REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202411162327
Izabela Alves do Nascimento;
Gabriela de Menezes;
Ana Marília Dutra Ferreira da Silva.
RESUMO
A cobertura midiática no processo penal brasileiro, especialmente no Tribunal do Júri, tem gerado preocupações sobre a imparcialidade das decisões judiciais, ao interferir nos direitos fundamentais dos réus. Este estudo visa analisar a influência da mídia no processo penal, destacando as violações de princípios constitucionais, como o devido processo legal, a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa. O impacto da pressão da opinião pública, muitas vezes alimentada pela cobertura sensacionalista de casos de grande repercussão, é discutido no contexto da imparcialidade dos jurados. O principal objetivo é propor estratégias para mitigar essa interferência midiática, incluindo o sequestro do júri, a orientação precisa dos jurados e a aplicação de medidas como as “gag orders”. A pesquisa adota uma abordagem qualitativa e descritiva, com base em revisão bibliográfica e análise de um caso concreto, o Caso Nardoni, para ilustrar os efeitos da mídia no processo penal. O estudo sugere que, embora seja difícil eliminar completamente a influência midiática, a adoção de medidas eficazes pode contribuir para garantir um julgamento mais justo e transparente, respeitando os direitos constitucionais dos réus.
Palavras-chave: Mídia. Tribunal do Júri. Princípios Constitucionais. Violações.
ABSTRACT
The media coverage in the Brazilian criminal justice system, especially in the Jury Court, has raised concerns about the impartiality of judicial decisions by interfering with the fundamental rights of defendants. This study aims to analyze the influence of the media on the criminal process, highlighting violations of constitutional principles such as due process, the presumption of innocence, the right to a fair trial, and the right to a broad defense. The impact of public opinion pressure, often fueled by sensationalist media coverage of high-profile cases, is discussed in the context of the impartiality of jurors. The main objective is to propose strategies to mitigate this media interference, including jury sequestration, precise guidance for jurors, and the implementation of measures like “gag orders.” The research adopts a qualitative and descriptive approach, based on bibliographical review and the analysis of a concrete case, the Nardoni Case, to illustrate the effects of media on the criminal process. The study suggests that, although it is difficult to completely eliminate media influence, the adoption of effective measures can contribute to ensuring a fairer and more transparent trial, respecting the constitutional rights of the defendants.
Keywords: Media. Jury Trial. Constitutional Principles. Violations.
1 INTRODUÇÃO
A influência da cobertura midiática no processo penal brasileiro e as violações aos princípios constitucionais têm gerado crescente preocupação, especialmente em casos de ampla repercussão. A mídia, ao divulgar investigações e julgamentos criminais, frequentemente antecipa uma condenação pública dos réus, influenciando tanto a opinião popular quanto as decisões judiciais. Isso se torna particularmente problemático no Tribunal do Júri, onde a pressão midiática compromete a imparcialidade dos jurados, afetando princípios essenciais como a presunção de inocência, o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.
Este estudo concentra-se em analisar a influência midiática no contexto específico do Tribunal do Júri, no qual os jurados estão mais suscetíveis à pressão da opinião pública gerada pela cobertura sensacionalista. A questão central da pesquisa é: como a cobertura midiática de casos criminais de ampla repercussão afeta a imparcialidade das decisões do Tribunal do Júri e compromete os princípios constitucionais? A hipótese levantada é que a mídia, ao criar uma atmosfera de condenação antecipada, compromete a neutralidade dos julgamentos, especialmente em processos de grande visibilidade.
A relevância desta pesquisa reside no impacto direto que a mídia pode exercer sobre o sistema de justiça penal brasileiro, apontando a necessidade de discutir os limites dessa interferência para garantir julgamentos justos e imparciais. A exposição midiática prévia pode prejudicar não apenas o réu, ao violar o princípio da presunção de inocência, mas também influenciar indevidamente o curso do processo, desrespeitando os preceitos fundamentais.
O objetivo geral é avaliar como a cobertura midiática de casos criminais interfere nas decisões do Tribunal do Júri no Brasil, além de identificar as principais violações aos princípios constitucionais decorrentes dessa interferência. Para atingir esse objetivo, os objetivos específicos incluem a análise dos princípios constitucionais em questão, a investigação do caso concreto “Isabella Nardoni” (no qual a mídia influenciou o processo penal) e a proposição de medidas para limitar essa interferência no julgamento.
A metodologia adotada é qualitativa e descritiva, com base em pesquisa bibliográfica e documental. Serão analisadas doutrinas jurídicas, artigos científicos e um caso concreto de pré-julgamento midiático, com a aplicação do método dedutivo, que parte da teoria geral sobre o papel da mídia até a análise de um caso específico.
O artigo está estruturado em três seções principais. A primeira seção examina a mídia como formadora de opinião e seu impacto na sociedade. A segunda seção analisa os princípios fundamentais do processo penal brasileiro, com foco nas garantias constitucionais. A terceira seção explora a relação entre a mídia e o processo penal, com ênfase no Tribunal do Júri, avaliando como a cobertura midiática pode influenciar as decisões judiciais.
Este estudo visa demonstrar como a atuação sensacionalista da mídia compromete a imparcialidade das decisões judiciais e viola direitos fundamentais, propondo diretrizes para preservar a integridade do processo penal.
2 A MÍDIA
A mídia compreende diversos meios de comunicação, como rádio, televisão e internet, que se aperfeiçoaram ao longo de períodos históricos importantes e continuam a evoluir rapidamente, ampliando seu alcance e impacto na sociedade. A comunicação é essencial para os seres humanos e, especialmente, para o desenvolvimento social, pois, por meio dela, se constroem e se compartilham relações entre indivíduos e organizações (McQuail, 2003, p. 17). Desde os primórdios, a comunicação firmou-se como uma ferramenta fundamental para o progresso social e intelectual.
Na era colonial, por exemplo, não havia um sistema centralizado de transmissão de informações. As notícias circulavam por meio de cartas, mensageiros ou eram transmitidas oralmente por viajantes e exploradores. Essas formas, no entanto, eram lentas, limitadas e controladas pelo governo colonial, que buscava impedir a disseminação de ideias que pudessem incitar revoltas ou questionamentos às autoridades. A censura da imprensa era prática comum, uma vez que a comunicação se restringia a veículos aprovados pelo governo, e as publicações passavam por filtros para evitar a divulgação de conteúdos considerados ameaçadores à estabilidade das colônias (Brito, 2019, p. 12).
Durante o período colonial, Portugal proibiu a imprensa no Brasil, exigindo que todo conteúdo de mídia fosse impresso em território português. Assim, o controle sobre as informações e o domínio sobre o território eram mantidos, impedindo o desenvolvimento de uma imprensa autônoma e crítica no Brasil (Carvalho; Tesseroli, 2015, p. 34). Esse controle refletia o receio das autoridades de que ideias subversivas ou contrárias ao poder estabelecido se espalhassem entre a população, colocando em risco a soberania e a autoridade colonial.
Nos dias atuais, contudo, a liberdade de imprensa é garantida pela Constituição Federal de 1988, sendo um dos pilares essenciais da democracia brasileira. Essa liberdade, ligada à liberdade de expressão, é um direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, que assegura “a livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (Brasil, 1988). Esse princípio fortalece a democracia ao permitir a circulação de informações e opiniões diversas, indispensáveis a uma sociedade informada e crítica.
Com a expansão da mídia e o advento das novas tecnologias, como a internet e as redes sociais, a liberdade de imprensa trouxe também desafios significativos. A disseminação de informações tornou-se instantânea e acessível a grande parte da população, democratizando o acesso ao conhecimento e permitindo que as notícias circulem de forma rápida e ampla (Carvalho; Tesseroli, 2015, p. 59). Essa velocidade de circulação, no entanto, abriu espaço para a propagação de notícias sensacionalistas e informações incorretas, comprometendo a objetividade jornalística e, em alguns casos, manipulando a opinião pública.
Assim, embora a liberdade de imprensa seja fundamental para garantir a transparência e a fiscalização dos poderes públicos, ela também exige responsabilidade dos veículos de comunicação. Lopes Júnior (2018, p. 97) observa que a mídia, ao explorar casos criminais, pode transformar o processo em um espetáculo, violando princípios como a presunção de inocência e o devido processo legal. Essa prática, conhecida como “espetacularização midiática”, afeta especialmente casos de grande repercussão, nos quais a opinião pública se molda antes mesmo de qualquer julgamento oficial (Greco, 2016, p. 72).
O papel da mídia no cenário contemporâneo, portanto, é ambivalente: ao mesmo tempo em que é um agente essencial de informação para a democracia, é também uma poderosa influenciadora da opinião pública (McCombs; Shaw, 1972, p. 176). Para que a mídia exerça sua função sem comprometer os direitos fundamentais dos indivíduos, é necessário equilibrar o direito à informação com o compromisso ético de precisão e imparcialidade, promovendo um jornalismo que respeite os limites da liberdade de imprensa sem ferir os direitos alheios.
Com regulamentação e compromisso com um jornalismo mais responsável, a mídia pode continuar cumprindo seu papel de “quarto poder”, conforme defendido por teóricos como Edmund Burke, que viam a imprensa como um contrapeso essencial aos três poderes oficiais. No entanto, como destaca Brito (2019, p. 12), esse papel só pode ser legítimo se exercido com responsabilidade e ética, contribuindo para uma sociedade mais justa e informada.
2.1 ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Desde os primórdios da civilização, a comunicação revela-se essencial, quando o ser humano desenvolveu formas próprias de se expressar utilizando elementos da natureza, como sons, gestos e desenhos rupestres. Esses recursos permitiam o compartilhamento de conhecimentos e práticas da época, contribuindo para a evolução do processo intelectual, preservando tradições e a cultura do grupo e, assim, colaborando para a continuidade do saber (McQuail, 2003, p. 12).
Com o advento da escrita, por volta de 3.200 a.C., foi possível eternizar memórias e conhecimentos por meio dos primeiros manuscritos, documentos oficiais e cartas, todos copiados à mão. Esse processo, no entanto, era lento e dispendioso, pois exigia horas de trabalho dos copistas, o que restringia o acesso à escrita a uma elite privilegiada, composta por sacerdotes, governantes e intelectuais. Ainda assim, a invenção da escrita marcou o início de uma evolução contínua e cada vez mais sofisticada da comunicação (Bauer, 1999, p. 15).
No século XV, com a criação da prensa de tipos móveis por Johannes Gutenberg, iniciou-se uma verdadeira revolução na comunicação. Essa invenção possibilitou a produção em massa de livros e outros materiais impressos, promovendo a disseminação do conhecimento e da cultura em maior escala e com maior acessibilidade (Dias, 2013, p. 24).
A partir daí, a comunicação passou por diversas transformações, ganhando espaço e importância na sociedade com o surgimento do telégrafo, das transmissões de rádio e televisão e, por fim, da era dos computadores e da internet. Essas inovações consolidaram a comunicação como a conhecemos hoje, integrando diferentes meios e ampliando seu impacto no mundo moderno (Defleur; Ball-Rokeach, 1993, p. 12).
Assim, a evolução dos meios de comunicação se deu ao longo de milhares de anos, respeitando uma ordem cronológica de eras e idades, acumulando e aprimorando formas de comunicação com o passar do tempo. Essa trajetória foi sustentada pela própria evolução humana, pelo desenvolvimento social e pela crescente integração entre indivíduos e grupos (Defleur; Ball-Rokeach, 1993, p. 12).
2.2 A MÍDIA COMO FORMADORA DE OPINIÕES
Os meios de comunicação desempenham um papel indispensável na sociedade, pois são o canal pelo qual as informações chegam até os indivíduos. Entretanto, o principal desafio enfrentado atualmente reside na influência da mídia sobre a opinião pública, revelada em estudos que apontam seu poder de direcionar a percepção coletiva. Isso ocorre por meio da seleção dos temas que são divulgados e da ênfase dada a manchetes consideradas de grande apelo para o público. Além disso, há o envolvimento de interesses específicos nas publicações e a capacidade de manipulação de ideias e crenças, por meio de construções visuais e narrativas que induzem determinadas interpretações sobre os assuntos abordados (Carvalho; Tesseroli, p. 59).
A mídia exerce um papel significativo na sociedade contemporânea, onde as pessoas são constantemente expostas a uma ampla gama de informações oriundas de diversas fontes. Nesse cenário, além de informar, os meios de comunicação influenciam a percepção pública sobre variados temas, impactando inclusive áreas sensíveis, como a política e o processo decisório no sistema judiciário (Turgeon, 2009, p. 7).
Visando, por vezes, apenas o lucro, a mídia recorre ao sensacionalismo para destacar temas que provocam maior comoção e repercussão social. Nessa busca por audiência, a precisão das informações é relegada a segundo plano, e a imediata captação de atenção passa a ser prioritária, muitas vezes antes mesmo de uma análise aprofundada dos fatos (Vieira, 2003, p. 52-53).
A falta de cautela na transmissão de notícias, somada à dificuldade do público em diferenciar os fatos, pode gerar uma imagem inicial negativa do acusado, promovendo uma visão em que ele é visto como indigno de defesa, praticamente condenado antes da decisão final da justiça. Essa prática compromete o princípio da presunção de inocência, que determina que ninguém deve ser considerado culpado até que ocorra uma sentença definitiva (Greco, 2016, p. 72).
Além disso, a ausência de responsabilização da mídia pela divulgação de informações imprecisas afeta diretamente a vida dos acusados e de seus familiares, pois a sociedade tende a considerar como verdade tudo o que é exposto, mesmo antes de qualquer pronunciamento judicial sobre o caso.
Com o avanço dos meios de comunicação, a rapidez na disseminação das informações desperta nos receptores o impulso de fazer justiça e condenar o indivíduo de imediato. Entretanto, esquece-se, ou desconhece-se, que esse indivíduo é também sujeito de direitos e que, ainda que tenha cometido uma infração, mantém asseguradas suas garantias processuais (Souza, 2008, p. 103).
2.3 O QUARTO PODER
A ideia da mídia como “quarto poder” faz referência aos três poderes tradicionais indicados por Montesquieu (Executivo, Legislativo e Judiciário), destacando o potencial de influência que a mídia exerce na formação da opinião pública e sua atuação como guardiã dos interesses do povo.
Essa expressão teve origem na Inglaterra, no início do século XX, quando um espaço foi reservado no prédio do Parlamento inglês para acomodar os repórteres que acompanhavam as decisões dos três poderes: secular, clerical e comunal. Mais tarde, essa concepção popularizou-se, sendo associada às democracias ocidentais. Esses profissionais garantiam maior visibilidade às questões públicas, fortalecendo a liberdade de expressão e o exercício do pensamento crítico pelos cidadãos (Brito, 2019, p. 12).
Assim, o “quarto poder” monitora e expõe as ações públicas, atuando como um observador independente das práticas das instituições que exercem poder sobre a sociedade. Como aponta McQuail (2003, p. 42), “a mídia exerce um papel fundamental na fiscalização dos poderes constituídos, assegurando transparência e fomentando a responsabilização dos agentes públicos”. Dessa forma, o jornalismo assume a função essencial de intermediar o diálogo entre o poder estatal e a sociedade, trazendo a público ações e decisões que impactam diretamente a vida dos cidadãos.
Desse modo, ao atuar como “quarto poder”, a mídia não apenas reflete os acontecimentos, mas também os interpreta e prioriza de acordo com critérios de interesse social. McCombs e Shaw (1972, p. 176) defendem que, por meio da teoria do agendamento, “a mídia define os temas que merecem a atenção da opinião pública, estabelecendo uma agenda coletiva”. Essa capacidade de definir a pauta social posiciona a mídia como uma força com poder de influenciar o debate público, destacando eventos e moldando a percepção social sobre temas políticos e sociais.
Esse papel, no entanto, exige que a mídia atue com ética e responsabilidade, evitando práticas sensacionalistas que distorçam os fatos ou prejudiquem a imparcialidade dos julgamentos. Lopes Júnior (2018, p. 98) adverte que “o uso excessivo de cobertura midiática em casos criminais, por exemplo, pode transformar o processo judicial em um espetáculo, comprometendo princípios fundamentais como a presunção de inocência”. Assim, o exercício do “quarto poder” deve ser pautado pela responsabilidade de informar e de preservar os direitos das partes envolvidas.
Nesse contexto, é essencial que o jornalismo mantenha um compromisso com a verdade e a imparcialidade, respeitando os limites éticos necessários para exercer seu papel de observador democrático.
3 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO E OS PRINCÍPIOS BASILARES DO PROCESSO
O processo penal constitui o conjunto de normas que regula a atuação do Estado na garantia da aplicação do direito penal. Trata-se de um ramo autônomo do direito público. Nele, o direito penal determina o que é crime e qual a pena a ser aplicada. Em razão disso, o jus puniendi pertence ao Estado, que, consequentemente, detém o poder jurisdicional (Távora, 2016, p. 13).
Para o professor Lopes Júnior (2019, p. 36-37):
Existe uma íntima e imprescindível relação entre delito, pena e processo, de modo que são complementares. Não existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem processo penal senão para determinar o delito e impor uma pena. Assim, fica estabelecido o caráter instrumental do processo penal com relação ao Direito Penal e à pena, pois o processo penal é o caminho necessário para a pena (Lopes Júnior, 2019, p. 36-37).
Sob essa perspectiva, formou-se um conjunto de princípios fundamentais que orientam a aplicação do processo ao caso concreto, como o devido processo legal, a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa, entre outros. Esses princípios, consagrados na Constituição Federal de 1988, são essenciais para assegurar justiça nos processos, atuando contra abusos e arbitrariedades do poder estatal.
Moraes (2003, p. 89) destaca:
os princípios são o alicerce para fundamentar o direito. Conforme o entendimento majoritário os princípios são a base que regulamentam o nosso ordenamento jurídico, chega a ser denominado como ideia informadora da organização jurídica. Esses princípios refletem nos valores da sociedade (Moraes, 2003, p. 89).
Contudo, a prática processual, especialmente em casos de grande repercussão midiática, frequentemente desafia a plena aplicação desses princípios. A pressão exercida pela opinião pública, alimentada pela cobertura intensa da mídia, pode comprometer a imparcialidade dos julgamentos e desrespeitar garantias fundamentais dos acusados. A mídia, ao expor certos casos de forma parcial ou sensacionalista, pode interferir no julgamento antes mesmo de todas as provas serem devidamente analisadas, comprometendo a aplicação justa desses princípios (Nucci, 2015, p. 283).
Nesta seção, o processo penal brasileiro será analisado à luz de seus principais princípios constitucionais, destacando-se como cada um deles busca garantir a justiça no julgamento de casos criminais e como, em processos de grande visibilidade, esses princípios podem ser violados.
A análise abordará a relação entre a proteção dos direitos fundamentais do acusado e a atuação midiática, além dos riscos que a exposição excessiva de um processo penal pode representar para a integridade dos princípios fundamentais da justiça penal. Por fim, o estudo oferece uma reflexão crítica sobre a eficácia dessas garantias na prática judicial brasileira, sobretudo nos casos em que a opinião pública exerce pressão significativa sobre o processo.
3.1 PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL
Este princípio encontra respaldo no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Originado a partir da Magna Carta de João Sem Terra, em 1215, o princípio do devido processo legal tem suas raízes na Inglaterra, mas foi expressamente adotado pelo direito brasileiro apenas com a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1986). Trata-se de um princípio norteador, do qual derivam outros princípios constitucionais e processuais. Seu objetivo central é proteger bens jurídicos direta ou indiretamente relacionados à vida (Nery Júnior, 1997, p. 32).
A Magna Carta, antes de tudo, visava assegurar os direitos dos senhores feudais ingleses contra o crescente poder centralizador do rei. Não se tratava de uma carta de direitos universal, mas de um acordo entre os detentores do poder real na sociedade. Por essa razão, foi redigida em latim, uma língua inacessível à maioria da população.
Nucci (2012, p. 70) analisa o princípio do devido processo legal ao afirmar:
A ação e o processo penal somente respeitam o devido processo legal, caso todos os princípios norteadores do Direito Penal e do Processo Penal sejam, fielmente, respeitados durante a persecução penal, garantidos e afirmados os direitos do acusado para produzir sua defesa, bem como fazendo atuar um Judiciário imparcial e independente. A comunhão entre os princípios penais […] e as processuais penais […] torna efetivo e concreto o devido processo legal (Nucci, 2012, p. 70).
Esse princípio assegura a todos os cidadãos o direito a um processo legal e eficaz, que respeite todas as etapas previstas em lei e as garantias constitucionais. Ele pode ser analisado sob dois aspectos: o formal e o material/substancial. O aspecto formal refere-se ao conjunto de garantias processuais, voltado a assegurar um procedimento justo e adequado. Já o aspecto material relaciona-se à aplicação do devido processo legal em todas as esferas do direito, com o intuito de proteger as pessoas contra normas opressivas (Calixto, 2016, p. 233- 262).
Assim, o devido processo legal é uma fonte fundamental que integra os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, orientando o controle dos atos e decisões judiciais. Esse princípio visa garantir que ninguém seja privado de sua liberdade ou de seus bens por motivos que não estejam previstos em lei. Além disso, o devido processo legal é considerado uma cláusula pétrea, dotada de imutabilidade e possuindo superlegalidade, ocupando o vértice do ordenamento jurídico brasileiro.
No contexto do devido processo legal penal, é necessário considerar a influência que a mídia pode exercer sobre decisões em processos criminais, desde a fase investigativa, em que notícias prematuras podem gerar comoção social e alimentar o sensacionalismo (Greco, 2012, p. 122).
Diante desse cenário, cabe ao juiz decidir com base exclusivamente nas provas apresentadas pelas partes, assegurando um processo sério e que conceda ao acusado todos os seus direitos, em conformidade com os preceitos constitucionais. O acusado tem o direito de ser formalmente citado, garantindo-lhe um julgamento imparcial e o exercício do contraditório e da ampla defesa. Vale destacar que o Judiciário é o responsável pela proteção dos direitos fundamentais, o que exige uma postura independente e imparcial diante das pressões externas.
3.2 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
O princípio da presunção de inocência está previsto no art. 5º, inciso LVII da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (Brasil, 1988).
Esse princípio remonta ao direito romano, segundo Lopes Junior (2016, p. 94), no conceito de in dubio pro reo, que significa “na dúvida, a favor do réu”, ou seja, na ausência de provas suficientes, o réu deve ser favorecido. A presunção de inocência foi consagrada em 1948, no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, durante a Assembleia das Nações Unidas.
Artigo 11. 1 Toda a pessoa acusada de um ato delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas. 2 Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam ato delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o ato delituoso foi cometido (Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).
Sobre o tema, Lima (2012, p. 13) afirma:
Não havendo certeza, mas dúvida sobre os fatos em discussão em juízo, é inegavelmente preferível a absolvição de um culpado à condenação de um inocente, pois, em juízo de ponderação, o primeiro erro é menos grave que o segundo (Lima, 2012, p. 13).
Já Aury Lopes (2016, p. 97) ressalta:
A presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Significa dizer que a presunção da inocência deve ser utilizada como verdadeiro limite democrático à abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial (Lopes Júnior, 2016, p. 97).
Esse princípio estabelece duas regras fundamentais: a regra probatória, que atribui à acusação o ônus de demonstrar a culpa do réu, e a regra de tratamento, que impede qualquer juízo condenatório antecipado antes do trânsito em julgado (Távora, 2016, p. 72). Assim, o acusado deve ser tratado como inocente durante todo o processo, até que se alcance o trânsito em julgado da sentença condenatória, permitindo-lhe a oportunidade de comprovar sua inocência ao longo do procedimento.
Dado o alcance desse princípio, é importante observar que, com a disseminação rápida da informação, impulsionada pelo surgimento das novas mídias, o princípio da presunção de inocência pode ser comprometido.
Segundo Greco (2015, p. 5):
A mídia, que exerce poderosa influência em nosso meio, se encarrega de fazer o trabalho de convencimento da sociedade, mostrando casos atrozes, terríveis sequer de serem imaginados, e como resposta a eles, pugna por um Direito Penal mais severo, mais radical em suas punições (Greco, 2015, p. 5).
Dessa forma, a liberdade de informação abrange tanto o direito de informar quanto o de ser informado, o que implica que o acesso, a obtenção e a transmissão de informações devem ser completas, corretas e verdadeiras. No entanto, os meios de comunicação em massa frequentemente priorizam imagens impactantes, com o intuito de gerar audiência e lucro (Mello, 2010, p. 107).
Quando a imprensa divulga uma notícia baseada no senso comum, pode ocorrer a distorção dos fatos, levando a julgamentos prematuros e promovendo um sensacionalismo que compromete a real compreensão dos casos. Com isso, o público tende a aceitar as informações apresentadas como verdade, o que resulta em uma exposição exagerada e distorcida, violando a privacidade das partes envolvidas e interferindo de forma indevida no andamento do processo (Prates; Tavares, 2008, p. 35).
Cabe, portanto, à imprensa cumprir seu papel de forma responsável, fornecendo informações corretas e prestando um serviço de qualidade. Deve zelar pela função social do jornalismo, transmitindo os fatos de maneira objetiva e informando o público sobre o andamento do processo e as garantias asseguradas ao acusado. Ao final do trânsito em julgado, a imprensa deve relatar o teor da decisão, focando nos fatos comprovados e evitando especulações.
3.3 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA
Está disposto no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (Brasil, 1988).
O contraditório e a ampla defesa estão diretamente relacionados ao princípio da isonomia processual (ou paridade de armas), sendo ambas garantias constitucionais. O contraditório assegura que todas as partes tenham ciência dos atos processuais, enquanto a ampla defesa garante a produção e manifestação de provas. São dois princípios distintos, cada qual com seu significado (Lima, 2012, p. 11).
O contraditório refere-se ao direito de tomar conhecimento das alegações da parte contrária e de poder se contrapor a elas. Ou seja, trata-se do direito à defesa, que inclui o conhecimento do processo e a participação nos atos processuais. Uma das formas de violar o contraditório ocorre quando a parte não é citada. No entanto, embora seja obrigatório no processo, o contraditório não prevalece na fase investigatória (Rangel, 2015, p. 18).
A Súmula 707 do Supremo Tribunal Federal (STF) estabelece que: “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contrarrazões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não suprindo a nomeação de defensor dativo” (Brasil, 2003).
Já a ampla defesa garante ao acusado o direito de utilizar todos os meios de prova e recursos juridicamente lícitos para se defender. Assim, trata-se da oportunidade que o acusado tem para expor suas razões e sustentar sua versão dos fatos. Além disso, cabe ao Estado assegurar ao acusado a defesa mais completa possível.
Esse princípio pode ser dividido em duas vertentes: a defesa técnica e a autodefesa. A defesa técnica é exercida obrigatoriamente por um profissional da advocacia, regularmente inscrito na OAB, e é um direito irrenunciável, dotado de capacidade postulatória. A autodefesa, por outro lado, é exercida pelo próprio acusado e é renunciável. Por exemplo, o acusado pode optar por não apresentar sua versão dos fatos (Lima, 2017, p. 1337-1338).
A Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal (STF) dispõe que: “No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas sua deficiência só anulará o processo se houver prova de prejuízo para o réu” (Brasil, 2017).
Deve-se considerar a influência da mídia sobre o contraditório e a ampla defesa. Em muitos casos, a cobertura midiática sensacionalista pode comprometer a imparcialidade do julgamento, dificultando a aplicação plena dessas garantias fundamentais. A exposição excessiva de informações pode interferir no direito do acusado de se defender de forma justa e equilibrada (Araujo, 2008, p. 68).
Nas palavras de Pena (2007, p. 113) sobre a influência:
Os julgamentos são influenciados pela formação e, também pelo que os meios de comunicação nos apresentam como verdade. Somos cruéis em nossos julgamentos. Na maioria das vezes, esquecemos que eles são mediados. Se não forem pela imprensa, podem ser pelos nossos próprios preconceitos, pelo inconsciente ou pela linguagem. […] os maniqueísmos se apresentam e o veredicto se resume à velha luta entre o bem e o mal. Só que os indivíduos são muito mais complexos do que isso (Pena, 2007, p.113).
O contraditório e a ampla defesa, pilares do processo penal, garantem ao acusado a oportunidade de ser informado sobre as acusações e de apresentar sua versão dos fatos, assegurando um julgamento justo e equilibrado. No entanto, a atuação da mídia, ao explorar casos de maneira sensacionalista, pode comprometer a imparcialidade dos jurados e influenciar a opinião pública, colocando em risco esses direitos fundamentais. É imprescindível que os meios de comunicação cumpram seu papel com responsabilidade, garantindo a transparência e a precisão das informações, respeitando o princípio da presunção de inocência e evitando a criação de narrativas que prejudiquem o devido processo legal. A preservação desses princípios é essencial para a integridade do sistema judiciário e para a confiança da sociedade nas instituições jurídicas.
4 PODER PUNITIVO DO ESTADO (JUS PUNIENDI)
Desde os tempos primitivos, o ser humano buscava regular suas relações sociais por meio das penas, como forma de punir os desvios de regras cometidos pelos membros de determinado grupo. Esse período histórico foi caracterizado pela chamada justiça divina e justiça privada, pois eram os líderes de cada tribo ou os representantes das divindades que exerciam o poder punitivo. Estes estabeleciam as regras para o povo, que, temendo as consequências impostas, como a vingança divina ou a punição com a morte, respeitava e obedecia ao direito (Pierangeli, 2023, p. 9).
Na teoria de Thomas Hobbes, a humanidade, antes do contrato social, vivia em um estado de natureza, de forma primitiva e em constante guerra, sendo o próprio homem uma ameaça para si mesmo. Ele defendia que, devido à natureza egoísta do ser humano, seria necessário um contrato social para viver em paz e preservar a vida, possibilitando que a sociedade existisse de forma civilizada (Maranhão, 2008, p. 26).
Em contraste, Aristóteles afirmava que o homem é, por natureza, um ser político e que somente por meio da cidade-estado o ser humano encontra a razão. Ele acreditava que quem não vive em sociedade é considerado uma fera ou um deus, já que os homens precisam viver em comunidade para alcançar o bem comum (Ramos, 2014, p. 68).
Com o passar do tempo, o direito evoluiu, alcançando os dias atuais. Ao contrário do que acontecia no passado, quando era permitido fazer justiça com as próprias mãos, atualmente, o poder de punir foi transferido ao Estado, que detém a legitimidade para definir condutas proibidas e aplicar sanções disciplinares aos indivíduos que cometem crimes.
O poder punitivo do Estado desempenha papel crucial na manutenção da ordem social, ao mesmo tempo em que garante aos acusados um julgamento justo. Para que seja legítimo, o julgamento deve observar rigorosamente os princípios constitucionais, assegurando a todos o direito de ser julgado e punido de maneira justa e imparcial. É imprescindível que todo o processo seja conduzido conforme o devido processo legal, para que a integridade do julgamento não seja comprometida (Rodrigues; Rodrigues, 2021, p. 45).
4.1 SISTEMA ACUSATÓRIO
Ao contrário do sistema inquisitivo, que se alinha ao autoritarismo, o sistema acusatório associa-se à democracia na qual o acusado é visto como um sujeito detentor de direitos e possuidor de diversas garantias processuais asseguradas na Carta Magna. Segundo Lopes Júnior (2018, p. 74), “o sistema acusatório é caracterizado pela divisão de funções, onde a acusação, a defesa e o julgamento competem a sujeitos processuais distintos, o que garante maior imparcialidade e respeito aos direitos do acusado”.
No sistema inquisitório, o poder está concentrado em uma única pessoa, geralmente no juiz, que age de ofício, buscando uma “verdade real”, embora essa verdade muitas vezes seja ilusória, pois o acusado é tratado como mero objeto do processo, sem qualquer garantia dos princípios fundamentais, o que resulta na falta de um contraditório efetivo (Mirabete, 2003, p. 35). Esse modelo foi amplamente criticado por teóricos como Capez (2017, p. 112), que apontam para a “tendência à parcialidade e para a centralização excessiva do poder no julgador, que atua tanto como investigador quanto como juiz”.
No entanto, no sistema acusatório, adotado pelo Brasil, o juiz é totalmente imparcial e equidistante. Na maioria dos casos, ele não age de ofício, sendo necessário que seja provocado pelas partes para que haja a apreciação da justiça. Essa estrutura baseia-se na separação das funções de acusar, julgar e defender. Nesse sentido, Oliveira (2016, p. 48) afirma que “a imparcialidade do juiz e a divisão clara das funções são características centrais do sistema acusatório, que garante ao réu um julgamento justo e em conformidade com os princípios constitucionais”.
O juiz deve seguir rigorosamente a aplicação dessas atribuições, sendo passíveis de nulidade os atos que não respeitarem os direitos do acusado, como o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
Enquanto o sistema inquisitório se aplicava plenamente ao direito material, o que levava quem exercia o poder punitivo a atuar como agente de segurança pública, o sistema acusatório preza pela garantia dos direitos fundamentais, em contraposição aos abusos e arbítrios do poder punitivo estatal (Prado, 2006 apud Coelho; Jesus, 2020, p. 42).
Antes da promulgação da Lei n. 13.964, de janeiro de 2019, conhecida como “Pacote Anticrime”, o sistema acusatório no Código de Processo Penal era apenas implicitamente atribuído, pois não havia uma norma jurídica que indicasse claramente qual era o sistema adotado pelo Código. No entanto, com a nova lei, especificamente no artigo 3º-A, que estabelece que “o processo penal terá estrutura acusatória, vedada a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação” (Brasil, 2019), confirmou-se de forma expressa, o sistema adotado pelo Brasil, alinhando-se ao que já era compreendido pela doutrina (Ribeiro; Souza, 2021, p. 72).
4.2 RELAÇÃO ENTRE MÍDIA E PODER PUNITIVO ESTATAL
As mídias são ferramentas essenciais para a sociedade, pois é por meio delas que as informações chegam aos indivíduos. No entanto, o principal impasse atual reside no papel que a mídia assumiu no mundo moderno. Anteriormente, seu papel era apenas o de disseminar informações; hoje, as mídias frequentemente assumem um papel de influenciadoras e, em muitos casos, vendem seus posicionamentos por meio de matérias sensacionalistas.
Esse fenômeno leva à criação de uma “cultura de punitivismo” na sociedade, onde a população passa a exigir justiça rápida e penas severas, especialmente em casos de grande visibilidade pública. Shecaira (2007, p. 74) observa que “a espetacularização da justiça penal pela mídia cria uma demanda por respostas imediatas, que acaba pressionando o sistema judiciário a agir com celeridade, frequentemente em detrimento do devido processo legal”. Assim, ao dar uma ênfase exagerada aos detalhes de determinados crimes e expor as figuras dos suspeitos ou acusados, a mídia incita uma “opinião pública punitiva”, que pode influenciar as autoridades judiciais a tomar decisões mais voltadas ao clamor popular do que aos parâmetros legais e constitucionais.
Esse papel exercido pela mídia ultrapassa os limites da simples comunicação e se torna uma forma de controle social, em que o julgamento popular, pautado pela opinião pública, age paralelamente ao julgamento legal. Lopes Júnior (2018, p. 103) destaca que “a pressão midiática não raro compromete a imparcialidade do julgamento, pois tanto os operadores do direito quanto os próprios jurados podem ser influenciados pelo discurso punitivista disseminado pela mídia”. Essa situação é especialmente crítica no Tribunal do Júri, onde os jurados, cidadãos leigos, são mais suscetíveis à influência do discurso midiático e das emoções populares.
A influência da mídia sobre o poder punitivo estatal tem, portanto, o potencial de comprometer princípios basilares do direito penal e processual penal, como a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa. Segundo Greco (2016, p. 79), “a exposição midiática prévia do acusado compromete sua imagem pública, criando um estigma social que o coloca em uma posição desfavorável antes mesmo de um julgamento justo”. Esse tipo de atuação midiática acaba violando o princípio da dignidade humana, pois o acusado, ao ser exposto, sofre uma “condenação antecipada” que pode gerar efeitos irreparáveis na sua vida pessoal e profissional.
Por outro lado, a pressão social gerada pela mídia impacta também as autoridades responsáveis pela persecução penal, como delegados e promotores. Estes, ao lidar com casos de grande repercussão, podem sentir-se compelidos a fornecer respostas rápidas e contundentes, ainda que não disponham de todas as provas necessárias. Como observa Brito (2019, p. 14), “a mídia, ao se posicionar de maneira ativa e acusatória, exerce um papel que acaba exigindo das autoridades uma atuação imediatista, frequentemente resultando em erros processuais e condenações equivocadas”.
Outro ponto relevante é o papel da mídia em criar um “clima de medo” na sociedade. Ao dar ampla cobertura a casos de crimes violentos, a mídia reforça a ideia de que a segurança pública está em crise, o que aumenta a pressão sobre o Estado para endurecer as penas e reduzir as garantias processuais. Shecaira (2007, p. 83) argumenta que “a construção midiática de uma sociedade em constante perigo leva a população a justificar o endurecimento das leis e a flexibilização dos direitos processuais dos acusados”. Esse processo gera uma visão distorcida de segurança pública, onde o aumento do rigor penal é considerado a solução para os problemas de criminalidade.
Portanto, a relação entre mídia e poder punitivo estatal levanta sérios questionamentos sobre o equilíbrio entre o direito à informação e os direitos fundamentais dos acusados. O sistema de justiça deve estar atento a essas influências externas e buscar garantir que os processos judiciais ocorram com a devida imparcialidade, respeitando as garantias constitucionais e evitando que o clamor popular, alimentado pela mídia, determine o rumo das decisões judiciais.
4.3 CAUSAS DA PERDA DE LEGITIMIDADE NO PROCESSO PENAL
O Estado ocupa uma posição superior em relação ao acusado e, por essa razão, estabelece na Constituição Federal garantias e direitos fundamentais que devem ser rigorosamente respeitados durante todo o processo, visando equilibrar e proteger os indivíduos contra possíveis abusos. O sistema processual penal do Brasil é o acusatório; ele está diretamente ligado às garantias constitucionais brasileiras, nas quais estão assegurados os princípios fundamentais para um Estado democrático de Direito. Visa garantir um processo legítimo, pautado por princípios que amparam o acusado, como o princípio do devido processo legal, a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa.
A violação desses princípios, indispensáveis para a legalidade do processo, ou a não observância dos requisitos necessários para um devido processo legal — como o princípio da segurança jurídica no que diz respeito à prescrição — são causas da perda de legitimidade do Estado no exercício do direito de punir o indivíduo (Mello, 2003, p. 818).
Mello (2003, p. 818) destaca:
Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra o sistema, subversão de seus valores fundamentais (Mello, 2003, p. 818).
Dessa forma, a violação de princípios tem um impacto profundo em todo o sistema, pois o respeito aos princípios e às garantias fundamentais é essencial para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Esse respeito impede o surgimento de mentalidades persecutórias, que não têm lugar em uma democracia.
5 TRIBUNAL DO JÚRI
O Tribunal do Júri é um órgão especial do Poder Judiciário, previsto no Art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição (Brasil, 1988). Ele é formado por um conselho de sentença que julga crimes dolosos contra a vida por meio da participação popular (Nucci, 2008, p. 34- 35), permitindo que a pessoa acusada seja julgada por cidadãos leigos em vez de juízes togados. Essa característica, no entanto, torna o Tribunal do Júri particularmente suscetível a influências externas, especialmente aquelas provenientes da mídia, que podem moldar a percepção dos jurados sobre o caso (Lima, 2013, p. 55-57).
Batista (2004, p. 256) esclarece que:
Sensacionalismo transgride radicalmente com as ideias de neutralidade da imprensa. As técnicas sensacionalistas valem-se da exploração e manipulação intensa e deliberada das emoções primárias (sensações) do leitor, do ouvinte ou do telespectador, em geral induzindo baixo nível de reflexão crítica ou intelectiva a respeito dos fenômenos (“fatos”) reportados (Batista,2004. p.256).
Em relação à sua composição, Capez (2016, p. 731) explica que o Tribunal do Júri é formado pelo seu presidente, o juiz togado, e pelos jurados leigos, escolhidos por sorteio entre os cidadãos da localidade. Dentre vinte e cinco jurados, sete são sorteados para compor o chamado Conselho de Sentença na sessão de julgamento. É de suma importância que os jurados permaneçam incomunicáveis durante todo o julgamento, sob pena de nulidade caso essa regra seja violada.
A Constituição Federal de 1988 instituiu o Tribunal do Júri em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, prevendo, além da competência para julgar crimes dolosos contra a vida, as garantias de plenitude de defesa, sigilo das votações, soberania dos veredictos e competência para o julgamento desses crimes, tal como:
Art. 5.º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (Brasil, 1988).
Nucci (2015, p. 26) explica que:
Os Jurados simplesmente votam, condenando ou absolvendo, sem qualquer. É parte do sigilo das votações, outro princípio constitucional da própria instituição do júri. Por que motivo, deve-se buscar a defesa plena a mais perfeita possível dentro das circunstâncias concretas. Deslizes não devem ser admitidas. Advogados que atuam no Tribunal do Júri devem ter tal garantia em mente: a plenitude de defesa. Com isso, desenvolver suas teses diante dos jurados exige preparo, talento e vocação. O preparo deve dar-se nos campos jurídicos e psicológico, pois se está lidando com pessoas leigas. O talento para, naturalmente, exercer o poder de convencimento ou, pelo menos aprender a exercê-lo é essencial. A vocação, para enfrentar horas e horas de julgamento com equilíbrio, prudência e respeito aos jurados e às partes, emerge como crucial (Nucci, 2015, p. 26).
Esses princípios buscam proteger os jurados de coação e garantir seu livre convencimento, sem interferências de terceiros, como a plateia ou a imprensa.
Além disso, a cobertura midiática de crimes julgados pelo Tribunal do Júri frequentemente cria uma atmosfera de intensa comoção pública, impactando a opinião dos jurados, que podem ser influenciados pelas narrativas sensacionalistas veiculadas pelos meios de comunicação. Essa influência midiática pode comprometer a imparcialidade do julgamento, levando os jurados a tomarem decisões baseadas não apenas nas provas apresentadas em juízo, mas também no clamor popular. O pré-julgamento promovido pela mídia tende a interferir diretamente na mentalidade dos jurados, criando um ambiente de parcialidade que ameaça o princípio da justiça (Rocha, 2003, p. 2-3).
Essa prática, que atinge todas as pessoas, inclusive os jurados, pode levar a um julgamento que atribua valor de prova a algo que sequer entrou no processo. Não há dúvidas de que a exposição massiva dos fatos e atos processuais, os juízos paralelos e o filtro do cronista afetam o inconsciente dos jurados, além de acarretarem intranquilidade e apreensão (Lopes Júnior, 2004, p. 253).
Nesta seção, será analisado o papel do Tribunal do Júri no sistema penal brasileiro, com destaque para sua vulnerabilidade diante da cobertura midiática. Um caso concreto que ilustra essa influência será apresentado, além de uma reflexão crítica sobre o impacto das narrativas midiáticas nos julgamentos realizados por cidadãos comuns. A análise também discutirá o risco que o princípio da imparcialidade corre nesse contexto e sugerirá maneiras de mitigar os efeitos negativos da mídia sobre as decisões do Júri.
5.1 CASO CONCRETO: ISABELLA NARDONI
A morte de Isabella de Oliveira Nardoni, de cinco anos, ocupou centenas de páginas de jornais e revistas. A tragédia ocorreu na noite de 29 de março de 2008, quando a criança foi jogada pela janela do 6º andar de um prédio localizado no Edifício London, na zona norte de São Paulo. Os condenados foram Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, respectivamente pai e madrasta da criança (Andrade, 2009, p. 486-487).5.1
O caso gerou grande repercussão na mídia, sendo noticiado por diversos meios de comunicação, incluindo a cobertura internacional. Com isso, uma série de sentimentos tomou conta da população, como revolta, indignação, desejo de justiça e compaixão.
Ambos os acusados sempre negaram as acusações e, em suas defesas, alegaram que o crime havia sido cometido por uma terceira pessoa. No entanto, a perícia criminal encontrou vestígios de sangue de Isabella na cadeirinha do carro do casal e no chão do apartamento. Também se constatou que a rede de proteção da janela havia sido cortada.
Além disso, após a quebra do sigilo telefônico, verificou-se que eles não ligaram para os serviços de emergência. Entretanto, havia registro de duas ligações: uma para o pai de Anna e outra para o pai de Alexandre.
Com toda a cobertura intensa da imprensa, o magistrado Maurício Fossen decretou a prisão preventiva do casal, decisão motivada pelo clamor popular. É notório que os acusados eram réus primários e possuíam todos os requisitos para responder em liberdade, mas, devido à grande repercussão do caso, permaneceram presos (Moreira, 2012, p. 61 apud Inácio, 2024). A população aguardava justiça por parte do Poder Judiciário, conforme citado por
Ricardo (2014, p. 46 apud Gomes, 2008):
Em todos os “casos midiáticos” (caso Nardoni, por exemplo) é praticamente impossível a inexistência de “juízos paralelos” (desencadeados pela mídia). Ora em favor do réu, ora em favor da vítima: o inevitável é a eclosão desse tipo de “controle não regulamentado” da atividade judicial. O cuidado que todos os juízes devem ter consiste em saber que nem sempre a voz do povo é a mais justa. Essa história de “Vox populi, vox Dei”, no Direito penal (e na Política criminal), é muito perigosa. Em razão da carga emocional que carrega, em matéria de castigo, muitas vezes, nada mais injusta, desequilibrada e insensata que a voz do povo. A voz do povo serve para impressionar o legislador (e gerar mais reformas legislativas), serve para a mídia vender seus “produtos” (ou seja: aumentar seu faturamento), serve para reforçar o imaginário popular de que ele tem voz e vez (e o poder de comando), mas nem sempre é boa conselheira (ou companheira ideal) para a tomada de decisões razoáveis no âmbito da política criminal (nem tampouco para a solução judicial de um conflito (Ricardo 2014, p. 46 apud Gomes, 2008).
Até o julgamento, a mídia continuava a exibir um grande número de pessoas protestando nas ruas, em frente ao Fórum, à delegacia ou ao prédio onde Isabella morava, aguardando a decisão.
Dois anos depois, em 2010, o caso foi levado a julgamento pelo Tribunal do Júri. No entanto, no dia do julgamento, a defesa do casal pediu a anulação do júri, alegando que não havia isenção dos jurados devido à comoção popular. Após cinco dias de julgamento, o casal foi condenado por homicídio qualificado. Alexandre Nardoni teve sua pena fixada em 31 anos, 1 mês e 10 dias de reclusão, com o agravante de Isabella ser sua descendente, enquanto Anna Carolina Jatobá foi condenada a 26 anos e 8 meses de reclusão.
5.2 INFLUÊNCIA DA COBERTURA MIDIÁTICA NAS DECISÕES DO JÚRI
A mídia seleciona casos que, por suas características específicas, têm maior potencial de atrair a atenção popular, mantendo o interesse do público ao longo de dias, semanas, meses ou até anos. Com o uso do sensacionalismo, acaba por convencer grande parte da população de que a versão por ela apresentada é a mais plausível. Esse tipo de abordagem não apenas compromete o trabalho da polícia e da justiça, mas também viola a dignidade da pessoa humana do suspeito ou acusado, expondo-o de maneira desproporcional e prejudicial. (Macêdo, 2013, p. 21).
Tais influências acarretam séria violação dos direitos fundamentais do acusado, por parte da mídia e da opinião pública, violando os princípios processuais penais de caráter geral, como a imparcialidade dos julgamentos e a presunção de inocência, além dos princípios gerais de direito, como o in dubio pro reo, bem como os princípios específicos do Tribunal do Júri.
Dantas (2014, p. 19), nesse sentido, salienta que:
A necessidade de averiguação do quantum de influência que a mídia exerce sobre os jurados se dá, principalmente, pela infeliz mudança de postura que a mídia adotou atualmente. Os meios de comunicação não se preocupam com a responsabilidade social da notícia, tornando-se válido o não uso da ética desde que se garanta uma maior lucratividade (Dantas, 2014, p. 19).
Os jurados têm acesso a reportagens livres, materiais e notícias sobre o crime, chegando ao julgamento já informados. Contudo, muitas vezes, obtêm as informações de forma precoce, ficando vulneráveis à falsa verdade trazida pela mídia.
5.3 MEDIDAS PARA MITIGAR A INFLUÊNCIA NO TRIBUNAL DO JÚRI
Em casos de grande repercussão midiática, como o Caso Nardoni em que a opinião pública já está amplamente formada antes mesmo do início do julgamento, torna-se evidente a necessidade de mecanismos que assegurem a imparcialidade dos jurados. A implementação de medidas para garantir que o veredicto seja proferido com base exclusivamente nas provas apresentadas em juízo, sem interferências externas da cobertura midiática, é fundamental.
Uma prática comumente adotada em situações de grande exposição é o sequestro do júri, que consiste no isolamento dos jurados durante todo o curso do julgamento, de modo a impedir que tenham qualquer contato com informações externas, especialmente as veiculadas pela mídia. Essa estratégia visa preservar a neutralidade dos jurados, assegurando que suas deliberações se baseiem apenas nos elementos apresentados durante o processo judicial (Araujo; Martins; Queiroz, 2024, p. 11-14).
Além disso, é imperativo fornecer instruções claras aos jurados. O juiz deve orientá- los a desconsiderar qualquer informação obtida fora do tribunal, inclusive as circuladas em redes sociais, dado o potencial dessas plataformas para influenciar, de maneira sutil, a percepção dos fatos. Limitar o acesso da imprensa ao tribunal é uma medida relevante para controlar a cobertura sensacionalista e reduzir os riscos de distorção do processo.
Um recurso importante é o treinamento prévio dos jurados em casos de alta exposição midiática. Esse treinamento fortalece a capacidade crítica dos jurados e o entendimento sobre a relevância da imparcialidade no veredicto.
Considerando o impacto das redes sociais, as orientações do juiz também devem incluir evitar o contato com essas plataformas e outras mídias digitais durante o julgamento, evitando que os jurados sejam expostos a uma narrativa que possa distorcer a análise das provas. De acordo com Araujo, Martins e Queiroz (2024, p. 17), a influência sutil de redes sociais é especialmente prejudicial em julgamentos de grande visibilidade, uma vez que “a exposição contínua pode impactar inconscientemente a opinião do jurado”.
Nos Estados Unidos, tribunais frequentemente recorrem às chamadas “gag orders” – ordens de restrição que impedem a divulgação pública de detalhes de casos em andamento. Essa prática limita o acesso da mídia a informações do caso, preservando a integridade do julgamento. Brito (2019, p. 22) observa que as “gag orders” são eficazes para evitar a disseminação de informações sensacionalistas, preservando o direito do réu a um julgamento justo e imparcial. No Brasil, embora a prática seja rara, sua aplicação poderia ser considerada em situações de alta pressão midiática.
Controlar a exposição midiática dos jurados pode ser uma prática complementar para assegurar que as deliberações estejam livres de qualquer narrativa unilateral apresentada pela mídia. Como observa Turgeon (2009, p. 7), “a exposição constante a uma narrativa midiática unilateral pode moldar a opinião do jurado de forma inconsciente, afetando sua capacidade de julgamento imparcial”.
Outra abordagem relevante seria a adoção de um código de ética para a cobertura midiática de casos judiciais. Esse código poderia incluir diretrizes para evitar o sensacionalismo e assegurar que o direito à informação não viole a presunção de inocência dos réus. Brito (2019, p. 34) sugere que, ao adotar práticas éticas, a mídia contribui para um julgamento mais justo ao balancear o direito à informação e a integridade processual.
Por fim, as comunicações institucionais do Poder Judiciário em casos de alta exposição reforçam a necessidade de um julgamento imparcial, alertando o público sobre o papel da Justiça e os riscos de pressões indevidas. Tais comunicações são comuns em países com uma imprensa livre e ativa, onde o Judiciário assume um papel proativo em esclarecer a importância da imparcialidade para o devido processo legal (McCombs; Shaw, 1972, p. 176).
Embora a completa eliminação da influência midiática seja impraticável, essas estratégias, quando aplicadas de forma eficaz, contribuem significativamente para a criação de um ambiente mais equilibrado e controlado, em que o julgamento possa ocorrer de maneira justa e imparcial. Conforme destaca Lopes Júnior (2018, p. 98), tais medidas promovem um “sistema de julgamentos imune a pressões midiáticas” e fortalecem os princípios constitucionais de defesa e imparcialidade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise realizada no presente estudo ressaltou a crescente preocupação com a influência da cobertura midiática sobre o processo penal, especialmente no contexto do Tribunal do Júri no Brasil. Observou-se que a atuação da mídia, ao expor de maneira sensacionalista casos de grande repercussão, tem gerado consequências diretas sobre a imparcialidade das decisões judiciais. A pressão da opinião pública alimentada pela mídia muitas vezes antecipa um julgamento social do réu, comprometendo a aplicação de princípios constitucionais fundamentais, como o devido processo legal, a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa.
Esse cenário, caracterizado pela chamada “espiral de condenação midiática”, coloca em risco a integridade do processo judicial, uma vez que a atuação da mídia ultrapassa os limites da informação, assumindo o papel de formadora da opinião pública e interferindo diretamente nas decisões do Judiciário. O estudo identificou que, no Tribunal do Júri, em particular, os jurados se mostram mais suscetíveis a essas influências externas, o que pode comprometer a imparcialidade necessária para que o julgamento seja justo e baseado exclusivamente nas provas apresentadas.
Diante dessa realidade, torna-se urgente a implementação de estratégias que assegurem a independência do Judiciário e a imparcialidade dos jurados. A adoção de medidas, como o sequestro do júri, a orientação precisa dos jurados quanto ao uso exclusivo das provas no julgamento, o treinamento preventivo sobre a pressão midiática e a possível aplicação de “gag orders” para restringir a disseminação de informações sensacionalistas, são algumas das ações recomendadas para mitigar tais efeitos.
Além disso, é imprescindível que a mídia assuma sua responsabilidade ética ao cobrir casos judiciais, evitando distorções dos fatos e respeitando a presunção de inocência dos réus. A criação de um código de ética específico para a cobertura de processos judiciais pode contribuir de maneira significativa para garantir que o direito à informação seja exercido de forma equilibrada, sem prejudicar os direitos fundamentais dos envolvidos.
Em suma, embora a eliminação total da influência midiática sobre o processo penal seja um objetivo de difícil alcance, a adoção de medidas eficazes pode favorecer a criação de um ambiente mais justo e equilibrado, no qual o Judiciário atue de maneira imparcial, respeitando os direitos constitucionais e fortalecendo a confiança da sociedade nas instituições jurídicas. O sistema de justiça penal deve, portanto, adotar uma postura proativa na proteção dos direitos dos réus e na preservação dos princípios que asseguram um julgamento justo, transparente e em conformidade com os preceitos do Estado Democrático de Direito.
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