O ABUSO DE AUTORIDADE: ANÁLISE HISTÓRICA, JURÍDICA E APLICABILIDADE DA LEI

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202509141918


Edmar Kiochi Hirota


Resumo

Este artigo aborda a temática do abuso de autoridade praticado por agentes públicos no exercício de suas funções, especialmente quando suas ações extrapolam os limites legais e violam os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Tais condutas, além de comprometerem a integridade das instituições públicas, configuram afronta direta aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana. O trabalho também analisa a evolução histórica das legislações que tratam do tema, com foco na atual Lei nº 13.869/2019, que dispõe sobre os crimes de abuso de autoridade e estabelece sanções para os agentes que incorrem nessa prática. Conclui-se que o abuso de autoridade, muitas vezes, decorre da percepção equivocada de superioridade por parte do agente estatal, o que reforça a necessidade de mecanismos eficazes de controle, responsabilização e educação institucional.

Palavras-chave: Abuso de autoridade. Agente público. Direitos fundamentais. Lei 13.869/2019. Responsabilização.

Resumo em Língua Estrangeira:

This article addresses the issue of abuse of authority by public officials in the exercise of their duties, especially when their actions exceed legal limits and violate the fundamental rights and guarantees of citizens. Such conduct, in addition to compromising the integrity of public institutions, directly violates human rights and human dignity. The paper also analyzes the historical evolution of legislation addressing this issue, focusing on the current Law No. 13.869/2019, which establishes the crimes of abuse of authority and provisions for officials who engage in this practice. It concludes that abuse of authority often stems from a mistaken perception of superiority on the part of the state official, which reinforces the need for effective mechanisms of oversight, accountability, and institutional education.

Palavra-Chave: em Língua Estrangeira: Abuse of authority. Public official. Fundamental rights. Law No. 13.869/2019. Responsibility.

Introdução

O abuso de autoridade, um tema antigo e, ainda hoje, extremamente atual, reveste-se de suma importância para o campo jurídico e para a ordem democrática como um todo, merecendo discussão e compreensão urgentes por todos. Sua relevância decorre dos abusos que nele ocorrem, os quais devem ser coibidos em respeito aos direitos dos cidadãos, assegurados pela Constituição Federal e pelas garantias a ela inerentes.

Constata-se que tal tema é de extrema relevância para o Direito, pois, além de impor limites à atuação dos agentes públicos, permeia grandes áreas jurídicas, como o Direito Constitucional, o Direito Penal, o Direito Administrativo, o Direito Civil e as áreas processuais. Trata-se de tema singular para a ordem, pois, para a sua manutenção, é indispensável o uso legítimo da autoridade; contudo, o emprego dessa autoridade de forma excessiva e sem freios compromete essa ordem.

Os excessos na abordagem, na forma de tratar o outro, de falar, de impor, exigir, coibir ou obrigar, levam os agentes públicos a adotar medidas que muitas vezes se revelam desumanas. O poder conferido a tais autoridades não autoriza o maltrato, a agressão ou a ultrapassagem de quaisquer limites profissionais. Um policial não tem o direito de imobilizar alguém até a morte por ser policial; um juiz não tem o direito de ser atendido com prioridade apenas por sua função; um promotor não está isento das obrigações para com a sociedade, como, por exemplo, o uso de máscara em tempos de pandemia. Nenhum desses agentes tem o direito de gritar, ofender ou agredir alguém por atuarem no poder público. O profissional exercendo função pública tem seus direitos garantidos e precisa desempenhar sua função, mas suas obrigações devem ser cumpridas de maneira proporcional à conduta.

O abuso de autoridade é crime tipificado na Lei 13.869/2019 e deve ser denunciado. O agente que o comete pode ser afastado de suas funções por tempo indeterminado e pode até perder o emprego. A palavra “abuso” remete ao latim abusu, significando comportamento inadequado ou excessivo. Nas relações humanas, abuso corresponde a conduta que envolva desnível de poder, ausência de justiça e desordem. Essa conduta está descrita na Lei 13.869/2019, a qual tipifica como crime as respectivas condutas.

É do conhecimento de todos que as funções dos agentes públicos visam preservar e manter a ordem pública; para isso, o Estado concede a esses agentes o poder de polícia, o qual deve ser utilizado em conformidade com o exercício da profissão e sempre respeitando a dignidade da pessoa humana. Nos crimes de abuso de autoridade, esses direitos costumam ser violados, tema que será abordado no presente trabalho.

1. Evolução Histórica do Abuso de Autoridade

A problemática do abuso de autoridade acompanha a organização social desde os primórdios da vida em comunidade. Embora sua tipificação penal seja relativamente recente, a prática de atos arbitrários por aqueles que detêm poder remonta às primeiras civilizações. Desde muito cedo se reconheceu que a concentração de autoridade, quando não submetida a limites normativos, tende a se converter em instrumento de opressão e violação de direitos individuais.

Nesse sentido, já no século XVIII, Montesquieu advertia em sua clássica obra O Espírito das Leis que “todo homem que possui poder é inclinado a dele abusar; vai até encontrar limites”. Essa afirmação ilustra a necessidade de mecanismos institucionais de controle, a fim de coibir práticas autoritárias e assegurar a proteção das liberdades fundamentais.

Do ponto de vista histórico, um dos marcos mais relevantes no combate a tais abusos foi a promulgação da Declaração de Direitos (Bill of Rights), em 1689, na Inglaterra, durante o reinado de Guilherme de Orange. O documento estabeleceu garantias essenciais, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade privada, além de reforçar a ilegalidade de prisões ou perseguições motivadas por petições legítimas dirigidas ao rei. Esse diploma representou uma das primeiras limitações formais ao exercício arbitrário da autoridade estatal.

No Brasil, o tema somente ganhou regulamentação específica a partir da Lei nº 4.898, de 9 de dezembro de 1965, considerada o primeiro instrumento jurídico voltado à repressão dos abusos cometidos por agentes públicos. A norma disciplinava não apenas os crimes de abuso de autoridade, mas também o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativa, civil e penal dos agentes envolvidos.

Apesar de representar um avanço formal, a legislação de 1965 surgiu em um contexto político autoritário, o que restringiu sua efetividade prática. Conforme aponta Santos (2003, p. 19), tratava-se de uma lei “meramente simbólica, promocional e demagógica”, já que as sanções previstas eram de baixa gravidade, frequentemente convertidas em multa ou alcançadas pela prescrição. Ainda assim, sua finalidade precípua era a de prevenir abusos cometidos por autoridades no exercício de suas funções, estabelecendo sanções administrativas, civis e penais.

Do ponto de vista conceitual, a lei buscava proteger direitos fundamentais previstos na Constituição, como a inviolabilidade de domicílio, o sigilo de correspondência, a liberdade de locomoção, a integridade física e a livre manifestação do pensamento. As condutas tipificadas abrangiam desde prisões ilegais não comunicadas ao juiz até o uso arbitrário da força em abordagens policiais, passando por situações em que membros do Judiciário ou do Ministério Público se colocavam acima da lei.

Outro aspecto relevante era a distinção entre abuso de autoridade e abuso de poder. Enquanto o primeiro possuía natureza penal específica, o segundo constituía expressão genérica que incluía também abusos de caráter político e econômico.

Com o passar do tempo, a legislação mostrou-se insuficiente diante das transformações sociais e políticas do país. Assim, em 2019, a Lei nº 4.898/65 foi revogada e substituída pela Lei nº 13.869/2019, que reformulou o tratamento jurídico do abuso de autoridade, trazendo mudanças relevantes quanto à definição das condutas puníveis e ao regime de sanções aplicáveis.

A jurisprudência da época sintetizou bem o alcance limitado da norma de 1965 ao afirmar que “as infrações previstas na Lei nº 4.898/65 visam à proteção da autoridade pública, e não da pessoa física, sendo essa a razão pela qual o art. 6º, § 3º, prevê a ordem de aplicação e a cumulação de penalidades” (JUTACRIM, 14/226).

1.1 A Lei nº 4.898/1965

A Lei nº 4.898/65 representou um avanço jurídico para a proteção dos direitos do cidadão contra eventuais excessos do Estado. Seu objetivo central era reprimir condutas que violassem garantias constitucionais como o direito à vida, à liberdade de locomoção, à inviolabilidade de domicílio, ao sigilo de correspondência, ao exercício profissional e à proteção contra prisões arbitrárias.

Os crimes de abuso de autoridade consistiam, portanto, em atos praticados por agentes públicos que ultrapassassem os limites legais de sua atuação, tais como:

  • abordagens policiais com violência ou prisão não comunicada ao juiz;
  • detenções ilegais de cidadãos sem sentença judicial;
  • autoridades que, pelo cargo, se colocavam acima da lei, como juízes, desembargadores ou membros do Ministério Público que desrespeitavam a igualdade de tratamento jurídico.

Trata-se, portanto, de um ato lesivo à honra, ao patrimônio ou à liberdade do indivíduo, cometido mediante desvio ou excesso de poder sem a devida competência legal, como expresso nos artigos 3º e 4º da referida lei.

Importante destacar que a legislação distinguia o abuso de autoridade do abuso de poder: o primeiro tipificado como crime, enquanto o segundo permanecia como expressão genérica, abrangendo abusos de natureza econômica e política.

Todavia, a Lei nº 4.898/65 foi revogada em 2019, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, sendo substituída pela Lei nº 13.869/2019, que trouxe modificações relevantes quanto à definição, abrangência e punição do abuso de autoridade.

Nesse sentido, a jurisprudência da época reforçava que “as infrações previstas na Lei nº 4.898/65 visam à proteção da autoridade pública, e não da pessoa física, sendo essa a razão pela qual o art. 6º, § 3º, prevê a ordem de aplicação e a cumulação de penalidades” (JUTACRIM, 14/226).

1.2 A Lei nº 13.869/2019

Aprovada em 05 de setembro de 2019, a Lei nº 13.869/2019, conhecida como Nova Lei de Abuso de Autoridade, revogou a antiga Lei nº 4.898/1965 e promoveu alterações relevantes em diversos diplomas jurídicos, como a Lei da Prisão Temporária, a Lei de Interceptações Telefônicas, o Código Penal e o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Sua entrada em vigor ocorreu em 03 de janeiro de 2020, passando a tipificar 45 condutas abusivas praticadas por agentes públicos (BRASIL, 2019).

O contexto de sua criação esteve intimamente ligado ao cenário político e jurídico da época, marcado por grandes operações de combate à corrupção, sendo a mais notória a Operação Lava Jato. Nesse sentido, parte da doutrina critica a lei como fruto de oportunismo político, ao surgir em momento de forte tensão entre os poderes da República e os órgãos de persecução penal (FREITAS, 2019).

O processo legislativo da nova lei teve início no Senado Federal, por meio do Projeto de Lei do Senado nº 85/2017, aprovado em regime de urgência. Posteriormente, o texto foi remetido à Câmara dos Deputados, onde tramitou como PL nº 7.506/2017. Em 14 de agosto de 2019, foi requerido o regime de urgência e, na mesma data, o projeto foi aprovado em sessão deliberativa extraordinária.

Embora tenha sido apresentada sob o argumento de proteção dos cidadãos contra abusos de poder, a lei recebeu críticas por direcionar seu alcance, de modo mais incisivo, a determinadas categorias de agentes estatais, em especial magistrados, membros do Ministério Público, policiais e autoridades de segurança pública (MARQUES, 2019).

No aspecto material, a nova legislação trouxe um rol ampliado de condutas tipificadas como crime, além de prever punições mais rigorosas. Entre as práticas que passaram a configurar abuso de autoridade, destacam-se:

  • decretar condução coercitiva de testemunha ou investigado antes de prévia intimação judicial;
  • promover escutas telefônicas ou quebrar segredo de justiça sem autorização legal;
  • divulgar gravações sem pertinência com as provas buscadas;
  • prosseguir em interrogatório quando o investigado opta pelo silêncio ou solicita assistência de advogado;
  • realizar interrogatório noturno, salvo em caso de flagrante delito;
  • procrastinar investigações sem justificativa plausível.

Das 53 condutas inicialmente propostas, 45 foram efetivamente incorporadas ao texto final. As penas previstas variam de multa a detenção de até quatro anos, podendo ainda ser impostas medidas reparatórias, como indenização à vítima.

1.3 Aplicabilidade da Nova Lei

A aplicabilidade da Lei nº 13.869/2019 configura um relevante instrumento de garantia tanto para os cidadãos quanto para os próprios agentes públicos, na medida em que estabelece critérios normativos claros voltados à limitação de condutas arbitrárias, sem comprometer o exercício legítimo da autoridade estatal. Assim, a norma atua em dupla dimensão: de um lado, assegura ao indivíduo proteção contra práticas abusivas; de outro, preserva os agentes que agem dentro da legalidade, conferindo segurança jurídica ao desempenho das funções públicas.

Como observa Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 120), “o poder administrativo não existe em benefício próprio da Administração, mas sim em prol da coletividade”, de modo que qualquer desvio de finalidade ou excesso no exercício da autoridade compromete diretamente a legitimidade do Estado. Nesse sentido, a nova lei reafirma a centralidade do princípio da legalidade como parâmetro de atuação estatal.

Um ponto de destaque na legislação é a aproximação entre o crime de abuso de autoridade e outros tipos penais correlatos, como a prevaricação e a violência arbitrária. Tal convergência decorre, em parte, da revogação da antiga Lei nº 4.898/1965 e do artigo 350 do Código Penal, que tratava da temática de forma fragmentada. Com a unificação normativa, busca-se conferir maior coerência e sistematicidade ao ordenamento jurídico.

Outro aspecto inovador foi a introdução do requisito do dolo específico para a caracterização do crime de abuso de autoridade. O artigo 1º, §1º, da Lei nº 13.869/2019 dispõe que o agente somente responderá penalmente se agir com a intenção de prejudicar outrem, beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal. Essa inovação legislativa rompe com o modelo anterior, que não delimitava de forma tão clara o elemento subjetivo do tipo penal, ampliando a margem de responsabilização.

De acordo com Alexandre de Moraes (2017, p. 82), “o abuso de poder somente se caracteriza quando o agente público, ultrapassando os limites de sua competência legal, atua em desconformidade com os princípios constitucionais, notadamente os da legalidade, moralidade e impessoalidade”. A exigência do dolo específico, portanto, reafirma o compromisso da lei com a proteção da boa-fé no exercício da função pública, distinguindo erros administrativos de práticas deliberadamente abusivas.

Com efeito, a nova lei também incorporou condutas que antes estavam vinculadas ao tipo penal de violência arbitrária, já que ambas se relacionam diretamente ao uso desproporcional ou ilegítimo da força estatal. A fusão desses elementos contribui para evitar sobreposição normativa e reforça a ideia de que o ordenamento deve ser sistemático e coerente.

Portanto, a Lei nº 13.869/2019 representa não apenas uma atualização legislativa, mas um marco na consolidação de parâmetros claros para o controle da atividade estatal. Ao mesmo tempo em que previne arbitrariedades, preserva a autonomia do agente público que atua dentro dos limites constitucionais, promovendo um equilíbrio necessário entre a autoridade e as garantias fundamentais do cidadão.

2. Elementos Jurídicos do Crime de Abuso de Autoridade

A Lei nº 13.869/2019, conhecida como Lei de Abuso de Autoridade, disciplina um conjunto de condutas praticadas por agentes públicos, no exercício ou sob o pretexto do exercício de suas funções, que têm como finalidade prejudicar outrem, beneficiar a si ou a terceiro, ou agir por mero capricho ou satisfação pessoal (BRASIL, 2019). Dessa forma, o diploma normativo tipifica como ilícitos penais comportamentos que extrapolam os limites da legalidade administrativa, convertendo o poder estatal em instrumento de arbitrariedade.

Segundo Alexandre de Moraes (2017, p. 82), “o abuso de poder somente se caracteriza quando o agente público, ultrapassando os limites de sua competência legal, atua em desconformidade com os princípios constitucionais, notadamente os da legalidade, moralidade e impessoalidade”. Essa compreensão revela que a lei busca não apenas punir excessos, mas sobretudo preservar o espaço legítimo de atuação da Administração Pública.

2.1 Objeto Jurídico

As normas penais, como construção típica do Estado Democrático de Direito, destinam-se à proteção de bens jurídicos essenciais à vida em sociedade. No caso dos crimes de abuso de autoridade, observa-se uma dupla objetividade jurídica:

  1. Objeto jurídico mediato: consiste no regular funcionamento da Administração Pública, que deve se submeter estritamente ao princípio da legalidade. Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 120), “a legalidade é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, de onde se irradiam todos os demais”. Assim, os atos administrativos somente se legitimam quando amparados pela lei, sendo considerados nulos ou anuláveis quando dela se afastam. A lei, portanto, protege a própria estrutura do Estado e a confiança da coletividade no exercício da função pública.
  2. Objeto jurídico imediato: corresponde à tutela dos direitos fundamentais do cidadão, constitucionalmente assegurados. Para José Afonso da Silva (2005, p. 450), “os direitos fundamentais configuram não apenas prerrogativas individuais, mas verdadeiros limites materiais à atuação estatal”. Dessa forma, a lei protege a esfera individual frente a práticas arbitrárias, reforçando a centralidade da dignidade da pessoa humana como fundamento da República.

Portanto, os crimes de abuso de autoridade situam-se em um ponto de convergência entre a defesa do interesse público e a proteção dos direitos fundamentais, representando um mecanismo de equilíbrio entre poder estatal e liberdade individual.

2.2 Sujeitos do Crime

O sujeito ativo do crime de abuso de autoridade é qualquer agente público, servidor ou não, pertencente à administração direta, indireta ou funcional, em qualquer dos Poderes da União, Estados, Distrito Federal, Municípios ou Territórios. O artigo 2º da Lei nº 13.869/2019 explicita que a definição de agente público abrange todos aqueles que exerçam, ainda que temporariamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de vínculo, cargo, mandato ou função pública.

O sujeito passivo, por sua vez, pode se apresentar em duas dimensões:

  • o Estado, como sujeito passivo mediato, quando a conduta atinge o regular funcionamento da Administração Pública;
  • o cidadão, como sujeito passivo imediato, titular dos direitos violados.

Essa duplicidade de sujeitos passivos reforça a natureza complexa do bem jurídico protegido pela lei, que é simultaneamente coletivo e individual.

2.3 Elemento Subjetivo

O elemento subjetivo exigido pela Lei nº 13.869/2019 é o dolo específico, ou seja, a intenção deliberada de exceder os limites da função pública com o propósito de prejudicar, beneficiar ou agir por capricho ou satisfação pessoal.

Tal exigência é relevante, pois afasta a responsabilização de agentes por condutas decorrentes de mera imprudência, imperícia ou negligência, as quais não configuram abuso de autoridade. Para Luís Roberto Barroso (2013, p. 215), “a responsabilização estatal deve ser proporcional e fundada em critérios objetivos, distinguindo o erro administrativo do abuso consciente do poder”. Assim, somente quando o ato resulta de uma intenção dolosa de violar direitos é que se configura o ilícito penal.

2.4 Consumação e Tentativa

Considerando que os crimes previstos na Lei nº 13.869/2019 são estritamente dolosos, a sua consumação ocorre com a efetiva prática da conduta abusiva tipificada, não se admitindo a forma culposa. Ademais, a doutrina majoritária entende que tais crimes não comportam a tentativa, já que sua configuração depende da realização plena do ato abusivo.

De acordo com Moraes (2017, p. 84), “a tipificação do abuso de autoridade exige a efetiva violação do bem jurídico protegido, não bastando a mera cogitação ou início da execução, razão pela qual a tentativa se revela incompatível com a estrutura do tipo penal”.

3. Sanções Previstas

A Lei nº 13.869/2019 estabelece um regime de responsabilização tripartido para os agentes que incorram em práticas abusivas, abrangendo as esferas penal, civil e administrativa. Essa sistemática reflete o princípio da independência das instâncias, pelo qual a sanção aplicada em um campo não exclui a possibilidade de responsabilização em outro. Assim, um agente público pode ser absolvido criminalmente, mas ainda sofrer sanções na esfera administrativa ou ser condenado a reparar danos na esfera civil.

De acordo com Alexandre de Moraes (2017, p. 115), “a coexistência de diferentes responsabilidades decorre da necessidade de integral proteção da ordem jurídica, assegurando-se tanto a punição do ilícito penal quanto a reparação dos danos civis e o saneamento da atividade administrativa”. Dessa forma, garante-se a efetividade da norma, preservando simultaneamente o interesse público e os direitos fundamentais do cidadão.

O artigo 4º da referida lei dispõe que a condenação criminal pode gerar como efeitos: (i) a obrigação de indenizar o dano causado, (ii) a inabilitação para o exercício de cargo, mandato ou função pública, pelo período de um a cinco anos, e (iii) a perda do cargo, do mandato ou da função pública. Ressalte-se que os efeitos previstos nos incisos II e III não são automáticos, exigindo declaração fundamentada do magistrado e a reincidência no crime de abuso de autoridade.

3.1 Responsabilidade Administrativa

A responsabilidade administrativa visa assegurar a moralidade e a disciplina no serviço público, sendo instaurada por meio de procedimento apuratório em que se respeitam os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello (2015, p. 121), “a legalidade administrativa, ao mesmo tempo que garante os cidadãos, impõe limites rígidos à atuação do agente público, de modo que sua violação justifica a responsabilização disciplinar”. Nesse contexto, uma vez constatado o abuso, a sanção aplicada deve observar a gravidade da conduta, em conformidade com o artigo 5º da Lei nº 13.869/2019.

As sanções administrativas variam em intensidade:

  • Advertência, considerada a mais branda, que consiste em mera repreensão verbal ou escrita, funcionando como alerta para condutas futuras;
  • Repreensão escrita, de maior rigor, que deve constar em registro formal e devidamente fundamentado;
  • Suspensão, pela qual o servidor é temporariamente afastado de suas funções, com perda dos vencimentos, variando de 5 a 180 dias;
  • Destituição de função, que implica rebaixamento hierárquico em decorrência de conduta incompatível com o cargo exercido;
  • Demissão, sanção administrativa mais gravosa, que implica a exclusão definitiva do servidor dos quadros da Administração Pública.

José Cretella Júnior (2003, p. 217) esclarece que “a destituição e a demissão são medidas extremas, aplicadas apenas em casos de manifesta incompatibilidade do servidor com os deveres do cargo, configurando a ruptura definitiva da relação funcional”.

3.2 Responsabilidade Civil

A responsabilidade civil decorre do dever de reparar os prejuízos causados pela prática abusiva. Manifesta-se, em regra, por meio de ação indenizatória movida pelo ofendido, nos termos do artigo 4º, inciso I, da Lei nº 13.869/2019.

José Afonso da Silva (2005, p. 452) ensina que “a função reparatória da responsabilidade civil é expressão da justiça distributiva, impondo a quem causou o dano o dever de compensar o lesado, de modo a restabelecer o equilíbrio social violado”.

No caso de abusos cometidos por autoridades policiais, civis ou militares, a lei prevê restrições adicionais, como a proibição do exercício de funções de natureza policial ou militar na localidade onde se deu a prática ilícita, medida que visa coibir a reincidência e resguardar a ordem pública.

3.3 Responsabilidade Penal

A responsabilidade penal é a mais gravosa, por implicar a restrição da liberdade do agente público. A Lei nº 13.869/2019 tipifica, em seus artigos 9º a 38, diversas condutas abusivas, prevendo penas que variam de multa à detenção de seis meses a quatro anos, podendo, em alguns casos, ser aplicadas de forma cumulativa com outras sanções penais.

Para Moraes (2017, p. 120), “a criminalização do abuso de autoridade representa um avanço democrático, pois reafirma o compromisso do Estado com a limitação do poder e a proteção dos cidadãos contra práticas arbitrárias”.

A previsão de pena privativa de liberdade, somada à possibilidade de perda da função pública, reflete a gravidade atribuída pelo legislador à violação dos direitos fundamentais por parte de quem, por dever institucional, deveria protegê-los.

Conclusão

Com a realização deste trabalho acerca dos crimes de abuso de autoridade e das limitações impostas ao agente público, obtivemos uma compreensão mais clara quanto ao que, de fato, caracteriza o crime e às sanções a ele inerentes. A escolha do tema decorreu de uma sequência de acontecimentos vivenciados por povos de distintas regiões, que geraram diversas posições a respeito dessas atuações abusivas. Pergunta-se, até que ponto repousa o poder de polícia confiado aos agentes públicos e em que momento ele se transforma em abuso. Tais indagações orientaram a presente pesquisa.

Independentemente do órgão ao qual pertença o agente de segurança pública, o exercício da função policial demanda atuação constante nos mais variados litígios, com o objetivo de dirimir conflitos e manter a ordem, ou, simplesmente, aplicar a lei penal. Entretanto, essa atuação, em muitas ocasiões, ocorre diante de cidadãos fora da lei e requer do agente o adequado conhecimento para lidar com cada situação, utilizando meios proporcionais para superar resistência ao poder constituído. Caso o meio utilizado não se mostre suficiente, o agente poderá recorrer a outros recursos e, com frequência, fazê-lo mediante métodos abusivos, evidenciando o dilema entre o poder de polícia e o abuso.

Para prevenir tais abusos e assegurar que não se repitam, fundamentando-se, sobretudo, nos direitos humanos, encontra-se a Lei nº 13.869/2019, a denominada Lei de Abuso de Autoridade, a qual descreve o tipo penal e estabelece as suas sanções. Ainda assim, não se pode desconsiderar o conhecimento técnico e o critério profissional do agente no momento de empregar seus poderes; é imperativo que ele compreenda até onde pode chegar. Antes de outorgar o poder de polícia ao agente, impõe-se que ele tenha plena compreensão de seus limites de atuação e daquilo que caracteriza abuso.

Ao concluir este trabalho, espera-se ampliar a compreensão sobre a evolução das leis de abuso de autoridade, bem como a sua estrutura e as sanções correspondentes, de modo a promover maior conscientização entre os próprios agentes públicos acerca de suas ações, contribuindo para a redução de ocorrências deste tipo penal.

Referências

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