NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO

ATYPICAL PROCEDURAL LEGAL NEGOTIATION

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12599925


Thiago Helver Domingues Silva Jordace1;
Francisco Gabriel Pacheco Junior2;
Soraya Fonseca Salomão Pacheco3


RESUMO

O presente artigo propõe uma análise sistemática do negócio jurídico processual atípico e a sua importância para os negócios celebrados no âmbito do Direito brasileiro. Uma vez que o processo civil não é algo imutável como há muito já provou o judiciário pátrio que, no caso concreto, altera os procedimentos segundo os mais variados entendimentos. Assim, poderiam as partes, com arrimo na autonomia privada e lastro no artigo 190 do Código de Processo Civil altera-lo e simplifica-lo de forma a atingir com mais celeridade a prestação jurisdicional. O presente artigo tem como marco inicial a breve análise histórica da existência – mesmo que não positivada – do negócio jurídico processual atípico antes de 2015 e, em sequência, investigar os seus requisitos com base na doutrina tradicional dos negócios jurídicos seguindo com breve apanhado jurisprudencial. Se, por um lado, grande parte da doutrina moderna prioriza os meios alternativos de solução de conflitos, como a exemplo da mediação e arbitragem, por outro lado, quando a pretensão resistida faz com que a lide se torne inevitável, valer-se do negócio jurídico processual, em especial os atípicos, poderá ser a saída para uma prestação jurisdicional mais célere.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Processual Civil; Formas de negociação; Negócio jurídico processual atípico.

ABSTRACT

The present article proposes a systematic analysis of the atypical procedural legal transaction and its importance for agreements concluded within the scope of Brazilian Law. Given that civil procedure is not something immutable, as the Brazilian judiciary has long proven by altering procedures according to various interpretations in specific cases, could parties, relying on private autonomy and based on Article 190 of the Code of Civil Procedure, alter and simplify it in order to achieve a more expeditious judicial provision? This study has as its starting point a brief historical analysis of the existence – even if not codified – of atypical procedural legal transactions before 2015, and subsequently, to investigate its requirements based on the traditional doctrine of legal transactions, followed by a brief overview of national jurisprudence. While on one hand, much of modern doctrine prioritizes alternative dispute resolution methods (e.g. mediation and arbitration), on the other hand, when resisted claims make litigation inevitable, resorting to procedural legal transactions, especially the atypical ones, could be the solution for a more expeditious judicial provision.

KEYWORDS: Civil Procedural Law. Types of negotiation. Legal negotiation. Atypical procedural legal negotiation.

INTRODUÇÃO

A autonomia do Direito Processual sempre foi um tema controverso na doutrina. À guisa de exemplo, Pontes de Miranda1, um jurista clássico, defendia que o Direito Processual Civil é meramente um instrumental do Direito Material, não possuindo autonomia plena. Para ele, as normas processuais derivam dos princípios do Direito Material e servem para aplicá-los de forma justa e eficiente; já para Fredie Didier Jr2., um dos principais estudiosos do Processo Civil brasileiro na atualidade, aquele possui um sistema normativo próprio, bem como doutrina e jurisprudência próprias, que contribuem para o aprimoramento e a aplicação das normas processuais. Ele defende que o processo civil não se resume a um mero instrumento do Direito Material, mas sim a um sistema jurídico autônomo, com seus próprios objetivos e finalidades.

Tal questão se encontra superada tendo em vista que, para a caracterização da autonomia plena do Direito Processual Civil, pressupõe-se que as normas processuais terão maior liberdade para regular o desenvolvimento do processo, sem a necessidade de se submeterem integralmente aos princípios do Direito Material. É isto o que ocorre com os negócios jurídicos processuais atípicos, já que as partes alteram o procedimental segundo a autonomia privada, tudo com fulcro no artigo 190 do Código de Processo Civil.

Inclusive, Antônio Pereira Gaio Júnior3 aponta importante marco histórico acerca da inaugural legislação autônoma processual:

A regulamentação do processo das causas comerciais foi a primeira manifestação significativa de autonomia legislativa no campo do Processo Civil Brasileiro e se deu com a publicação do Regulamento 737, em 1850, no mesmo ano da promulgação do Código Comercial.

Apenas com objetivo de situar o leitor de maneira geral, negócio jurídico processual atípico é o negócio jurídico celebrado entre os sujeitos (ou partes, se já houver estabilização da demanda) o qual os agentes modificam os mais variados procedimentos do processo segundo sua autonomia privada.

Outro ponto merece atenção: a distinção entre processo e procedimento. O primeiro, está voltado para eficácia enquanto o procedimento para a eficiência, o que se aplica à consecução do valor justiça nos processos e nos procedimentos judiciais. No entanto, no presente artigo, apenas para fins didáticos, ora serão tratados como sinônimos, considerando que os negócios jurídicos processuais podem dizer respeito em alguns momentos ao processo, como no caso do calendário processual (art. 191, CPC) que alteram-se os prazos processuais ou, ainda, os negócios podem dizer respeito ao mero procedimento, como na hipótese de adiamento ou fracionamento de audiência, questão meramente procedimental.

O direito processual e seus procedimentos nunca foram imutáveis. Qualquer operador do Direito atuante no contencioso cível sabe, por exemplo, que dificilmente se encontrará dois processos judiciais absolutamente idênticos entre si no que diz respeito às suas fases, sem que isso implique necessariamente violação ao contraditório ou ao devido processo legal. Basta observar os diversos procedimentos criados pelo judiciário com relação às audiências telepresenciais no período da Pandemia ou, ainda, às inúmeras aplicações analógicas do Processo Civil no Processo do Trabalho aplicados pelas varas da Justiça Especializada, dada a fragilidade de normas processuais trabalhistas e a subsidiariedade da aplicação do processo civil, cada qual à sua maneira. Novamente repita-se: sem que isto implique em nulidade processual. Este nunca foi imutável e a simples prática comprova o alegado, sem que seja necessário reportar-se a quaisquer notas doutrinárias para isso.

Outro aspecto importante a ressaltar sobre a autonomia privada no manejo dos negócios jurídicos processuais é o fato de que as partes poderão, antes ou durante o processo, negociar sobre os procedimentos a serem aplicados. Ora, se ainda não há a pretensão resistida e, consequentemente, ainda não há processo judicial, resta-se evidente a autonomia do Direito Processual em relação ao Direito Material, uma vez que as partes estão a negociar normas processuais onde sequer existe, ainda, a provocação do Poder Judiciário, dissociando-se qualquer dependência que porventura possa existir na dicotomia direito material e direito processual, ainda que na fase pré-processual o negócio jurídico seja regido por regras de Direito Material.

Como se verá ao longo deste artigo, ainda, a jurisprudência brasileira4 possui entendimento consolidado no sentido da prevalência da autonomia privada para a celebração dos negócios jurídicos processuais atípicos sobre as decisões judiciais, atuando o magistrado apenas como “agente verificador” da legalidade do negócio e desde que não usurpadas as funções do Estado-Juiz.

1. Breve Histórico Dos Negócios Jurídicos Processuais

A história dos negócios jurídicos processuais no ordenamento jurídico brasileiro é marcada por uma evolução gradual, com diferentes etapas que moldaram o instituto jurídico como se conhece hoje, consolidado no Código de Processo Civil de 2015. Para que esta trajetória seja compreendida, é necessário analisar, ainda que de forma breve, um contexto histórico rico em debates e transformações sociais.

Já no Direito Romano, diversos mecanismos como a transação e a composição permitiam às partes resolver seus litígios de forma consensual (a arbitragem, por exemplo, é anterior ao próprio conceito de jurisdição). Mais tarde, já no século XIX e a crescente influência do common law no Brasil, o conceito de contrato processual ganhou força e intensificou-se no Código Civil de 1916 o qual introduziu nos artigos 1.037 a 1.048 o instituto jurídico do compromisso, permitindo às partes submeter seus litígios à arbitragem.

Pedro Henrique Nogueira5 aborda com propriedade os primórdios do regramento processual brasileiro:

Na vigência do Regulamento nº 737, de 1850 – considerado o primeiro Código Processual nacional, que regulava o processo das causas comerciais, revogando-se no particular a legislação filipina -, previram-se vários atos (hoje) de possível enquadramento na categoria de negócios processuais, tais como: a conciliação prévia nos processos judiciais (art. 23), a convenção para a estipulação do foro (art. 62), a estipulação de escolha do procedimento sumário (art. 245), o juízo arbitral voluntário, instituído por acordo das partes antes ou na pendência da demanda (art. 411).

Na doutrina, Pontes de Miranda6 foi um dos primeiros juristas brasileiros a defender a autonomia privada no processo. Em obras clássicas, dedicou um capítulo aos negócios jurídicos processuais, reconhecendo sua importância para a efetividade da jurisdição.

Na legislação brasileira, o marco fundamental foi o Código de Processo Civil de 1973, que dedicou um capítulo inteiro aos negócios jurídicos processuais típicos nos artigos 180 a 215, reconhecendo a validade e oponibilidade desses negócios, consolidando-os como um instrumento jurídico autônomo.

Em derradeiro, a jurisprudência brasileira também contribuiu para a consolidação dos negócios jurídicos processuais. O Superior Tribunal de Justiça reconheceu, como se verá em capítulo próprio, com algumas acertadas limitações, a validade e a oponibilidade desses negócios, inclusive em casos que envolviam modificações nas regras processuais.

Atualmente, salvo posições minoritárias e esparsas as quais serão brevemente analisadas adiante, a doutrina brasileira reconhece a importância dos negócios jurídicos processuais como instrumento fundamental para a promoção da autonomia das partes, da celeridade processual e da efetividade da jurisdição.

2. Ato E Fato Jurídico Processual

É impossível qualquer estudo sobre os conceitos de negócio jurídico processual sem, antes, tecer breves linhas acerca das definições de fato jurídico, ato jurídico e negócio jurídico. Até porque, tais definições podem repercutir de forma individual, tanto na esfera do direito material quanto na esfera processual, consolidado ainda mais, a despeito de posições doutrinárias em contrário, o direito processual como ciência autônoma.

Com relação aos fatos jurídicos sob a ótica do direito material, Flávio Tartuce7 assim leciona:

Também amparando os conceitos na doutrina, consignem-se as palavras de Silvio de Salvo Venosa, para quem “são fatos jurídicos todos os acontecimentos que, de forma direta ou indireta, ocasionam efeito jurídico. Nesse contexto, admitimos a existência de fatos jurídicos em geral, em sentido amplo, que compreendem tanto os fatos naturais, sem interferência do homem, como os fatos humanos, relacionados com a vontade humana.

O mesmo fato jurídico pode repercutir tanto na esfera do direito material do agente quanto no direito processual. Tome-se em exemplo um evento natural, como uma enchente. O mesmo fato que origina o dever do seguro em pagar o prêmio tendo, portanto, a natureza jurídica de reparação civil, poderá ocasionar, no âmbito processual, a suspensão de prazos e/ou audiências em razão do estado de calamidade pública e da impossibilidade de deslocamento das partes e advogados ao foro.

Atualmente, com o processo eletrônico e o uso da internet em tempo integral, diversos são fatos naturais que originam a suspensão dos prazos e paralisação dos sistemas processuais eletrônicos dos tribunais, mas também podem, autonomamente, repercutir somente no campo do direito material agente.

Nos exemplos supramencionados, tem-se, portanto, o fato jurídico processual em sentido estrito.

Já com relação aos atos jurídicos, sem ter aqui a pretensão de exaurir o tema, uma vez que tal teoria pode, inclusive, ser estudada autonomamente e de forma extensa. já que se trata de assunto propedêutico para a compreensão do próprio direito civil e da teoria geral do direito, as lições de Flavio Tartuce8 assim define:

Ato jurídico em sentido estrito (ou ato jurídico stricto sensu) – configura-se quando houver objetivo de mera realização da vontade do titular de um determinado direito, não havendo a criação de instituto jurídico próprio para regular direitos e deveres, muito menos composição de vontade entre as partes envolvidas. No ato jurídico stricto sensu os efeitos da manifestação de vontade estão predeterminados pela lei. Podem ser citados como exemplos de atos jurídicos stricto sensu a ocupação de um imóvel, o pagamento de uma obrigação e o reconhecimento de um filho.

A doutrina propõe diversas classificações aos atos jurídicos: atos-reais stricto sensu, atos-reais, ato-fato jurídico, os quais, embora relevantes, não serão importantes para o estudo aqui proposto, bastando compreender-se, por hora, que o ato jurídico é o ato unilateral de manifestação de vontade do agente.

Assim como o fato jurídico pode ter repercussão tanto na esfera processual como na esfera material, no estudo do ato jurídico o raciocínio é o mesmo: encontram-se diversos exemplos os quais o ato pode ser estritamente de direito material ou de direito processual, reforçando mais uma vez a afirmação da total autonomia deste em relação àquele.

Pedro Henrique Nogueira9 propõe interessantes exemplos de fatos jurídicos processuais:

O processo é campo fértil para a prática de atos-fatos processuais, concebidos para as condutas humanas, referidas a um procedimento, em relação às quais a ordem jurídica desconsidera a vontade de sua prática. Assim, se configuram conforme apontado por Fredie Didier Jr.: o adiantamento das custas processuais, o preparo, a revelia, a execução provisória da sentença posteriormente reformada, etc.

Como se vê, inexistem dúvidas sobre a autonomia dos atos jurídicos no campo processual, em especial aqueles que tem a possibilidade de alterar completamente o curso do processo como no exemplo acima citado da revelia, penalidade processual aplicada à parte que pratica ato omissivo em contestar ou, em alguns ritos específicos (ex. ritos dos juizados especiais cíveis ou no processo do trabalho), na ausência do comparecimento em audiência.

A depender do caso concreto, portanto, todo ato e fato jurídicos podem ter repercussão somente na esfera do direito material, somente na processual ou em ambos.

3. Negócio Jurídico: Conceito e Elementos

Antes de adentrar no estudo dos negócios jurídicos processuais, faz-se necessário conceituar negócio jurídico de forma geral, não significando que a autonomia do direito processual civil seja afastada. Ao contrário, posto que as bases propedêuticas de negócio jurídico, conceito este eminentemente civilista, servem aos mais variados institutos, como à exemplo da delação premiada, negócio jurídico processual pertencente ao ramo direito criminal que indiscutivelmente é autônomo, mas nem por isto tem-se afastada sua autonomia ao utilizar-se da definição dos negócios jurídicos nas bases civilistas, por meio do diálogo das fontes, capitaneada no Brasil por Claudia Lima Marques.

Em linhas gerais, negócio jurídico, também chamado de ato jurídico negocial, é uma manifestação de vontade, unilateral ou bilateral, com a finalidade de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas. Em outras palavras, é uma ação realizada por pessoas capazes, com o objetivo específico de gerar direitos e obrigações para as partes envolvidas, tendo como características principais a autonomia da vontade, formalidades específicas para a sua validade, objeto lícito, possível e determinado. 

Flávio Tartuce10 leciona, ainda, que “esse instituto pode ser conceituado como toda a ação humana, de autonomia privada, com a qual os particulares regulam por si os próprios interesses, havendo uma composição de vontades, cujo conteúdo deve ser lícito”.

No que tange à classificação, diversas são as apontadas pela doutrina, mas elenca-las fugiria ao propósito do presente artigo, considerando que aos negócios jurídicos processuais atípicos basta a definição do instituto. No entanto, Flávio Tartuce11 classifica os negócios jurídicos a) quanto às manifestações de vontades, b) quanto às vantagens patrimoniais, c) quanto aos efeitos, d) quanto à exigência ou não de formalidades; e) quanto à autonomia, dentre outras várias propostas.

Já com relação aos elementos constitutivos do negócio jurídico, estuda-los é compreender as facetas dos seus três planos através do conceito da Escada Ponteana, já que a relação entre o negócio jurídico e a Escada Ponteana é fundamental para a compreensão da formação, validade e eficácia dos atos jurídicos na doutrina brasileira, bem como para o seu controle pelo judiciário, como se verá à frente.

A Escada Ponteana, criada pelo jurista Pontes de Miranda, é uma teoria que estrutura os planos de formação do negócio jurídico, dividindo-o em três planos: a) Plano da Existência, b) Plano da Validade e, c) Plano da Eficácia.

Embora haja diversas posições doutrinárias críticas12 à Escada Ponteana, ela fornece uma estrutura clara e organizada para analisar a formação, validade e eficácia dos negócios jurídicos, facilitando a identificação dos vícios que podem afetar sua validade, além de proporcionar a segurança jurídica das relações negociais ao estabelecer critérios objetivos para a avaliação dos negócios jurídicos.

No Plano da Existência, tem-se como elementos a vontade, agente, objeto lícito e forma adequada, tendo como consequência, uma vez cumpridos todos os requisitos, ou não, respectivamente a existência ou inexistência do negócio jurídico. Uma escritura celebrada perante um tabelião na qual exista o agente, exista a vontade manifestada e tenha a forma prescrita em lei, em tese, é um negócio que existe no primeiro plano proposto por Pontes de Miranda.

Com relação ao Plano de Validade, os elementos constantes na escada ponteana são a capacidade das partes, liberdade da vontade consistente na inexistência dos vícios de consentimento previstos no Código Civil (erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo), objeto lícito, forma adequada e causa lícita. A consequência da presença ou não dos requisitos essenciais são sua validade ou invalidade. No exemplo da escritura proposto acima, uma escritura celebrada por um menor existe do ponto de vista jurídico, mas não é válida, uma vez que falta ao agente sua capacidade.

Por derradeiro, quanto ao Plano da Eficácia, os seus elementos essenciais são: inexistência de causas suspensivas ou extintivas para a celebração do negócio, tais como termo, condição ou consequências do inadimplemento. Sua ausência, por óbvio, implica em ineficácia do negócio jurídico. 

Perceba que, na aferição higidez ou não do negócio jurídico processual no caso concreto, isto é, no âmbito de um processo judicial com a demanda já estabilizada, ao magistrado competirá analisar a presença dos três planos segundo a construção doutrinária de Pontes de Miranda. Se, por exemplo, um negócio jurídico processual foi celebrado mediante a inserção de cláusula genérica em contrato de adesão ou se o agente estiver em manifesta situação de vulnerabilidade, faltará ao negócio a liberdade da vontade, afetando o plano da validade; noutra esteira, se ao negócio jurídico processual for atribuído a obrigatoriedade de admissão de produção de prova contrária ao direito, o magistrado rejeitará o negócio sob o fundamento do vício no plano da existência.

4. Negócio Jurídico Processual Típico e Atípico

Negócio jurídico processual em sentido amplo é o negócio jurídico celebrado pelas partes, segundo a autonomia privada, a qual, respeitando-se os planos comuns a qualquer negócio jurídico (existência, validade e eficácia) pactua-se ou flexibiliza-se procedimentos processuais em demanda atual ou futura.

Fredie Didier Jr13. com precisos ensinamentos define negócios jurídicos processuais:

Negócio processual é o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se confere ao sujeito o poder de regular, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento.

Em outras palavras, poderão as partes negociar para alterar questões processuais relevantes, alterar o curso do processo ou seus procedimentos, segundo seus interesses, mas sempre sujeitas ao controle do Estado-Juiz, cujas particularidades acerca do tema serão vistas adiante.

Como a própria nomenclatura induz, os negócios jurídicos processuais típicos são aqueles que, com arrimo no princípio da tipicidade, encontram-se expressos na própria lei processual, sem a necessidade de interpretá-los. Amoldando-se a vontade das partes com o que está previsto na lei, têm-se o negócio jurídico processual típico.

Fredie Didier Jr14. indica com precisão algumas das hipóteses previstas no atual código de processo civil de 2017:

Há diversos exemplos de negócios jurídicos processuais: a eleição negocial do foro (art. 63, CPC), o negócio jurídico tácito de que a causa tramite em juízo relativamente incompetente (art. 65, CPC), o calendário processual (art. 191, §§ 1º e 2º, CPC), a renúncia ao prazo (art. 255, CPC), o acordo para a suspensão do processo (art. 313, II, CPC), organização consensual do processo (art. 357, §2º), o adiamento negociado da audiência (art. 362, I, CPC) (…).

Timbre-se que os negócios jurídicos processuais típicos não é novidade do código de 2015. O Código de Processo Civil de 1973, em diversos dispositivos legais, já previa os negócios processuais típicos, os quais destacam-se: a possibilidade de eleição de foro (art. 111), transação judicial (art. 269, III; 475-N, III e V), convenção sobre a distribuição do ônus da prova (art. 333, parágrafo único) e o acordo de partilha (art. 1.031).

Havendo, portanto, previsão expressa para o negócio jurídico processual na lei procedimental, tem-se a tipicidade do procedimento, devendo o magistrado homologá-lo em homenagem ao princípio do autorregramento da vontade no processo civil.

Já com relação aos negócios jurídicos processuais atípicos, sua previsão expressa encontra-se no artigo 190 caput do mesmo código:

Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Tem-se, portanto, a caracterização dos negócios jurídicos processuais atípicos quando a manifestação de vontade decorrente da autonomia privada para alteração ou flexibilização do procedimental processual não estiver de forma expressa na lei.

Na precisa definição de Fredie Didier Jr.15:

O negócio processual atípico tem por objeto a situações jurídicas processuais – ônus, faculdades, deveres e poderes (“poderes”, neste caso, significa qualquer situação jurídica ativa, o que inclui direitos subjetivos, direitos potestativos e poderes propriamente ditos). O negócio processual atípico também pode ter por objeto o ato processual – redefinição de sua forma ou da ordem e encadeamento dos atos, por exemplo.

A primeira controvérsia é se os negócios jurídicos processuais atípicos surgiram apenas com a vigência do código de processo civil de 2015 e a resposta para esta questão só pode ser negativa. Isto porque existem inúmeros exemplos fáticos que comprovam que procedimentos processuais foram alterados antes mesmos do ingresso deste instituto no ordenamento jurídico atual.

À exemplo, tem-se o “Projeto Expressinho” 16 convênio realizado pela primeira vez em 1999 – quase quinze anos antes da entrada em vigência do código de processo civil de 2015 – entre o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e a concessionária de serviço público Telemar Norte Leste S.A. onde, em síntese, alterava diversos procedimentos previstos na lei processual civil com objetivo de facilitar o acesso à justiça pelos consumidores, bem como reduzir quantidade de ações judiciais. O referido Projeto, dado o seu sucesso, atualmente foi estendido a diversas outras empresas que detém grande volume de demandas consumeristas.

Outro ponto relevante de controvérsia é saber se os negócios processuais podem ser celebrados para modificação de condições da ação ou pressupostos processuais, os quais dizem respeito, respectivamente, ao direito de ação e aos requisitos de validade (regularidade) e de existência (constituição) da relação jurídica processual.

Com relação às condições da ação, a doutrina é firme no sentido da impossibilidade de fazê-lo, considerando que as condições da ação atingem o próprio direito de demanda, razão pela qual, por ser norma de ordem pública, incabível qualquer negociação a respeito. Esta é a posição jurisprudencial17, inclusive.

Já com relação aos pressupostos processuais, a doutrina é uníssona como leciona Fredie Didier18:

É possível acordo sobre pressupostos processuais. Não há incompatibilidade teórica entre negócio processual e pressupostos processual. Tudo dependerá do exame do direito positivo. Há, por exemplo, expressa permissão de acordo sobre competência relativa e acordo sobre foro de eleição internacional (art. 25, CPC). O consentimento do cônjuge para a propositura de ação real imobiliária pelo outro cônjuge é negócio processual sobre um pressuposto processual: a capacidade processual.

O exemplo acima mencionado remete à relevante questão disposta na parte final do art. 190 do CPC sobre o tempo de celebração dos negócios processuais: cabe a convenção antes ou durante o processo. Admite-se, por exemplo, contratos das mais variadas naturezas onde poderão ser inseridas disposições processuais em caso de litígios futuros como, por exemplo, negócios processuais inseridos em contratos de locação dispondo sobre como serão regulados determinados atos do processo caso haja futura pretensão resistida ou, ainda inseridos em contratos empresariais como se vê em acordos sobre o foro de eleição. Observe que todos os negócios processuais inseridos dependem de condição (plano de eficácia da Escada Ponteana) para a sua execução, qual seja, a existência de processo judicial.

Da mesma forma, admitem-se negócios jurídicos processuais durante o processo, novamente demonstrando a autonomia deste Instituto, pois muito embora haja a lide e direito material violado, tem as partes o dever de cooperação e lealdade processual (art. 5º, CPC) de maneira a permitir o pleno exercício da atividade jurisdicional do Estado, à exemplo o acordo para substituição do bem penhorado (art. 847, §4º, CPC), acordo para o rateio de despesas processuais ou, ainda, acordo para a redução ou ampliação de prazos (art. 191, CPC), este último muito comum em demandas multitudinárias.

Por fim, mas não menos importante, diz respeito à admissão dos negócios processuais somente para aqueles direitos os quais admitam a autocomposição, conforme prescrição expressa na parte inicial do artigo 190 do código de processo civil. 

Não se deve confundir, todavia, direitos que admitem autocomposição com direitos patrimoniais disponíveis. No ordenamento jurídico brasileiro, um direito que admite autocomposição é aquele que, mesmo sendo indisponível, permite que as partes envolvidas em um conflito busquem uma solução consensual por meio de métodos como a mediação ou a conciliação; Já os direitos disponíveis, em contrapartida aos indisponíveis, caracterizam-se pela livre disposição das partes, ou seja, podem ser livremente alienados, renunciados ou transacionados, sem necessidade de autorização legal ou judicial.

Cabe o manejo dos negócios processuais, portanto, aqueles direitos os quais admitem a autocomposição, ainda que sejam indisponíveis. À exemplo tem-se alguns dos direitos patrimoniais que, mesmo indisponíveis, podem admitir acordos que versem sobre aspectos acessórios, como forma de pagamento, prazos, etc.; direitos de família como em divórcios consensuais, onde admite-se a autocomposição para questões como divisão de bens e guarda de filhos e, ainda, direitos relacionados à administração pública, até porque, com relação a este último, a Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) admite a mediação para conflitos entre a Administração Pública e particulares, mesmo que envolvam direitos indisponíveis, desde que haja autorização legal ou expressa da Administração.

Pedro Henrique Nogueira19 traz, ainda, interessante observação sobre os negócios processuais celebrados pelo Ministério Público quando em tutela de direitos indisponíveis:

O Ministério Público, mesmo quando atue na defesa de interesses indisponíveis, também pode celebrar negócios processuais e convenções sobre o processo. A Resolução CNMP nº 118/2014, inclusive, no art. 15, recomenda que convenções processuais sejam promovidas quando o procedimento deva ser adaptado para permitir a adequada tutela aos interesses materiais em jogo, assim como para resguardar o âmbito de proteção dos direitos fundamentais processuais.

Por fim, deve ser mencionado que uma das características relevantes dos negócios processuais é ser, em princípio, revogável, já que o próprio artigo 200 do Código de Processo Civil dispõe: 

Art. 200. Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.

Em outras palavras, eventual negócio jurídico que é celebrado posteriormente a um já realizado, teria, nos termos do artigo supramencionado, poder para revogar o anterior, ressaltando-se, por oportuno, que qualquer negócio processual celebrado antes de instaurada a lide (como no exemplo citado acima daquele inserido como cláusulas acessórias em contrato de locação) detém característica de direito material e, portanto, poderiam as partes revogá-lo antes de deflagrado o procedimento.

Esta observação é relevante para demonstrar a natureza dúplice do negócio jurídico processual e sua transmutação de natureza e regramento, tudo a depender do momento em que é celebrado: se antes ou depois de instaurada a lide.

Em relação aos vícios mais comuns do negócio jurídico processual, os quais aqui serão expostos de forma breve e abrangente: a qualquer momento, independentemente do vício em concreto, poderá se aferir a existência dos planos de validade previstos na escada ponteana (existência, validade e eficácia), mas o presente artigo exporá de forma sintética os mais frequentes.

O primeiro deles é quando uma das partes se encontra em manifesta situação de vulnerabilidade, a exemplo do que ocorre nos contratos de trabalho e nos contratos regidos pela lei consumerista, onde as partes, respectivamente o trabalhador e o consumidor encontram-se em patamar de hipossuficiência (geralmente técnica e econômica) em relação à outra. Nestes casos o negócio jurídico será considerado inválido ante a ausência de liberdade da vontade (plano de validade).

Ressalta-se que não é vedado a estes sujeitos a celebração de negócios jurídicos processuais, desde que possam estar todos em situação de igualdade. Neste sentido, Pedro Henrique Nogueira20:

Por isso, consumidores, trabalhadores e outros sujeitos normalmente categorizados como hipossuficientes ou vulneráveis para fins de aplicação das regras de direito material que lhe são dirigidas não estão impedidos de celebrar convenções sobre o processo e negócios processuais (por exemplo, consumidor e fornecedor, conquanto no plano substancial possam estar em situação de desequilíbrio, podem negociar em situação de isonomia e equilíbrio a redução ou aplicação de prazos processuais).

Outro vício frequente nos negócios jurídicos processuais é aquele cujas cláusulas foram inseridas em contratos de adesão, os quais uma das partes (geralmente o contratante) tem pouco ou nenhuma possibilidade de discussão ou de introdução de modificações no instrumento.

Neste caso, evidentemente, o deslinde da questão se dará pela aplicação do disposto no art. 423 do Código Civil:

Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente.

Perceba que a inserção de cláusulas negociais processuais em contratos de adesão não significa, necessariamente, a vulnerabilidade de um dos sujeitos como citado anteriormente. Na prática, poderá existir, por exemplo, contratos de locação celebrados por meio de contratos de adesão onde o negócio jurídico processual encontra-se inserido sem a possibilidade de discussão da outra parte. Neste caso, não há relação consumerista e muito menos a vulnerabilidade da parte, vez que o presente contrato é regido pela lei de locações. Outro exemplo, agora em analogia, são as cláusulas arbitrais patológicas inseridas em contratos, as quais não representam necessariamente a vontade dos contratantes, prevendo, de maneira genérica, normas procedimentais processuais.

Destarte, havendo normas processuais inseridas em contratos de adesão, a teor do disposto no artigo 423 do Código Civil, a intepretação a prevalecer será sempre a mais benéfica ao aderente.

5. CONTROLE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS ATÍPICOS E A POSIÇÃO JURISPRUDENCIAL BRASILEIRA

O parágrafo único do artigo 190 do Código de Processo Civil dispõe sobre o controle da validade dos negócios jurídicos processuais atípicos como se vê a seguir:

Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

Pela leitura do dispositivo supracitado, conclui-se que é atribuído ao magistrado a tarefa de controlar a validade dos negócios jurídicos seja por requerimento da parte ou de ofício e, in casu, declarar sua nulidade e inaplicabilidade.

Portanto, a jurisprudência brasileira tem-se manifestado no tocante aos limites do que pode ou não ser processualmente negociado entre as partes, mas, sobretudo, do que seria a interferência privada ao que competiria exclusivamente ao Estado-Juiz quando do exercício da jurisdição.

Acerca do tema, o Superior Tribunal de Justiça, no voto condutor da Ministra Nancy Andrighi da 3ª Turma proferiu a primeira decisão sobre os negócios jurídicos processuais no sentido de que cabe ao judiciário retirar objetos dos negócios que suprimam atribuições exclusivas do poder judiciário:

EMENTA: CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVENTÁRIO. CELEBRAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL ATÍPICO. CLÁUSULA GERAL DO ART. 190 DO NOVO CPC. 
AUMENTO DO PROTAGONISMO DAS PARTES, EQUILIBRANDO-SE AS VERTENTES DO CONTRATUALISMO E DO PUBLICISMO PROCESSUAL, SEM DESPIR O JUIZ DE PODERES ESSENCIAIS À OBTENÇÃO DA TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA, CÉLERE E JUSTA. CONTROLE DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS QUANTO AO OBJETO E ABRANGÊNCIA. POSSIBILIDADE. DEVER DE EXTIRPAR AS QUESTÕES NÃO CONVENCIONADAS E QUE NÃO PODEM SER SUBTRAÍDAS DO PODER JUDICIÁRIO. NEGÓCIO JURÍDICO ENTRE HERDEIROS QUE PACTUARAM SOBRE RETIRADA MENSAL PARA CUSTEIO DE DESPESAS, A SER ANTECIPADA COM OS FRUTOS E RENDIMENTOS DOS BENS. AUSÊNCIA DE CONSENSO SOBRE O VALOR EXATO A SER RECEBIDO POR UM HERDEIRO. ARBITRAMENTO JUDICIAL. 
SUPERVENIÊNCIA DE PEDIDO DE MAJORAÇÃO DO VALOR PELO HERDEIRO. […] JUIZ QUE NÃO PODE SER SUJEITO DE NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL. 
INTERPRETAÇÃO ESTRITIVA DO OBJETO E DA ABRANGÊNCIA DO NEGÓCIO. NÃO SUBSTRAÇÃO DO EXAME DO PODER JUDICIÁRIO DE QUESTÕES QUE DESBORDEM O OBJETO CONVENCIONADO. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA. (RESP 1738656/REL MINISTRA NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, JULGADO EM 03/12/2019 DJE 05/12/2019)

Na sequência, o Superior Tribunal de Justiça, em relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão22 proferiu interessante voto no sentido de que a análise do negócio jurídico processual pelo magistrado não se sujeita a um “juízo de conveniência”, mas deve-se pronunciar apenas nos casos de nulidade ou havendo manifesta situação de vulnerabilidade:

4. O negócio jurídico processual não se sujeita a um juízo de conveniência pelo juiz, que fará apenas a verificação de sua legalidade, pronunciando-se nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou ainda quando alguma parte se encontrar em manifesta situação de vulnerabilidade.

Com base nos julgados transcritos acima, dois pontos importantes (ou fases de análise) devem ser ressaltados os quais a jurisprudência é atenta no reparo da validade dos negócios jurídicos processuais atípicos.

A primeira fase diz respeito à análise dos planos de validade, existência e eficácia como já analisado neste artigo quando da exposição da Escada Ponteana. A primeira tarefa, segundo a jurisprudência, é analisar se o negócio jurídico cumpre os requisitos necessários à sua validade, conforme ensinamentos propedêuticos de Pontes de Miranda.

Ainda nesta primeira fase, o magistrado avalia no caso concreto se há situação de vulnerabilidade entre as partes, hipossuficiência técnica ou vícios de vontade os quais maculariam a lisura do negócio jurídico processual, tais como cláusulas inseridas em contratos de adesão ou cláusulas em que uma das partes fica em flagrante desequilíbrio.

O segundo ponto a ser analisado é se o objeto do negócio jurídico processual atípico suprime a atividade típica jurisdicional, atividade esta restrita ao Estado-Juiz a qual jamais poderá ser objeto de convenção entre as partes.

Negócios jurídicos processuais que modifiquem, por exemplo, espécies probatórias permitidas ou não ou valoração das mesmas (o juiz é o destinatário da prova e somente à ele é permitida sua valoração), hipóteses de periculum in mora ou fumus boni iuris para deferimento de tutela de urgência são exemplos de hipóteses vedadas pela doutrina para a convenção processual entre as partes, pois claramente nestes casos os negócios jurídicos processuais atípicos estão suprimindo a atividade que a rigor é privativa do magistrado.

Neste sentido, Fredie Didier Jr23 exemplifica situações as quais poderiam ser eivadas de nulidade:

São nulos, por exemplo, o negócio processual em que uma parte aceite ser torturada no depoimento pessoal e o negócio em que as partes aceitam ser julgadas com base em provas de fé (carta psicografada, por exemplo). No primeiro caso, o objeto do negócio é a prática de um crime; no segundo, o objeto do negócio vincula o Estado-Juiz, que é laico, a decidir com base em premissa religiosa, o que é inconstitucional (art. 19, I, CF/1988).

Nesta esteira, é de se concluir, portanto, que a posição jurisprudencial brasileira atualmente é no sentido de vedar a discricionariedade do magistrado na análise dos negócios jurídicos processuais que se apresentam nos autos, mas tão somente atuar na aferição de sua validade, situação de vulnerabilidade ou quando o negócio suprimir prerrogativas do Estado-Juiz quando do exercício de sua atividade típica jurisdicional.

Com o devido respeito ao posicionamento jurisprudencial atual, entendemos que a permissão aos negócios jurídicos processuais se encontra bastante acanhada e limitada. Isto porque é necessário que se dê as partes (ou aos sujeitos, no caso de negócios pré-processuais) mais liberdade segundo a autonomia privada de vontades que evidentemente trata-se na maioria dos casos de objetos disponíveis regidos pela possibilidade de autotutela.

Limitar a autonomia privada nos negócios processuais ao argumento da “supressão da atividade jurisdicional” é criar freios sob uma visão simplista do artigo 190 do CPC o qual evidentemente veio para garantir mais celeridade aos processos judiciais. Inclusive, pensamos que não se pode restringir os negócios jurídicos processuais apenas pela ótica de que tal objeto pertence ao conjunto das atribuições do poder judiciário, pois tal posicionamento carrega uma carga de subjetividade que compromete a segurança jurídica do negócio celebrado.

Ademais, nunca é demais lembrar que os negócios jurídicos processuais são, em essência, negócios jurídicos em sentido estrito regidos pelas regras de direito material (sobretudo na fase contratual, antes de instaurada a lide). Logo, se não há vícios do ponto de vista da escada ponteana, por exemplo, se o objeto é disponível, regido por autotutela, pensamos que não há razoabilidade para a decretação de nulidade da avença processual. Todo o negócio jurídico é celebrado tendo as partes analisado (ou ao menos é isso o que se espera) os riscos pecuniários futuros e, especialmente no tocante aos negócios jurídicos processuais empresariais, estes trazem consigo toda a sorte de estudos acerca dos impactos econômicos. Anulá-los sob argumentos subjetivos e frágeis, pensamos, é ocasionar graves prejuízos financeiros aos sujeitos contratantes.

Do ponto de vista sociológico-jurídico, equivoca-se a jurisprudência brasileira, tendo em vista que, nas lições do sociólogo alemão Niklas Luhmann24 e sua Teoria dos Sistemas Autopoiéticos, o Direito é um sistema autopoiético, capaz de se auto organizar e se auto reproduzir. Isso significa que o Direito opera com base em suas próprias regras e lógica interna, sem depender de fatores externos para sua existência. Essa autorreferencialidade garante a coesão e a identidade do sistema jurídico.

Ora, é indiscutível que os negócios jurídicos processuais, tendo eles objetos disponíveis os quais garantem-se a autotutela para a defesa de seus interesses e, aliado à autonomia privada hígida, devem garantir liberdade às partes para a sua consecução e, consequentemente, enxutos procedimentos e duração razoável do processo. Impedir tal autonomia sob o frágil fundamento de supressão da atividade jurisdicional é um retrocesso. Luhmann ainda leciona que:

A comunicação simbólica é o mecanismo fundamental através do qual o Direito opera. As normas jurídicas, expressas em linguagem, servem como unidades de comunicação que permitem a coordenação de ações e a resolução de conflitos sociais.

Do ponto de vista doutrinário, ainda, existem inúmeras teorias basilares úteis ao suporte crítico da posição jurisprudencial brasileira, as quais deixamos aqui de nos aprofundar em razão da brevidade do presente artigo, mas dentre eles, por exemplo, as teorias de Elio Fazzalari25, no sentido de caracterizar-se o processo como verdadeiro procedimento em contraditório. 

Para o citado autor, portanto, o conceito de processo como espécie de procedimento realizado em contraditório, com simétrica paridade de armas é o fundamento central da processualística. Ora, se respeitado o contraditório, mormente em contratos paritários donde se advém os negócios jurídicos processuais, porque vedá-los sob o argumento de supressão de atividade típica e restrita à jurisdição. Com o devido respeito, não faz sentido.

Do ponto de vista lógico, ainda, inexistem razões para que a jurisprudência vede a autonomia privada das partes em negócios jurídicos processuais posto que, noutro giro, grande parte da doutrina26 admite o já citado pacto antenupcial na qual desobriga-se a outorga marital para a propositura de ações versando sobre direitos reais. Perceba-se que aqui tratamos de negócios jurídicos processuais versando sobre matéria de ordem pública, qual seja, o pressuposto processual.

E há inúmeras outras razões, sejam doutrinárias, econômicas e até mesmo filosóficas para a crítica ao posicionamento jurisprudencial acerca dos negócios jurídicos processuais, mas, em razão da sinteticidade do presente estudo, deixaremos para abordá-los em outros estudos. 

Por fim, entendemos que o poder judiciário, ao argumento da “supressão da atividade jurisdicional” ainda se afigura refratário aos negócios jurídicos processuais atípicos, talvez pelo resquício ainda latente na figura do Estado-Juiz como expressão máxima da soberania estatal.

CONCLUSÃO:

Diversos elementos presentes na legislação material comprovam e materializam a autonomia do direito processual. A autonomia privada entre as partes para a negociação e flexibilização dos procedimentos processuais a serem aplicados no caso concreto provam que, de fato, tratam-se de ciência autônoma. Também se resta claro que fatos jurídicos e atos jurídicos podem ter repercussão tanto na esfera material como, somente, na esfera processual, comprovando ainda mais tal posição.

Já com relação aos negócios jurídicos processuais, tipo de negócios jurídicos, sejam eles típicos ou atípicos, este último não recente, mas positivado no artigo 190 do novel código de processo civil de 2015, as partes obtiveram maior autonomia para negociar, antes ou durante o litígio, acerca dos procedimentos processuais pertinentes quando se instaurada a lide, ora flexibilizando-os, ora suprimindo fases desnecessárias, sempre com vistas a garantir, em homenagem ao princípio da duração razoável do processo, uma efetividade na prestação jurisdicional.

Não se pode olvidar, todavia, que a autonomia privada para os negócios jurídicos processuais atípicos não é ilimitada, devendo o Estado-juiz exercer controle no caso concreto, garantindo o respeito aos elementos constituintes de todo negócio jurídico, aqui defendido a escada ponteana (existência, validade e eficácia) mas, acima de tudo, resguardando que as partes não suprimam ou não intervenham na atividade típica jurisdicional, não podendo celebrar-se negócios jurídicos os quais a jurisdição ou seus princípios elementares (ex. inafastabilidade, juiz natural, etc.) sejam retirados ou modificados.

Os vícios comumente encontrados nos negócios jurídicos processuais, a despeito da escada ponteana para aferição dos planos de validade do negócio são a manifesta situação de vulnerabilidade da parte, que pode ser vista, por exemplo, nos contratos de trabalho e naqueles negócios típicos regidos pela lei consumerista e, ainda, a presença de cláusulas processuais inseridas nos contratos de adesão. Ambos, portanto, invalidam o negócio processual ante a inexistência de liberdade da vontade (plano de validade da escada ponteana).

A jurisprudência brasileira, por meio de decisões nos tribunais superiores, a despeito de posições minoritárias, tem admitido a validade dos negócios jurídicos processuais sob o fundamento de que não pode o juiz “exercer juízo de conveniência sobre os mesmos”, mas sim devendo o magistrado apenas verificar a sua legalidade, pronunciando-se nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou ainda quando alguma parte se encontrar em manifesta situação de vulnerabilidade.


1Pontes de Miranda, Pontes. Tratado de direito processual civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revista dos Tribunais, 1976.
2Didier JR., Fredie. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais / Fredie Didier Jr. – 4. ed. rev, e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm, 2024. 304.
3Considerações históricas na proteção de direitos: a evolução do direito processo civil no tempo. Disponível em https://periodicos.ufba.br/index.php/rvh/article/view/48043/26173
4BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.810.444/SP. Recorrente: Belarina Alimentos. Recorrido: Jean Marcell Carlos. Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, 23 fev. 2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201803376440&dt_publicacao=28/04/2021 Acesso em 20 abr. 2024.
5Nogueira, Pedro Henrique, Negócios jurídicos processuais. – 2 ed., Ver., ampl e atual. – Salvador: Ed. JusPodvm, 2016. p. 140.
6PONTES, 1973, op. cit. p. 98.
7Tartuce, Flávio, Direito civil: lei de introdução e parte geral / Flávio Tartuce. – 20 ed., ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2024. p. 354.
8Op.Cit. p. 357.
9Nogueira, Pedro Henrique, Negócios jurídicos processuais. – 2 ed., Ver., ampl e atual. – Salvador: Ed. JusPodvm, 2016. P. 117.
10Tartuce, Flávio, Direito civil: lei de introdução e parte geral / Flávio Tartuce. – 20 ed., ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2024. p. 360.x
11Op. Cit.
12Autores como Carlos Maximiliano Pereira e Nelson Nery Jr. argumentam que a Escada Ponteana é excessivamente rígida e não leva em consideração as particularidades de cada caso concreto. Segundo eles, a teoria não oferece flexibilidade suficiente para analisar negócios jurídicos complexos e atípicos. Autores como Miguel Reale e Paulo Nader criticam a superficialidade da Escada Ponteana, argumentando que ela não se aprofunda nas causas e consequências dos vícios do negócio jurídico. Segundo eles, a teoria não oferece uma análise completa dos fatores que podem afetar a validade e a eficácia dos negócios jurídicos.
13Didier JR, Fredie. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais / Fredie Didier Jr. – 4. Ed. rev, e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm. 2024. p. 35
14Op. Cit. p. 36.
15Op. Cit. p. 40.
16Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro: https://cgj.tjrj.jus.br/projetos-especiais/expressinho acesso em 23/04/2024.
17BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.810.444/SP. Recorrente: Belarina Alimentos. Recorrido: Jean Marcell Carlos. Ministro Luis Felipe Salomão. 23 fev. 2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201803376440&dt_publicacao=28/04/2021 Acesso em 20 abr. 2024.
18Op. Cit. p. 41.
19NOGUEIRA. Op. Cit. pg. 235-236.
20Op. Cit. pg. 237
21BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.738.656/2019. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Brasília, 13 mar.2020. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201702643545&dt_publicacao=13/03/2020. Acesso em: 20 abr. 2024. 
22BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.810.444/SP. Recorrente: Belarina Alimentos. Recorrido: Jean Marcell Carlos. Ministro Luis Felipe Salomão. 23 fev. 2021. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201803376440&dt_publicacao=28/04/2021 
23Didier JR, Fredie. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais / Fredie Didier Jr. – 4. Ed. rev, e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm. 2024. p. 47
24LUHMANN. Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1985. 
25FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Trad. Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006.
26DIDIER Jr., Fredie. Ensaios sobre os negócios jurídicos processuais / Fredie Didier Jr. – 4. Ed. rev, e ampl. – São Paulo: Editora JusPodivm. 2024.


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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201702643545&dt_publicacao=13/03/2020 , acesso em: 20 abr. 2024.

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_____Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1985. 

_____Introdução à Teoria dos Sistemas. Petrópolis: Vozes, 2010.


1Doutor e Mestre em Direito/UERJ, Pós-doutorando em Direito/UNIRIO, Professor universitário e advogado;
2Advogado; Graduado em Direito pelo Instituto Metodista Bennett; Mestrando em Soluções Alternativas e Controvérsias Empresariais pela Escola Paulista de Direito – EPD; Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Gama Filho;
3Advogada, Graduada em Direito pelo Centro Universitário da Cidade; Mestranda em Soluções Alternativas e Controvérsias Empresariais pela Escola Paulista de Direito – EPD; Especialista em Direito Público e Tributário pela Universidade Cândido Mendes; MBA Executivo em Gestão de Negócios pelo Instituto Financeiro de Mercado de Capitais – IBMEC; Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB