MICHEL FOUCAULT E A FORMAÇÃO DISCURSIVA ACERCA DA LOUCURA: UMA REVISÃO DE LITERATURA

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ar10202410052224


Gustavo Gomes Cândido


 RESUMO

A produção deste artigo é fruto do amadurecimento teórico provocado pelas leituras das obras foucaultianas. Como consequência dimensionamos a profundidade do conhecimento deste filósofo que muito contribuiu para diversas áreas do saber, tais como, psicologia, história, direito, biomedicina, entre outras. Neste sentido, tal estudo tem por finalidade analisar e compreender a formação discursiva acerca da loucura. Para atingirmos este objetivo, propomos uma revisão de literatura e concentramos nossos esforços em sua principal obra acerca deste tema: A história da loucura na idade clássica. Consideramos do mesmo modo, artigos, dissertações e teses referentes ao tema, contemplando nosso desenho metodológico. Utilizamos as principais plataformas de busca em nossa investigação: Scielo e Google acadêmico. Nossos resultados apontaram para três diferentes discursos acerca da loucura em três diferentes períodos históricos que Foucault denominava como condição de possibilidade. Concluímos que, na idade média o discurso da loucura se baseava na possessão demoníaca. Já na idade clássica era entendida pelas formações discursivas como uma forma de erro, um devaneio. No século XVIII, com a idade moderna e com os contornos científicos da época, a loucura passa a ser compreendida pelo discurso médico psiquiatra como uma doença mental.

Palavras-chaves: formação discursiva; história da loucura; michel foucault

ABSTRACT

The production of this article is the result of the theoretical maturation provoked by the readings of Foucaultian works. As a consequence, we measure the depth of knowledge of this philosopher who greatly contributed to several areas of knowledge, such as psychology, history, law, biomedicine, among others. In this sense, this study aims to analyze and understand the discursive formation about madness. To achieve this goal, we propose a literature review and focus our efforts on his main work on this topic: The history of madness in the classical age. We also consider articles, dissertations and theses related to the theme, contemplating our methodological design. We used the main search engines in our investigation: Scielo and Google Scholar. Our results point to three different discourses about madness in three different historical periods that Foucault called a condition of possibility. We conclude that, in the Middle Ages, the discourse of madness was based on demonic possession. Already in the classical age, it was understood by discursive formations as a form of error, a daydream. In the 18th century, with the modern age and the scientific contours of the time, madness came to be understood by the medical psychiatrist discourse as a mental illness.

Keywords: discursive formation; history of madness; michel foucault

1. INTRODUÇÃO

Os estudos das obras foucaultianas proporcionam reflexões que auxiliam no amadurecimento intelectual, digo, tanto no exercício de formação do pensamento tanto quanto na tradução deles para a escrita acadêmica. Por isso, tratar de Foucault e de um tema tão sensível como a loucura que é repleta de problemas a serem discutidos tanto no âmbito acadêmico quanto no social, é desafiador. Falar de Foucault é falar de loucura. Para nós, profissionais de saúde então, é sempre recorrente aqui ou ali a presença de algum caso mais agudo, complexo e que demanda pensamento e ação, logo, a orientação foucaultiana sempre vem a calhar. Para aprofundarmos a parte introdutória é preciso antes fazer uma breve contextualização biográfica sobre o filósofo em questão. Michel Foucault (1926-1984)1, filho de um casal de médicos, cresceu repleto de contrariedades em relação a tradição profissional dos seus pais. Ainda adolescente, já demonstrava uma capacidade crítica elevada.  Com o seu amadurecimento despertou então a sua genialidade filosófica que fora traduzida em uma quantidade expressiva de livros, textos e aulas. É conhecido também por suas extravagâncias, tais como: buscar experiência em sanatórios, uso abusivo de drogas, a exemplo do álcool, sua combativa militância no partido comunista e por algumas tentativas de suicídio. Morreu vítima de AIDS no ano de 1984, deixando um legado em diversas áreas do conhecimento.

Feitas as devidas contextualizações biográficas, este estudo pretende abordar Foucault dentro de uma revisão de literatura, pelo qual aprofundaremos duas noções caras a este filósofo: a formação discursiva sobre a loucura e as condições de possibilidade que permitiram que tais discursos ganhassem corpo e poder no campo social. Para alcançarmos este objetivo, utilizamos como critério a revisão de uma obra em específico: História da Loucura na idade clássica de 1978. Consideramos ainda, reportagens eletrônicas, artigos, dissertações e teses sobre a temática. Com isso, nossa revisão abordará em três tópicos diferentes as formações discursivas de cada episteme, a saber, a idade média, idade clássica e idade moderna.

2. MÉTODOS

Para atingirmos os objetivos propostos, selecionamos em primeiro lugar o formato da pesquisa deste artigo, a saber, a revisão de literatura. Essa escolha encontra respaldo nas palavras de Dorsa (2020), que, ao explanar a importância da revisão de literatura na construção de um trabalho científico, aponta para um aspecto de extrema importância: a possibilidade de elaborar textos a partir de uma perspectiva histórica. Aqui, uma similitude com o filósofo Michel Foucault, que para além de pesquisas documentais históricas, dissertou com excelência em sua Arqueologia do saber de 1969, sobre técnicas de exploração durante o processo de pesquisa, algo que remeteria a escavação do conhecimento através da produção de pesquisa.

Prosseguindo com o desenho metodológico deste empreendimento, escolhemos a obra História da Loucura na idade clássica, pois, nela estão contidas as informações necessárias para a identificação e análise da formação discursiva sobre a loucura dentro do período de tempo especificado: da idade média a idade moderna. Outros materiais científicos produzidos sob a luz destas obras serão utilizados para coadunar as nossas tratativas analíticas tais como: artigos, dissertações e teses.

Com isso, este estudo de revisão de literatura se enquadra dentro da perspectiva de análise qualitativa, afinal, como sugere Minayo (2012), esse tipo de análise em trabalhos científicos possibilita a construção do conhecimento por possuir todos os elementos para ser considerado e valorizado como um construto científico.

3. A formação discursiva da loucura na idade média

Antes mesmo de aprofundarmos sobre as formações discursivas sobre a loucura na idade média é preciso que, expliquemos mais objetivamente as noções de discurso e condição de possibilidade para o filósofo em análise. Para isso, visitamos rapidamente a noção de formação discursiva expressa por Foucault (1972) em A arqueologia do saber, quando afirma que o discurso é uma representação culturalmente arquitetada pela realidade e não exatamente uma cópia fiel, deste modo, o discurso para o filósofo constrói o conhecimento e define o sujeito. Posiciona-o e molda-o de forma a evidenciar quem ele é e o que é capaz de realizar. Resumindo, para o filosofo supracitado, discurso é um conjunto de enunciados sob a égide de uma determinada formação discursiva que é praticada ao longo do tempo, ou melhor, dentro de uma condição de possibilidade. A respeito desta outra noção, Florence (2001), explica que em sua história crítica do pensamento Focault analisa as condições em que são formadas ou alteradas as relações entre sujeito e objeto, dito que é através delas que se estabelece a possibilidade de se construir um saber possível dentro de um espaço tempo, ou melhor, de uma episteme.

Feitas as devidas explanações, passamos a analisar nas literaturas selecionadas as formações discursivas sobre a loucura. Segundo Melo (2017), revisitar a historicidade que permeia este campo do saber tão complexo como a loucura é, em última análise, tarefa complexa e instigante pelo fato de atravessar uma quantidade considerável de eras, sendo, portanto, um campo do saber que produz intensas rupturas. Melo (2017), aponta em sua revisão sobre História da Loucura, contida na sua dissertação de mestrado Hospital Afrânio Peixoto: a instituição, suas memórias e representações sociais sobre a loucura, que, a primeira formação discursiva sobre a loucura aparece catalogada por Foucault no fim da idade média, por volta do século XIII, quando o discurso está totalmente atrelado à esfera religiosa, detentora do poder à época e, logo, de como e quais os discursos detinham a verdade local. Por isso, a loucura era literalmente uma punição divina e os loucos eram vistos como pessoas sob forte possessão demoníaca, daí a origem dos rituais de trepanação, técnica que antecedeu a lobotomia, onde o crânio da pessoa era perfurado por uma broca a fim de expulsar demônios que atormentavam o seu comportamento.

4. A formação discursiva sobre a loucura na idade clássica

Continuando com nossa revisão literária, neste tópico abordaremos o discurso presente na idade clássica. Melo (2017), aponta que é a partir da renascença, período que compreende o fim do século XIV até o fim do século XVI, que surge, então, uma ruptura discursiva acerca da loucura. E que segundo Foucault (2012), a loucura passa a ser vista como um desvio de conduta moral, que é inscrita no campo social da época em seu imaginário popular pela famosa nau dos loucos. Embarcações que tinham como objetivo livrar as pessoas que destoavam da moralidade da época, a saber, bêbados, criminosos, prostitutas, crianças que desobedeciam e eram consideradas desafiadoras para os pais e sociedade. Todos esses eram literalmente jogadas em alto mar.

Feitas as considerações deste fragmento de tempo na renascença, entramos de fato no discurso da idade clássica. E, novamente, uma ruptura discursiva tomou grandes proporções nesta era. Prosseguindo com Melo (2017), o autor sublinha que Descartes (1596-1650) exerceu grande influência no entendimento de Foucault a respeito deste novo discurso, isso se deve ao fato de que, Descartes define a loucura ao lado do sonho, do devaneio e de todas as formas de erro ou incongruências da psique humana. Na tentativa de racionalização dos sentidos, da contradição dos pensamentos, produz-se uma crítica sobre o ser de loucura e os perigos que estes podem se colocar. Por isso, segundo Foucault (2012), a loucura encontra com uma nova versão de si mesmo: a ilusão. Neste ápice, é possível ler no filósofo que a loucura toma em sua forma o aspecto delirante, como se fosse uma paixão demasiada, tornando-se então uma névoa que ofusca a razão, não permitindo ao homem o alcance do discernimento, do que é palpável e lógico. E é partir desse momento, com a contribuição cartesiana, que o louco passa na sua ilusão, na sua razão desatinada, a escandalizar em sociedade e, é por esse motivo que surge a idéia do encarceramento, que se tornaria mais adiante, internação. Trataremos com mais profundidade sobre isso no próximo tópico.

5. A formação discursiva na idade moderna

Adentramos, portanto, na idade moderna. E aqui, analisaremos com mais afinco a formação discursiva acerca da loucura. Segundo Melo (2017), é a partir do século XIX que uma nova ruptura na produção discursiva acontece. Não podemos deixar de registrar a contribuição relevante de Phillipe Pinel (1745-1826), que ao criar teorias para tentar explicar a loucura, encontrou uma definição que inspiraria o século posterior: alienação mental. E é partir desta catalisação do conhecimento que, o louco passa a ser objeto de exame científico na modernidade, sobretudo, dentro da ciência médica, que expandiu exponencialmente após o desenvolvimento de dois campos do saber em particular: biologia e química. Neste momento, com o desenvolvimento em especial da psiquiatria, a loucura é posicionada como uma enfermidade, uma patologia, uma doença mental. Prado (2010), em suas revisões literárias apontou que, foi exatamente na transição do século XIX para o XX que experimentos científicos e tratamentos começam a se alastrar na Europa, ganhando adeptos em todo continente, ganhando corpo científico pelas incontáveis evidências apresentadas por médicos psiquiatras. Prado (2010) aponta alguns dos responsáveis por estes tratamentos, como é o caso de Julius Wagner-Jaureg (1857-1940), criador da malaroterapia, método utilizado quando a sífilis nas décadas de 1920 e 30 era o maior causador de demência, e as entidades manicomiais não sabiam como frear tantos pacientes paranóicos e violentos que se tornavam incontroláveis dentro de tais instituições. Outro tipo de tratamento que caiu no desuso é apontado por Prado (2010) como mais uma tentativa frustrada de curar a doença mental, sendo descoberto pelo neurocientista Manfred Sakel (1900-1957) tratava-se do choque insulínico, quando o neurocientista ao avaliar uma paciente com psicose maníaco-depressiva, observou que doses grandes de insulina ajudavam na recuperação das suas faculdades mentais, tempos depois, pesquisas indicavam que além do risco do tratamento, as melhoras não eram tão efetivas quanto parecia.

Um dos mais conhecidos tipos de tratamento citados pela autora e que ficou bastante conhecido em todo o mundo foi a lobotomia, que teve sua origem baseada nos rituais de trepanação muito utilizado em grande parte das civilizações que percebiam a loucura na fenda do misticismo, tendo seu procedimento descrito como uma pequena perfuração no crânio, baseado na crença de que era possível expulsar os espíritos malignos de determinada pessoa, conforme sugere Prado (2010). O criador e aperfeiçoador dessa técnica foi o neurologista português Antônio Egaz Moniz (1874- 1955) e consistia na separação do feixe de fibras do lobo pré-frontal do resto do cérebro, desligando totalmente a região que responde pelas emoções, causando, assim, uma grande apatia nas pessoas, que ficavam calmas como se estivessem fazendo uso de tranquilizantes. Portanto, é através da constituição do saber médico, através destas incontáveis experiências que a loucura passa a ser tratada como uma doença mental e a formação discursiva ganha corpo no campo social, sobretudo pela capacidade do saber médico de deter poder sobre a produção da verdade, da cura, do que é ou não terapêutico para cada paciente.

6. Considerações finais

Para concluir, entendemos através desta revisão de literatura os elementos que ajudaram a constituir as formações discursivas sobre a loucura em seus respectivos recortes temporais. Se ainda hoje o discurso da loucura como doença mental é predominante, ainda que os tratamentos mais grotescos tenham sido suprimidos, ainda que os hospícios tenham sido substituídos por redes de atenção psicossociais, uma pergunta tem que ser feita: quais seriam as chaves para a próxima ruptura discursiva? Outras noções foucaultianas podem sim ajudar a elucidar: poder, produção de verdade, sociedade disciplinar e de controle.


1Informações retiradas do site: www.guiadoestudante.abril.com.br/especiais/michel-foucault/

Referências bibliográficas

DORSA, Arlinda. O papel da revisão de literatura na escrita de artigos científicos. Interações – Revista Internacional de Desenvolvimento Local, Campo Grande – MS, Universidade Católica Dom Bosco, vol 21, número 4, Jul-Sep, 2020.

FLORENCE, Maurice. Foucault in Houisman, Denis. Dicionário dos filósofos. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saberTradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Revisão de Lígia Vassalo. Petrópolis — Vozes. Lisboa — Centro do Livro Brasileiro, 1972.

_________________. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012.

MELO, Vitor Clímaco. Hospital Afrânio Peixoto: A instituição, suas memórias e representações sociais sobre a loucura. N° de folhas: 153. Dissertação de mestrado – Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem & Sociedade, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2017.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), v.17, n.3, p.621-626, 2012.

PRADO. A. C. 5 tratamentos psiquiátricos bizarros que caíram em desuso. Super Interessante, São Paulo, 24, set. 2010, disponível em http://super.abril.com.br/blogs/supe rlistas/5- tratamentos-psiquiatricos-bizarros-que-cairam-em-desuso, acesso em: 02/12/2022