MORTALIDADE DA PERITONITE BACTERIANA ESPONTÂNEA: ESTUDO RETROSPECTIVO COM PACIENTES INTERNADOS EM UM HOSPITAL-ESCOLA

MORTALITY FROM SPONTANEOUS BACTERIAL PERITONITIS A RETROSPECTIVE STUDY ON PATIENTS ADMITTED TO A UNIVERSITY HOSPITAL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11154044


Guilherme Peixoto Nascimento¹; Caroline Ogea Tavares²; Giovanna Dias Junqueira de Souza²; Giovanna Piubelli Frioli²; Guilherme Gerloff Antunes²; Henrique Areco Lucatto²; Lilian Castiglioni³; Luana Mari Takahashi²; Renato Ferreira da Silva4.


RESUMO

Introdução: É sabido que a peritonite bacteriana espontânea (PBE) se apresenta como uma das principais infecções observadas em pacientes cirróticos com ascite, sendo associada a um alto índice de morbi-mortalidade. Assim, é de grande relevância avaliar a mortalidade intra-hospitalar dessa enfermidade e tornar a base de dados nacional robusta e atualizada. Objetivo(s): Analisar a mortalidade intra-hospitalar da PBE em pacientes admitidos no Hospital de Base no período de 2010 a 2022 a partir da sua prevalência e caracterização de seus parâmetros epidemiológicos, clínicos e laboratoriais associados. Métodos: Estudo observacional transversal retrospectivo baseado em prontuários eletrônicos de pacientes submetidos a paracentese e atendidos na Unidade de Transplante de Fígado do HB, no período de janeiro/2010 a dezembro/2022.  Resultados: Foram estudados 209 pacientes (155H, 54M; 56 ± 11 anos) dos quais, 30,6% foram classificados como Child B e 67% como C. O score MELD-Na entre os pacientes teve uma média de 22,9 ± 7,9. Os CIDs mais prevalentes encontrados foram K746 e K703. A prevalência da PBE foi de 36,4%, sendo 72,4% de ascite neutrofílica cultura-negativa e 27,6% de PBE cultura positiva. O espectro bacteriano revelou uma proporção de 12:13 entre bactérias Gram-negativas e Gram-positivas encontradas nas amostras dos pacientes com PBE. Na análise estatística descritiva, alcançaram significância estatística (p<0.05) como fatores relacionados ao óbito por PBE: presença de diarreia (p=0,003); presença de encefalopatia (p=0,040); o CID do óbito (p=0,000); realização da profilaxia antibiótica (p=0,048); e profilaxia antibiótica com recidiva de PBE (p=0,003). Na análise dos parâmetros laboratoriais do líquido ascítico entre os pacientes que foram a óbito versus os que não, realizada através do teste t não pareado, não houve diferença significativa entre as médias dos dois grupos. A mortalidade para o grupo com PBE foi de 36,8%. A taxa de recidiva em 12 meses, por sua vez, foi de 17%. Conclusão: A PBE permanece uma complicação frequentemente encontrada em hepatopatas crônicos com ascite e um marcador de prognóstico desfavorável com uma alta taxa de mortalidade intra-hospitalar. 

Palavras-chave: peritonite, ascite, cirrose hepática.

Perit bacteriana espontâneaonite
Do Seon Song Perit bacteriana espontâneaonite
Do Seon Song

Perit bacteriana espontâneaonite
Do Seon Song
Perit bacteriana espontâneaonite
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Perit bacteriana espontâneaonite
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INTRODUÇÃO

A peritonite bacteriana espontânea (PBE) pode ser definida como uma infecção que ocorre no líquido ascítico na ausência de qualquer fonte intra-abdominal primária evidente tratável cirurgicamente, sendo uma complicação frequente e temida da cirrose hepática. 

A ascite, como o resultado de uma sequência de anormalidades anatômicas, fisiopatológicas e bioquímicas em pacientes cirróticos, pode ter várias complicações, sendo a PBE responsável por uma prevalência de cerca de 30% neste grupo [1].                

Um importante parâmetro a ser avaliado com relação à cirrose é a classificação de Child-Pugh, referente à avaliação da gravidade ou à atividade da doença hepática, que leva em consideração a quantidade de bilirrubina e de albumina sérica, o tempo de protrombina ou INR e a presença de ascite e de distúrbios neurológicos (encefalopatia). Nessa classificação, a classe A indica uma cirrose compensada e a classe B e C indicam uma cirrose descompensada, quadro em que um transplante hepático já pode ser considerado. Além disso, estes últimos são os mais propensos a desenvolver um quadro de PBE, especialmente os de classe C [1]. Em adição, existe a escala Model for End-Stage Liver Disease (MELD) que é utilizada para a estimativa da mortalidade em pacientes cirróticos e para a distribuição adequada de órgãos para transplante.

A PBE ocorre, principalmente, por infecções de Escherichia coli ou Klebsiella pneumoniae gram-negativos. Porém, quadros desencadeados pelo Streptococcus pneumoniae gram-positivos estão se tornando cada vez mais comuns. [2] Na maioria dos casos, apenas um microrganismo está presente na infecção.

Dentre os fatores que predispõem à infecção na cirrose, ressaltam-se as alterações da flora intestinal com supercrescimento bacteriano, do sistema macrófago-monocitário, da atividade dos neutrófilos, além da redução da imunidade humoral e celular. O mecanismo fisiopatológico da PBE relaciona-se, afinal, com as translocações bacterianas do lúmen intestinal para os gânglios linfáticos mesentéricos, de modo que essas bactérias atingem o líquido ascítico, seja por via linfática, seja por via hematológica. Ademais, fatores circunstanciais incluem a desnutrição, o alcoolismo, a hemorragia digestiva alta e a ruptura de barreiras naturais a partir de exames invasivos aos quais os pacientes são submetidos [1].

Instalada a infecção, o paciente pode seguir com um quadro clínico assintomático, leve, moderado ou grave. Caso haja sintomas, o indivíduo relatará febre baixa e dor à descompressão brusca do abdômen, podendo apresentar também septicemia em um estado mais avançado. Adicionalmente, são comuns sintomas gastrointestinais, como diarreia, íleo paralítico e dor abdominal. Eventualmente, podem haver queixas de alterações do estado mental [3][4]. Entretanto, estima-se que apenas 30% dos cirróticos apresentam sintomas clássicos nos quadros de PBE.[1] Isto posto, devem-se analisar, de forma contínua, os sinais de encefalopatia hepática, aumento do volume abdominal e disfunção renal sem algum fator precipitante e uma vez que a PBE pode ser completamente assintomática, seu diagnóstico não é baseado na clínica e não pode ser concluído sem a análise do líquido ascítico [5].

Laboratorialmente, deve-se pontuar que a presença de bactérias na cultura do líquido ascítico não é imprescindível para o diagnóstico de PBE, uma vez que o fator principal está na leucometria. A infecção deve ser diagnosticada pela contagem absoluta de polimorfonucleares (PMN) por mm3, via paracentese do líquido ascítico, um exame com boa sensibilidade diagnóstica. Se o resultado estiver acima de 250 células/mm3, verifica-se a presença de PBE. A cultura, no entanto, é essencial para nortear um diagnóstico diferencial entre a PBE e peritonites secundárias. Vale ressaltar que algumas características bioquímicas já foram utilizadas no diagnóstico de PBE, tais como valores de pH, atividade de desidrogenase láctica (LDH) e concentrações de glicose, proteínas totais e lactato, mas frente a inconsistência dos resultados, esta avaliação foi retirada da prática clínica [6].

Uma vez estabelecido o diagnóstico, recomenda-se o início precoce da antibioticoterapia empírica enquanto se aguarda a confirmação do microorganismo patogênico. A maioria das ocorrências de PBE se devem a bactérias intestinais como E. coli e Klebsiella; todavia, também podem ocorrer infecções estreptocócicas e, raramente, estafilocócicas. Nesse sentido, justifica-se uma terapia de amplo espectro e as cefalosporinas de terceira geração como a cefotaxima ou a ceftriaxona são os antibióticos de escolha [1]. Quando os resultados da cultura estiverem disponíveis, o antibiótico deve ser reavaliado para reduzir a taxa de infecção. Após o tratamento, nova paracentese deve ser feita para avaliar a eficácia da terapia.

O tratamento profilático é reservado aos pacientes com alto risco de desenvolver PBE e está associada a um risco reduzido de infecção bacteriana e mortalidade. Estão inclusos nesse grupo, os indivíduos que se encontram em recuperação de um episódio de PBE, pacientes com sangramento digestivo ativo e/ou aqueles com proteínas totais no líquido ascítico <1,5 g/dL (índice que avalia a possibilidade de recidiva dos episódios). Esse parâmetro é de grande importância já que aproximadamente 50% dos pacientes terão, em 1 ano, um novo episódio de PBE [6].

A PBE é uma complicação com alta taxa de morbimortalidade. No Brasil, nos anos de 1970, a PBE causava a morte de 80 a 90% dos pacientes, índice que teve uma queda significativa até os anos 2000. Nesse período, estudos sobre o diagnóstico precoce da PBE foram publicados e favoreceram a redução da mortalidade ao longo dos anos. Um estudo da Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, publicado em 2003, afirma que ao longo das últimas décadas, as taxas de mortalidade permaneceram estáveis nas diferentes infecções bacterianas que acometem o cirrótico, com exceção da PBE, que caiu de 67% para 37%. Ainda assim, a doença se estabelece como uma complicação grave no quadro da cirrose hepática em vista de sua alta taxa de mortalidade [1].

Com relação à mortalidade por PBE a nível mundial, os dados demonstram que quanto mais tempo após o diagnóstico inicial, maior é a taxa de letalidade. Em um estudo feito com pacientes hospitalizados nos Estados Unidos, entre 2006 e 2014, analisaram-se os dados da Nationwide Inpatient Sample (NIS) e concluiu-se que das 88.167 internações por PBE, 17,6% foram a óbito intra-hospitalar [7]. Ademais, conforme Iliaz et al (2018) as taxas de mortalidade em 1 mês e 3 meses numa amostra de setenta pacientes com PBE foram de 26,1% e 50,7%, respectivamente [8]. Russo et al (1997) afirma que a PBE é uma infecção que ocorre em 8-20% de pacientes cirróticos descompensados, com alta taxa de letalidade – cerca de 50% por 3-6 meses após o episódio -, reforçando os dados supracitados [3]. Já Abu-Freha et al (2021), num estudo retrospectivo realizado com uma amostra de 1035 pacientes do Soroka University Medical Center (SUMC) entre os anos de 1996 e 2020, revelou que a mortalidade de pacientes cirróticos com PBE foi significativamente maior (90%) em comparação com pacientes sem PBE (60%) e atribuiu as cepas multirresistentes encontradas como causa da elevada taxa de mortalidade encontrada [9].

CASUÍSTICA E MÉTODOS

Estudo retrospectivo compreendido entre janeiro/2010 e dezembro/2022, em que foram identificados 209 pacientes com ascite através do Sistema Hospitalar MV PEP, de pacientes internados e atendidos nos Serviço de Transplante de Fígado a do Hospital de Base, que preencheram o critério de inclusão: presença de uma ou mais paracenteses diagnóstica ou terapêutica durante a internação. Foram analisados os dados demográficos do paciente (sexo, idade e etnia); as seguintes manifestações clínicas: ascite, febre, dor abdominal, diarréia, íleo paralítico, septicemia, derrame pleural e alterações do estado mental; a classificação de Child-Pugh e o escore MELD-Na; a ocorrência de recidiva e óbito por PBE; a análise do líquido ascítico: aspecto, presença de polimorfonucleares (PMN) > 250células/mm³, proteínas totais; níveis de albumina e adenosina deaminase (ADA). 

Foram incluídos no estudo pacientes com a presença de leucócitos polimorfonucleares (PMN) acima de 250 céls/mm3, na ausência de fonte intra-abdominal de infecção. Os pacientes com PBE foram classificados de acordo com as variantes estabelecidas: PBE cultura positiva (PMN≥ 250 e cultura do líquido ascítico positiva), Ascite Neutrofílica cultura negativa (PMN ≥ 250 e cultura do líquido ascítico negativa). Foram excluídos os casos de Bacteriascite (PMN < 250 e cultura do LA +) e de Peritonite Bacteriana Secundária (PMN≥ 250 e fonte intra-abdominal de infecção detectável). A ausência destes critérios definiu o grupo com ascite estéril.

Após a coleta dos dados os mesmos foram planilhados no Excel. A análise estatística descritiva foi realizada a partir dos cálculos das medidas de tendência central e dispersão e contagens de frequências. As comparações foram obtidas com o Test t de Student e Qui-quadrado Clássico. Em todas as análises foi considerado estatisticamente significativo P valor ≤ 0,05. Os Programas utilizados foram o SPSS (IBM, versão 23, 2014) e GraphPad Instat (3.10, 2009).

RESULTADOS

O estudo abrangeu 209 pacientes, sendo  155 do sexo masculino (74,2%) e 54 do sexo feminino (25,8%) com uma média de idade de 56 ± 11 anos (21-85 anos). Pacientes com etnia branca configuraram 93,3% da amostra. O CID mais prevalente encontrado foi o K746 – OUTRAS FORMAS DE CIRROSE HEPATICA E AS NÃO ESPECIFICADAS (33%) seguido por K703 – CIRROSE HEPÁTICA ALCOÓLICA (23%), padrão que se repetiu para os pacientes diagnosticados com PBE (Tabela 1). Na investigação de outras etiologias associadas ao CID primário, hepatite C crônica foi a mais prevalente (13,8% do total de pacientes e 17% dos pacientes com PBE).  A maioria apresentava cirrose avançada, sendo 67% de Child C e 30,6% de Child B. Já os valores para o score MELD-Na entre os pacientes tiveram uma média de 22,9 ± 7,9 (7-51) conforme demonstrado na tabela 1.

Tabela 1: Características demográficas e Escores MELD-NA e Child Pugh

DP= desvio padrão; N= número

A prevalência geral de peritonite bacteriana espontânea foi de 76 casos (36,4%) em 209 pacientes. Os 133 pacientes restantes preencheram os critérios para ascite estéril (51,7%), bacteriascite (8,6%) e peritonite bacteriana secundária (3,3%) como demonstra o gráfico 1.

Gráfico 1- Distribuição dos pacientes conforme diagnóstico

No grupo com PBE (76 pacientes), 21 foram classificados como PBE cultura positiva e 55 como ANCN, resultando numa taxa de 27,6% de positividade na cultura do LA. O espectro bacteriano encontrado revelou: cinco episódios por E. coli; dois por Klebsiella pneumoniae; dois por Enterobacter cloacae; dois por Streptoccus viridans; dois por Staphylococcus aureus; um por Enterococcus faecalis; um por Streptococcus parasanguinis, um por Lactobacillus, um por Streptococcus spp, um por Streptococcus gallolyticus, um por Streptococcus viridans + Streptococcus sanguinis, um por Acinetobacter anitratus + Enterococcus faecalis; um por Escherichia coli + Chryseobacterium indologenes + Enterococcus faecium + Candida albicans (Gráfico 2). Essa amostra revelou uma proporção entre bactérias Gram-negativas e Gram-positivas encontradas de 12:13. Já no grupo sem PBE, referente aos casos de bacteriascite foram isolados 20 microorganismos variados na proporção de 11 Gram + : 9 Gram –.

Gráfico 2 – Espectro bacteriano dos pacientes com PBE

Em apenas um paciente com PBE, o isolamento de microrganismo no sangue foi similar ao isolado no LA. Em 6 pacientes, as hemoculturas foram positivas, sendo os agentes encontrados: E. coli (2), Acinetobacter baumanni (1), Streptococcus gordonii (1), Enterococcus faecium (1) e Providencia rettgeri (1). Quanto à cultura de urina, em apenas um paciente foi detectado bacteriúria com isolamento de microrganismo similar ao isolado no LA. Em 10 pacientes as uroculturas foram positivas, sendo os agentes encontrados: Klebsiella pneumoniae (2), Acinetobacter baumanni (1), Pseudomonas aeruginosa (1), Enterococcus faecalis (2), Enterococcus faecium + Candida albicans (1), Candida glabrata + Enterococcus faecalis (1), Acinetobacter baumanni + Klebsiella pneumoniae (1), crescimento de flora mista sugestivo de contaminação da amostra (1).

Dos 76 pacientes com diagnóstico de PBE, 52 foram a óbito. Destes, 28 tiveram mortalidade intra-hospitalar por PBE. Esse cenário revelou uma mortalidade por PBE de 36,8% (relação de óbitos relacionados ao evento/total de internações por PBE x 100). O CID de óbito mais prevalente foi A41- OUTRAS SEPTICEMIAS, seguido de R57 – CHOQUE NÃO CLASSIFICADO EM OUTRAS PARTES. O critério para recidivas foi considerado a partir de 1 mês e nesse caso, observaram-se 13 recidivas, sendo: 5 pacientes em 1 mês; 1 paciente em 3 meses; 1 paciente em 4 meses; 1 paciente em 5 meses; 1 paciente em 1, 2 e 4 meses; 1 paciente em 2 e 6 anos; 1 paciente em 3, 4 e 6 meses; 2 pacientes em 4 anos. 

No que tange a sintomatologia dos pacientes: 26 (34%) apresentaram febre; 44 (58%) apresentaram dor abdominal; 16 (21%) configuraram PBE clínica (ascite + febre + dor abdominal); 4 (5,3%) apresentaram sinal de Blumberg; 21 (27,6%) apresentaram diarreia; 8 (10,5%) apresentaram íleo paralítico; 11 (14,5%) apresentaram septicemia; 9 (11,8%) apresentaram derrame pleural e 37 (48,7%) apresentaram algum grau de encefalopatia, sendo a de grau II a mais prevalente (Tabela 2).

Tabela 2: Sintomatologia em pacientes com PBE

N= número

A descrição do aspecto do líquido ascítico foi excluída como parâmetro de análise uma vez que não houve uniformidade na descrição e a maioria das paracenteses não dispunham de tal informação. O valor absoluto do número de polimorfonucleares nas amostras teve uma variação considerável (244,2 – 1676140) com média de 44547,40 ± 255919,19 células/mm³; sendo que nas amostras com ascite hemorrágica (>10.000 hemácias/mm³), o valor de PMN foi corrigido subtraindo-se 1 para cada 250 hemácias encontradas. Os valores de proteínas totais do líquido ascítico variaram entre 0,3 – 4,8 com média de 1,65 ± 0,97 mg/dL; sendo 50 amostras ≥ 1,0 mg/dL, 12 com número inferior e 14 não identificadas. Os valores de albumina variaram entre (0,1 – 8) com média de 0,85 ± 1,07 e o ADA variou entre 1,8 e 12,7 com média de 5,29 ± 3,23 U/L; sendo que este último se mostrou um parâmetro laboratorial pouco disponível nas análises de LA. Outros parâmetros laboratoriais avaliados foram a creatinina sérica cuja média foi de 2,14 ± 1,38 mg/dL e o sódio sérico cuja média foi de 134,55 ± 5,99 (Tabela 3).

Tabela 3: Parâmetros laboratoriais de pacientes

DP= desvio padrão; N= número

A despeito da antibioticoterapia, 75 pacientes foram tratados e em 1 não foi identificado uso de antimicrobiano. Foram considerados todos os antibióticos administrados no período da internação, ainda que a PBE não constasse como justificativa de prescrição. Nessa amostra, 63 foram tratados com Ceftriaxona, dos quais: 27 (42,85%) foram tratados apenas com Ceftriaxona; 12 (19%) tiveram Meropenem associado; 11 (17,46%) tiveram Vancomicina + Piperacilina/Tazobactam associadas; 8 (12,7%) tiveram Metronidazol associado; 8 (12,7%) tiveram Ampicilina + Sulbactam associado; 4 (6,3%) tiveram Sulfametoxazol + Trimetropim associado, 4 (6,3%) tiveram Ampicilina associada. Outros antibióticos menos frequentes foram Oxacilina, Ceftazidima, Polimixina B/E. Em 48 (64%) dos 75 pacientes tratados, foi possível observar redução na contagem de PMN nas paracenteses seguintes ao episódio de PBE. No grupo dos pacientes com bacteriascite, 61% (11 dos 18 pacientes) foram tratados com Ceftriaxona. 

Quanto à profilaxia antibiótica, 31 pacientes foram contemplados, enquanto que para 45 pacientes não identificou-se a prescrição em seus respectivos prontuários. Dos pacientes que receberam a profilaxia, 9 (29%) realizaram a profilaxia com Ciprofloxacino, 20 (64,5%) com Norfloxacino e 1 (3,2%) com ambos os antibióticos. Vale ressaltar ainda, que dessa amostra, 7 pacientes apresentam recidiva e 7 foram à óbito por influência da PBE. Já para os 34 pacientes que não receberam a profilaxia, encontramos 21 óbitos influenciados pelo episódio de PBE. Para o grupo com bacteriascite, 44,4% (8 dos 18 pacientes) receberam a profilaxia antibiótica, sendo 5 com Norfloxacino, 1 com Ciprofloxacino e 3 com ambos. A taxa de óbito nesse grupo foi de 66% (12/18). 

A mortalidade hospitalar foi de 36,8% (28/76) com óbito relacionado direta ou indiretamente a PBE e suas complicações.

DISCUSSÃO

Na comparação dos dados clínicos e laboratoriais levados em consideração para este estudo, alcançaram significância estatística (p<0.05) como fatores preditivos de óbito por PBE: diarreia (p=0,003); encefalopatia (p=0,040); o CID do óbito (p=0,000); realização da profilaxia antibiótica (p=0,048); profilaxia antibiótica com recidiva de PBE (p=0,003).  Quanto à diarreia, observou-se que esse sintoma não esteve relacionado ao número óbitos seja por PBE, seja por outras causas. No que se refere à encefalopatia, sua relação com o número de óbitos relacionados a PBE foi positiva. O motivo do óbito expresso pelo CID também apresentou associação significativa com o número de óbitos por PBE. Pacientes que não realizaram profilaxia antibiótica, seja com ciprofloxacino, seja com norfloxacino ou terapia combinada, mostraram-se mais favoráveis ao desfecho de óbito por PBE. Ademais, pacientes que não receberam a profilaxia estiveram mais propensos a ter recidivas de PBE e ao desfecho de óbito. 

Na análise dos parâmetros laboratoriais do líquido ascítico entre os pacientes que foram a óbito versus os que não foram a óbito, realizada através do teste t não pareado, não houve diferença significativa entre as médias dos dois grupos. 

Pode-se afirmar que o estudo em questão se apresenta como um modelo atual do cenário nacional no que diz respeito aos pacientes cirróticos que evoluem com ascite e peritonite bacteriana espontânea. O estudo afirma características epidemiológicas sabidamente disseminadas na literatura como predominância do sexo masculino e a alta prevalência da etiologia alcóolica, observada por Thiele et al. [5] e Figueiredo [10]

A importância da etiologia alcóolica como causa da cirrose é ressaltada devido à prevalência do alcoolismo no Brasil que obteve um resultado de 13,7%, conforme um estudo sobre o consumo abusivo em 2013 [11]. Quanto a outras etiologias associadas, hepatite C crônica foi a mais prevalente. Esses achados assemelham-se aos de Figueiredo[10], que revelou que em 39,9% dos casos a etiologia está relacionada ao álcool, 28,7% a vírus, 11,9% causas mistas (álcool e vírus) e 14,7% a causas diversas.

Outrossim, a média de idade (56 ± 11) também é consoante a outros trabalhos previamente divulgados. [5][10][12] A faixa etária também é um dado notável, uma vez que esse grupo ainda compõe a população economicamente ativa no Brasil e as complicações da cirrose hepática além de estarem associadas a uma alta morbimortalidade, implicam um elevado custo médico-social associado. A maioria dos pacientes, 140 da amostra de 209, foram classificados como Child-Pugh C (67%) e obtiveram alta pontuação na escala MELD-Na (22,9 ± 7,9), o que sugere uma amostra de pacientes com maior gravidade relativa à doença hepática e com menor sobrevida estimada. 

Ainda que a PBE seja diagnosticada quanto à contagem de neutrófilos no líquido ascítico ≥ 250 células/mm3, celularidades de até 255919 neutrófilos por mm³ foram documentadas. Contudo, apesar da alta celularidade encontrada, apenas 27,6% dos casos apresentaram ascite com cultura positiva. Na literatura, a prevalência variou entre 12,6% e 68,4% dos casos. [5]    Foram observadas discrepância e ausência de padrão quanto aos achados clínicos e laboratoriais em relação a literatura. Essa impossibilidade de se traçar um perfil para o paciente com presença de PBE, reforça a importância dos paracenteses diagnósticas na rotina hospitalar.

Embora ao longo das últimas décadas, tenha se observado uma tendência à redução na taxa de mortalidade [1] com relação a PBE, a presente casuística revela uma taxa importante – 36,8% – e estável se comparada aos resultados de outras séries brasileiras publicadas. [5][10][13] Por outro lado, foi obtido uma taxa de recidiva menor – 17% – quanto a um novo episódio dentro de 12 meses em comparação com outros estudos [6][10]. Cabe salientar, no entanto, que a diminuição da mortalidade observada nas últimas décadas não foi confirmada no presente estudo.

No que tange ao tratamento, o início do uso de cefalosporinas de terceira geração como droga de primeira linha para o tratamento da PBE esteve associado a taxas de resolução da infecção de 80% a 100%[11] em estudos previamente publicados, o que levaria a uma menor mortalidade hospitalar esperada. Diversos autores [10][14][15] têm demonstrado que naqueles pacientes em que a infecção foi controlada inicialmente, o prognóstico é mais favorável. A contagem de polimorfonucleares utilizada como controle de resposta é considerada variável independente, correlacionando-se com a sobrevida. Todavia, este estudo revelou uma tendência a menor resposta terapêutica – 64% -, considerando-se uma redução de 50% ou mais na leucometria do líquido ascítico. Esse achado, porém, pode ser explicado pela amostra de 20 pacientes (27%) que não tiveram uma parecentese posterior ao episódio de PBE para acompanhamento da resposta terapêutica. Em apenas 3 pacientes (4%) foi documentada a falha terapêutica de fato. 

Quanto à bacteriologia, embora sem haver significância estatística, houve predomínio de bactérias Gram-positivas, o que vai ao encontro de trabalhos que sugerem essa mudança no perfil bacteriológico encontrado. Algumas séries afirmam ser cada vez maiores as incidências de bactérias produtoras de betalactamases de espectro estendido (ESLB) e de bactérias gram-positivas multirresistentes, como Enterococcus faecium e Staphylococcus aureus meticilina-resistentes (MRSA). [6][9] Afirma-se ainda que, a maioria dos pacientes com PBE causada por estes micro-organismos não responde ao tratamento com antibióticos empíricos de primeira linha e evolui para o óbito nos primeiros 5 dias após o diagnóstico. [16] Desta maneira, pacientes cirróticos com PBE de possível origem nosocomial (hospitalização nos últimos 3 meses e/ou tratamento terapêutico ou profilático prévio para PBE), cenário em que se apresenta a grande maiora dos pacientes deste estudo, devem ser inicialmente tratados com carbapenêmicos, sendo este regime desescalonado o mais breve possível.

O uso de norfloxacino como profilaxia secundária mostrou-se bem documentado na literatura [17]. A utilização de ciprofloxacino é recomendada em alguns casos, porém, uma crítica feita a esta conduta é a frequente indução de resistência antimicrobiana. Este estudo, no entanto, demonstrou, com diferença estatística, que essa conduta atua minimizando o desfecho de óbito e recidiva para os pacientes com PBE ao contrário do resultado encontrado por Coral et al. [11]

Alguns pontos fortes deste estudo são o grande tamanho da nossa amostra de pacientes cirróticos em um único centro e a alta qualidade e complexidade dos serviços de saúde do Hospital de Base enquanto centro de referência regional. No entanto, este estudo também apresenta várias limitações, incluindo seu desenho retrospectivo, falta de uniformidade nos dados clínicos, laboratoriais e terapêuticos dos casos de PBE durante a hospitalização, a dificuldade de discriminar a mortalidade por todas as causas e às relacionadas ao fígado, dentre outras. Ademais, possivelmente, por ser a instituição onde este estudo foi desenvolvido referência em transplante, criou-se um viés de seleção pela gravidade dos casos internados.

CONCLUSÃO

Se por um lado este estudo falha na tentativa de reunir características que forneçam um perfil clínico-laboratorial dos pacientes com PBE e quais sinais seriam mais sugestivos de um desfecho negativo; por outro, ele acerta em reforçar a PBE enquanto uma complicação grave da ascite, ainda associada a uma alta mortalidade em cirróticos. É preciso ainda levar em consideração a mudança no perfil bacteriológico, a importância do tratamento profilático e das parecenteses diagnósticas e de controle na rotina hospitalar. Certamente, houve muitos avanços no ramo da hepatologia ao longo dos anos, mas a PBE permanece um tema intrigante na prática clínica.

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¹Acadêmico do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto/FAMERP
²Acadêmico do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto/FAMERP
³Docente da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto
4Professor da Graduação e Orientador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da FAMERP e Chefe da Unidade de Transplante de Fígado/Intestino do Hospital de Base da FUNFARME/FAMERP.