MULHERES E MAGISTÉRIO: UMA ANÁLISE HISTÓRICA DA FEMINIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE EM SANTA CATARINA

WOMEN AND TEACHING: A HISTORICAL ANALYSIS OF THE FEMINIZATION OF TEACHING WORK IN SANTA CATARINA

MUJERES Y MAGISTERIO: UN ANÁLISIS HISTÓRICO DE LA FEMINIZACIÓN DEL TRABAJO DOCENTE EN SANTA CATARINA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/th10249131131


Eliane Gatto1


RESUMO: Este artigo analisa a evolução histórica das lutas das mulheres, destacando a interseção de suas reivindicações com as de outras minorias, como de classe e raça. Discute-se o papel atribuído às mulheres como cuidadoras e educadoras, com ênfase na feminilização do magistério, especialmente na educação básica em Santa Catarina ao longo das últimas décadas. A pesquisa explora como a histórica atribuição do papel de cuidadora influenciou a escolha das mulheres pelo magistério, uma profissão que se tornou majoritariamente feminina. Essa feminilização, embora tenha aberto novas oportunidades para essas mulheres, também contribuiu para a desvalorização social e econômica da docência. Ao longo do texto, são analisados dados e publicações científicas que abordam essas questões, revelando a complexa interação entre normas de gênero e o trabalho docente. A perspectiva de gênero desafia estereótipos, demonstrando que tanto homens quanto mulheres têm a capacidade de cuidar e contribuir de maneira significativa em ambientes educacionais, promovendo uma prática pedagógica mais equitativa.

Palavras-chave: história das mulheres, feminilização do magistério, educação básica, estereótipos de gênero, identidade docente.

ABSTRACT: This article examines the historical evolution of women’s struggles, highlighting the intersection of their demands with those of other minorities, such as class and race. It discusses the role assigned to women as caregivers and educators, with an emphasis on the feminization of teaching, particularly in basic education in Santa Catarina over the past decades. The research explores how the historical assignment of the caregiver role influenced women’s choice of teaching, a profession that has become predominantly female. This feminization, while opening new opportunities for women, also contributed to the social and economic devaluation of the teaching profession. Throughout the text, data and scientific publications addressing these issues are analyzed, revealing the complex interaction between gender norms and teaching work. The gender perspective challenges stereotypes, demonstrating that both men and women have the capacity to care and contribute significantly in educational environments, promoting a more equitable pedagogical practice.

Keywords: women’s history, feminization of teaching, basic education, gender stereotypes, teaching identity.

RESUMEN: Este artículo examina la evolución histórica de las luchas de las mujeres, destacando la intersección de sus demandas con las de otras minorías, como de clase y raza. Se discute el papel asignado a las mujeres como cuidadoras y educadoras, con énfasis en la feminización del magisterio, particularmente en la educación básica en Santa Catarina durante las últimas décadas. La investigación explora cómo la asignación histórica del rol de cuidadora influyó en la elección de las mujeres por el magisterio, una profesión que se ha vuelto predominantemente femenina. Esta feminización, aunque ha abierto nuevas oportunidades para estas mujeres, también ha contribuido a la devaluación social y económica de la docencia. A lo largo del texto, se analizan datos y publicaciones científicas que abordan estas cuestiones, revelando la compleja interacción entre las normas de género y el trabajo docente. La perspectiva de género desafía estereotipos, demostrando que tanto hombres como mujeres tienen la capacidad de cuidar y contribuir de manera significativa en entornos educativos, promoviendo una práctica pedagógica más equitativa.

Palabras clave: historia de las mujeres, feminización del magisterio, educación básica, estereotipos de género, identidad docente.

INTRODUÇÃO

 A história das mulheres é marcada por uma complexa teia de desafios e conquistas que atravessam os séculos, revelando uma trajetória de resistência e transformação. Desde as sociedades primitivas até os movimentos feministas contemporâneos, as mulheres têm desempenhado papéis cruciais, infelizmente, muitas vezes relegados à margem da história oficial. No Brasil, essa narrativa ganha contornos particulares, onde as mulheres indígenas, africanas escravizadas e, posteriormente, as mulheres de diferentes classes sociais, têm lutado por reconhecimento e direitos em um contexto de profundas desigualdades sociais, de gênero e raça.

A história das mulheres no Brasil é, portanto, um campo fértil para a análise das dinâmicas sociais e culturais que moldaram e ainda moldam a vida dessas mulheres e suas lutas por emancipação. A partir do século XIX, com a urbanização e a industrialização, as mulheres começaram a ter maior acesso à educação em relação aos séculos anteriores e ao mercado de trabalho, quando levado em consideração o recorte de classes, embora de forma limitada e marcada por estereótipos de gênero. As primeiras feministas brasileiras, como Bertha Lutz, emergiram nesse período, lutando pelo direito ao voto e por melhores condições de vida e trabalho. A educação feminina, durante muito tempo, foi voltada principalmente para a formação moral e religiosa, preparando as mulheres para serem boas esposas e mães, conforme os ideais de domesticidade da época (Priore, 1997).

O século XX trouxe mudanças significativas, com a participação feminina na vida pública aumentando gradualmente. Movimentos feministas das décadas de 1960 e 1970 foram fundamentais para a transformação das relações de gênero no Brasil, abordando questões como a legalização do aborto, a criação de creches e a igualdade no mercado de trabalho. A Constituição de 1988 representou um marco na consagração dos direitos das mulheres e de outras minorias, refletindo a pressão social e política dos movimentos feministas. A história das mulheres brasileiras, portanto, é uma história de lutas contínuas por direitos civis, políticos e sociais, que tem se intensificado nas últimas décadas com a incorporação de novas demandas e a diversificação do movimento feminista em suas diferentes transversalidades.

Dentro dessa ampla narrativa, a figura da mulher como cuidadora e educadora emerge como um tema central e recorrente. Historicamente, a responsabilidade pelo cuidado da família e pela educação dos filhos foi atribuída às mulheres, reforçando estereótipos de gênero que ainda persistem. No contexto da educação, essa dinâmica se reflete na feminização do magistério, especialmente na educação básica. A presença predominante de mulheres nessa profissão está associada a uma série de desafios, incluindo a desvalorização profissional e os baixos salários, aspectos que serão explorados detalhadamente no decorrer deste artigo.

A obra de Vianna (2013), intitulada A feminização do magistério na educação básica e os desafios para a prática e a identidade coletiva docente, presente no livro Trabalhadoras: análise da feminização das profissões e ocupações coordenado por Yannoulas (2013), oferece uma análise crítica sobre a feminização do magistério. Vianna (2013) discute como a histórica atribuição do papel de cuidadora às mulheres contribuiu para a escolha do magistério como profissão predominantemente feminina e como essa escolha impacta a prática docente e a identidade coletiva das professoras. A autora argumenta que a feminização do magistério não é apenas uma questão de quantidade, mas também de qualidade das relações de gênero dentro das instituições educacionais, influenciando a forma como o trabalho docente é percebido e valorizado na sociedade.

Este artigo científico, portanto, se propõe a, por meio de uma revisão bibliográfica, explorar a trajetória histórica das mulheres, com um foco específico na figura da mulher como cuidadora e educadora. Partindo de uma revisão histórica que contextualiza a evolução dos papéis femininos na sociedade brasileira, o artigo se afunila para uma análise aprofundada da feminização do magistério na educação básica. A partir das contribuições de Vianna (2013) e outras (os) estudiosas (os), busca-se compreender os desafios enfrentados pelas professoras no exercício de sua profissão e as implicações desses desafios para a prática e a identidade coletiva docente. A análise procura revelar as continuidades e rupturas na trajetória histórica das mulheres como figuras de cuidado e ensino, destacando as lutas e resistências que têm marcado essa jornada.

DESENVOLVIMENTO

A História das Mulheres no Brasil e no Mundo

A história das mulheres é uma narrativa complexa e multifacetada, marcada por desafios, resistências e conquistas ao longo dos séculos. Desde as sociedades primitivas até os dias atuais, as mulheres desempenharam papéis fundamentais, embora frequentemente relegadas à margem da história oficial. Esta seção busca explorar a trajetória histórica das mulheres com base em uma seleção de fontes acadêmicas que abordam a temática no contexto brasileiro e internacional, evidenciando a luta contínua por reconhecimento e direitos desse que pode ser considerado o maior grupo minoritário do Brasil, conforme apresentado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2023), onde as mulheres representavam 51,48% da população.

No Brasil, a presença feminina nas sociedades indígenas era caracterizada por uma divisão de tarefas baseada no gênero, mas com um grau de equidade, especialmente em termos de participação comunitária. As mulheres indígenas desempenhavam papéis centrais na agricultura, na educação dos filhos e em rituais religiosos. A chegada dos colonizadores europeus trouxe profundas transformações, impondo um modelo patriarcal que relegou as mulheres ao espaço doméstico e submisso. As mulheres indígenas e africanas escravizadas foram as mais afetadas por esse novo ordenamento social, sofrendo dupla opressão, tanto de gênero quanto de raça. Priore (1997) aponta sinaliza que a sociedade brasileira, na fase colonial, se estruturou em torno de um patriarcado rígido, cenário em que as mulheres, especialmente as não brancas, eram vistas como propriedades dos homens. Essa visão limitava suas oportunidades e direitos, consolidando uma hierarquia de gênero que perdurou por séculos.

Durante o século XIX, o movimento abolicionista e os primeiros impulsos de industrialização começaram a transformar lentamente a posição das mulheres na sociedade brasileira. Mulheres de classes mais abastadas começaram a ter acesso à educação, embora essa ainda fosse uma realidade distante para a maioria delas. Segundo Del Priore (1997), O objetivo da educação feminina era preparar as mulheres para serem boas esposas e mães, conforme os ideais de moralidade daquela época. Esse período também viu o surgimento das primeiras feministas brasileiras, que começaram a questionar as rígidas normas de gênero e a demandar direitos básicos, como o acesso à educação e ao trabalho remunerado. A educação feminina ainda era profundamente marcada por estereótipos de gênero, refletindo a visão social da mulher como responsável pelo lar e pela família. Além disso, a literatura e a imprensa da época também reforçavam esses papéis, perpetuando a ideia de que o lugar da mulher estava, exclusivamente, no âmbito doméstico. As primeiras escolas femininas visavam mais à formação moral e religiosa do que ao desenvolvimento intelectual das alunas, preparando-as para o casamento e a maternidade.

O início do século XX trouxe novas possibilidades e desafios para as mulheres. A urbanização e a industrialização aceleradas durante a Primeira República e o Estado Novo abriram novas oportunidades de emprego para mulheres, especialmente nas fábricas e no setor de serviços. No entanto, essas oportunidades vinham acompanhadas de condições de trabalho precárias e salários inferiores aos dos homens. Schwarcz e Starling (2015) refletem que no mercado de trabalho, o ingresso das mulheres foi marcado por uma exploração intensa, que reproduziu dentro das fábricas a lógica patriarcal da sociedade de modo geral. Paralelamente, o movimento feminista ganhou força, impulsionado por figuras como Bertha Lutz e a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que lutaram pelo direito ao voto, conquistado em 1932. Esse movimento representou um marco significativo na luta por igualdade de gênero no Brasil. A luta pelo sufrágio feminino foi uma resposta à insatisfação das mulheres com as limitações impostas pela sociedade patriarcal. A conquista do direito ao voto simbolizou um avanço crucial na inserção das mulheres na vida pública, entretanto, o caminho para a equidade de gênero estava apenas começando. A educação e o mercado de trabalho continuavam a refletir desigualdades de gênero, e as mulheres de classes mais baixas e não brancas enfrentavam desafios ainda maiores.

Na segunda metade do século XX, a participação feminina na educação e no mercado de trabalho aumentou significativamente. A legislação trabalhista começou a reconhecer os direitos das mulheres, embora a desigualdade persistisse em muitos aspectos. Guacira (1997), em seu estudo sobre a educação feminina no Rio Grande do Sul, observou que a educação das mulheres era profundamente marcada por estereótipos de gênero, utilizados para reforçar a ideia de que certos conhecimentos e habilidades naturalmente masculinos ou femininos. Esse período também foi marcado pela emergência de novos movimentos feministas, que expandiram suas demandas para incluir direitos reprodutivos, combate à violência doméstica e igualdade salarial.

Os movimentos feministas das décadas de 1960 e 1970 foram fundamentais para a transformação das relações de gênero no Brasil. Inspirados pelo feminismo internacional, esses movimentos abordaram questões como a legalização do aborto, a criação de creches e a igualdade no mercado de trabalho. A década de 1980, em particular, viu um aumento na mobilização feminina, com a criação de diversos grupos e organizações feministas. A redemocratização do Brasil após o fim da ditadura militar também trouxe novas oportunidades para a inclusão das demandas femininas na agenda política. A Constituição de 1988 representou um marco, consagrando direitos fundamentais para as mulheres e reconhecendo a igualdade de gênero como princípio constitucional. Essa nova Constituição refletiu a pressão social e política dos movimentos feministas, garantindo direitos que antes eram ignorados ou negligenciados, além disso, a implementação de políticas públicas voltadas para a proteção e promoção dos direitos das mulheres, como o estabelecimento de delegacias especializadas em atendimento à mulher, mostrou-se essencial para o avanço da luta das mulheres no país.

Nas últimas décadas, os movimentos feministas têm avançado significativamente, promovendo mudanças legislativas e culturais que visam a equidade de gênero. A violência contra as mulheres tornou-se um tema central, levando à criação de leis específicas como a Lei Maria da Penha, em 2006. Essa lei representa um avanço importante no combate à violência doméstica e na proteção das mulheres. No entanto, a implementação e a eficácia dessas leis ainda enfrentam desafios. A luta por igualdade salarial e o fim do assédio sexual no ambiente de trabalho continuam a ser bandeiras importantes. Além disso, o movimento feminista contemporâneo tem se diversificado, incorporando questões de raça, classe, sexualidade e identidade de gênero em suas pautas. Esse movimento tem sido crucial para o avanço de políticas públicas voltadas para a equidade de gênero, reconhecimento de direitos reprodutivos e o combate à violência contra as mulheres. A diversidade do movimento feminista contemporâneo reflete a complexidade das identidades femininas e a necessidade de uma abordagem interseccional que considere as múltiplas opressões enfrentadas pelas mulheres, como raça, classe e orientação sexual.

No contexto global, a trajetória histórica das mulheres segue padrões semelhantes de luta e resistência. Desde o movimento sufragista do início do século XX até aos movimentos feministas contemporâneos, as mulheres desafiaram as estruturas patriarcais e lutaram pelos seus direitos. Em diferentes culturas e épocas, as mulheres procuraram quebrar as normas de gênero que limitam as suas oportunidades e liberdades. A globalização e a crescente interligação entre movimentos feministas em todo o mundo tornaram possível a partilha de experiências e estratégias, fortalecendo assim a luta pela igualdade de gênero. A articulação entre os movimentos feministas de diferentes países tem gerado uma importante sinergia, que fortalece a capacidade de influenciar políticas públicas e promover importantes mudanças sociais. As conferências internacionais, como a Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim em 1995[1], foram marcos na cooperação global para a igualdade de gênero.

A história das mulheres é, portanto, uma história de resistência e transformação. Desde as primeiras sociedades até os movimentos contemporâneos, as mulheres desafiaram as estruturas patriarcais e lutaram por um mundo mais justo e igualitário. Cada sucesso e cada progresso refletem a força e a determinação de gerações de mulheres que, apesar das dificuldades, nunca deixaram de lutar pelos seus direitos. As histórias das mulheres são uma parte essencial da história humana, destacando a importância de uma abordagem inclusiva e equitativa para a construção de sociedades mais justas. Esta história de lutas e conquistas deve ser reconhecida e apreciada, pois é essencial para compreender o desenvolvimento das sociedades e a busca contínua pela igualdade e pela justiça.

É importante lembrar que a luta das mulheres não se limita à esfera política e econômica, mas inclui também aspectos culturais e simbólicos. A representação das mulheres nos meios de comunicação social, na literatura e na arte constitui um importante campo de batalha onde os estereótipos de gênero são perpetuados ou desafiados. As mulheres utilizaram estes espaços para expressar as suas experiências e as suas questões, contribuindo assim para a construção de uma cultura mais inclusiva e diversificada. A produção cultural feminista tem desempenhado um papel crucial na sensibilização da sociedade para as questões de gênero, desafiando as normas tradicionais e promovendo novas formas de pensar sobre a identidade e o papel das mulheres na sociedade.

A Mulher Como Figura de Cuidado e Ensino

Como vimos na discussão sobre gênero em Scott (1995) – que aponta o gênero como uma construção social, especialmente na linguagem, envolvendo classificações e relações com o poder, estando as mudanças nas relações sociais e de poder interligadas – a autora discute que a lógica binária tem grande base no cristianismo, que também se fundamenta na divisão sexual do trabalho e na divisão do papel feminino e masculino. Eva e Maria representam duas visões opostas e complementares sobre o feminino: ao mesmo tempo, a entrada no pecado e a pureza da virgindade. Há um imaginário social construído a partir dessa simbologia sobre a mulher. Isso é reproduzido até mesmo na escola, porque Maria cuidou do filho de deus com zelo, então a professora vai cuidar das crianças da mesma forma.  Nesse contexto, a professora não seria violenta com a criança, não erotizaria a relação e não haveria possibilidades de abuso.

O discurso que atribui, de forma natural, determinadas categorias de gênero à mulher e ao homem está na gênese da normalização do feminino e do masculino, porque atribui à mulher dados sociais, como sensibilidade, ser multitarefa, ser capaz de decisões mais amorosas. Ensinamos nossas meninas que é uma virtude conseguir “fazer mais de uma coisa ao mesmo tempo”, como se isso não fosse estratégia de dominação masculina[2] culturalmente estabelecida.

Sobre o assunto, cabe lembrar o posicionamento de Nicholson (2000) que, mais do que argumentar que as ideias específicas sobre mulheres e homens estão sendo generalizadas equivocadamente, como, por exemplo, a ideia de que as mulheres são cuidadosas em suas relações, capazes de alimentar, proteger e cuidar, enquanto os homens são agressivos e combativos, argumenta que pressupostos sobre o corpo e sua relação com o caráter estão sendo generalizados equivocadamente.

Nicholson (2000) sugere que o termo “mulher” deve ser repensado como um conceito flexível que leva em consideração a diversidade e as mudanças históricas em seu significado. Ela argumenta que o corpo não deve ser negligenciado, mas sim entendido como uma variável histórica cujo significado pode variar em diferentes contextos. Ela enfatiza que essa busca por significado é um esforço coletivo e contínuo, que não pode ser realizado por uma única pessoa. A autora levanta a questão de se a falta de um consenso definitivo sobre o significado de “mulher” compromete a capacidade de o feminismo de fazer reivindicações políticas em nome das mulheres, desafiando a noção de que o feminismo depende de uma definição unificada de “mulher”.

Vianna (2013) destaca a evolução dos estudos sobre mulheres, que inicialmente abordavam temas como a divisão sexual do trabalho, subordinação, a separação entre público-privado e a dominação masculina. No contexto brasileiro, o estudo da mulher, que posteriormente evoluiu para o estudo de gênero, era inicialmente tratado como sinônimo de estudos sobre a mulher. No entanto, percebeu-se que não era possível ter uma área de conhecimento cuja única categoria de análise fosse a mulher. A defesa do conceito de gênero passou a abranger as relações sociais, incorporando dimensões como classe, raça, etnia e geração na compreensão das diversas formas de desigualdade.

Além disso, o uso de uma identidade feminina universal foi criticado, e o conceito de gênero passou a questionar as definições de ser mulher em diferentes contextos sócio-históricos, desafiando as explicações baseadas em diferenças biológicas que sustentam relações desiguais de gênero. No entanto, a área da Educação foi inicialmente resistente à incorporação do conceito, com estudos na década de 1980 frequentemente não incluindo o recorte de gênero, e as áreas de pesquisa sobre gênero e educação avançando separadamente (Vianna, 2013).

No estudo de Vianna (2013), é evidenciado que existem pesquisas que buscam demonstrar diferenças no processamento de informações e características entre homens e mulheres, além das já conhecidas diferenças anatômicas entre os sexos. Em análise ao estudo de Anne Fausto-Sterling, uma renomada professora de Biologia e estudos de gênero, Vianna (2013) menciona em suas pesquisas a existência de uma anatomia cerebral específica para cada sexo. Esses estudos servem como base para atribuir características como intuição, aptidão em Ciências Exatas e habilidade verbal ampla às mulheres, enquanto os homens são comumente associados a um melhor desempenho em habilidades espaço-visuais, matemáticas e científicas.

Analisando o estudo realizado por Anne Fausto-Sterling, Vianna (2013) destacou como as diferenças culturais se transformam em diferenças corporais, ou seja, como características sociais e culturais são internalizadas no organismo biológico, impactando a concepção de masculinidade e feminilidade. Em resumo, essas pesquisas mudam o foco da discussão das diferenças que estão fora do organismo para as diferenças percebidas dentro do corpo, influenciando o entendimento do que significa ser homem ou mulher (Vianna, 2013).

O diálogo com autoras citadas por Vianna (2013) possibilita uma crítica mais incisiva às características tradicionalmente consideradas como naturalmente masculinas ou femininas, bem como às afirmações de natureza biológica sobre corpos, comportamentos e habilidades de homens e mulheres, e sobre as diferenças sociais. Esse diálogo destaca o caráter socialmente construído do conhecimento científico. A perspectiva sociocultural permite direcionar a atenção para o controle dos corpos como um processo social e culturalmente determinado, muitas vezes sutil e não notado.

Nesse sentido, Hypolito (2020) também destaca que algumas das características que facilitaram a entrada massiva das mulheres na profissão de professora incluem a semelhança entre as atividades de ensino e as esperadas das mães, as habilidades associadas às mulheres que são vantajosas para cuidar das crianças, a flexibilidade de horários compatíveis com as responsabilidades domésticas e a aceitação social das mulheres como educadoras. Esses fatores contribuíram para a feminização do magistério.

Yannoulas (2011) afirma que as mulheres eram vistas como capazes de “suavizar” as técnicas pedagógicas, ensinando e disciplinando as crianças sem recorrer à punição física. Essa visão refletia a realidade social da época, na qual era aceitável que tanto crianças do sexo masculino quanto feminino fossem confiadas às mulheres, uma vez que nos lares, o cuidado infantil era predominantemente uma tarefa feminina. Dessa forma, as mulheres poderiam deixar suas casas para trabalhar nas escolas, com a crença de que não estariam sujeitas à corrupção moral, uma vez que estariam em contato direto com crianças que já eram consideradas puras e sagradas.

A partir desse ponto de vista, não é mais possível compreender as diferenças de gênero com base no determinismo biológico e na utilização da anatomia e fisiologia como justificativas para as relações e identidades de gênero na sociedade moderna. O conceito de gênero, como uma categoria analítica que estabelece a conexão entre história e práticas atuais, bem como dá sentido à organização e percepção desse conhecimento socialmente construído, é entendido como um elemento essencial nas relações sociais que se fundamentam nas percepções das diferenças entre os sexos e como um modo primordial de conferir significado às relações de poder. O lugar de homens e mulheres na divisão sexual do trabalho e o conhecimento produzido sobre as diferenças de gênero e suas possíveis interpretações destacam sua variabilidade e sua natureza política, econômica e social (Vianna, 2013).

O fenômeno conhecido como a “feminização do magistério” é internacional e está associado a mudanças nas relações econômicas e patriarcais que moldam o campo do ensino. Sobre o assunto, Yannoulas (2011) observa que a feminização da profissão docente no ensino fundamental marcou um momento significativo na existência e representação das mulheres. Embora outras profissões tenham se tornado, predominantemente, femininas, o magistério se destaca tanto simbólica quanto politicamente.

Os Estados nacionais na América Latina, recentemente formados, atribuíram ao corpo docente feminino a responsabilidade de transmitir os princípios da nova identidade nacional. Desde as revoluções burguesas até os dias atuais, o princípio da igualdade se consolidou gradualmente, embora muitas vezes entrasse em conflito com a construção de identidades distintas entre os sexos. A partir do século XIX, houve uma preocupação em estabelecer identidades diferenciadas para homens e mulheres nas sociedades ocidentais, refletidas em dicionários, enciclopédias e referências de cientistas sociais clássicos, permitindo a discriminação com base no sexo, apesar da igualdade formal (Yannoulas, 2011).

No Brasil, a presença predominante de mulheres no magistério primário tem suas raízes no século XIX, quando as primeiras escolas de improviso, não vinculadas ao Estado, surgiram. Essa tendência se intensificou com a instituição de escolas seriadas após a República e a expansão das escolas públicas no século XX. No entanto, a entrada das mulheres no magistério não deve ser vista apenas em termos de gênero, mas também deve ser examinada à luz das relações de classe. As mulheres brancas de classes médias, muitas delas estudiosas, desempenharam um papel crucial na configuração do magistério. Elas eram portadoras de uma feminilidade idealizada para sua classe e eram defensoras da ampliação da participação feminina na esfera econômica (Vianna, 2013).

Esse processo, que culminou na maioria esmagadora de mulheres no magistério na década de 1990, está indiretamente relacionado à dinâmica do mercado de trabalho e à divisão sexual do trabalho. A feminização do magistério está intrinsecamente ligada à configuração das chamadas “profissões femininas”, com os homens gradativamente deixando as salas de aula nos cursos primários e as Escolas Normais formando cada vez mais mulheres (Vianna, 2013).

O Censo Escolar da Educação Básica de 2023, realizado pelo INEP nos fornece dados que embasam essa discussão no estado de Santa Catarina, em que podemos observar o crescimento das mulheres na educação infantil nos últimos anos em relação aos homens. Os dados fornecem um panorama entre a atuação docente masculina e feminina nas creches, pré-escolas e turmas unificadas em todo o estado.

Quadro 1: Número de docentes por sexo, da Educação Infantil – Santa Catarina 2007 a 2023

Fonte: INEP – Censo Escolar da Educação Básica

Com base nesses dados, podemos observar um crescimento de 96,15% de mulheres atuando na educação infantil contra um crescimento de 82,53% de homens no mesmo período, porém, os dados nos mostram que no início do período, em 2007, as mulheres representavam 95,16% dos profissionais atuantes na educação infantil e em 2023, as mulheres representavam 94,77% do total, aproximadamente 18 vezes a mais do que o número de homens.

Yannoulas (2011) explica que o processo de industrialização e urbanização perpetuou e reconfigurou a divisão sexual do trabalho, estabelecendo distinções entre trabalho produtivo (público e masculino) e trabalho reprodutivo (privado e feminino). A nova ordem social desvalorizou o trabalho reprodutivo, vinculando-o ao espaço privado, enquanto o trabalho produtivo, predominantemente exercido por homens, era considerado digno e público. A legislação da virada do século XIX para o XX refletia ideias sobre as características das mulheres e suas funções na família, destacando a importância da maternidade e do cuidado familiar. No entanto, o exercício do magistério pelas mulheres na América Latina foi uma notável exceção, sendo tolerado e até promovido pelas autoridades públicas, apesar da ênfase na maternidade como principal papel feminino.

Carvalho (1996) também aborda a feminização do mercado de trabalho na profissão docente, destacando a relevância do gênero no estudo da organização do trabalho das professoras. A autora destaca que a ocupação de professora se tornou um dos principais empregos ocupados por mulheres. Essa feminização tem consequências significativas na educação escolar e na forma como o trabalho docente é estruturado.

É possível depreender, portanto, a feminização do magistério representa uma interseção fascinante entre forças sociais, econômicas e culturais que moldam as carreiras profissionais das mulheres e a divisão do trabalho. A feminização do magistério, como discutido por Vianna (2013), não se limita à simples composição de gênero da categoria docente. O crescimento tímido da presença masculina no magistério ainda perpetua as implicações de gênero, e homens são encontrados principalmente nos níveis de ensino que oferecem maiores remunerações e status sociais. A perspectiva de gênero permite entender os aspectos tradicionalmente associados às desigualdades que afetam a condição feminina. Duas dimensões são destacadas: a estratificação na carreira docente e a desvalorização salarial, bem como os significados de gênero que permeiam as relações escolares, as identidades e práticas dos professores.

Embora as mulheres sejam maioria na Educação Básica, essa predominância legitima em políticas públicas o que há de mais prejudicial em termos de discriminação de gênero: a redução de salários e a desvalorização social, que são comuns em profissões femininas e afetam as diferentes etapas da Educação Básica em várias regiões do Brasil. As concepções tradicionais sobre papéis de gênero contribuem para a sedimentação de estereótipos sobre homens e mulheres, associando-os a diferentes características e funções. Essa oposição binária entre masculino e feminino dificulta a percepção de alternativas na construção de relações sociais. No contexto da docência, ela reforça os estereótipos que justificam baixos salários e investimentos na formação, alegando que professoras não precisam de uma remuneração adequada, pois têm um provedor, entre outros argumentos (Vianna, 2013).

A perspectiva de gênero adotada na análise da feminização docente permite entender que o processo é contraditório e não se limita à presença numérica de mulheres na docência. Ela também revela os significados de gênero nas atividades docentes, mesmo quando realizadas por homens. Esses significados, baseados nas diferenças entre sexos, têm raízes na construção social e explicam as relações de poder que definem a divisão sexual do trabalho e a inserção das mulheres em profissões associadas a funções consideradas femininas e socialmente desvalorizadas (Vianna, 2013).

Vianna (2013) aborda a divisão tradicional de papéis de gênero na sociedade, com as mulheres atribuídas ao cuidado do lar e os homens à participação pública. No entanto, essa divisão não se aplica uniformemente, pois, existem diversos modelos de feminilidade e masculinidade que desafiam essa separação. Embora o cuidado tenha sido historicamente associado às mulheres e considerado como parte de sua natureza, muitas profissões relacionadas ao cuidado são consideradas femininas e frequentemente desvalorizadas. No entanto, o cuidado desempenha um papel essencial na educação e no desenvolvimento das crianças.

Professores, independentemente de seu gênero, assumem papéis de cuidado e demonstram envolvimento tanto em suas vidas pessoais quanto em suas atividades públicas, desafiando estereótipos de gênero tradicionais. Isso não sugere falta de engajamento, mas sim uma nova forma de envolvimento. A perspectiva de gênero revela a estreita relação entre significados de gênero e a construção da identidade coletiva dos professores, permitindo uma crítica das polarizações de gênero. Vianna (2013) destaca a importância de não limitar o cuidado e o envolvimento afetivo à esfera privada e de questionar a associação de atividades de cuidado a características exclusivamente femininas, mesmo quando realizadas por homens.

Vianna (2013) destaca como os significados tradicionalmente associados ao feminino, como o cuidado e o afeto, influenciam a percepção do magistério como uma profissão feminina, apesar da presença tanto de homens quanto de mulheres nessa área.

A compreensão da masculinidade e feminilidade está em constante evolução e que homens na docência também podem expressar sensibilidade e cuidado, questionando estereótipos de gênero. O exercício da docência revela a feminização da profissão, principalmente nas séries iniciais do, onde significados associados ao feminino são incorporados tanto por professores quanto por professoras. No entanto, as polarizações de gênero persistem e influenciam as relações entre os profissionais, com os homens muitas vezes ocupando posições de poder.

Posicionamento semelhante é possível verificar em Carvalho (1996), que considera que as discussões, elaboradas com base em estruturas teóricas que negligenciam as questões de gênero, tendem a utilizar categorias que não consideram as implicações do fato de os profissionais em questão serem homens ou mulheres, tornando-se assim “cegas” à dimensão sexual. Isso resulta na incapacidade de revelar as possíveis consequências desse aspecto na profissão docente. A autora sugere que, ao analisar o trabalho das educadoras, é fundamental considerar o trabalho doméstico como referência, em vez de se basear em modelos de trabalho industrial ou em outros setores de serviços. O trabalho doméstico é visto como central na vida da maioria das mulheres e influencia as atitudes, a organização do tempo e do espaço, bem como as relações das educadoras com as crianças e suas mães.

Carvalho (1996) baseia-se em pesquisas etnográficas anteriores para demonstrar que as educadoras muitas vezes moldam seu trabalho docente com base em experiências e expectativas relacionadas ao trabalho doméstico, à maternagem e à socialização voltada para a vida doméstica. Essa influência do trabalho doméstico no contexto escolar permanece inexplicável se não considerarmos as dinâmicas de gênero e a presença constante do trabalho doméstico na escola como uma referência fundamental para as educadoras.

Para Carvalho (1996), a influência do gênero e a feminização da profissão docente têm impedido o reconhecimento da importância da maternagem no trabalho das professoras, particularmente aquelas que atuam no ensino primário. Isso ocorre apesar de já se ter desenvolvido estudos sobre a relevância da maternagem na educação de crianças pequenas. De acordo com a autora, para professoras do ensino primário, pesquisas realizadas em diversos países têm demonstrado que a construção histórica de sua imagem social e de sua prática educacional tem suas raízes na ligação entre a educação escolar e a família, assim como na associação entre o papel de mãe e de professora. Em outras palavras, o trabalho das professoras primárias frequentemente é moldado por expectativas sociais e culturais que remetem ao cuidado maternal e à responsabilidade educacional.

Em relação ao assunto, Yannoulas (2011) afirma que na América Latina, desde os primeiros tempos das repúblicas, o magistério no ensino primário era visto como uma atividade sem distinção de gênero, mas a argumentação naturalista sobre a identidade feminina sugeriu que as mulheres seriam mais adequadas para essa profissão. A remuneração limitada era justificada com base na visão ecológica da identidade feminina, pressupondo que as mulheres precisariam de um salário suplementar, já que normalmente eram esposas e mães em famílias onde o principal provedor era o homem. De acordo com a autora, manuais de conduta para jovens mulheres permitiam o magistério, mas somente até o casamento, quando elas eram destinadas a cuidar de seus maridos e filhos.

Assim, é possível entender que as mulheres eram ligadas ao cuidado em duas fases de suas vidas: primeiro, cuidavam das crianças, especialmente as mais necessitadas, e depois de casadas, cuidavam de suas próprias famílias. Isso refletia a ideia de que as mulheres estavam expressando seu papel ecológico fundamental para melhorar o mundo.

Essa conexão entre maternidade e profissão docente no ensino primário pode influenciar a forma como as professoras percebem seu papel, organizam suas atividades em sala de aula e interagem com os alunos e suas famílias. Carvalho  (1996) afirma que é importante reconhecer essa influência histórica e cultural na prática das professoras primárias e entender como a maternagem desempenha um papel significativo na construção de suas identidades profissionais e nas dinâmicas de sala de aula

Delfini (2022) critica a maneira como as questões de gênero relacionadas ao trabalho docente são frequentemente abordadas na academia. Muitas pesquisas, de acordo com a autora, tendem a criar um retrato de “fatalismo ou coitadismo nas questões de gênero que envolvem o trabalho docente feminino” (2022, p.109). Essas pesquisas descrevem os esforços das mulheres para se dedicarem ao ensino, suas longas jornadas e suas escolhas em favor dos estudantes, muitas vezes destacando uma ideia de sacrifício. A autora sugere que essa abordagem pode naturalizar a docência como um ato de “sofrer no paraíso (assim como se costuma dizer em relação à maternidade)” (2022, p.109).

Delfini (2022) argumenta que é importante considerar outras perspectivas que podem levar a uma compreensão mais realista e satisfatória do trabalho docente, em vez de reforçar uma visão negativa e vitimizadora. Esses sentimentos são legítimos, no entanto, é fundamental desenvolver uma abordagem mais equilibrada e realista em nossas análises.

No que se refere ao campo empírico, as pesquisas contemporâneas têm dado destaque à escola, principalmente nas instituições de ensino superior e institutos federais. No que diz respeito aos referenciais teóricos, as pesquisas baseadas em teorias feministas e estudos culturais abordam o gênero sob a perspectiva das diferenças sexuais, bem como das relações de poder e dominação masculina que permeiam o contexto educacional. Delfini destaca que muitas pesquisas olham para as mulheres de vários segmentos, “deixando na invisibilidade o trabalho docente e as mulheres professoras, como se apenas restasse à Educação para ocupar-se delas” (2022, p. 53). Seria interessante que ao pesquisar sobre mulheres, a mulher professora estivesse inserida a fim de ampliar o olhar, considerando os desafios únicos que enfrentam e aprofundar as discussões sobre gênero e seus impactos no mercado de trabalho.

As discussões de gênero também exploram o âmbito da ascensão profissional e procuram entender como as normas de gênero impactam a valorização do trabalho docente, conforme evidenciado por pesquisas que analisaram as tensões entre os valores tradicionalmente associados à feminilidade e à docência.

Delfini (2022) aborda a relação entre gênero e trabalho docente, explorando como as questões de gênero influenciam a profissão docente, destacando a importância de considerar as particularidades das professoras no contexto educacional. A autora observa que as pesquisas contemporâneas têm se concentrado na escola, especialmente nas instituições de ensino superior e institutos federais. Além disso, as análises baseadas em teorias feministas e estudos culturais abordam o gênero sob a perspectiva das diferenças sexuais e das relações de poder e dominação masculina no campo educacional.

As pesquisas exploram como as normas de gênero impactam a valorização do trabalho docente, desafiando os valores tradicionalmente associados à feminilidade e à docência. Elas revelam como professoras e professores respondem ao trabalho docente, questionando as normas tradicionais de gênero, como propõe o feminismo pós-estruturalista.

O feminismo pós-estruturalista, de acordo com Faustini et al. (2021), questiona a construção social e discursiva do gênero, indo além de uma visão tradicional que separa estritamente o sexo biológico do gênero. Essas teóricas argumentam que o sexo é moldado pelas ideias e concepções sobre o gênero, negando a existência de características essenciais inerentes a qualquer categoria de análise, como observado por Scott (2010).

Essa perspectiva crítica não apenas desafia as noções binárias tradicionais de “masculino” e “feminino,” mas também lança luz sobre uma questão histórica significativa: a atribuição de papéis sociais rigidamente definidos aos indivíduos com base no gênero. Historicamente, a sociedade tem perpetuado estereótipos de gênero, associando características específicas, como força e racionalidade, ao masculino hegemônico. Ao mesmo tempo, essas representações subalternas ou marginalizadas criaram uma divisão entre os que são percebidos como “fortes” e os que são vistos como “fracos,” conforme analisado por Connell e Messerschmidt (2005).

Essa perspectiva histórica aponta para a construção de papéis de gênero que atribuem às mulheres funções relacionadas ao cuidado e há maternidade desde tempos remotos. Essas concepções são relevantes para entender como a sociedade molda as representações de gênero e as expectativas relacionadas às mulheres e aos homens, influenciando as suas posições e papeis na sociedade.

No âmbito da cultural escolar, Carvalho (2012) destaca uma crítica em relação à forma como o conceito de gênero é frequentemente abordado nos estudos educacionais, aponta que, na maioria das pesquisas, o gênero é utilizado de maneira restrita, referindo-se principalmente às interações entre pessoas com base em seu sexo (homens ou mulheres) ou para estudar como são construídas as identidades de gênero, ou seja, como as pessoas se tornam mulheres ou homens. Essas abordagens são consideradas importantes e têm contribuído para avançar os estudos educacionais, mas Carvalho argumenta que elas são limitadas, pois, tendem a se concentrar nas características individuais, reduzindo o conceito de gênero à ideia de ser feminino, masculino ou ambíguo na identidade, comportamento ou práticas dos sujeitos.

Carvalho (2012) apresentou achados empíricos sobre os cadernos escolares, com a intenção de demonstrar o potencial de análise do conceito de gênero no cotidiano da escola, indo além da discussão sobre as identidades masculinas e femininas dos sujeitos envolvidos. Foi observado que as professoras atribuíam facilmente características de gênero aos objetos, como os cadernos, o que ilustrou de forma clara o argumento destacado pelo autor, sobre o uso da masculinidade e feminilidade para diferenciar e hierarquizar simbolicamente elementos que não possuem relação direta com o sexo e a reprodução. Essas observações indiretamente remetiam a outros temas explorados como o desempenho escolar e a indisciplina, analisados a partir de uma perspectiva de gênero. Carvalho enfatiza que:

Sem dúvida, há aqui uma questão complexa a ser investigada na sociabilidade entre os próprios meninos, a fim de avaliar em que medida as pressões entre pares, a partir de certos referenciais de masculinidade e de heterossexualidade, interferem em seu comportamento diante da escola, da professora, do desempenho escolar e, por consequência, também na forma de seus cadernos. (CARVALHO, 2012, p. 410)

Esse menino, que foi criado para gostar de azul, para brincar de carrinhos e de construção com blocos, que é estimulado a assistir desenhos com super-heróis e a “gostar” de meninas, não gostaria de ser professor. Dessa forma, há uma patologização da escola e comunidade escolar, em geral em relação à docência do homem na educação infantil, que se dá a partir da crença de que o “menino não teria sido criado certo”. Nega-se a subjetividade desse sujeito, que faz escolhas a partir da sua história de vida e sentimentos, que não se referem à forma como a sociedade impõe a sua relação com seu gênero.

Dentro dessa perspectiva, o menino que teria sido “criado errado”, porque escolheu ser docente na educação infantil, então obviamente não pode ser um bom professor, porque seria um comportamento desviante. Há um julgamento moral sobre o homem que escolher a carreira de docência na educação infantil, a partir da ideia de desvio de conduto que patologiza o indivíduo que faz escolhas que causam suspeição ou estranhamento. Carvalho (2012, p.410) aponta que a própria escola é uma instituição social que reproduz os ideais de gênero e mesmo as expectativas do docente giram em torno das funções socialmente acumuladas e simbolizadas sobre os gêneros:

Do ponto de vista das professoras, os cadernos pareciam, portanto, materializar certas características relativas ao gênero, expressando feminilidade por meio da limpeza, organização, cores, capricho, decalques e enfeites, letra bonita; e masculinidade por meio de desleixo, letras esgarçadas, desorganização e sujeira. Neste caso, o bom desempenho estaria relacionado às características tidas como femininas, independentemente do sexo do dono ou dona do caderno. Para as meninas, era bastante tênue a linha entre um caderno organizado e um caderninho todo rosinha, percebido como exageradamente feminino e infantil. E para os meninos era especialmente complexa a articulação entre ser percebido como másculo e, ao mesmo tempo, como bom aluno, característica que se materializava, entre outros aspectos, em cadernos de menina.

No entanto, esse debate sobre papeis de gênero é bastante consolidado no campo da Educação e há muito se discute a necessidade de superar os binarismos de gênero na cultura escolar, como já apontava o texto clássico de Apple (1987) que vale a pena ser revisitado:

O fato de as escolas terem tendência de ser amplamente organizadas em torno da liderança masculina e do trabalho de sala de aula feminino é simplesmente isto, um fato social, a menos que se entenda que isto significa que as relações de autoridade educacionais têm sido formalmente patriarcais. Como na casa e no escritório, a dominação masculina está lá; mas as professoras — como as esposas, as mães e as trabalhadoras de escritório — têm construído esferas de poder e controle em sua longa luta para ganhar alguma autonomia. Esta autonomia somente torna-se um problema para o capital e para o estado quando aquilo para o qual a educação serve necessita alguma revisão. (APPLE, 1987, p. 6)

Apple (1988) já chamava a atenção para esse debate no final da década de 1980 quando afirmava que o homem ocupava espaços como docentes na educação básica à medida que a profissão perdia o prestígio social, passando a ser ocupada por mulher.  No entanto, de acordo com Vianna (2013), no Brasil, a área da Educação mostrou resistência à incorporação do conceito de gênero. No final da década de 1980, a maioria dos estudos na área de Educação não considerava o recorte de gênero. Algumas publicações apontaram que as pesquisas sobre gênero e Educação se desenvolviam de forma separada, sem levar em consideração os avanços teóricos de ambas as áreas.

Para Hypolito (2020), o fenômeno da feminização do magistério ocorreu em paralelo à evolução do trabalho docente de uma ocupação autônoma para uma profissão assalariada, regulada pelo Estado e sujeita a formas de controle externas ao processo de ensino. Isso resultou na perda da autonomia das professoras e professores no que diz respeito ao que e como ensinar. A racionalização e a fragmentação do trabalho docente ocorrem concomitantemente com a transformação desse trabalho em uma ocupação predominantemente exercida por mulheres.

Apple (1987) destaca a importância de analisar o ensino e o currículo considerando uma abordagem teórica que integre as questões de classe e gênero. Ele argumenta que o impacto da desqualificação e da intensificação do trabalho docente ocorre em um ambiente onde os professores são predominantemente mulheres e os administradores são predominantemente homens, uma configuração histórica que está intrinsecamente ligada às divisões sociais e sexuais do trabalho, conhecimento e poder na sociedade.

O autor enfatiza que a análise não pode se restringir apenas ao ambiente escolar, mas também é necessário olhar para além da escola para compreender completamente o impacto dessas mudanças e as respostas do corpo docente a elas. Ele ressalta que as professoras frequentemente trabalham tanto na escola quanto em casa, e a intensificação do trabalho no ensino pode ter implicações também nas tarefas domésticas e nas relações patriarcais no âmbito familiar (Apple, 1987).

Apple (1987) levanta questões sobre como a intensificação do trabalho docente pode afetar a distribuição das responsabilidades domésticas. Por um lado, a sobrecarga de trabalho na escola pode resultar em menos tempo disponível para o trabalho doméstico em casa, o que poderia desafiar parcialmente a divisão sexual do trabalho no âmbito familiar. Por outro lado, o aumento da carga de trabalho pode levar a um aumento da exploração do trabalho não remunerado em casa, onde os professores adicionariam mais tarefas sem uma mudança nas condições familiares.

Essa percepção de Apple (1987) destaca a interseção complexa entre classe e gênero na dinâmica do trabalho docente e na vida doméstica, e chama a atenção para a necessidade de compreender as implicações mais amplas das mudanças no ensino e no currículo além do contexto escolar. Além disso, evidencia a importância de reconhecer as disparidades de gênero e as estruturas patriarcais que afetam as vidas das professoras e da sociedade como um todo.

A análise de gênero na Educação revela a complexa interação entre normas de gênero e a profissão docente. Historicamente, o papel do cuidado, sensibilidade e habilidades interpessoais tem sido associado ao feminino, resultando na chamada “feminização do magistério.” Isso levou à predominância de mulheres no ensino, mas também à desvalorização salarial e social da profissão. A perspectiva de gênero questiona esses estereótipos, destacando que tanto homens quanto mulheres têm a capacidade de cuidar e se envolver em atividades de ensino. Além disso, a análise de gênero enfatiza a importância de considerar as implicações das mudanças na intensificação do trabalho docente nas tarefas domésticas e nas relações familiares, ressaltando a necessidade de compreender as interseções entre classe e gênero.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou traçar um panorama das lutas históricas das mulheres, destacando suas conquistas e desafios ao longo dos séculos, desde as sociedades primitivas até os movimentos feministas contemporâneos. A análise bibliográfica evidenciou que, apesar dos avanços significativos, as mulheres ainda enfrentam barreiras substanciais, especialmente em setores tradicionalmente femininos, como a educação básica.

No contexto específico de Santa Catarina, os dados estatísticos observados reforçam a predominância feminina no magistério, especialmente no ensino infantil, e ilustram a desvalorização econômica e social que marca essa profissão. Essa feminilização do magistério, além de refletir uma histórica associação das mulheres com o papel de cuidadoras e educadoras, revela uma persistente desigualdade de gênero que permeia o ambiente escolar. Essa desigualdade é expressa não apenas na distribuição de papéis e funções, mas também na forma como o trabalho docente é reconhecido e recompensado, inclusive, mas não limitado, a esfera financeira.

Ainda que o avanço na participação feminina em diversas esferas da sociedade seja inegável, a interseção de suas lutas com as de outras minorias demanda uma análise mais aprofundada e uma prática pedagógica que seja verdadeiramente equitativa. A necessidade de maior valorização do magistério, com enfoque na remuneração justa e no reconhecimento social, é imperativa para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

É também fundamental que estudos futuros aprofundem a questão da participação masculina na educação infantil, considerando os impactos que essa presença – ou a falta dela – pode ter na dinâmica escolar e no desenvolvimento das crianças e da sociedade como um todo por consequência. A abordagem crítica e reflexiva sobre a presença masculina nas salas de aula da educação básica deve ser fomentada, uma vez que contribui para a quebra de estereótipos de gênero e para o avanço de uma educação mais inclusiva.

Dessa forma, conclui-se que as lutas das mulheres, em sua complexidade e diversidade, ainda está longe de atingir seus objetivos plenos. A busca por uma sociedade equitativa continua demandando a constante revisão das práticas pedagógicas, das políticas públicas e das estruturas sociais que perpetuam essas desigualdades estruturais. As conquistas alcançadas até o momento são significativas, mas é evidente que ainda há um longo caminho a ser percorrido para que se possa falar em verdadeira igualdade de gênero no campo da educação e em outros setores da sociedade.

REFERÊNCIAS

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YANNOULAS, Silvia. Feminização ou feminilização?: apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis, v. 11, n. 22, p. 271-292, 2011.


[1] A IV Conferência Mundial sobre a Mulher com tema central “Ação para a Igualdade, o Desenvolvimento e a Paz”, na China evidenciou que, para a ONU, a transformação fundamental em Pequim foi o reconhecimento da necessidade de mudar o foco de discussão das mulheres para o conceito de gênero, reconhecendo que toda a estrutura da sociedade e todas as relações entre homens e mulheres dentro dela, devem ser reavaliadas.

[2] Bourdieu (1995) mostra como os dados biológicos são utilizados para legitimar classificações que são puramente simbólicas e têm como propósitos estabelecer relações de poder e hierarquias. Nessa construção simbólica, pautada por relações de dominação, há espaços que seriam naturalmente ocupados apenas pelas mulheres, como a casa e os cuidados com crianças e idosos e há espaços que seriam naturalmente ocupados por homem, que é o campo do trabalho, da competência e da ambição.


1 Universidade do Oeste de Santa Catarina – UNIVALI. Itajaí, Santa Catarina (SC), Brasil. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-9878-150X. gattoeliane@hotmail.com