo Escolar (maio/2024), correspondente ao momento em que os dados são congelados para fundamentar a matrícula inicial. Nesse período, as escolas realizam ajustes, e os dados são migrados para a base do Censo Escolar. Utilizamos essa referência anualmente até a divulgação oficial dos dados do Censo, no início do ano seguinte.
Atualmente, existem 132 EEEPs, distribuídas espacialmente em 103 municípios. No entanto, o número de municípios atendidos chega a 109, devido a consórcios municipais em que as vagas ofertadas são compartilhadas entre 02 ou 03 municípios.
7 PITTY. Admirável Chip Novo. Rio de Janeiro: Deckdisc, 2003.

Referências

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1 Docente na Secretaria de Educação do Ceará, Doutor em Educação (UECE) e-mail: prof.websterbelmino@gmail.com
2 Professor Livre Docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp Marília. e-mail: hetanov@gmail.com