REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202411280858
Luiz Flávio Porfírio Teddo1
RESUMO
Este artigo demonstra a necessidade da observância do equilíbrio fiscal, que não se limita ao art. 42 da Lei Complementar nº 101/2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), mas alcança todo o mandato eletivo. Demonstra que o Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 18/1999 tinha o intuito de exigir o equilíbrio fiscal em cada exercício financeiro, mas sofreu emenda e posteriormente foi vetado pelo Poder Executivo (art. 41). O veto foi mantido e dessa forma o princípio básico de planejamento, equilíbrio, limites e transparência foram preservados em outros dispositivos. O posicionamento do Tribunal de Contas do estado de Minas Gerais (TCE-MG) e da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) são claros no sentido de que a interpretação do equilíbrio das contas públicas e do controle da dívida não se limitam ao art. 42 da LRF. Esta interpretação está contida nas portarias da STN, que tem a prerrogativa1 de estabelecer normas de Contabilidade Pública para todos os entes da federação. Tais normas, bem como os entendimentos do TCE-MG são convergentes no sentido de que a disponibilidade de caixa deve ser interpretada como o caixa bruto, deduzido de todos os compromissos a pagar, sejam eles do ano de referência ou de anos anteriores e independente de marco temporal.
PALAVRAS-CHAVE: Setor Público. Lei de Responsabilidade Fiscal. Artigo 42. Restos a Pagar. Compromissos a pagar. Gestão Fiscal. Dívida Pública.
Abstract
This article demonstrates the need to observe fiscal balance, which is not limited to art. 42 of Complementary Law nº. 101/2000, the Fiscal Responsibility Law (LRF), but reaches the entire elective mandate. It demonstrates that Complementary Law Project (PLP) nº 18/1999 was intended to require fiscal balance in each financial year, but was amended and subsequently vetoed by the Executive Branch (art. 41). The veto was maintained and thus the basic principles of planning, balance, limits and transparency were preserved in other devices. The position of the Court of Auditors of the state of Minas Gerais (TCE-MG) and the National Treasury Secretariat (STN) are clear in the sense that the interpretation of the balance of public accounts and debt control are not limited to art. 42 of the LRF. This interpretation is contained in the STN ordinances, which have the prerogative to establish Public Accounting standards for all entities of the federation. Such standards, as well as the understandings of the TCE-MG are convergent in the sense that cash availability must be interpreted as gross cash, deducted from all commitments to be paid, whether from the reference year or from previous years and regardless of time frame.
Keywords: Public Sector. Fiscal Responsibility Law. Article 42. Remains Payable. Commitments to be paid. Tax Management. Public debt.
INTRODUÇÃO
A questão geradora deste artigo nasce da necessidade de compreender o equilíbrio das contas públicas no último ano de mandato eletivo, tendo como principal dispositivo legal o artigo 42 da LRF. Este estudo procura também explorar o conceito de “contrair compromisso de despesa” que não se limita ao ato de expedir empenhos. Através de trabalhos técnicos de autoridades, das normativas da STN e do entendimento do TCEMG, pretende-se oferecer o necessário esclarecimento neste importante momento do fim da gestão.
O CONTEXTO DA LEI DE RESPONSABILIDADE FISCAL
O primeiro artigo da LRF afirma que a lei estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, em atendimento ao que prescreve o art. 163 da carta magna (CR/88). A mesma LRF define que a responsabilidade na gestão fiscal requer planejamento, transparência, prevenção e combate aos riscos que podem causar desequilíbrio nas contas públicas. Para atender essa diretriz, a própria lei estabelece a necessidade de estabelecimento de metas, de natureza contábil e econômica, além de exigir obediência aos limites de índices, tais como de pessoal, de dívida, de endividamento, de inscrição de restos a pagar e a observância dos requisitos de renúncia de receita.
Mais adiante, a Emenda Constitucional nº 109 de 2021 incluiu o art. 167-A, criando o índice corrente, que é a relação entre receita corrente e despesa corrente. O artigo apregoa que, quando o índice corrente do ente federativo ultrapassar 95%, o Poder Executivo poderá aplicar mecanismos de ajuste fiscal vedando o aumento nos gastos com pessoal, tais como concessão de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração; criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa; alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa; admissão ou contratação de pessoal; realização de concurso público, exceto para as reposições de vacâncias; criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios, criação de despesa obrigatória; adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação; concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária. Apurado que o índice tenha superado 85%, as medidas nele indicadas podem ser, no todo ou em parte, implementadas por atos do Chefe do Poder Executivo com vigência imediata. Ainda que seja um dispostivo constitucional, faz parte do capítulo de finanças púbicas, na seção de orçamentos.
Um dispositivo de controle do endividamento de curto prazo na redação original da LC 101/2000 se encontrava no art. 41, que foi vetado. As razões do voto, por sua relevância, são trazidas a este estudo, in verbis e com meus grifos:
“A exemplo de vários outros limites e restrições contidos no projeto de lei complementar, o sentido original da introdução de uma regra para Restos a Pagar era promover o equilíbrio entre as aspirações da sociedade e os recursos que esta coloca à disposição do governo, evitando déficits imoderados e reiterados. Neste intuito, os Restos a Pagar deveriam ficar limitados às disponibilidades de caixa como forma de não transferir despesa de um exercício para outro sem a correspondente fonte de despesa. A redação final do dispositivo, no entanto, não manteve esse sentido original que se assentava na restrição básica de contrapartida entre a disponibilidade financeira e a autorização orçamentária. O dispositivo permite, primeiro, inscrever em Restos a Pagar várias despesas para, apenas depois, condicionar a inscrição das demais à existência de recursos em caixa. Tal prática fere o princípio do equilíbrio fiscal, pois faz com que sejam assumidos compromissos sem a disponibilidade financeira necessária para saldá-los, cria transtornos para a execução do orçamento e, finalmente, ocasiona o crescimento de Restos a Pagar que eqüivale, em termos financeiros, a crescimento de dívida pública. Assim, sugere-se oposição de veto a este dispositivo por ser contrário ao interesse público.”
É possível perceber que o intuito do projeto de lei original era o de não permitir inscrição de restos a pagar sem lastro em caixa “de um exercício para outro”, ou seja, durante o mandato e não somente no último ano de mandato, com o marco temporal a partir de primeiro de maio, conforme determina o art. 42.
O ART. 42 DA LRF E O ASPECTO CONTÁBIL DE PASSIVO FINANCEIRO
O art. 42 da LC 101/2000 proíbe o Chefe de cada poder “contrair obrigação de despesa” a partir do dia primeiro de maio do último ano de mandato sem que seja pago neste mesmo ano “ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”. É possível inferir deste dispositivo legal que a vedação inclui compromissos a pagar assumidos a partir de 1º de maio que tenham vencimento no exercício seguinte. Presume-se, a título de exemplo, uma obra contratada em maio do último ano de mandato, com preço de R$ 1.200.000,00 e com cronograma de execução e desembolso para um ano, começando em junho. Isso quer dizer que, em que pese a necessidade de empenhar, liquidar e pagar o valor de R$ 600.000,00 no último ano de mandato, em respeito ao cronograma de execução e desembolso, o valor total de R$ 1.200.000,00 deve ser reservado para o pagamento de toda a obra, visto que o compromisso de pagar foi contraído após o dia 1º de maio do último ano de mandato. O parágrafo único do mesmo artigo complementa que a disponibilidade de caixa será apurada com a dedução de todas as despesas compromissadas e encargos até o final do exercício financeiro. Por conseguinte, apurada a disponibilidade de caixa que é o disponível menos retenções não recolhidas e menos as despesas com vencimento até o final do último ano de mandato, deduz-se os demais compromissos a pagar que extrapolam o exercício financeiro, conforme estabelece o caput.
É importante ressaltar a diferença existente entre Passivo Financeiro e Compromisso a pagar à luz da LC 101/2000. Segundo a NBC TSP 28, Passivo Financeiro é uma obrigação contratual de entregar caixa ou outro ativo financeiro a outra entidade. Este conceito vai ao encontro do art. 58 da Lei 4.320/64, que sugere que o empenho da despesa cria obrigação de pagar. Este conceito é reiterado no art. 92 da Lei 4.320/64, uma vez que os restos a pagar, segregados em processados e não processados devem compor a dívida flutuante, que integra o Passivo Financeiro.
Todavia, a realidade não é bem assim. De acordo com Machado Júnior (2003, p. 97): “[…] Os restos a pagar não processados não devem compor o Passivo Financeiro, porque o fato gerador da obrigação de pagar não se efetivou no exercício”. Esta afirmação é mais verossímil do que o art. 58 da Lei 4.320/64, uma vez que o art. 62 da mesma lei determina que o pagamento somente pode ser efetuado após a regular liquidação. O conceito de liquidação da área privada é diferente da área pública, na medida em que, para esta última, somente é reconhecido o direito do fornecedor e, por conseguinte, somente é gerado um passivo, uma dívida líquida e certa no momento em que o fornecedor comprova que executou o contrato de serviços ou de fornecimento de material em plena conformidade com as condições contratadas e com o aceite, provisório e definitivo, da Administração Pública. Enquanto não houver a execução do contrato, não há dívida, mas sim mera expectativa de ocorrência.
Tendo explorado o aspecto contábil da obrigação de pagamento, exploremos a perspectiva fiscal do compromisso de despesa à luz da LRF.
“CONTRAIR OBRIGAÇÃO DE DESPESA”
Fernandes Vieira (2020) comenta o art. 42 da LRF e, por sua relevância, transcrevo ipsis litteris e com grifos meus:
[…] 2. O artigo 42 da LRF não proíbe a celebração de contratos ou as suas prorrogações no final do mandato, mesmo que venham a exceder o exercício financeiro. No caso de a despesa se estender por mais de um exercício, tratando-se de serviços contínuos, com fulcro no artigo 57, II, da Lei de Licitações, deverá constar do Plano Plurianual e estar prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias e na Lei Orçamentária Anual, relativamente a cada exercício pelos quais a mesma se prolongue. Deve o Administrador Público executar, a cada exercício, a parcela correspondente do Plano Plurianual.
O parecer transcrito não contradiz o art. 42 da LRF, na medida em que cita os serviços de caráter continuado que devem constar do PPA (Plano Plurianual de investimentos), LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e LOA (Lei Orçamentária Anual) e por assim ser, possuem característica muito diferente da contratação de uma obra, conforme exemplificado outrora, que não é de caráter continuado. Nesse sentido, o parecerista complementa, literalmente e com grifos meus:
[…] 3. É válido destacar que, em se tratando de outros serviços, que não possuam natureza contínua, as eventuais prorrogações devem estar adstritas ao respectivo crédito orçamentário, o que, de outro giro, significa dizer que, na hipótese de serem realizados aditivos contratuais, cuja prorrogação ultrapasse 31 de dezembro do exercício, este excedente deve ser registrado em restos a pagar, devendo, por conseguinte, a municipalidade deixar disponibilidade financeira para a cobertura destas despesas, em observância ao artigo 42 da LRF.
O que se pode interpretar da opinião jurídica que se coaduna com o teor do art. 42 é no sentido de que o compromisso de pagar, em sua totalidade, contraído a partir de 1º de maio do último ano de mandato deve possuir lastro orçamentário e financeiro para todas as parcelas vincendas até o último dia do mandato e que as demais parcelas devem possuir lastro financeiro, pois as parcelas de exercícios futuros exigirá o consumo do orçamento vigente à época de sua exigibilidade. Esta é a lógica da tese de que o prefeito retirante pode assumir compromisso a pagar, seja ele qual for, a partir de 1º de maio do último ano de mandato, desde que deixe o dinheiro depositado no banco para o seu sucessor processar e pagar, exceto as despesas de caráter continuado que respeitam o regime de competência da despesa e que, por esse motivo, utilizará a receita do mês respectivo.
Complementando Fernandes Vieira (2020), Souza Monteiro e Martins Lôbo (2018) opinam, literalmente e com grifos meus:
A expressão ‘contrair obrigação de despesa’ não alcança apenas as despesas empenhadas, pois ainda que a despesa não tenha sido empenhada, independentemente do motivo, deve-se deixar os recursos suficientes para o sucessor saldá-la, se o fornecedor de bens e serviços já cumpriu com seu dever fazendo a entrega dos bens ou prestando os serviços contratados.
Ainda que não seja possível, na forma da lei, o fornecimento sem que tenha sido expedido o empenho, vale ressaltar o conceito de que o compromisso de pagar vai além da emissão do empenho, pois o simples fato da assinatura de um termo de compromisso ou termo de fomento, por exemplo, sem que tenha sido feito o empenho, é considerado um compromisso de pagar nos termos do art. 42 da LRF.
O POSICIONAMENTO DO TCE-MG QUANTO AO ART. 42 DA LC 101/2000.
O TCE-MG, através do Processo de auditoria nº 1.110.098 tece comentários à questão de contrair despesa, expandindo o texto para o contexto e que, por sua relevância, transcrevo in verbis e com grifos meus:
1. A inscrição de despesas em restos a pagar sem disponibilidade financeira pode implicar desequilíbrio das contas públicas ao término de cada exercício financeiro, comprometer gravemente os orçamentos do ente municipal, além de caracterizar gestão pública temerária. O gestor público deve, ao contrair despesas, levar em conta os valores em caixa e os demais dados contábeis, financeiros e orçamentários disponíveis, sobretudo os contraídos nos dois últimos quadrimestres do último ano de seu mandato. 2. A assunção de despesas nos dois últimos quadrimestres do mandato de Prefeito Municipal, sem a correspondente disponibilidade financeira, constitui violação ao art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal, sujeitando o responsável à multa prevista no art. 85, inciso II, da Lei Complementar n. 102/08.
O TCE-MG enfatiza que a inscrição de despesa em restos a pagar em cada exercício financeiro sem disponibilidade financeira pode representar uma gestão temerária porque compromete os orçamentos futuros. A afirmação sugere que uma visão limitada ao art. 42 poderia recomendar uma interpretação no sentido de que o chefe do poder sem compromisso com a gestão financeira poderia comprometer o erário livremente, em cada ano de seu mandato, até o dia 30 de abril do último ano de mandato e deixar a dívida para o próximo gestor sem qualquer penalidade. Como exemplo, podemos citar o prefeito retirante que deixa R$ 100 milhões em caixa, R$ 80 milhões em dívida com fornecedores a pagar contraídos a partir de 1º de maio do último ano de mandato, R$ 40 milhões em fornecedores a pagar do dia dois de janeiro a trinta de abril e mais R$ 40 milhões em restos a pagar de exercícios anteriores. Por óbvio, o déficit financeiro seria de R$ 60 milhões. Porém, a visão restrita ao artigo 42 trataria a questão com total respaldo de legalidade, uma vez que a dívida contraída a partir do dia 1º de maio, que foi de R$ 80 milhões, teria lastro nos R$ 100 milhões em caixa para cobrí-la e ainda sobraria em caixa de R$ 20 milhões. Por essa razão, o art. 55 da LRF, mais precisamente no inciso III, estabelece as regras de limite para inscrição dos restos a pagar, pois deve-se observar a disponibilidade de caixa.
Importante ressaltar a manifestação do TCE-MG no Processo Consulta nº 986.699 que, por sua relevância, transcrevo in verbis:
[…] Em se tratando de contratação de obras ou serviços cuja execução irá ultrapassar o exercício financeiro do final de mandato, para fins de cumprimento do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, a disponibilidade de caixa deve ser suficiente para fazer face às parcelas da execução da obra que forem planejadas para aquele exercício. Para as parcelas compromissadas para o(s) exercício(s) subsequente(s), não é necessária a existência de recursos na data de encerramento do exercício financeiro. Porém, nesse caso, a contratação deverá estar incluída no Plano Plurianual, deverá haver previsão desta tanto na Lei de Diretrizes Orçamentárias quanto na Lei Orçamentária Anual relativas a cada exercício ao qual ela se estenda, tudo nos limites financeiros previstos no cronograma de execução físico-financeiro;
Ou seja, em se tratando de obra com previsão de execução por mais de um exercício financeiro, deve ela estar prevista no PPA e na LDO, para que tais instrumentos legais de planejamento do erário possam ser transferidos e detalhados na LOA de cada ano.
A cautela que se deve ter é a assunção de compromissos a pagar a partir de 1º de maio do último ano de mandato, que extrapola a simplória emissão de empenhos. Nesse sentido, o TCE-MG conceitua o termo que é o cerne do art. 42 da LRF na Inspeção Ordinária nº 704.637 que por ser relevante, transcrevo literalmente e com grifos meus:
Dessa forma, contrair obrigação de despesa nos últimos dois quadrimestres do mandato, é assumir compromissos em decorrência de diploma legal, contrato ou instrumento afim, que não existiam antes dos últimos oito meses do final do mandato, obrigações novas, essas, que o prefeito pode ou não assumir, diante da possibilidade de haver ou não recursos financeiros para pagar as correspondentes despesas. Diante do exposto, as disposições do art. 42 não se aplicam às despesas empenhadas nos últimos oito meses, que foram geradas em decorrência de obrigações assumidas anteriormente.
O TCE-MG, no Processo de auditoria nº 1.109.977 cita o art. 42 e explica que “a finalidade da lei é evitar o desequilíbrio financeiro no final do mandato”. Corroborando com os dois pareceristas citados anteriormente, o Relator afirma, in verbis e com meus grifos:
[…] 6. A violação à norma do art. 42 da LRF não deve ser considerada insignificante em nenhuma hipótese, uma vez que visa a evitar a corrosão do orçamento do gestor futuro por dívidas de gestor anterior, violação esta que, caso ocorra, possui efeitos gravíssimos a longo prazo, inviabilizando a promoção de políticas públicas ou investimentos para a gestão seguinte, porquanto já comprometido o erário com despesas assumidas no passado.
Com base nessa tese, o TCE-MG emitiu o acórdão com a seguinte ementa:
Acórdão I) julgar procedente o apontamento constante do relatório técnico de auditoria, ficando caracterizado o descumprimento ao disposto no caput do art. 42 da Lei Complementar n. 101/2000, tendo em vista que o Chefe do Poder Executivo do Município de Cantagalo, Sr. […], contraiu obrigações em desacordo com o disposto no citado artigo, correspondentes à importância de R$ 244.879,80 (duzentos e quarenta e quatro mil, oitocentos e setenta e nove reais e oitenta centavos); II) aplicar multa ao Sr. […], no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), com espeque no art. 85, II, da Lei Complementar n° 102/2008 – Lei Orgânica do Tribunal de Contas (Auditoria nº 1.109.977).
No processo Auditoria nº 1.109.975 do TCE-MG, outros prefeitos foram multados por procederem “contraindo obrigações de despesas que não poderiam ser integralmente cumpridas dentro do respectivo exercício financeiro – 2020 – e para as quais não havia disponibilidade suficiente em caixa”.
O Tribunal de Contas do estado de Minas Gerais (TCE-MG) alertou os chefes de poder no Processo Consulta nº 751.506 no sentido de que, ipsis litteris:
[…] 3 – Não sendo legítima a despesa assumida ao final do mandato do gestor, tanto no aspecto legal quanto financeiro, este pode vir a ser responsabilizado, nos termos do § 4º do art. 59 da Lei 4.320/64, podendo também incorrer em crime contra as finanças públicas, nos termos do art. 359-C da Lei 10.028/2000.
É compreensível que muitos profissionais e autores interpretem o texto da lei de forma restrita ao art. 42, mas é preciso muita cautela, pois existem outros dispositivos que devem ser observados quando o contexto da LRF é colocada em prática, conforme exploraremos a seguir e em complemento ao que assevera o art. 55 da LRF.
O POSICIONAMENTO DA SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL QUANTO AO ART. 42 DA LC 101/2000.
De acordo com o MDF / STN (2023, p. 566), o “Demonstrativo da Disponibilidade de caixa e dos Restos a Pagar” faz parte do Relatório de Gestão Fiscal (RGF) e tem a finalidade de dar transparência ao equilíbrio entre a disponibilidade de caixa e as obrigações de despesa e também à inscrição em Restos a Pagar Não Processados nesta disponibilidade de caixa. Ou seja, neste demonstrativo, a STN exige a demonstração da disponibilidade bruta de caixa e, deduzindo desta, o saldo dos restos a pagar processados, do exercício e de exercícios anteriores, além das demais obrigações financeiras, tais como retenções a recolher e, por fim, demonstra a disponibilidade de caixa líquida após a inscrição dos restos a pagar não processados do exercício. Este mesmo critério se aplica ao último ano de mandato eletivo, sem observar a delimitação temporal do art. 42, pois observa a determinação do art. 55. A STN se justifica de forma contundente sobre esta metodologia, mesclando-a com o art. 42 e que por ser de tal monta relevante, transcrevo literalmente com meus grifos:
Esse demonstrativo possibilita também a verificação do cumprimento do art. 42 da LRF, de forma que no último ano de mandato da gestão administrativo-financeira de cada órgão referido no art. 20 da mesma lei haja suficiente disponibilidade de caixa para cobrir as obrigações de despesa contraídas. Essa verificação se dá pelo confronto das obrigações contraídas com a disponibilidade de caixa existente. Apesar de a restrição estabelecida no art. 42 se limitar aos dois últimos quadrimestres do respectivo mandato, a LRF estabelece que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente em que se previnem riscos e se corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, o que impõe que ajustes devam ser observados no decorrer de todo o mandato, de forma que as receitas não sejam superestimadas nem haja acúmulo excessivo de passivos financeiros MDF / STN (2023, p. 567).
Por essas razões, o MDF / STN (2023, p. 583) apura a disponibilidade de caixa pelo Caixa bruto por fonte de recursos, deduzidos os restos a pagar liquidados de exercícios anteriores e do exercício, os restos a pagar não liquidados de exercícios anteriores e do exercício, demais obrigações financeiras, empenhos cancelados e por fim a disponibilidade líquida de caixa após todas essas deduções.
Importante também ressaltar o MCASP (2023, p. 162), que faz referência ao art. 58 da Lei 4.320/64, que em tese criaria obrigação de pagar, em contraponto com a necessidade de liquidação para a despesa se transformar em dívida líquida e certa. Salienta que a obrigação não está somente no Passivo do Balanço Patrimonial, conforme explorado anteriormente. Ainda que há a expectativa do empenho da despesa se transformar em uma dívida, ela previsa estar provisionada para comprometer o recurso financeiro. E é por isso que se trata de “uma obrigação financeira para fins de cálculo do superávit financeiro, fonte da abertura de créditos adicionais nos exercícios seguintes”. O mesmo MCASP (2023, p. 131) exemplifica com números a dedução de todos os restos a pagar para a apuração do superávit.
CONCLUSÃO
Este artigo objetivou demonstrar a necessidade de interpretar o equilíbrio da gestão fiscal no último ano de mandato e a necessidade da observância dos ditames do art. 42 da LRF no contexto da Lei. O projeto de lei original da LC 101/2000 previa, no art. 41, que somente poder-se-ia inscrever dívidas para pagamento em exercícios financeiros futuros, dentro do mandato, com lastro em caixa. Houve uma emenda substitutiva que subverteu o texto original e maculou o Princípio básico do equilíbrio das contas públicas. Por isso, a emenda foi vetada. Veto mantido, permaneceu o art. 42, que não é o único que se deve adotar no último ano de mandato e nos exercícios financeiros do decorrer do mandato. Com base na LRF, art. 1º, § 1º; art. 42, § 1º e art. 55, III, foram regulamentados os limites previstos no art. 59 da LRF, em especial o inciso II através das portarias STN/MF Nº 699, de 7 de julho de 2023, Portaria Conjunta STN/SOF n° 23, de 11 de Dezembro de 2023, Portaria Conjunta STN/SRPC n° 22, de 11 de Dezembro de 2023 e Portaria STN/MF nº 1568, de 11 de Dezembro de 2023.
Destaca-se ainda que, conforme o MDF (2023, p. 570), a LRF não incentiva a quebra de contratos celebrados entre a Administração Pública e seus fornecedores, pois a anulação de empenhos por indisponibilidade de caixa deve estar lastreada em supressões contratuais na forma da lei de licitações e não se pode lesar o fornecedor de boa fé.
São por essas razões que se recomenda aos Chefes de Poder (Legislativo e Executivo Municipal) a observância do necessário lastro financeiro para toda e qualquer dívida de curto prazo que está sendo transferida para o próximo gestor, entendendo dívida como a exigibilidade de curto prazo, os restos a pagar, processados e não processados, do exercício e de exercícios anteriores, além do saldo das retenções não recolhidas e que integra a dívida flutuante no Passivo Financeiro, tais como INSS de servidores, empréstimos consignados e outros.
O Tribunal de Contas de Minas Gerais tende a acompanhar as normativas da STN e por isso a observância das regras aqui contidas resguarda o gestor retirante de problemas futuros.
1com arrimo no inciso I do art. 17 da Lei nº 10.180, de 6 de fevereiro de 2001, e no inciso I do art. 6º do Decreto nº 6.976, de 2009, no art. 18 da Lei nº 10.180, de 2001, no art. 7º do Decreto nº 6.976, de 2009; no art. 20, inciso VII, do Anexo I do Decreto nº 11.3563, de 1º de janeiro de 2023.
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MINAS GERAIS. Tribunal de Contas de Minas Gerais. (1. Câmara). Processo nº 1110098. Auditoria. Ementa: Auditoria de conformidade. Prefeitura Municipal. Achado de auditoria. Despesas contraídas nos dois últimos quadrimestres do mandato do Chefe do Executivo sem a correspondente disponibilidade financeira. Inobservância do enunciado do art. 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Aplicação de multa. Relator: Conselheiro Substituto Hamilton Coelho, 06 de dezembro de 2022. Disponível em: https://www.tce.mg.gov.br/. Acesso em: 01 nov. 2024.
MINAS GERAIS. Tribunal de Contas de Minas Gerais. (2. Câmara). Processo nº 704637. Inspeção Ordinária. Ementa: Inspeção Ordinária – Prefeitura Municipal – ausência de escrituração diária do livro de tesouraria – utilização direta do produto da arrecadação de tributos para pagamento de despesas – ausência de citação do responsável – não demonstrado dano ao erário – apropriação de receitas futuras – ausência de contabilização de rendimento – não caracterizada má fé nem apurado dano ao erário – inscrição de despesas em restos a pagar sem disponibilidade financeira – não penalizado o gestor – ausência de repasses dos recursos destinados ao ensino – irregularidade – cumpridos os percentuais constitucionais e legais mínimos exigidos – não penalizado o gestor – não comprometido o percentual mínimo constitucional exigido para aplicação na saúde – recomendações à atual administração e à contabilidade municipal – arquivamento dos autos. Relator: Conselheiro Eduardo Carone Costa, 28 de junho de 2006. Disponível em: https://www.tce.mg.gov.br/. Acesso em: 01 nov. 2024.
MINAS GERAIS. Tribunal de Contas de Minas Gerais. (2. Câmara). Processo nº 1109975. Auditoria. Ementa: Prefeitura Municipal. Inscrição em restos a pagar nos dois últimos quadrimestres do mandato. Grave infração à norma legal. Procedência. Aplicação de multa. Determinação. Arquivamento. Relator: Conselheiro Substituto Telmo Passareli, 15 de setembro de 2022. Disponível em: https://www.tce.mg.gov.br/. Acesso em: 01 nov. 2024.
MINAS GERAIS. Tribunal de Contas de Minas Gerais. (2. Câmara). Processo nº 1109977. Auditoria. Ementa: Município. Orçamento. Restos a Pagar. Art. 42 da Lei Complementar nº 101/2000. Despesa pública. Mandato. Dois últimos quadrimestres. Obrigações. Disponibilidade de Caixa. Análise da Legalidade. Competência do Tribunal de Contas. Argumentos de defesa. Gastos com a pandemia da Covid-19. Art. 65, § 1º, II, da LRF. Ampliação do objeto. Impossibilidade. Despesas gerais do ente. Exceção do art. 42 da LRF. Exclusão. Insignificância. Ausência. Efeitos nefastos a longo prazo pelo descumprimento da norma. Fidedignidade dos dados do SICOM. Responsabilidade pessoal do agente. Elementos de responsabilização criminal. Art. 359-c do Código Penal. Distinção do processo administrativo e penal. Elemento volitivo prescindível. Procedência do apontamento. Responsabilização. Aplicação de multa. Determinações. Arquivamento. Relator: Conselheiro Wanderley Ávila, 30 de agosto de 2022. Disponível em: https://www.tce.mg.gov.br/. Acesso em: 01 nov. 2024.
MINAS GERAIS. Tribunal de Contas de Minas Gerais. (Tribunal Pleno). Processo nº 751506. Consulta. Ementa: a) despesas, tais como folha de pessoal, do mês de dezembro, contraídas antes dos últimos oito meses do final de mandato – pagamento com recursos do FPM recebidos em janeiro do ano seguinte – possibilidade, desde que empenhadas e autorizadas legalmente – princípio da continuidade; b) assunção de despesa nova nos dois últimos quadrimestres do final de mandato – observância das normas do art. 42 da LC nº 101/2000; c) transferências constitucionais e legais – reconhecimento da arrecadação – observância das orientações técnicas expedidas pelo Ministério da Fazenda e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; d) alerta acerca do § 4º do art. 59 da Lei 4.320/64 e do art. 359-c da Lei 10.028/2000. Relator: Conselheiro Eduardo Carone Costa, 27 de junho de 2012. Disponível em: https://www.tce.mg.gov.br/. Acesso em: 01 nov. 2024.
MINAS GERAIS. Tribunal de Contas de Minas Gerais. (Tribunal Pleno). Processo nº 986699. Consulta. Ementa: Câmara Municipal. Lei de Responsabilidade Fiscal. Contratação de obras ou serviços cuja execução ultrapasse o exercício financeiro de final de mandato. Disponibilidade de Caixa. Obrigatoriedade de provisão de recursos financeiros para as parcelas planejadas para o exercício em curso. Não obrigatoriedade para as despesas compromissadas para os exercícios subsequentes. Relator: Conselheiro Mauri Torres, 27 de setembro de 2023. Disponível em: https://www.tce.mg.gov.br/. Acesso em: 01 nov. 2024.
SOUSA MONTEIRO, Marcelo; MARTINS LÔBO, Bruno Jesus. Cartilha de Encerramento de Exercício e de Mandato. Fortaleza, novembro de 2018. Controladoria e Ouvidoria Geral do Estado do Ceará – Coordenadoria de Ações Estratégicas, 19 páginas. Disponível em: https://www.cge.ce.gov.br/wp-content/uploads/sites/20/2018/11/Cartilha-de-Encerramento-de-Exerc%C3%ADcio-eMandato-2018.pdf. Acesso em: 01 nov. 2024.
1Luiz Flávio Porfírio Teddo é Contador, MBA em Gestão Pública e Mestre em Administração no segmento de políticas públicas. Presta serviços para a Administração Pública Municipal desde 1995 e atua na assessoria, consultoria, capacitação e reciclagem de servidores públicos através da Silva Teddo Assessoria Governamental.