MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA: REFLETINDO OS IMPACTOS DO USO DA MEDICAÇÃO PARA ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ra10202411271054


Soraia Cardim1
Erica Piovam de Ulhôa Cintra2


Resumo

O presente artigo, vinculado ao Projeto de Pesquisa História da Educação – Histédiice, da UNESPAR, visa refletir o fenômeno da medicalização da infância, mais precisamente, na educação infantil, a partir da percepção de uma sociedade em constante mudança do ponto de vista histórico e social. Refletir o uso da medicação em crianças no ambiente escolar é imperativo para a área da educação e os cursos de formação de professores, no sentido de olhar com mais atenção os casos de crianças com dificuldades escolares ou pedagógicas, para que não sejam vítimas da indústria das síndromes e ou transtornos mentais. Todo professor tem autoridade pedagógica de promover a educação das crianças e a superação dos problemas educacionais.

Palavras-chaves: medicalização; educação infantil; pedagogia; educação. 

Introdução

Historicamente, entre os séculos XIX e XX, o ideal de constituição da família e dos filhos sofreu grandes mudanças, estabelecendo fraturas em seus alicerces. Essa ruptura ocorreu, em parte, porque as mulheres começaram a buscar sua realização pessoal além do papel de mães e donas do lar. Saindo do espaço doméstico, da casa, em busca de um projeto profissional, as mulheres deixaram de estar exclusivamente presentes no lar, no cuidado dos filhos e na gerência da casa. Por outro lado, os homens não compensaram essa “ausência materna” e poucos fizeram o papel inverso retornando ao lar. Como consequência, as crianças começaram a frequentar creches e escolas maternais muito cedo, e tiveram que suprir a ausência das figuras parentais. (AZEVEDO, 2018).

A medicalização se transformou em um fenômeno que comparece progressivamente no engendramento do sujeito contemporâneo, por isso se tornou objeto de profundas investigações advindas de diferentes campos do saber. (Idem, p.455).

Segundo o Conselho Federal de Psicologia (2011), nos últimos anos, a medicalização da infância se tornou um tema de crescente preocupação entre educadores, profissionais de saúde e pais. Esse fenômeno refere-se ao aumento significativo no diagnóstico de transtornos, como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e à consequente prescrição de medicamentos para crianças em idade escolar. Enquanto o uso de medicação pode oferecer benefícios ao ajudar algumas crianças a gerenciar sintomas que dificultam o aprendizado e o comportamento, ele também levanta questões importantes sobre os impactos a longo prazo na educação infantil e no desenvolvimento geral das crianças.

De acordo com AZEVEDO (2018) e CAPONI (2016), a educação infantil é um período fundamental para o desenvolvimento cognitivo, emocional e social. Durante esses anos formativos, as crianças aprendem não apenas habilidades básicas, mas também como interagir com seus pares, desenvolver a autocontrole e navegar em ambientes estruturados. A introdução de medicação para o TDAH e outros transtornos pode influenciar significativamente esses processos de aprendizagem e socialização. 

Duas questões norteadoras emergem a partir dessa discussão: como as mudanças na estrutura familiar entre os séculos XIX e XX, com a busca das mulheres por realização pessoal além do papel de mães, impactaram a educação infantil e o desenvolvimento das crianças em termos de socialização e aprendizagem? Quais são os impactos da medicalização da infância, especificamente no uso de medicação para o TDAH, no desenvolvimento cognitivo, emocional e social das crianças, e como isso influencia a qualidade da educação infantil?

Por um lado, a medicação pode ajudar crianças a se concentrarem melhor e a se comportarem de maneira mais adequada em sala de aula. Por outro, pode haver efeitos colaterais físicos e psicológicos, além de preocupações sobre a dependência a longo prazo e a rotulagem precoce das crianças como “problemáticas”. Além disso, a medicalização da infância, muitas vezes, desvia a atenção de abordagens pedagógicas e psicossociais que podem ser igualmente eficazes. 

Intervenções como técnicas de manejo comportamental, estratégias de ensino individualizadas e o apoio psicoterapêutico são essenciais para abordar as necessidades das crianças de maneira mais integral. Ao depender excessivamente de soluções farmacológicas, corre-se o risco de negligenciar os verdadeiros fatores e de não abordar as causas subjacentes dos comportamentos e dificuldades de atenção.

1 Que é esse fenômeno da medicalização de crianças ou da infância?

Especificamente, em relação à medicalização na vida de crianças e adolescentes, ocorre a articulação na medicalização da educação na inovação de doenças do não-aprender e com a medicalização do comportamento. A medicina afirma que os graves – e crônicos – problemas do sistema educacional seriam decorrentes de doenças que ela, medicina, seria capaz de resolver; cria, assim, a demanda por seus serviços, ampliando a medicalização. (MOYSÉS & COLLARES. 2013, p.4).

Num passado não muito distante, quando a escola reclamava de uma criança que fosse apenas arteira ou desatenta, pensava-se em miríades de situações pedagógicas para resolver a situação e orientar a família a respeito. Mas algo mudou substancialmente nas últimas décadas. Hoje, se a escola reclama de uma criança que não se enquadra ao padrão esperado, podemos esperar tudo, menos uma solução pedagógica, e a família é culpabilizada junto com a criança como geradora do problema; a solução é um remédio. Que é, então, esse fenômeno que tem tomado conta da sociedade como um todo, e alcança agora a escola, entendida como a medicalização da criança ou da infância? O aumento dos diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e o uso crescente de terapias medicamentosas são indicativos desse fenômeno.

Medicalização é o processo no qual problemas que não eram considerados de ordem médica passaram a ser vistos e tratados como problemas médicos. (…) Desde a década de [19]70, fala-se em medicalização, e, com o passar dos anos, mais problemas foram sendo incorporados ao campo médico. (BRZOZOWSKI, 2013, p.2). 

As autoras Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília Azevedo Lima Collares, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em artigo de 2013, destacam que a medicalização e seu papel de controle e submissão têm como alvos preferenciais as crianças e adolescentes. A padronização, normatização e homogeneização correspondem aos crescentes processos de patologização da vida. Essa espiral ascendente quantifica e qualifica as expressões do viver das crianças, naturalizando questões sociais e desafiando os direitos humanosAlém disso, a medicalização tende a estreitar a diversidade, tornando-se uma forma majoritária de intervenção terapêutica na contemporaneidadeÉ essencial repensar esses avanços e considerar o impacto na subjetividade e no desempenho dos estudantes.

Sinais de alerta, como dificuldade de concentração persistente ou mudanças no humor, exigem colaboração com profissionais para avaliações formais. Intervenção precoce, adaptada às necessidades, é essencial. Na faixa etária, comportamentos variam, mas é possível observar sinais precoces de transtornos. TDAH manifesta-se com dificuldade de concentração e impulsividade. Transtorno de ansiedade inclui preocupações intensas. TEA apresenta desafios na comunicação e comportamentos repetitivos. Transtorno de aprendizagem envolve dificuldades acadêmicas persistentes. TOD exibe comportamento desafiador, enquanto depressão infantil se manifesta com mudanças no humor. A investigação envolve observação, diálogo e orientação de profissionais de saúde, garantindo intervenção eficaz e suporte adequado. (SEABRA, 2020).

Voltando ao tema da infância, é possível observar que grande parte dos desvios ocorridos nessa época da vida são notados na escola e descobertos a partir do momento em que a criança desenvolve algum problema de aprendizagem. Como exemplo, podemos pensar na alfabetização: se uma criança não aprende a ler com determinada idade, ou então se tem dificuldade em prestar atenção na sala de aula, isso pode ser considerado um desvio, e a criança pode, atualmente, ser encaminhada a um profissional da saúde para averiguar seu quadro. Os desvios da infância, dessa forma, são aqueles relacionados com a quebra de normas e de regras impostas socialmente, como, por exemplo, a falta de atenção e a agitação em sala de aula (BRZOZOWSKI, 2013; CAPONI, 2013, p.211).

Estudos sobre a medicalização atualmente são fundamentais, pois não apenas capturam o sofrimento psíquico, mas também resultam na produção massiva de diagnósticos e na patologização da infância. O uso excessivo de medicamentos pode afetar o desenvolvimento das crianças, tanto em termos de saúde física como psicológica. Efeitos colaterais, dependência a longo prazo e a rotulagem precoce são preocupações significativas que precisam ser consideradas.

Os cuidados adequados são essenciais para a constituição psíquica das crianças no desenvolvimento cognitivo, emocional e social. A presença de um adulto responsável e a qualidade das interações sociais são elementos importantes para um desenvolvimento saudável. No entanto, o discurso médico muitas vezes influencia a forma como esses cuidados são prestados. A pressão para diagnosticar e medicar pode levar à negligência de outras formas de intervenção que poderiam ser mais razoáveis a longo prazo. É importante considerar essa dinâmica e garantir que as intervenções terapêuticas não sejam exclusivamente baseadas em medicamentos. Abordagens integrativas e holísticas que incluam apoio psicoterapêutico, estratégias de ensino individualizadas e técnicas de manejo comportamental são essenciais para atender às necessidades das crianças de maneira abrangente. (VERÍSSIMO, 2017, p.4).

A demanda por vivências apropriadas ao crescimento infantil fundamenta-se na evolução por fases, possibilitando que os pequenos adquiram competências adequadas a cada momento. A teoria bioecológica ressalta a permanência e a transformação nas propriedades biopsicológicas ao longo da vida, afetadas por fatores tanto objetivos quanto subjetivos. Além disso, enfatiza a relevância de experiências que promovam o desenvolvimento de habilidades cognitivas, motoras, linguísticas, emocionais e sociais em contextos determinados, onde as atividades diárias desempenham um papel essencial.

Ainda na necessidade de experiências adequadas ao desenvolvimento, citam-se estágios de capacidades evolutivas funcionais, que explicam como as habilidades cognitivas, motoras, de linguagem, emocionais e sociais atuam juntas para ajudar a criança a aprender a lidar com seu mundo. Isso condiz com a teoria bioecológica, que explica as competências do ser em “relação à capacidade de funcionar de forma eficaz em determinados tipos de atividades e tarefas realizadas em um determinado tipo de contexto em seu cotidiano. A necessidade do estabelecimento de limites, organização e expectativas justifica-se por serem esses componentes indispensáveis à aprendizagem da convivência social. Explica que a criança precisa desenvolver capacidade de empatia, isto é, de considerar o outro com suas características únicas, assim como desenvolver capacidade de identificar e buscar objetivos importantes para ela, equilibrando as próprias expectativas e as externas. Limites estabelecidos de maneira adequada, incentivo e reconhecimento de suas realizações e feitos promovem disciplina e ajudam a criança a estabelecer seus próprios objetivos; por meio de cuidados afetuosos desenvolvem-se na criança confiança, intimidade, empatia e vínculo (VERÍSSIMO. 2017, p.4).

Diante do grande número de diagnósticos gerados, é essencial reconhecer a influência do saber médico sobre a infância. Lima e Caponi (2011) destacam os esforços da medicina para disciplinar e controlar comportamentos na infância e adolescência, visando a saúde mental. Segundo as autoras, a psiquiatria tem se inserido nos ambientes escolares e de saúde com o objetivo de identificar e diagnosticar precocemente grupos de risco para doenças mentais. Elas também ressaltam que toda essa estrutura é financiada pela indústria farmacêutica, que visualiza as crianças e adolescentes potenciais consumidores de medicamentos. (Idem, p.217).

A medicalização pode limitar a diversidade de abordagens no tratamento infantil. É preciso ponderar os avanços nessa área e considerar outras formas de intervenção terapêutica. A dependência excessiva de soluções farmacológicas corre o risco de negligenciar as reais causas subjacentes dos comportamentos e dificuldades de atenção. Além disso, pode reduzir a oportunidade de explorar intervenções pedagógicas e psicossociais que poderiam ser igualmente ou mais eficazes. 

A contemporaneidade exige uma reflexão crítica sobre como equilibrar cuidados, diagnósticos e medicamentos na infância. É necessário promover uma abordagem que equilibre o uso de medicamentos com outras formas de cuidado e intervenção. Isso inclui a análise crítica das práticas atuais e a consideração cuidadosa das necessidades individuais das crianças.

Fígura 1. O tema é cada vez mais refletido na sociedade.

Fonte: alternativalondrina.com.br, 2011.

Na sociedade atual, é comum buscar soluções rápidas para problemas, e muitas vezes isso envolve o uso de medicamentos para tratar determinados comportamentos e atitudes. Esse fenômeno é conhecido como medicalização infantil, que ocorre quando professores e familiares relacionam dificuldades de aprendizagem a transtornos que supostamente precisam de tratamento médico. Assim, em muitos casos, esses problemas na escola são abordados com o uso de medicamentos, embora nem sempre essa seja a melhor solução para todos os casos. É importante refletir sobre os impactos dessa tendência e considerar abordagens mais amplas e pedagógicas para lidar com as questões da infância.

A medicalização na infância refere-se ao uso excessivo de fármacos para lidar com comportamentos e atitudes das crianças que frequentemente podem ser tratados de maneiras alternativas. Esse fenômeno se manifesta quando dificuldades de aprendizado, impulsividade ou hiperatividade são rapidamente vinculadas a distúrbios que requerem intervenção médica, resultando na administração de psicotrópicos. É fundamental evitar a medicalização infantil, pois isso pode comprometer o desenvolvimento das crianças, impactando sua autoconfiança e habilidade de enfrentar desafios. Além disso, muitas vezes, as questões são abordadas com diagnósticos precipitados, sem uma investigação minuciosa das causas subjacentes. Isso pode resultar em uma dependência de medicamentos e na ausência de abordagens mais abrangentes e integradas, como a terapia psicológica e intervenções educacionais (AZEVEDO. 2018, p.451).

2 Panorama da medicalização de crianças no Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e em Paranaguá

A medicalização da infância é um fenômeno crescente em vários centros urbanos do Brasil, como Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, e mesmo Paranaguá, onde se observa um aumento significativo nos diagnósticos de transtornos como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) em crianças. Esse diagnóstico, muito comum nas principais capitais do Brasil, também o é na capital fluminense, e muitas vezes resulta na prescrição de medicamentos estimulantes, como a Ritalina, ou o Concerta, para controlar a hiperatividade e a falta de atenção. 

No entanto, é necessário questionar se a utilização desses medicamentos é realmente necessária, considerando os possíveis impactos a longo prazo. Em São Paulo, o problema da medicalização infantil também é evidente. Muitos professores e pais, ao enfrentar dificuldades de aprendizagem, buscam soluções rápidas, frequentemente associando essas dificuldades a transtornos que requerem intervenção médica. Isso pode levar a um uso excessivo de medicamentos, o que pode prejudicar uma compreensão mais ampla e holística das reais necessidades das crianças. (RUZ; OKAMOTO; FERRAZZA, 2016, p.703).

E nesses processos de medicalização, controle da judialização da vida, um instrumento é fundamental: laudos médicos, psicológicos, fonoaudiológicos, pedagógicos e etc etc. Instrumento fundamento porque realiza a função de julgamento, condenação e sentença. Fundamental porque desvela o protagonismo dos profissionais, atuando no modo acrítico em quase modo automático, em função de vários fatores, entre os quais devemos destacar a formação tecnicizada, regida pelo e para o mercado. (COLLARES; MOYSÉS, 1992, p.19).

No Paraná, a realidade não é diferente. Nas escolas e consultórios médicos, a pressão por resultados acadêmicos e a conformidade com padrões de comportamento socialmente aceitos frequentemente levam à prescrição de medicamentos. Essa prática, no entanto, pode não ser a mais eficaz, e deve-se considerar alternativas pedagógicas que valorizem a individualidade de cada criança, em vez de apenas tratar sintomas com medicamentos. (LEONARDO & SUZUKI, 2016, p.46).

Em Paranaguá, uma cidade portuária no Paraná, a influência da medicalização também se faz presente. A busca por soluções imediatas e a pressão por bom desempenho acadêmico podem levar a diagnósticos feitos de forma precipitada e ao uso indiscriminado de medicamentos. Promover debates e aumentar a conscientização sobre os impactos dessa prática é essencial para garantir que as crianças sejam tratadas de forma mais abrangente e sensível, considerando suas necessidades individuais. 

Segundo o Censo Escolar/INEP (2018), o município de Paranaguá atendeu no ano de 2018 um total de 10.844 alunos, no ensino fundamental, anos iniciais, sendo 10.569 na Zona Urbana, e, 275 na Zona Rural. No ano de 2019, um total de 10.884 alunos no Ensino Fundamental, Anos Iniciais, sendo 10.609 na Zona Urbana e 275 na Zona Rural de acordo com o Censo Escolar/INEP (2019). E no ano de 2020, um total de 9.977 alunos, no ensino fundamental, Anos Iniciais de acordo com o Censo Escolar/INEP (2020). (OLIVEIRA, 2022, , p.87 apud BRASIL, 2018).

Até 2017, no município de Paranaguá, litoral do Paraná, as avaliações dos alunos encaminhados pelas escolas municipais eram conduzidas pelo setor de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação, SEMEDI. Essa equipe era composta por duas pedagogas com carga horária de 20 horas, uma fonoaudióloga com 30 horas e uma psicóloga com 30 horas, que realizavam tanto as avaliações como a orientação em relação à Educação Especial na Rede Municipal de Ensino. A partir de 2017, com o objetivo de expandir o atendimento à crescente demanda do município, foi iniciado o funcionamento do Centro Municipal de Atendimento e Avaliação Especializado. No entanto, foi somente em 8 de novembro de 2018 que o Centro Municipal de Avaliação Especializada (CMAE) foi formalmente criado, contando com sede própria e uma equipe multiprofissional ampliada. Essa iniciativa foi uma resposta ao crescimento da demanda, à diversidade do público atendido pela Educação Especial e Inclusão, e à necessidade de reduzir a fila de espera para avaliações. (OLIVEIRA, 2022, p.94).

Em todos esses contextos, é fundamental reconhecer que os cuidados com a infância devam ir além da medicalização. É imperativo que se adotem abordagens pedagógicas, ofereçam-se apoios emocionais e se compreendam as particularidades de cada criança, garantindo que a medicalização não se torne a única resposta às dificuldades enfrentadas por elas.

3.  Da autoridade pedagógica e da autoridade médica em questão

O embate em torno da medicalização na infância revela um confronto evidente entre a autoridade pedagógica e a autoridade médica, especialmente no que diz respeito ao encaminhamento de crianças para diagnósticos neurológicos e à utilização de intervenções medicamentosas. Essa disputa surge da discrepância de visões sobre a melhor solução para questões frequentemente identificadas no ambiente escolar. 

Na escola, este processo de biologização geralmente se manifesta colocando como causas do fracasso escolar quaisquer doenças das crianças. Desloca-se o eixo de uma discussão político-pedagógica para causas e soluções pretensamente médicas, portanto inacessíveis à Educação. A isto, temos chamado medicalização do processo ensino-aprendizagem. Recentemente, por uma ampliação da variedade de profissionais de saúde envolvidos com o processo (não mais apenas o médico, mas também o enfermeiro, o psicólogo, o fonoaudiólogo, o psicopedagogo), temos usado a expressão patologização do processo de ensino-aprendizagem. (COLLARES & MOYSÉS, 1992, p.20).

Os docentes, que têm contato diário com os alunos, são geralmente os primeiros a perceber comportamentos ou dificuldades incomuns. No entanto, sua capacidade de discernir sobre o encaminhamento para especialistas da área médica é limitada. Com frequência, ao identificarem indícios de possíveis transtornos, os professores acabam sugerindo ou até mesmo encaminhando as crianças para uma avaliação médica. Existe uma crescente preocupação de que essa abordagem esteja sendo adotada de forma automática, sem uma análise pedagógica mais aprofundada e com um foco excessivo na medicalização como solução. 

O professor em sua função de transmitir conhecimento educacional, tem essa capacidade de observar o aluno durante o processo pedagógico e ao longo da construção diária de conhecimentos. Com conhecimentos sobre Altas Habilidades/Superdotação (AH/SD), o docente pode reconhecer diversos indicadores de diferentes inteligências, graças ao contato direto com os alunos. Portanto, acredita-se que o professor tem uma função significativa, seja preenchendo questionários, realizando atividades com os estudantes, entre outras estratégias (NEGRINI apud PAVÃO, 2023.p.37).

Diante desse contexto, uma questão: o professor pode ou deve interromper o processo de encaminhamento, optando por realizar uma análise mais minuciosa das condições de aprendizagem e das dinâmicas em sala de aula, antes de buscar uma avaliação médica. Muitas vezes, alguns ajustes na metodologia de ensino ou estratégias pedagógicas mais inclusivas podem ser suficientes para atender às necessidades da criança, evitando a necessidade de um encaminhamento médico precoce ou desnecessário. Por outro lado, a autoridade médica se manifesta quando a criança é encaminhada a um especialista. 

O médico, com base em sua formação e experiência, pode diagnosticar condições como o TDAH e, por isso, prescrever medicamentos. No entanto, esse diagnóstico e a subsequente prescrição frequentemente ocorrem sem uma compreensão completa do contexto educacional da criança ou sem considerar alternativas pedagógicas. Além disso, a recomendação de tratamento medicamentoso pode levar à sugestão de ajustes na metodologia de ensino para que a criança se adapte ao tratamento, o que pode ser interpretado como uma interferência na prática pedagógica. 

A indicação de terapia farmacológica para o TDAH pode encontrar resistência por parte dos pais. Uma discussão clara em relação aos benefícios da medicação e a proposta de uma experiência, por um período curto de tempo, como um ou dois meses, com interrupção caso os efeitos não forem satisfatórios, pode auxiliar a reduzir a relutância dos pais (DESIDÉRIO & MIYAZAKI, 2007, p.168).

Esse cenário gera um conflito entre a autonomia do professor para decidir sobre métodos de ensino e a possível influência das recomendações médicas. A medicina argumenta que o tratamento de transtornos como o TDAH é essencial para o bem-estar da criança e para sua capacidade de aprender e se integrar no ambiente escolar. No entanto, uma abordagem exclusivamente médica pode negligenciar as complexidades do processo educativo e a eficácia de intervenções pedagógicas adequadas.

4. Um outro caminho para a criança com TDA é possível

Embora as abordagens medicamentosas e a Terapia Cognitivo-Comportamental sejam amplamente reconhecidas no tratamento do TDAH, buscar alternativas adicionais pode abrir novas oportunidades para o desenvolvimento da criança. Uma estratégia promissora envolve a aplicação de intervenções educacionais e comportamentais adaptadas às necessidades individuais da criança. Esse enfoque visa ajustar o ambiente escolar e familiar para melhor atender às especificidades de cada criança com TDAH. 

Inicialmente, adaptar o ambiente escolar é fundamental. Professores podem utilizar técnicas como a divisão das tarefas em etapas menores e mais gerenciáveis, a utilização de horários visuais e a implementação de rotinas estruturadas para auxiliar a criança a manter o foco e a organização. Além disso, estabelecer sistemas de reforço positivo, como incentivos por comportamentos desejáveis, pode estimular o cumprimento das regras e a participação ativa nas atividades escolares. No ambiente familiar, criar um ambiente previsível e organizado também pode ter um impacto significativo. 

Estabelecer rotinas diárias consistentes e utilizar recursos como listas de afazeres e lembretes visuais pode auxiliar a criança a gerenciar suas atividades e responsabilidades de forma mais eficiente. A comunicação aberta e o apoio emocional dos pais são igualmente cruciais, oferecendo um espaço onde a criança se sinta compreendida e apoiada. Outra abordagem relevante é a participação em atividades extracurriculares que estimulem o desenvolvimento de habilidades sociais e de autocontrole. Práticas esportivas, atividades artísticas e outras opções estruturadas podem proporcionar oportunidades para a criança praticar habilidades de atenção, cooperação e resolução de problemas em um ambiente fora do contexto escolar. Essas estratégias devem ser elaboradas em conjunto com profissionais de saúde, educadores e a família, criando um plano integrado que leve em consideração as necessidades específicas da criança. E para que isso aconteça, é necessário remover as barreiras que impedem o desenvolvimento do aprendizado ao longo do tempo, e preservar apenas os desafios que contribuem para o desenvolvimento da criança. (SEBASTIÁN, 2020, p. 734).

A personalização das intervenções é essencial para atender às particularidades do TDAH e potencializar o desenvolvimento da criança. Com um suporte adequado e adaptado, é viável promover um ambiente mais inclusivo e favorecer o crescimento saudável e equilibrado da criança com TDAH.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste estudo, torna-se evidente a relevância de uma abordagem integrada na educação infantil, sobretudo para crianças que enfrentam dificuldades de atenção e hiperatividade. A criação de um ambiente escolar adaptado, o suporte de especialistas e a participação ativa dos pais são essenciais para promover um desenvolvimento equilibrado e saudável de crianças e adolescentes. Destaca-se, ainda, a importância de estratégias educacionais individualizadas para atender às necessidades particulares de cada aluno. O uso de técnicas pedagógicas que valorizem as diferentes habilidades e inteligências pode ser altamente benéfico para o sucesso acadêmico e social. A teoria das inteligências múltiplas de Gardner (1983), por exemplo, pode oferecer uma base valiosa para a personalização do ensino, propondo uma abordagem que respeita a diversidade cognitiva dos alunos.

Há, no entanto, diversas questões que requerem investigação adicional. Um aspecto relevante é a análise da eficácia das abordagens pedagógicas para crianças com TDAH. Embora existam técnicas consolidadas, como a divisão de atividades em etapas menores e o uso de reforços positivos, é necessário avaliar como essas estratégias funcionam em diferentes contextos e com perfis variados de alunos.

O ambiente familiar também merece atenção, pois exerce grande influência na educação de crianças com TDAH. Pesquisas que explorem a relação entre estrutura familiar, comunicação entre pais e filhos e desempenho escolar podem fornecer informações valiosas para o desenvolvimento de intervenções mais efetivas. A questão da medicalização infantil no contexto do TDAH também é relevante e complexa. A prescrição de medicamentos, como os estimulantes, pode auxiliar na concentração e no comportamento das crianças, favorecendo sua participação nas atividades escolares. No entanto, a decisão pelo uso de medicação deve ser cuidadosa, considerando os possíveis efeitos colaterais e as necessidades individuais de cada aluno, apesar de eficaz em diversos casos, a medicação não deve ser a única abordagem adotada. É fundamental que pais e educadores sejam informados sobre os benefícios e riscos associados ao tratamento medicamentoso para TDAH e que participem ativamente no processo de decisão. A transparência e o diálogo aberto são indispensáveis para reduzir a resistência à terapia farmacológica e para assegurar que as necessidades das crianças sejam atendidas de forma integral.

Vale ressaltar que a medicação, embora útil, não substitui a necessidade de intervenções pedagógicas e psicológicas. A combinação do tratamento farmacológico com estratégias educacionais e terapias comportamentais tende a gerar resultados mais duradouros e abrangentes, proporcionando uma base sólida para o desenvolvimento integral das crianças. À propósito, deixamos para futuras pesquisas o questionário semi-estruturado para um médico, a fim de entender, sob a ótica clínica, o papel pedagógico no tratamento de crianças com TDAH.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, L. J. C. De. Medicalização das infâncias: entre os cuidados e os medicamentos. Psicologia USP, v. 29, n. 3, p. 451–458, set. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-656420180107. Acesso em: 04 ago 2024.

BELTRAME, R. L.; GESSER, M.; SOUZA, S. V. DE .. Diálogos Sobre Medicalização Da Infância E Educação: Uma Revisão De Literatura. Psicologia Em Estudo, v. 24, p. e42566, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.4025/psicolestud.v24i0.42566. Acesso em: 06 ago 2024.

BRZOZOWSKI, F.S. Medicalização dos desvios de comportamento na infância: aspectos positivos e negativos. Psicol. cienc. prof. 33 (1), 2013. https://doi.org/10.1590/S1414-98932013000100016 Acesso em: 08 ago.2024.

CAPONI, S. (2016). Vigiar e medicar: o DSM-5 e os transtornos ubuescos na infância. In S. Caponi, M., Vásquez-Valencia & M. Verdi (Orgs.), Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância (pp. 29-45). São Paulo, SP: LiberArs.

CFP – CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Campanha “Não À Medicalização Da Vida”.A Medicalização Da Vida. Medicalização Da Educação. Buenos Aires, 04 de junho de 2011.Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/Caderno_AF.pdf. Acesso em: 04 ago 2024.

COLLARES, C; MOYSÉS, M.A., Diagnóstico da medicalização do processo ensino-aprendizagem na 1.ª série do 1.º grau no município de Campinas. Em Aberto, Brasília, ano 11, n.º 53, jan-mar. 1992, p.13-28. Disponível em: http://emaberto.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/2142 . Acesso em: 18 ago 2024.

CRUZ, MGA; OKAMOTO, MEU; FERRAZZA, D. DE A.. O caso Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a medicalização da educação: uma análise a partir do relato de pais e professores. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, v. 58, pág. 703–714, jul. 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-57622015.0575. Acesso em: 17 ago 2024.

GARCIA, R.L. Preconceitos no Cotidiano Escolar – Ensino e Medicalização. Educação & Sociedade, v. 59, pág. 405–407, atrás. 1997.Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-73301997000200012. Acesso em: 17 ago 2024.

LEONARDO, NST; SUZUKI, MA. Medicalização dos Problemas de Comportamento na Escola: Perspectivas De Professores. Fractal: Revista de Psicologia, v. 1, pág. 46–54, janeiro. 2016.Disponível em: https://doi.org/10.1590/1984-0292/1161. Acesso em: 17 ago 2024.

MOYSES, M. A. A.; COLLARES, C. A. L., Controle e Medicalização da Infância. Rio de Janeiro ,  v. 1, p. 11-21,2013. Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/pdf/desi/v1/n1a02.pdf. Acesso em: 17 ago 2024.

OLIVEIRA, V.R.V. de., Dislexia do Desenvolvimento: Políticas Públicas De Inclusão e o Trabalho Com Tecnologia Assistiva No Município De Paranaguá – Paraná. Universidade Tuiuti Do Paraná Programa De Pós-Graduação Stricto Sensu Em Educação. Curitiba 2022. Disponível em: https://tede.utp.br/jspui/bitstream/tede/1885/2/DISLEXIA%20DO%20DESENVOLVIMENTO.pdf. Acesso em: 18 ago 2024.

SEABRA, M. A. B., Distúrbios e Transtornos de Aprendizagem: aspectos teóricos, metodológicos e educacionais. Curitiba, PR: Bagai, 2020. Recurso Digital. pag.6 a 109. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/584716/2/Editora%20BAGAI%20-%20Dist%C3%BArbios%20e%20Transtornos%20de%20Aprendizagem.pdf. Acesso em: 05 ago 2024.

VERÍSSIMO, M. D. L. Ó. R.. The Irreducible Needs Of Children For Development: A Frame Of Reference To Health Care*. Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 51, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017017403283. Acesso em: 05 ago 2024.

ANEXOS

Questionário para um médico

  1. Qual é o papel do médico no acompanhamento de crianças com TDAH na escola? 
  2. O médico pode sugerir mudanças na metodologia de ensino para atender às necessidades das crianças com TDAH?
  3. Se sim, como essas sugestões devem ser comunicadas e implementadas?
  4.  Como o médico avalia a eficácia das intervenções pedagógicas no tratamento de TDAH?
  5. Qual é a importância da colaboração entre médicos e professores no tratamento do TDAH, e como deve ser feita de forma eficaz? 
  6. Quais são as práticas recomendadas para garantir a harmonia entre intervenções médicas e pedagógicas, evitando conflitos?
  7. Todo caso de TDAH é medicamentoso? Se sim, por quanto tempo (limite), e se há restrições no uso desses medicamentos?
  8. É possível que ajustes no ambiente escolar possam evitar o uso de medicamentos a crianças com diagnóstico de TDAH?
  9. Poderia nos apontar uma mudança pedagógica que impactou positivamente na vida de um paciente de TDAH em acompanhamento.
  10.  Mais alguma ponderação que considere relevante sobre o tema.

1Graduanda em Pedagogia da Unespar
2Professora de Pedagogia da Unespar