NOVA JUTAÍ/PA: A HERANÇA QUILOMBOLA COMO MOVIMENTO DE RESISTÊNCIA E EFETIVIDADE DO DIREITO A TERRA E AO TERRITÓRIO

NOVA JUTAÍ/PA: QUILOMBOLA HERITAGE AS A RESISTANCE MOVEMENT, AND EFFECTIVENESS OF THE RIGHT TO LAND AND TERRITORY

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12174265


Francisco Wagner Urbano1;
Orientador: Benedito Ely Valente da Cruz2.


RESUMO

O presente artigo apresenta uma ampla análise das entrevistas e dados, obtidos em trabalhos de campo, os quais permitem a descrição das práticas socioterritoriais e culturais da comunidade de Nova Jutaí, a qual está localizada à margem direita do rio Tocantins, a jusante da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no município de Breu Branco, sudeste paraense (mais especificamente na região de integração do Lago de Tucuruí). O objetivo deste trabalho é analisar de modo conjuntural o movimento negro e as organizações sociais presentes na supracitada comunidade. Desse modo, busca-se compreender as estratégias de territorialização, bem como demonstrar a realidade encontrada atualmente no lócus da pesquisa, identificando, assim, a organização política e social, particularmente pela atuação da Associação Afro-brasileira de Jutaí – AFROBRAJU, evidenciando, assim, as diversas formas de usos do território, as quais se articulam ao processo de (re)territorialização da comunidade de Nova Jutaí. A metodologia utilizada é baseada na história oral dos indivíduos, valendo-se da memória coletiva, considerando-a uma revisão bibliográfica inicial sobre o assunto. É importante concluir que todas as conquistas sociais presentes hoje são resultado da luta e da resistência desse povo, cujo os     ancestrais tiveram, por muitos séculos, as suas histórias silenciadas ou subalternizadas nos livros oficiais de história desse país. Hoje, graças a Carta Magma, ou seja, a Constituição Federal de 1988, os descendentes dos escravos fugidios dos Séculos XVIII e XIX, podem não só se auto-reconhecer como remanescentes de quilombolas, mas também podem gritar, lutar, resistir e ter um lugar de fala na história do país, da sua região, do seu estado e do seu município.

Palavras-chave: Movimento negro. Quilombo. AFROBRAJU. Nova Jutaí.

1 INTRODUÇÃO

A comunidade de Nova Jutaí está localizada à margem direita do rio Tocantins, a jusante da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no município de Breu Branco, sudeste paraense (mais especificamente na região de integração do Lago de Tucuruí), conforme observa legislação paraense competente. Nova Jutaí dista cerca de 63 quilômetros com relação à sede do município, a cidade de Breu Branco.

As principais características físicas podem ser assim resumidas, como grande parte do relevo amazônico, influenciado diretamente pela planície do Rio Tocantins, possui uma topografia baixa; apresenta um clima equatorial quente e úmido, na qual existem duas estações: uma seca (julho a dezembro); e outra chuvosa (janeiro a junho); possui uma vegetação variada, com a presença de árvores de grande porte e de longas copas. Atualmente, nessa comunidade, vivem cerca de 1.100 habitantes, segundo dados fornecidos pela da AFROBRAJU – Associação Afro-Brasileira de Jutaí, em 2020.

Os trabalhos de campo realizados na Comunidade de Nova Jutaí, em fevereiro e abril de 2021, bem como a própria atuação sindical e profissional do pesquisador – que o levaram à referida comunidade por três oportunidades – permitiram uma aferição da realidade socioterritorial da comunidade.

Assim, é sobre esse pilar histórico que traçamos o presente artigo sobre a premissa básica de demonstrar a fragmentação territorial paraense, principalmente aquela relacionada a uma interiorização através do rio Tocantins, observado que tal fragmentação territorial deriva de um processo de ocupação marcado em distintas etapas, do Brasil colônia ao Brasil atual.

2 PROCESSO DE RESISTÊNCIA E GARANTIA DOS DIREITOS SOCIAIS DA COMUNIDADE

O autorreconhecimento enquanto comunidade quilombola de Nova Jutaí foi parcialmente rápido. No entanto, pelos registros orais, percebe-se que houveram vários momentos de diálogo com a comunidade para que se pudesse descontruir a visão de que descender de um povo que foi escravizado seria algo ruim e/ou pejorativo.

Até que finalmente, em 2011, a comunidade passou por mais uma mudança no seu processo de construção e formação territorial, pois em 22 de dezembro de 2011 a Comunidade de Jutaí foi registrada no Livro de Cadastro Geral nº 014, Registro n 1.638, fl. 055 Fundação Palmares, p. 19 – Seção 1 do Diário Oficial da União de 22 de dezembro de 2011, a qual foi reconhecida neste ato como comunidade remanescente de quilombola (BRASIL, 2011).

Através desse reconhecimento, a comunidade teve garantido vários direitos previstos em leis federais, estaduais e municipais, com acesso a diversos programas, tais como: o acesso às universidades públicas, através do sistema de cotas – atualmente a comunidade conta com cerca de 56 universitários, segundo dados fornecidos pela AFROBAJU, os quais após formarem, têm um espaço para apresentar seus trabalhos acadêmicos para a comunidade local; e o acesso prioritário à vacinação contra a Covid- 19, entre outras campanhas de vacinação – cumprindo o que foi determinado pelo Plano Nacional de Operacionalização vacinal contra a covid-19 (portaria 28/2020) – às comunidades tradicionais no Brasil. 

As famílias que vivem em Nova Jutaí têm como principal fonte de renda atividades do setor primário,     como  pesca, a qual muitas das vezes é artesanal, e que tem como principais espécies-alvo o tucunaré, branquinha, jutuarana, mapará, pescada e baião. Além disso, obtem destaque a agricultura, especialmente as culturas de arroz, milho, maniva, feijão, cacau e frutas, basicamente consumidas pela    comunidade, sendo o excedente de produção comercializado na cidade.

De acordo com dados secundários coletados através do site do IBGE (2011), ficou perceptível a vulnerabilidade social à qual a comunidade está inserida, pois conforme tais dados a renda média dos moradores mensal é de R$ 365,55 – valor médio que demonstra a pobreza instaurada, confirmando relato pessoal do presidente da Associação de Moradores:

Então, a comunidade, ela vive da exploração, ou seja, extrativismo, tá do cacau, banana, açaí e a castanha, só que em quantidade pouca, entendeu? Na redondeza da comunidade aqui o pessoal explora o cupuaçu, o bacuri, piquiá, oxi também em quantidade pouca. Aí você pergunta assim: essas pessoas exploram na terra deles? Não, eles exploram na terra dos outros, que já vendeu a terra onde tem essas frutas, então nós não temos aqui essa base econômica para dizer nosso forte aqui é isso, não temos, ela é muito ampla, basicamente aqui é o assistencialismo, como sempre falo, é o bolsa família, é o seguro defeso anual, aposentados, pensionistas e funcionário público (Entrevista dada pelo presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 43 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

Fica evidente que a comunidade sobrevive economicamente de uma política distributiva, especialmente através do Governo Federal, a destacar o Programa Bolsa Família; e o Seguro Defeso, pago aos pescadores – com o fim da piracema, os mesmos retomam às suas atividades pesqueiras e marisqueiras, normalmente. A prática pesqueira é ancestral na comunidade, conforme relata outro interlocutor, afirmando ser essa uma das principais atividades produtivas da comunidade desde a época da existência da mesma na Ilha Grande de Jutaí. Segue o relato:

Olha, a maior coisa que nos fazia era mariscar, que era do que a gente se mantia. Todo mundo se mantia do marisco. Você ia no comércio e pedia um saco de sá, fazia uma limpeza, e ia embora mariscar. Quando vinha de lá, o pirarucu velho vinha. Trazia no casco peixe miúdo. Aquele tempo era tudo salgado. A gente trazia aquela quantidade de peixe salgado: pirarucu, tucunaré, jaraqui, que tinha muito, agora não tem mais, não sei pra onde sumiu. A gente passava o tempo todo aí, tinha vez que a gente ia pra Baião vender peixe, a gente secava peixe, aí a gente levava os fardos assim, pra lá a gente vendia tudinho eu com essa velha aí (esposa, sentada ao lado). E a nossa lavra era essa, mandioca sempre nos não deixemos de não ter, todo tempo nós tínhamos nossa rocinha aí, todo tempo nós tinha uma roça aí (Entrevista dada por um morador de Nova Jutaí, 91 anos, em 26/02/2021, Breu Branco-PA).

Nitidamente, percebemos a importância da atividade pesqueira para a sobrevivência e sustento das famílias da comunidade. Outro fator importante a ser observado diz respeito às práticas agrícolas, como demonstrado através da referência que o entrevistado faz relatando que “mandioca sempre nós não deixemos de não ter”, haja vista a presença da roça. A farinha de mandioca é um dos principais itens da alimentação nas comunidades remanescentes de quilombos no Pará e a sua feitura é uma prática recorrente nessas comunidades, trazendo nessa prática toda uma carga cultural, que auxilia na territorialização quilombola (PINTO, 2004). 

Outro produto agrícola que tem importância significativa para a comunidade é o cacau, sendo também uma prática tradicional advinda da Ilha Grande de Jutaí, conforme se pode perceber em diversas entrevistas, como se pode observar a seguir: “na Ilha Grande nós temos o plantio de cacau, temos árvores centenárias, que já produziram muito, mas que agora tá regredindo, só que anual” (Entrevista dada pelo presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 43 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

A ex-presidente da Associação também cita a importância do cacau como uma das fontes de renda da comunidade, além de mais uma vez reforçar as demais fontes de renda já citadas anteriormente. Vejamos:

Ó, aqui é o bolsa família, né? Os empregos, a renda fixa aqui são os funcionários e aposentados, e o Bolsa Família, com esse dinheiro é que mantém o comércio. Tem outros também que tem um cacoal, que vai vender cacau na época, né? E aí dá bastante cacau também na Ilha do Jutaí. E aí são essas as rendas daqui da nossa comunidade. Artesanato também, tem uns que sabem fazer, o senhor vai me perguntar, mas eu vou logo me adiantando, uns fazem peneira, outros fazem paneiro, abano, tipiti, tudo isso é feito, né? Dos caroços que tem chamado lolota que é da borracha extraído da fruta da borracha. Ela dá na seringueira, aí eles fazem aqueles colar, pulseira, tudo é feito com isso, então é daqui da comunidade (Entrevista dada pela ex-presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 49 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

Outra entrevistada também deixa clara a importância do cacau, desde a época da produção do mesmo        na Ilha Grande de Jutaí. Vejamos:

Lá todo mundo se prevenia: a mulherada fazia lenha, tirava o urucum pra usar, uns criava porco, faziam farinha, era farinha tipo farinha de tapioca. Juntava castanha de caju para fazer o chocolate, quando não, era o cacau, secava o cacau para fazer o chocolate. O negócio da mucura, da primeira noite que falam mucura, aí fazia a gemada de ovo de galinha caipira e botava farinha de tapioca, misturava batia o ovo e botava farinha de tapioca e colocava o chocolate do cacau junto pra tomar aquele cacau e batia o ovo pra fazer gemada e colocava o vinho no ovo pra mulherada tomar (Entrevista dada por uma moradora de Nova Jutaí, 60 anos, em 24/02/2021, Breu Branco-PA).

No entanto, atualmente, há uma fragilidade nessa prática agrícola, pois as árvores já estão centenárias  e não há na comunidade nenhum projeto de preservação e incentivo às práticas agrícolas tradicionais. De igual modo, embora se tenha a confecção de utensílios tradicionais por parte de alguns artesãos, como indicado pela entrevista, não há nenhum projeto, nenhuma política pública, de incentivo aos artesãos locais.

A comunidade possui também poucos estabelecimentos comerciais, normalmente pequenas mercearias, onde ainda se usa o crediário no caderninho de contas, com as compras sendo retiradas, anotadas, e pagas somente ao final do mês. A estrutura comercial da comunidade, além dessas pequenas mercearias, conta também com pequenas lojas de roupas e pouquíssimas lanchonetes.

Em uma visão panorâmica final, pode-se afirmar que entre a transposição da comunidade quilombola da Ilha Grande de Jutaí para o sítio local – a denominada Vila de Jutaí, para a Prefeitura de Breu Branco, ou a Comunidade Quilombola de Nova Jutaí, de acordo com os moradores locais –, ocorreram      mudanças significativas na comunidade, muitas delas decorrentes da própria transformação socioespacial sentidas no Brasil como um todo nas últimas quatro décadas.

Se de um lado, o reconhecimento como remanescentes de quilombolas deu à comunidade, para além     de uma visão de autodiscriminação, com referências às raízes africanas e de escravidão, uma condição de maior reconhecimento e acolhida social, por outro, muitas das práticas produtivas subdimensionadas pela subsistência prevalecem.

Observa-se que as questões de fundo político, principalmente aquelas guardadas pela escala do local, conduziram as possibilidades de avanço quanto às melhorias de equipamentos e serviços públicos, antes praticamente inexistentes quando da presença da comunidade na Ilha Grande de Jutaí. Outra questão importante, mas subentendida até o momento, diz respeito à própria origem dos agora habitantes da comunidade de Nova Jutaí, haja vista que ela agrega grupos originais da Ilha Grande de Jutaí, mas também outros originados de comunidades diferentes.

3 RAÍZES DAS TERRITORIALIDADES QUILOMBOLAS NA COMUNIDADE DE NOVA JUTAÍ

O atual território da comunidade de Nova Jutaí foi fruto de uma negociação política entre os moradores da antiga ilha e o prefeito de Baião. Assim, no novo território, a comunidade teve que se (re)territorializar para que pudesse continuar com a sua existência, valendo-se, para tanto, da preservação dos seus saberes, ritos, costumes e cultura. Para isso, o primeiro passo foi conquistar a terra que abrigasse as famílias oriundas do antigo território submerso pelas águas do rio Tocantins. Sendo assim, aqui o território ganha um sentindo de sobrevivência crucial, conforme Modanese (2009):

Nesse caso o território não é apenas compreendido como uma construção social, mas é natural e também psicossocial, o qual condiciona novos elementos culturais, políticos e econômicos a todo instante. A movimentação e inclusão destes elementos materiais e imateriais favorecem a criação de outras territorialidades, de novos sentidos ao território. Nesta nova territorialização ou reterritorialização permanecem elementos do antigo território cujo o papel é manter a ligação que ocorre no processo conhecido como TDR, ou seja, territorialização, desterritorialização e reterritorialização (MONDANESE, 2009, p. 19-20).

O território, então, mostra-se como uma conquista coletiva do acesso à terra para que a comunidade  possa (re)produzir o seu modo de vida característico. Assim, a legitimação do novo território para a comunidade de Nova Jutaí foi muito importante para todo o seu processo de territorialização, mesmo esse sendo diferente daquele que foi ocupado décadas antes pelos seus ancestrais. A partir desse momento, o primeiro passo já estava concretizado, conforme se pode notar no depoimento abaixo:

Não tinha de quer sobreviver, aí que veio o prefeito né? nessa época o Barreirinhas estava ainda em Tucuruí, ele era vice, vice-prefeito ai ele veio e fizeram uma reunião com o prefeito atual de Baião, que era o Francisco Ramos e ai que ele comprou essa terra aqui, de um senhor chamado Leoné, aí ele pediu para limparem, né? Aí liberou pro pessoal que quisesse fazer suas casinhas em um determinado lugar, porque ficou todo mundo ali na beira porque a terra não era nossa. (Entrevista dada por uma moradora de Nova Jutaí, 56 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

Fica nítido que após a expulsão decorrente das cheias do rio Tocantins, as pessoas da comunidade ficaram desnorteadas, longe de seu território, se abrigando às margens do rio para buscar um novo local para reprodução de suas vidas. O contato político de alguns membros da comunidade com políticos locais, como o Sr. Armênio Barreirinhas, português, vice-prefeito de Tucuruí e posteriormente primeiro prefeito de Breu Branco, e o Sr. Francisco Ramos, prefeito de Baião à época, foi fundamental na aquisição desse novo território pela comunidade.

É a partir da aquisição da terra – da conquista da terra – que começa a se constituir o território da comunidade remanescente de quilombolas, passando assim a tomar forma e significado, e instituindo uma territorialidade, pois pelas entrevistas é fato que tentou-se reconstituir a vida conforme os moldes consolidados na Ilha Grande de Jutaí, pois “procuraram reproduzir, nesse território características do cultivo agrícola, hábitos e costumes culturais, aspectos políticos, reterritorializando-se, ou seja, construindo novos territórios de vida” (Matter e Mosquer, 2009, p. 31).

A territorialidade se inicia com a (re)construção da comunidade de Nova Jutaí, pois os mesmos trazem       consigo uma vontade de tornar o novo território semelhante ao que se possuía na Ilha Grande de Jutaí,     aquele tomado pelas águas do rio Tocantins. Para isso, até mesmo parte do madeirame utilizado nas construções na antiga ilha veio para a comunidade para possibilitar a reconstrução de tudo aquilo que as águas levaram. Em uma das falas do atual presidente da Associação observamos tal ação: “inclusive o próprio salão de festa foi desmontado lá e trouxeram para cá e ai fizeram aqui organizaram e continuaram aqui o nosso festejo” (Entrevista dada pelo presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 43 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

A reconstrução física é esforço de uma reconstituição de vida, que se expressa em nova territorialidade advinda da original, daí a força das tradições advindas da Ilha Grande de Jutaí. Na busca por essa (re)territorialidade, trouxeram festejos como a da padroeira, e que já ocorriam na antiga ilha, a chamada Festa da Santíssima Trindade.

Olha a festa da Santíssima Trindade também parou, e era tão animada. Lá na ilha era a coisa porque era só assim um pouquinho de moradores, morava um aqui, outro ali, e ai tinha a igreja, o barracão, o salão, né? E tinha moradores assim pequeno lá, e quando tinha as festas, a gente que morava longe, a gente vinha fazer os barracos, para passar a novena todinha lá naquela festa, a gente vinha, quem vinha de Itacoroa, quem vinha do outro lado, a gente vinha já pra casinha da gente, passar a novena todinha (Entrevista dada por uma moradora de Nova Jutaí, 68 anos, em 24/02/2021, Breu Branco-PA).

Porém, na atualidade, a festa passou a ser uma tradição remoldada, haja vista que conforme o passar  dos anos, agora com a presença de membros eclesiásticos da Igreja Católica na comunidade, já não permanece com o mesmo formato, tanto na organização quanto na forma em que ocorre, pois segundo    relatos houve mudanças, dentre elas, a extinção da irmandade, a qual tinha como principal função a de decidir e comandar os ritos, sendo a mesma substituída pela organização sacerdotal da Igreja Católica  através de suas inúmeras pastorais.

Tal reordenação fica evidenciada pelo trecho a seguir:

Essas festas ainda existem aqui em outro formato agora porque isso era uma festa de administrada pela Igreja Católica agora aqui na comunidade. Eles perceberam que estavam se contradizendo, pregava algo e fazia diferente, pela questão da bebida, enfim, e resolveram fazer uma reformulação. Nesse sentido aí ainda tem a festa, mas só de cunho religioso, já não tem mais o festejo com a banda, com as pessoas que moram fora e vinham para cá para participar desse festejo. Mas continua o festejo, mas especificamente religioso que são as novenas (Entrevista dada pelo presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 43 anos, em 23/02/2021, Breu Branco- PA).

As novenas também passaram por mudanças, pois a reza em latim encontra-se praticamente extinta na comunidade, uma vez que os mais velhos foram falecendo e os mais jovens não se esforçaram o bastante para aprender tal rito. Entretanto, o samba de cacete continua vivo na memória, história e cotidiano da comunidade, como dança tradicional não só dessa comunidade quilombola, mas de várias outras comunidades quilombolas ao longo do curso do rio Tocantins, conforme demonstrado por Pinto (2015), em sua vasta obra sobre as comunidades quilombolas. O samba parece desafiar o tempo e vem conseguindo se renovar ao longo da existência da comunidade, sendo provavelmente a face mais  marcante dessa nova territorialidade.

Podemos observar a satisfação e o envolvimento da comunidade no mesmo, através do seguinte depoimento:

As festas era muito boa, graças a Deus era bom, tinha muitas festas, muita dança de samba de cacete, você sabe o que é? Samba de cacete, nos passava a noite dançando aquele samba, num tinha melhor música, porque hoje, só tem aquelas música que a gente não pode nem dançar, no meu tempo, né (Entrevista dada por uma moradora de Nova Jutaí, 68 anos, em 24/02/2021, Breu Branco-PA).

É perceptível também que os ensaios e festas estão paradas devido ao momento que estamos enfrentando em escala mundial, como a pandemia causada pelo novo coronavírus (Covid-19), conforme a entrevistada deixa explicito, a seguir:

Olha, nós agora paremo esses dias, mas nós temo, porque faz dia que parou que começou essa pandemia, né? A gente não pode aglomerar, né? E isso ai vai passando, né? E a gente espera que depois da pandemia nós vamos se arrumar, nós vamos comprar o nosso material, né? Porque tem que comprar as roupas, né os turbantes pra cabeça, né? Mas nos vamos voltar em nome de Jesus, porque é bonito (Entrevista dada por uma moradora de Nova Jutaí, 68 anos, em 24/02/2021, Breu Branco-PA)

Outro fator importante utilizado para reforçar a territorialidade quilombola era a contação de mitos. Dentro da comunidade é comum ouvirmos mitos das mais diversas naturezas, tais como: a história da      Cobra Grande, do Boto, de pessoas que foram levadas para o fundo do rio Tocantins, entre outras, mas essa contação de história tem um fator que merece uma atenção, pois é uma forma de fomentar uma memória coletiva, através de narrativas míticas, muitas das vezes os personagens são os próprios familiares, como se pode notar no depoimento a seguir:

Edmundo, que é irmão da mamãe, que ele passou o dia todinho também no fundo, todo mundo procurando ele lá e não encontrava, e ele foi, e quando foi seis horas da tarde a vovó já tá desesperada, né? Pensando que alguma coisa de tinha acontecido de ruim com ele, ele varou do caminho do porto, né? Os caminhos que faziam pra beira do rio. E aí quando a vovó perguntou onde ele tava, ele falou para vovó falou assim: olha, eu tava no fundo do rio, né? Duas pessoas me levou para lá, que a cobra se transformava em pessoas também, né? Lá é muito bonito, não se compara com nadinha que tem aqui, aqui na terra, então, e quando aquele dois botos levaram ele pra lá, como forma de pessoas, né, levaram ele para lá, chegou lá, tinha duas moças pra recepcionar ele, tipo uma cidade lá no fundo. Tudo que tem aqui, tem lá, só não pode comer, que você for lá, porque a pessoa que foi lá disse isso, que não pode comer, as moça mais bonita, tem lá para receber, as frutas também, abacaxi, todos bem amarelinha, banana, mas não pode comer senão fica lá, e ele passou o dia todinho, e tem os pais dele que é, são duas cobras, eles ficam tipo num trono lá no fundo do rio, a mulher do lado e o marido do outro, que são duas cobras, entendeu? Aí, lá ele passou o dia todinho com esse povo, tem as músicas também do fundo do rio, inclusive que meus pais já ouviram essas música para o fundo do rio, que eles falaram jazi, era um nome de uma banda, tocando pro fundo do rio, ouvia, quem tava em terra ouvia, a banda tocando pro fundo do rio. Tudo isso, são histórias da ilha velha jutaí, né? Então, aí ele veio e contou tudinho, como é que é lá no fundo (Entrevista dada pela ex-presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 49 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

Notadamente, percebe-se as narrativas míticas são muito presentes não só na comunidade de Nova Jutaí, mas também em outras comunidades quilombolas ao longo do rio Tocantins. Durante as idas a campo, ficou claro que a comunidade se utilizou de algumas estratégias para que a sua identidade fosse mantida. Acerca da identidade, Rutherford (1990) nos orienta:

[…] a identidade marca o encontro de nosso passado com as relações sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos agora […] a identidade é a interseção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas de subordinação e dominação (RUTHERFORD, 1990, p. 19-20).

É importante perceber que os indivíduos, especialmente os mais idosos, tiveram um papel importante nessa construção e manutenção da identidade quilombola presente em Nova Jutaí, pois nitidamente a re-criação do novo território para os oriundos da antiga Ilha Grande de Jutaí foi uma estratégia utilizada para que eles próprios e as gerações vindouras pudessem contemplar de uma história comum, através da memória, conforme bem nos pode explicar Bosi (1994):

A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista (BOSI, 1994, p. 55).

A memória tem assim um papel fundamental na fomentação dessa territorialidade quilombola local. Os próprios moradores reconhecem esse papel, conforme se pode notar no trecho: “A gente aqui, sempre que reunimos com as crianças contamos a nossa história, essas histórias que nossos pais contava pra gente. E hoje meus filhos contam a mesma história que eu ouvia do meus pais “ (Entrevista dada por uma moradora de Nova Jutaí, 44 anos, em 24/02/2021, Breu Branco-PA).

As histórias locais vão passando de geração em geração, embora a entrevistada não fale a palavra memória, mas ao partilhar as histórias dos seus pais para os filhos e demais crianças da comunidade,  alimenta-se a memória coletiva do grupo, de onde e como surgiu a comunidade de Nova Jutaí, o que se apresenta como uma estratégia de territorialização coletiva.

Outra estratégia observada durante o período de trabalho de campo é o repassar do modo de vida. É importante salientar que há na maioria das famílias uma preocupação em não apenas contar a história de vida, mas a tentativa de fazer o indivíduo, normalmente mais jovem, os filhos e os netos, a ter orgulho de sua história e de sua ancestralidade. O que também podemos identificar nitidamente como uma estratégia de territorialização, que o trecho de entrevista a seguir bem expressa:

Tipo eu tenho um problema dentro de casa, a minha neta que eu crio e que ela me chama de mãe, ela tem um problema com relação ao cabelo dela. Tipo assim, a mãe dela é a minha filha e o pai dela é um outro rapaz, mas ele também é negro, e ela fala assim: mãe, eu falo assim: Oi filha, porque que o teu cabelo é diferente do meu? Eu falo assim tu já olhou o cabelo da minha mãe, da bisa, o cabelo da bisa diferente do da tua mãe, então, tipo assim as minhas características elas estão atreladas a bisa e não a sua mãe, a sua característica está atrelada a sua mãe e não bisa e aí ela fala assim: eu não quero ter cabelinho seco assim que nem o teu não, que é isso dá trabalho demais e eu tento mostrar para ela isso aqui é uma herança genética que não é daqui, entendeu? Aí eu pego meu celular e vou mostrando as imagens dos negros da África. Falo assim eu vim daqui, o meu povo veio daqui. Então, nesse território aqui as pessoas têm característica assim pela questão do calor filha, então o nosso cabelo é sequinho assim, porque lá o sol é muito quente. Então é uma forma de proteger, se tu for olhar o meu cabelo tem várias camadinhas, eu falo para ela, tipo assim eu tento ensinar para eles que assim que ser negro é ter uma identidade (Entrevista dada pela ex-presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 41 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

É notória a preocupação da avó para com a neta sobre a questão do bullying, mas também é perceptível a tentativa de fortalecimento da identidade territorial, a partir dos traços negros presente na comunidade local, que são predominantes e perfeitamente dimensionados pelo censo demográfico de 2010: a maioria da população local é preta ou parda, o que está ligado ao fato da origem da comunidade.

Mais uma vez não podemos deixar de mencionar a importância das festividades culturais, seja a Festa da Santíssima Trindade ou o Samba de Cacete, como já mencionado anteriormente, presente em diversas comunidades quilombolas ao longo das margens do Rio Tocantins. É importante ressaltar que     ambas as manifestações possuem um caráter inquestionável de estratégia de territorialização, fazendo- se presentes na comunidade há muitos anos.

E aí como eles sempre foram católico e eles não tinham é na época nenhum padroeiro, então o seu Marcionilo com o pai dele fizeram uma espécie de pomba, que representa a Santíssima Trindade para cultuar lá no Itacoroa, mas como eles tiveram problema com os indígenas, que eles fizeram isso vieram para Ilha Grande Jutaí e aí, eles tiveram visita do primeiro padre. E aí o padre, eles fizeram essa pombinha de miriti, aí o padre veio e levou a pombinha deles de miriti e trouxe uma pombinha para eles de ferro, que até hoje tem na igreja católica, é então eles começaram a prestar culto em homenagem a Santíssima Trindade (Entrevista dada pela ex-presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 41 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

Mais uma vez fica evidenciado a importância do papel da Igreja Católica na formação da comunidade, demonstrando assim que ela foi um agente crucial na construção dessa territorialidade quilombola dentro da Comunidade de Nova Jutaí, exercendo até hoje um papel fundamental no âmbito social através das diversas pastorais presentes. O samba de cacete, por sua vez, também possui esse papel,       pois é passado culturalmente entre os membros da família, normalmente é uma dança em que os homens batucam os tambores, as mulheres dançam com a presença de alguns poucos homens e todos cantam as letras durante a dança.

A seguir alguns trechos [letras] do samba do cacete, que é cantado por moradores da Nova Juta, conforme podemos observar a seguir:

Conforme pode ser observado, as letras normalmente trazem elementos da natureza como rio, árvores,    espécies de pássaros, dentre outros, como também sentimentos dos seres humanos, a exemplo do amor, paixão, amizade, devoção, como também, vínculos de relações sociais como casamento, amizade e outros.

Figura 01: Apresentação de Samba de Cacete em Nova Jutaí

Fonte: Arquivo da Secretaria Municipal de Educação de Breu Branco, 2017.

Outra estratégia importante para a manutenção dessa territorialidade quilombola se dá por meio do artesanato. É visível o repasse de conhecimento empírico onde os pais vão ensinando para os filhos como fazer certos utensílios do dia a dia, conforme nos demonstra a entrevistada a seguir:

Uns fazem peneira, outros fazem paneiro, abano, tipiti, tudo isso é feito, né? Dos caroços que tem chamado lolota que é da borracha extraído da fruta da borracha. Ela dá na seringueira, aí eles fazem aqueles colar, pulseira, tudo é feito com isso, então é daqui da comunidade (Entrevista dada pela ex-presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 49 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

Embora não se tenha ainda uma organização mais efetiva, nota-se que isso não impede o repasse de saberes, e é comum na comunidade ver ao final da tarde as pessoas mais idosas repassando as habilidades manuais para os mais jovens – assim como o fazem criando rodas de conversas para que sejam contadas diversas narrativas míticas, algo já demonstrado.

Há também estratégias por meio da organização econômica da comunidade, algo traduzido na  reprodução de costumes seculares, como a prática do “Cunvidado”. Esse, consiste em um costume rotineiro em diversas comunidades quilombolas, que é o mutirão de pessoas que trabalham na roça um dos outros de forma gratuita. O dono da terra normalmente é responsável para oferecer a alimentação e bebida, e na maioria das vezes, esse se encerra em um momento de descontração, solidariedade e partilha, conforme podemos observar na definição do mesmo pela entrevistada:

A questão dos cunvidado, e aí surge a questão da dança de samba de cacete, o samba de cacete ele era usado justamente para questão dos convidados, eles iam plantar na roça de alguém. E aí uma equipe ia para plantar e outra equipe ia para tocar e dançar samba de cacete na beira do roçado (Entrevista dada pela ex-presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 41 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

É notório que esses momentos são cruciais para socialização e servem, como sempre, ao reforço da territorialização quilombola da comunidade, uma vez que essa também é uma prática que vem desde a Ilha Grande de Jutaí. Entretanto, devido a entrada de pessoas de outras localidades e com o advento dos meios tecnológicos e informacionais, está sendo mais difícil recrutar jovens para continuar reproduzindo essa prática, mas o que não impede dos mais idosos continuarem a busca pelos jovens para contribuírem neste momento tão importante de socialização e partilha de saberes.

Nas atividades de campo se pôde notar que o Cunvidado é uma prática ainda muito comum na comunidade, embora hoje se tenha mais resistência dos jovens em participar, o que pode ocasionar futuramente um perca de identidade. No entanto, existe um trabalho árduo e contínuo dos adultos para que isso não ocorra.

Notadamente vários atores sociais se dedicaram e estabeleceram suas atuações na busca de (re)construir uma identidade quilombola, essa muitas das vezes renegada por uma questão de preconceito e de negação, pois muitos interlocutores ouvidos durante as entrevistas de campo, demonstravam ter vergonha de pertencer a um povo que teve seus ancestrais escravizados durante séculos. Então, para que se pudesse ocorrer uma (re) territorialização de fato, o primeiro passo a ser reconhecido consistia ao autorreconhecimento e autoafirmação, ação empreendida por atores sociais como a AFROBRAJU, a Igreja Católica e a escola municipal local, que foram cruciais neste processo.

A associação de moradores, desde a sua criação, iniciou o processo de conscientização da comunidade quanto à importância de se auto-reconhecer como remanescentes de quilombola. De início, como explica a ex-presidente da Associação de Moradores houve muita resistência em parte da comunidade, como podemos perceber no trecho de entrevista a seguir:

A gente teve um problema muito sério quando a gente regularizou a comunidade como comunidade quilombola, que a gente começou acessar a universidade, porque o que os meninos que foram daqui começaram se esconder dentro da Universidade, de que forma: não querer se identificar como quilombola. E aí eu fiz várias visitas nas Universidade eu fui na UFPA de Belém, fui na UFPA de Tucuruí, fui na Unifesspa de Marabá, justamente para mim ter essa visibilidade, para ver como eles se comportavam dentro da universidade, e aí quando eu vim de lá conversei com a coordenação da associação falei nós estamos com problema, mas não é culpa dos meninos, é culpa da própria sociedade é muito mais fácil eu me esconder de uma determinada situação para eu não passar por uma situação de preconceito ou de racismo, do que eu bater de frente com aquilo ali, e ai o que que acontece a gente tenta mostrar para as pessoas, por exemplo, eu tenho um problema muito grande com o pessoal aqui na comunidade, que assim se você observar meu cabelo eu não penteei, eu não penteio meu cabelo, se eu vou prender ele eu só pego amarrador passo aqui e puxo e prendo, quando não eu deixo ele solto mesmo (Entrevista dada pela ex-presidente da Associação de Moradores de Nova Jutaí, 41 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

É perceptível o conflito instaurado internamente, e que houve um vasto trabalho de conscientização e esclarecimentos sobre a importância do título de Comunidade Remanescentes de Quilombos (CRQ) para que as pessoas da comunidade pudessem ter acesso as diversas políticas públicas. Outra atuação importante da AFROBRAJU foi se aliar a líderes políticos locais para que se pudesse viabilizar os meios para tanto. Este fato também fica nítido na entrevista a seguir:

A gente sabia que era quilombo, nossos ancestrais tudinho né? Disso a gente já sabia, mas só que a gente não sabia por onde buscar, como fazer, aí depois que essa moça veio, aí depois veio uma vereadora, que eu acho que você conhece, a Rosane, né? Ela falou assim: não, eu quero comprar a briga, eu falei: não, não é briga, nós queremos assim ter mais conhecimentos e saber como buscar as coisas para nós. Porque nós precisamos da ajuda de você, você como uma vereadora representando a gente né? Que nos representa, né? Aí ela disse assim: tá de boa, eu vou pra Brasília. E ela foi né, e ela andou várias vezes para lá e conseguiu a certidão, da vila, né? Que ela trouxe, mas foi feito tudo assim umas documentações, a gente pegou documentação dos moradores daqui, aí foi feito cadastro para se formar uma associação, né? Aí foi feita essa associação que hoje (Entrevista dada por uma moradora de Nova Jutaí, 56 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

Através dessa aliança, foi possível acelerar o processo de reconhecimento da comunidade junto à Fundação Cultural Palmares, como já apontado anteriormente, mas que hoje se encontra em uma nova lida: buscar o apoio e reconhecimento necessário para que se possa ter a demarcação de terras do território local reconhecido pelo Instituto de Terras do Pará – ITERPA.

Enquanto a tão sonhada demarcação territorial não acontece, as famílias, em um sistema de solidariedade, vão produzindo de forma coletiva, principalmente os originários da antiga ilha. Dessa forma, a atuação da associação é crucial na reafirmação e manutenção da identidade quilombola, criando sempre meios para que haja essa interação entre idosos, adultos, jovens e crianças das mais diversas formas, podendo ser via trabalho agrícola, samba de cacete, por rodas de conversas ou pela reafirmação da conquista da terra.

Também a escola municipal local teve e tem uma atuação crucial para essa manutenção de vínculos autoafirmativos, principalmente através de projetos voltados à valorização da identidade quilombola, como podemos perceber:

Sim, sim, porque a gente já tem o calendário a data do dia 20 de novembro e a escola ajuda muito e apoia, se é trabalho para o centro comunitário, a escola tá junto, porque a gente trabalha aqui escola e comunidade, é muito próximo. Aí tudo que se faz é junto tanto escola como comunidade, eles apoiam (Entrevista dada por uma moradora de Nova Jutaí, 56 anos, em 23/02/2021, Breu Branco-PA).

Fica evidente que ainda há muito o que fortalecer com relação à atuação da escola nesse aspecto, porém a mesma teve um papel ímpar na fomentação e no fortalecimento identitário da comunidade, pincipalmente no seu autorreconhecimento como comunidade quilombola. Hoje, as crianças e adolescentes conseguem não só assimilar a identidade quilombola, mas também se aceitarem e reconhecerem nela, enquanto remanescentes de antigos quilombos – e isso sem contar a importância crucial da escola enquanto espaço de reprodução cultural através das mais diversas atividades culturais desenvolvidas por ela.

A Igreja Católica também contribui de maneira significativa para a consolidação da identidade da comunidade, começando pelas práticas religiosas e também com respeito aos aspectos culturais e os      festejos religiosos, como o da Santíssima Trindade, a padroeira local, que são importantíssimos para a manutenção da identidade. É importante ressaltar que a Santíssima Trindade é padroeira da comunidade desde o seu início, ainda na Ilha Grande de Jutaí, e que o festejo trazia consigo outras práticas culturais como a culinária e a dança.

Sendo assim, os relatos de cultura colhidos nas idas a campo demonstram como essa foi primordial para se (re)estabelecer tradições, festejos, música, dança, dentre outros. E que todas as práticas descritas agregam na reafirmação identitária, essa última instituída por agentes e atores locais, lideranças que depreenderam a importância de fazer desta identidade quilombola uma marca de (auto)respeito, de orgulho de pertencimento de grupo. Se a comunidade original agregou novos componentes de origens      diversas após a sua refundação enquanto Nova Jutaí, guardou como base de identidade para os antigos e novos moradores as formas do fazer e os traços da cultura originalmente constituídos na Ilha     Grande de Jutaí.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As origens da comunidade instalada na Ilha Grande de Jutaí mostram um território misto, onde ali foram  se juntando muitas pessoas, as quais possuíam uma bagagem cultural diversa. No entanto, tinham um objetivo em comum, que era fugir daqueles que os obrigavam a trabalhar de forma desumana em áreas  tomadas por cacuais, conforme os relatos de antigas expedições que subiam o rio Tocantins no sentido a Alcobaça (atual cidade de Tucuruí). Com a fuga, os escravos agora libertos, levaram consigo o conhecimento do trato dos cacuais, firmando nas áreas em que se estabeleciam uma aptidão a essa cultura agrícola tão importante, como até hoje o é na atual Comunidade de Nova Jutaí.

Pelos relatos baseados na oralidade, percebe-se que não foi algo fácil, pois havia por parte dos próprios moradores uma resistência em descender de um povo escravizado, o que me permito chamar de racismo estrutural. Ao negar as origens, buscava-se a forma mais fácil de se manter alheio ao preconceito que atinge àqueles que descendem de escravos africanos, grupos étnicos diversos que introduzidos no Brasil amargaram a alcunha de inferiores, com a cor da pele a lhes impingir uma marca de indesejáveis, algo ainda indelével na sociedade brasileira do Século XXI.

O resgate do orgulho de pertencer a um povo tão bravo, tão rico culturalmente, foi fruto da atuação da AFROBRAJU, ação crucial desde o início e decisiva para maior aceitação dos moradores com respeito à suas origens. As relações de parentesco e compadrio muito visíveis em Nova Jutaí, comunidade na qual a maioria das pessoas são parentes e quando não o são, tem uma relação de compadrio. Nitidamente, convivendo com os moradores locais, principalmente os oriundos da Ilha Grande de Jutaí,  percebe-se que as relações de confiança desse grupo não foram levadas com as enchentes do rio Tocantins, no início dos anos 1980. Também não foram capazes de afogar as memórias que os mais antigos contam e recontam com grande orgulho, e que ainda são capazes de influenciar direta ou indiretamente na formação dos mais jovens, mesmo daquelas cujas famílias originalmente não eram da Ilha Grande de Jutaí.

No presente momento ainda se nota a consideração e o respeito mútuo, principalmente entre os mais      idosos, e geralmente os descendentes dão continuidade a essa relação harmoniosa entre as famílias. E esta convivência respeitosa foi uma estratégia crucial de territorialização utilizada pela comunidade para manter viva a sua identidade e a sua cultura, pois perpassa aos mais novos membros da comunidade a história da comunidade e o orgulho de seus ancestrais através da música, da dança e das práticas religiosas. Isso se deu como um marco para o fortalecimento do ser quilombola em Nova Jutaí e faz com que as pessoas lutassem com respeito aos seus direitos sociais, inclusos aí benefícios  sociais para a comunidade derivados dos pleitos e cobranças junto às autoridades de Baião e, posteriormente, de Breu Branco.

Todas as conquistas sociais presentes hoje são resultado da luta e da resistência desse povo, cujo os  ancestrais tiveram, por muitos séculos, as suas histórias silenciadas ou subalternizadas nos livros oficiais de história desse país. Hoje, graças a Carta Magma, ou seja, a Constituição Federal de 1988, os descendentes dos escravos fugidios dos Séculos XVIII e XIX, podem não só se auto-reconhecer como remanescentes de quilombolas, mas também podem gritar, lutar, resistir e ter um lugar de fala na história do país, da sua região, do seu estado e do seu município.

Ressalta-se que essa comunidade segue resistindo mesmo em tempos sombrios, onde atualmente o Governo Federal, através de órgãos oficiais como a Fundação Cultural Palmares tenta silenciar as comunidade afrodescendentes, mas o povo ainda busca seu território que aguarda a regularização de suas terras pelo Instituto de Terras do Pará – ITERPA, pois a titulação desse território demarcará um reconhecimento da identidade afrodescendente quilombola há tempos invisibilizada no processo      histórico brasileiro e amazônico e, obviamente, é uma busca com respeito à dignidade e, sobretudo, uma reparação histórica-social que este país tem para com essa comunidade.

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1Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGEO, da Universidade Federal do Pará – UFPA. E-mail: wagnerurbano88@hotmail.com
2Docente do Programa de Pós-Graduação em Geografia – PPGG, da Universidade do Estado do Pará – UEPA. Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp. E-mail: bvalente7@uepa.br