MARIERRÊ: THE RESISTANCE OF A HISTORICAL, CULTURAL AND RELIGIOUS HERITAGE OF THE VILLAGE OF CARAPAJÓ/CAMETÁ-PA.
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ch10202411070824
Valdecy dos Santos Machado1;
Maria de Fátima Silva Ramos2;
Priscila Aragão Guimarães3;
Benedita do Carmo Viana Ferreira4
RESUMO
A presente pesquisa trás reflexões a cerca da manifestação popular/cultural/histórico/folclórica/religiosa conhecida como “MARIERRÊ” da Vila de Carapajó distrito da Cidade de Cametá/PA, demonstrando como os costumes, hábitos e tradições afrodescendentes influenciaram na formação cultural e na criação de manifestações que vem passando de geração em geração a mais de cem anos presente na cultura local. O percurso metodológico segue os caminhos da pesquisa campo de cunho etnográfico, nesse sentido as análises realizadas são do tipo histórico-dialético, no qual evidenciamos a relevância, a influência das manifestações tradicionais afrodescendentes e a valorização/conservação da festividade Marierrê, na Vila de Carapajó. Objetiva-se com a pesquisa analisar como ocorre a manifestação cultural/religiosa: Marierrê, e, de que forma a comunidade da Vila de Carapajó vem resistindo e cultivando esse rito afro-brasileiro perpetuado entre as gerações. Constatou-se que o Marierrê é um patrimônio herdado dos escravos africanos e que perpetua entre as gerações, emergindo de tradições culturais e religiosas, e, evidenciando a influência, afirmação e resistência do povo negro em meio a uma sociedade racista e preconceituosa.
Palavras-Chave: Marierrê. Cultura. Afrodescendente. Nossa Senhora do Rosário. Carapajó.
ABSTRACT
This research brings reflections about the popular/cultural/historical/folkloric/religious manifestation known as “MARIERRÊ” from the village of Carapajó, a district of the city of Cametá/PA, demonstrating how Afro-descendant customs, habits and traditions influenced the cultural formation and creation of manifestations that have been passed down from generation to generation for over a hundred years present in the local culture. The methodological path follows the paths of ethnographic field research, in this sense the analyses carried out are of the historical-dialectical type, in which we highlight the relevance, the influence of traditional Afro-descendant manifestations and the appreciation/conservation of the Marierrê festival, in the village of Carapajó. The objective of the research is to analyze how the cultural/religious manifestation: Marierrê occurs, and how the community of the village of Carapajó has resisted and cultivated this Afro-Brazilian rite perpetuated between generations. It was found that Marierrê is a heritage inherited from African slaves and that it has been perpetuated through generations, emerging from cultural and religious traditions, and evidencing the influence, affirmation and resistance of black people in the midst of a racist and prejudiced society.
Keywords: Marierrê. Culture. Afro-descendant. Our Lady of the Rosary. Carapajó.
1 INTRODUÇÃO
As manifestações religiosas e culturais fazem parte dos hábitos e da vida dos povos mundo a fora. O povo brasileiro é extremamente miscigenado e carrega consigo marcas históricas da influência de diversas etnias, e até os dias atuais vem sendo influenciada com hábitos e costumes de outros povos. No Brasil até hoje se vê inúmeras expressões populares herdadas dos negros, e no Estado do Pará não é diferente, encontramos a Capoeira, o Siriá, o Samba de Cacete, entre outros. Na Vila de Carapajó, distrito da Cidade de Cametá/PA, local onde foi realizada a pesquisa, além dessas manifestações folclóricas já citadas também encontramos outras como: o Boi Brabo, o Boi Manso e a festividade Marierrê tema desta pesquisa.
Nesse sentido, refletir sobre a cultura africana, significa reconhecer que durante a história esse povo teve grande relevância, já que, seu passado é recheado de aspectos que influenciaram e ainda influenciam diretamente em nossa cultura. Sendo assim, entre tantas expressões populares, culturais, históricas e religiosas destacamos a festividade Marierrê, que como outras manifestações também é herança dos negros e sobrevive até hoje na Vila de Carapajó.
Nesta perspectiva, é necessário conhecer e respeitar a cultura desse povo, já que, o resgate de aspectos culturais, históricos, religiosos, educacionais, entre outros, permite compreender a diversidade das relações que se estabeleceram durante o passado. Essas constatações nos direcionam a reflexão de como esse povo contribuiu diretamente para a construção da identidade local, e principalmente seus fatores culturais e religiosos que ainda fazem parte da vida do povo carapajoense.
Assim, inicialmente, este estudo apresenta um breve histórico da Vila de Carapajó, logo após destaca os aspectos gerais da festividade cultural e religiosa conhecida como Marierrê, identificando algumas características que prevalecem até os dias atuais, de maneira que se possa valorizar e manter vida a cultura local, que ao que parece é singular, pois possui particularidades específicas vistas somente no lócus da pesquisa. Por fim, evidencia algumas reflexões conclusivas a respeito das discussões apresentadas.
2 BREVE HISTÓRICO DA VILA DE CARAPAJÓ
Localizada ao nordeste do Estado Pará, na margem direita do Rio Tocantins, a cerca de 13 km, em linha reta, da cidade de Cametá e aproximadamente de 145 km da Capital Belém, a Vila de Carapajó é um dos distritos da cidade de Cametá/PA, e faz limite com os Municípios de Igarapé-Miri e Mocajuba, assim como também com outros distritos pertencentes à Cametá: distrito da Vila de Curuçambaba, Vila de Bom Jardim, Vila de Moiraba, Vila do Carmo, Vila de Areião e outras vilas como: Porto Grande, Maú, Belos Prazeres, etc..
IMAGEM 1: Vila de Carapajó
Fonte: Google Earth
Segundo o “Blog do Ademir Rocha” (2013) a etimologia da palavra Carapajó é a seguinte:
CARAPAJÓ – Segundo distrito mais antigo do município de Cametá. Há duas hipóteses para a significação deste verbete. A primeira é de que seja um metaplasmo de carapó que significa peixe ou enguia elétrica, todavia o peixe-elétrico é designado de poraquê (poraqué) na região amazônica. A outra é de que seria formado pela junção dos vocábulos carapá – planta de casca amarelada e de sabor amargo, usada pelos índios para combater a febre, espécie de quina, mais jó – partícula vocativa que indica chamamento ou então sufixo indicativo de mistura. Entretanto, é preciso acrescentar mais uma, a dos moradores. Segundo eles a palavra adviria da junção de acará – espécie de peixe da família dos ciclídeos mais jó – partícula de chamamento ou de mistura. Desse modo, Capajó seria o chamamento dos acarás. Há de se observar também que esse vocábulo pode ser decomposto tal como Cametá, desta maneira teremos caá+apara+ó , cujos significados são mato, paus e tortos, respectivamente. Assim sendo, Carapajó seria a mata ou o obstáculo com paus tortos que vedam a passagem, ou seja, seriam obstáculos no caminho, esse exame morfo-fonológico é mais plausível, mesmo porque constata-se esse tipo de vegetação à margem do furo Alegre onde se situa a vila, e é abonado pelo “Dicionário de Topônimos Brasileiros de Origem Tupi”.
Segundo Costa e Pinto (2020, p. 296)
A Vila de Carapajó é sede da quinta Circunscrição judiciária município de Cametá e, como se viu no texto da ata de sua titulação, passou ao posto de Vila no dia 25 de dezembro de 1916. Antes, Carapajó era uma faixa de terra subtraída de povos indígenas e “doada”, no alvorecer do século XIX, para o senhor José Justiniano Bitencourt, área equivalente a Sesmarias, cuja extensão tinha início onde hoje está à vila de São Benedito de Moiraba, e com final próximo a atual vila de Curuçambaba, no sentido da maré vazante do rio Tocantins.
Segundo relatos do Sr. Valdinei José Damasceno Ramos (2024), conhecido como Nei Ramos, 66 anos, o lugarejo inicialmente havia sido doado pelo senhor Dr. Gentil Augusto de Moraes Bittencourt, na época, governador do Estado do Pará. O governador cedeu a extensão territorial a seu pai e familiares, o senhor José Justiniano Moraes Bittencourt, onde foi instalada uma fazenda de agricultura, que segundo Cardoso (2010, p. 7), baseava seu cultivo “na cana-de-açúcar, no cacau, na cultura de roças (mandioca, arroz e milho) e, posteriormente, na extração de borracha”.
Devido a grande extensão territorial, precisou-se de trabalhadores, para cultivar e cuidar das plantações na fazenda. Dessa forma, abrigou-se mão-de-obra escrava que vieram da África e de outras localidades do Brasil, com seus costumes, hábitos, crenças, etc. Entre suas manifestações de adoração a seus Deuses e como forma de diversão no engenho da fazendo acabaram criando a expressão cultural e religiosa Marierrê que persiste até os dias atuais na Vila de Carapajó. Atualmente esta festividade ocorre em decorrência da devoção da população local a Nossa Senhora do Rosário.
Segundo Pinheiro (1992, p. 05) os documentos, referentes à extensão territorial, ainda existem e estão de posse de Dona Raimunda, herdeira responsável pela documentação oficial da terra. A mesma comenta que a revelação dos documentos pode ocasionar conflitos entre os moradores da vila, uma vez que podem aparecer vários herdeiros que reivindicariam sua herança, além disso, ela afirma que as terras ainda pertencem a sua família, uma vez que “[…] as doações que foram feitas, não possuem caráter legal, haja vista que eram apenas doações verbais” (PINHEIRO, 1992, p. 05).
Costa e Pinto (2020, p. 296), comentam que
Esta terra foi doada pelo Sr. Gentil Bittencourt aos seus familiares, quando este era governador do Estado do Pará. Tal doação foi feita a Nossa senhora do Carmo (atual padroeira da vila) pertencente à família Bittencourt. Deste modo o documento de doação da terra torna a santa padroeira a legítima donatária das sesmarias. Este documento segundo D. Sinhazinha Cohén, 82 anos (descendentes dos Bittencourt), está guardado no cartório Cohén (em Cametá).
O fato é que com o passar do tempo começaram a haver agrupamentos de pessoas aos arredores da terra. Segundo Pinheiro (1992, p. 06), o crescimento demográfico do território se deu pelo fato de:
Após a morte do senhor Justiniano, seus herdeiros diretos passaram a fazer doações entre as pessoas conhecidas que os procuravam interessadas em fixar residência e trabalhar na lavoura.
Esse foi um processo que veio ocorrendo ao longo dos tempos e que proporcionou a entrada de um grande fluxo de pessoas que passaram formar um vilarejo com um considerável número de habitantes.
Atualmente a Vila de Carapajó se expandiu consideravelmente e desponta como ponto estratégico e de ligação entre a cidade de Cametá e a capital Belém, além de exportar vários produtos agrícolas, também é um forte centro turístico por produzir várias atrações artísticas (músicas, dança, etc.) e por cultivar e preservar algumas manifestações populares que encantam não só povo local, mas as pessoas que vem de fora, e alguns exemplos disso são: o Carnaval (Bloco do Sirí Melado, Escola de Samba Império Xavante, Escola de Samba Quenzinho, etc.), o Samba de Cacete, o Boi Brabo e o boi Manso e principalmente as festividades de cunho religioso como: Nossa Senhora do Carmo (em julho), São Benedito (em outubro), Nossa Senhora do Rosário (em dezembro), onde também é comemorado o Marierrê (24, 25 e 26 de dezembro).
3 MARIERRÊ: ASPECTOS GERAIS
A manifestação religiosa conhecida como Marierrê é uma expressão cultural popular que homenageia a Santa Nossa Senhora do Rosário e ocorre na Vila de Carapajó há mais de cem anos. Essa manifestação se deu a partir da organização dos descentes de escravos.
Segundo Costa e Pinto (2020, p. 297)
O Marierrê, em uma descrição breve e preliminar, por assim dizer, é um ritual religioso com procissões, ladainhas, batuque, cantos e molejos que representam adoração à Virgem do Rosário. No bojo desse movimento vieram sendo incorporados objetos para simbolizar o desejo de ascensão social do homem e da mulher negra (as coroas), a imponência e o poder do ser negro (o cetro), o respeito à religiosidade de seus ancestrais marcada pelas oferendas (a bandeja com flores) e as imagens de santos católicos como sinal de respeito e aceitação da religiosidade alheia; tudo isso é posto dentro de uma ritualística que envolve cortejos de reis negros, entoação de cantos que parecem louvar a santa católica; e toque de instrumentos em ritmos de batucada, como as do maracatu e congadas, ambos afro-brasileiros.
O Sr. Valdinei Ramos (2024), morador da Vila desde criança, diz que:
Marierrê é uma das tradições mais antiga que tem aqui na vila, que foi herdada dos escravos, quando aqui ainda existia uma fazenda. Naquela época, em dezembro, os brancos faziam suas ceias de natal, suas festas. Como os negros não tinham liberdade de sair e se divertir, eles se reunião e se distraiam ao som de batuques, danças e cantorias, hoje conhecido como samba de cacete. Nessa festança toda, eles inventaram de escolher um rei e uma rainha que eram coroados com latas.
Nessa perspectiva, em decorrência do período escravocrata, das penúrias nas senzalas e nos campos de trabalhos, os escravos utilizavam a dança e as músicas típicas para se comunicar e expressar seus sentimentos, angústias, sofrimentos, tristezas, revolta, etc.; de forma que seus senhores e seus capatazes não entendessem aquilo que expressavam por meio das cantigas, das danças, das rodas de capoeira, etc.; essas manifestações em muitas vezes eram de cunho religioso, como forma de adoração a seus deuses (Ogum5, Xangô6, etc.), de agradecimento por estarem vivos, por ter saúde e forças para superar os maus tratos e também como forma de diversão e passatempo, evidenciando de fato o que o Sr. Valdinei Ramos diz em seu comentário, que por estar longe de casa, por serem castigados nas extensas e penosas jornadas de trabalho, como forma de manter suas raízes culturais e religiosas vivas, e também de ter um pouco de diversão acabaram criando a expressão popular/histórica/cultural/religiosa que é o Marierrê que sobrevive até hoje na Vila de Carapajó.
IMAGEM 2: Sr. Valdinei José Damasceno Ramos (2024)
FONTE: Arquivo do autor (2024).
Algumas pessoas da vila (em especial os evangélicos) veem essas manifestações religiosas como ato de adoração a Deuses associando-os à macumbarias e outros atos de evocação a espíritos maliciosos, entretanto a maior parte da população da Vila entende que se trata de um movimento cultural e religioso (católico) que fez e ainda está fazendo parte da construção e/ou reconstrução da cultura da comunidade local e da sociedade brasileira.
Essas expressões culturais são valorizadas, não apenas por serem de origem afrodescendente, mas porque elas influenciam diretamente no processo histórico que originou a miscigenação que hoje existe no Brasil, além de estar sendo utilizada amplamente na educação contribuindo para o combate a discriminação racial, fortalecendo a cultura afro-brasileira, uma vez que retrata a tradição, os costumes e os valores dos povos africanos e brasileiros marcado com muita dor, lutas, lágrimas, mortes, trabalho escravo e discriminação ainda visto na sociedade atual.
Como foi dito anteriormente, Marierrê é uma festividade que ocorre em comemoração a Nossa Senhora do Rosário, desmitificando a visão de críticos que a veem de outra maneira. Nessa linha de raciocínio, é importante registrar como ocorre a festividade Marierrê, onde se vê vários rituais como: as ladainhas7, cantigas, rezas, oferendas e homenagens dos devotos pelas graças alcançadas, a escolha do Rei, da Rainha, do Príncipe e da Princesa que são coroados e seguram o Cedro e a Imagem da Nossa Senhora do Rosário que posteriormente saem em romaria com a Santa pelas ruas e travessas da Vila, entre outras ações que seguem toda uma programação.
3.1 ENREDOS DO MARIERRÊ
A festividade Marierrê é realizada há décadas. Este folguedo ocorre nos dias 24, 25, 26 de Dezembro. A abertura da festividade acontece no dia 24, através de uma ladainha em latim para o menino Jesus Cristo, entoada pelo organizador (a) da festa, que guarda a Santa da Nossa Senhora do Rosário, a Coroa (chamada de Coroa Trindade) e o Cedro, durante o ano todo.
FONTE: Página do Facebook Culturas do Carapajó
Segundo a tradição, a Santa Nossa Senhora do Rosário, a Coroa e o Cedro permanecem durante o ano todo na casa do organizador da festa, que atualmente é a Senhora Marinete Machado Ribeiro, que em uma conversa informal, disse que é responsável desde o ano 2000, e que essa responsabilidade está em sua família há gerações.
IMAGEM 5: D. Marinete M. Ribeiro (herdeira do Marierrê, 2020)
FONTE: documentário: “Marierrê – documentário de reis”. Disponível na página “Divulga Pará” no Facebook
No dia 25 de dezembro, ao anoitecer, os principais elementos da manifestação folclórica como o Rei, a Rainha, o Príncipe e a Princesa, os tocadores, os dançantes8 e os demais devotos, após passar o dia organizando o banquete da festa, que é custeado pela (s) família (s) do Rei e da Rainha, se dirigem até a casa do organizador para buscar a Santa, a Coroa e o Cedro e promover a festividade pelas ruas da Vila de Carapajó. Segundo Pinheiro (p. 10, 1992), na noite do dia 25 “[…] rei e rainha já caracterizados levam em procissão a santa para a casa da rainha, onde realiza-se a ladainha e em seguida dirigem-se à casa do rei para encerarem as comemorações do dia 25”.
IMAGEM 6: REI E RAINHA, PRÍNCIPE E PRINCESA DA FESTIVIDADE MARIERRÊ
FONTE: Página do Facebook Culturas do Carapajó
No documentário “FESTA DO MARIERRÊ CARAPAJÓ CAMETÁ PA”, disponível no Youtube, Benedito Coimbra (seminarista da diocese da Vila de Carapajó-Cametá/PA), comenta que:
a festividade da Nossa Senhora do Rosário, é popularmente conhecida como “Marierrê”. Diz ainda que se trata de uma festa de tradição negra que foi deixada pelos escravos que moravam na fazenda que existia na Vila, e foi passando de geração em geração. Inovou a Nossa Senhora do Rosário, a qual é festejada nos dias 24, 25 e 26 de dezembro. Essa festa tem mais de 200 anos, é uma festa muito antiga e faz parte da Vila […] A festa tem vários personagem: o rei e a rainha, o príncipe e a princesa que serão os futuros reis e rainhas e a rainha do ano anterior que vai junto no cortejo para fazer a entrega do reinado para os novos reis. É uma festa dos pobres, no qual se vê a parte religiosa e também a parte profana, isto é, existe a missa na igreja matriz, o cortejo pela Vila e posteriormente o almoço para todas as pessoas da Vila, e, em seguida o Samba de Cacete tanto na casa do rei como na casa da rainha.
As crianças sentem muita alegria e felicidade em participar do evento. Os mesmos se sentem orgulhosos de participar e representar uma manifestação cultural, religiosa e folclórica histórica que vem perpetuando, sendo valorizada e passada de geração para geração.
A festividade ainda retrata que a coroa da rainha simboliza a coroa de Nossa Senhora do Rosário[…]
As famílias dos futuros Reis e rainhas, e, príncipes e princesas precisam agendar com os organizadores antecipadamente (ao menos um ano antes) para que seus filhos possam participar da festividade.
Ainda segundo Pinheiro (p. 10, 1992),
No dia 26 pela manhã, inicia-se a comemoração com uma procissão percorrendo as ruas da Vila, onde é entoado o hino “BUSCAR MÃE DE DEUS”, seguindo até a igreja para a celebração da missa que é realizada pelo padre da Vila, tendo no altar a presença da família real que deixa seus adereços sobre o altar a serem abençoados para o momento da coroação que acontece no decorrer da missa.
Como percebe-se na imagem anterior e no comentário de Pinheiro (1992), a toda uma programação da festividade, que na verdade é um folguedo histórico, cultural, religioso e folclórico que passa de geração a geração onde Rei, Rainha, Príncipe e Princesa, ornamentados, juntamente com os devotos conduzem a imagem da Nossa Senhora do Rosário pelas ruas da Vila de Carapajó em romaria, onde observa-se vários cânticos específicos para cada momento em homenagem a santa.
Em um momento da missa no dia 26 a Nossa Senhora do Rosário recebe as bênçãos do padre, e posteriormente, diante de toda a comunidade, Rei e Rainha são coroados, e, logo em seguida, também se da à escolha do Rei e da Rainha do ano seguinte. O interessante é que durante a missa o hino de Glória é substituído pelo hino de “Marierrê Arrá”, onde os devotos participam e o entoam com entusiasmo.
Em vários lugares existem os promesseiros, que fazem promessas para serem agraciados com milagres, e na Vila de Carapajó não é diferente, algumas oferendas, contribuições financeiras para custear a festividade e até mesmo Reis e Rainhas são oferecidos para as festividades dos próximos anos pelas graças alcançadas.
Com o encerramento da missa do dia 26, cortejada, a Santa Nossa Senhora do Rosário, volta para a casa da Rainha onde segundo Pinheiro (p. 11, 1992), “[…] é servido a todas as pessoas chocolate com ovo, farinha de tapioca, pipoca, beiju, etc. […]”. Em seguida todos se encaminham para a casa do Rei onde novamente são servidas bebidas, comidas e guloseimas. Um fato curioso é que nas casas do Rei e da Rainha, como forma de diversão e de alegrar o ambiente e também marcando o encerramento da festividade tem-se o tradicional “Samba de Cacete”9, que assim como o Marierrê foi trazido pelos africanos e expressam na letra de suas músicas a tristeza e a dor de ser escravo, que como forma de se divertir, bebiam, dançavam e catavam melancolicamente todo o seu sofrimento.
Essas festas populares se configuraram como tradições locais que se ressignificaram, variando ritos, símbolos e significados específicos de cada festa, tanto em seus componentes estruturais, como em defesa de sua cultura e de seus costumes. Muitas possuem rituais católicos como a missa, a procissão, a bênção, a novena e a reza, outras homenageiam somente as santidades, sempre de forma festiva, como os Congados, os Reisados do Rosário e a Folia de reis (Paula, p. 169, 2021).
Nas letras das ladainhas e até mesmo das outras cantigas, evidencia-se a presença do cotidiano do escravo, da adoração a Nossa Senhora do Rosário e caracteriza o que está sendo feito em cada momento dos rituais.
Outra característica também marcante é que durante a festividade, mas especificamente nas procissões e na festa de encerramento, tem-se a presença de danças e cantigas tanto referente à Marierrê, como cantigas de samba de cacete e banguê, acompanhados da banda que utilizam alguns instrumentos, peculiares da região, para acompanhar as ladainhas e as cantigas como, por exemplo: o banjo, a cuíca, o pandeiro, tamborim, chocalho, reco-reco, entre outros.
Como percebemos existem a inserção de outros instrumentos musicais atuais como o violão, a clarineta, trompete e outros; no sentido de alegrar e animar inda mais a festividade, entretanto percebe-se uma certa perda da originalidade dessa manifestação, o que é preocupante uma vez que não se pode perder de vista o legado deixado pelos antepassados. No entanto, não há como negar que essa e outras manifestações como o Boi Brabo, por exemplo, além de ser um grande potencial histórico e cultural, também é um potencial turístico da Vila de Carapajó, uma vez que reúne o povo local e pessoas que vem de fora, até mesmo do Estado do Pará, para prestigiar as festividades, em especial a do folguedo Marierrê.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É inegável que o povo africano tenha deixado um grande legado e que tenha contribuído decisivamente para a formação de alguns costumes e hábitos do povo brasileiro, algumas características os diferenciam dos demais povos por serem marcantes, e por isso, por onde passam deixam seu legado cultural, histórico, religioso, experiências de vida, costumes, etc.
A festividade conhecida como Marierrê, é um legado herdado do povo africano, e ainda é fortemente presente na Vila de Carapajó e está enraizada na vida dessa comunidade.
Durante a pesquisa, foi constatado que apesar da importância que o Marierrê exerce para o povo local, observa-se que a mesma vem perdendo sua originalidade, pois vem se ressignificando a cada ano, como por exemplo, com a inserção de novos instrumentos e ritmos musicais nos festejos após o encerramento da missa, etc. Entretanto, percebe-se também que essa manifestação não perde sua essência, respeitando e valorizando a influência da cultura afro-descendente na construção de nossa sociedade miscigenada, em oposição à manutenção do status quo e de uma sociedade racista e preconceituosa. Além disso, também evidencia a religiosidade aflorada na vida da comunidade carapajoense, influenciando decisivamente na formação as futuras gerações.
Como se percebe no percurso histórico desta manifestação cultural a dignidade humana, por vezes, é desconsiderada. O abandono e a falta de valorização para com o ser humano são, lamentavelmente, perceptíveis. Diante de tais fatos, o fortalecimento cultural, bem como a prática religiosa é, muitas vezes, a forma que esse povo tem de se afirmar como sujeitos históricos. A cultura e a religião, nessa perspectiva, são fundamentais à existência humana.
Numa perspectiva mais ampla é possível perceber que o estudo das manifestações religiosas contribui na compreensão de outros aspectos, tais como economia, política, hierarquia e relações sociais em distintas sociedades e realidades históricas específicas.
Assim, as práticas religiosas estão imbricadas pelas questões culturais, que são únicas, específicas e inerentes a cada população, a cada região, respeitando cada traço cultural na construção da humanidade do ser através de suas expressões e vivências.
Nesse sentido, a vivência da religiosidade pode contribuir para a construção de uma comunidade mais justa e contextualizada nessa vila, fortalecendo a cultura, as tradições e a busca por práticas sociais de interesse comum dessa região.
Apesar das necessidades ocasionadas pelas questões sociais, é possível perceber que a religiosidade se caracteriza como uma fonte de esperança, mesmo sob as mazelas sociais. Nas práticas religiosas os sujeitos esquecem, pelo menos por um tempo, das dificuldades que encontram e vivem. Essa vivência se dá na sociedade, nas tradições, desde a família até o ambiente comunitário das comunidades interioranas. A cultura, nesse sentido, é também fortalecida.
Portanto, a pluralidade de expressões religiosas forma os saberes e tradições do povo carapajoense que utilizam a religião não somente como um instrumento de crenças e fé, mas também, como um instrumento de resistência contra a perpetuação de um sistema colonialista que subalterniza as populações mais vulneráveis em diferentes âmbitos da sociedade.
5Ogum – substantivo masculino. Orixá ou divindade afro-brasileira a quem é atribuído o poder sobre o ferro, a comunicação entre os homens e o ferro; representado por um guerreiro, sendo amplamente cultuado por sua belicosidade. DICIO – Dicionário OnLine de Português, 2024).
6Xangô – substantivo masculino. [Brasil] Religião. Orixá iorubá que, no culto afro-brasileiro, representa os raios e os trovões. [Brasil] Pernambuco. Paraíba. Alagoas. Culto afro-brasileiro, caracterizado por uma modificação do padrão litúrgico nagô, adaptado e praticado por vários grupos étnicos do nordeste. O local em que se realiza esse culto; terreiro. DICIO – Dicionário OnLine de Português, 2024).
7Ladainha – substantivo feminino [Religião] Forma de oração dialogada em que os fiéis se ocupam das respostas, uma vez que o sacerdote recita uma frase e os fiéis recitam a seguinte, e assim por diante. [Figurado] Falação interminável, aborrecida, feita por quem insiste em repetir suas ideias; lenga-lenga, cantilena, arenga. DICIO – Dicionário OnLine de Português, 2024).
8Dançantes – “[…] podem ser todas as pessoas que encontram-se presentes no momento da festividade, contagiados por uma motivação que os envolve”. (PINHEIRO, p. 10, 1992).
9O Samba de Cacete nasce nas senzalas e quilombos da região do Baixo Tocantins, influenciado pelos diversos rituais das diversas etnias africanas, em meio às dores e sofrimentos durante a escravidão. É uma celebração dos remanescentes dos quilombos, um “ritual musical, cênico e poético, de andamento rítmico genuinamente melancólico, saudosista e eufórico” (Correa, 2006. p.23 Apud Paula, p. 36, 2021).
REFERÊNCIAS
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Blog do Ademir rocha. 2013. Disponível em: <http://ademirhelenorocha.blogspot.com/search?q=marierr%C3%AA>. Acesso em: 03 de Jun. de 2014
CARDOSO, Alanna Souto. A Trajetória de uma família de elite na Amazônia Colonial – Os Morais Bittencourt da freguesia de Cametá, PA (1750-1790). Trabalho apresentado no IV Congresso da Associação Latino Americana de População, ALAP, realizado em Havana, Cuba de 16 a 19 de Novembro de 2010. Disponível em: <https://files.alapop.org/congreso4/files/pdf/alap_2010_final321.pdf>. Acesso em: 24 out 2024.
FACEBOOK. DIVULGA PARÁ. Documentário: “Marierrê – documentário de reis”. Prod. Bruno Veiga, postado em: 06 de janeiro de 2020. Disponível em: <https://www.facebook.com/divulpa/videos/498679854094072/?locale=ps_AF>. Acesso em: 24 out 2024.
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PAULA, Paulo de Tarso Correa de. No remanso das águas do Tentém, navega um banguê! Banguê Remansinho de Tentém: um estudo decolonial de saberes e processos educativos de r-existências afroindígenas da/na Amazônia / Paulo de Tarso Correa de Paula; orientador João Colares da Mota Neto. – 2021. Disponível em: <https://propesp.uepa.br/ppged/wp-content/uploads/2022/02/Paulo_de_Tarso_Correa_de_Paula2.pdf>. Acesso em: 24 out 2024.
PINHEIRO, Georgete Tavares. Marierrê, um Ritual Folclórico. TCC do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História, UFPA, Camatá/PA, 1992.
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1Mestre em Ciências da Educação (FICS-2024). E-mail: valdecy_1983@yahoo.com.br;
2Mestra em Ciências da Educação (FICS-2024). E-mail: fatirramos@hotmail.com;
3Mestra em Ciências da Educação (FICS-2024). E-mail: profpriscilaaragao91@gmail.com;
4Mestra em Ciências da Educação (FICS-2024). E-mail: beneditacarmo.vianaferreira@yahoo.com.br