LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS A PERSPECTIVA DE UM DOCENTE SURDO E UMA OUVINTE: A LIBRAS E SEU LUGAR NO CURRÍCULO

REGISTRO DOI:10.69849/revistaft/th102502281725


Bárbara Ferreira
Deise Aparecida Vargas
Josiane Fraga Gomes
Leticia Irene Padilha Meurer


Resumo:  Desde abril de 2002, a Libras é reconhecida como a língua da Comunidade Surda no Brasil graças a uma mobilização vigorosa da Comunidade Surda. Apesar de algumas pessoas afirmarem que é a segunda língua, ela não é considerada a segunda língua na realidade, a língua oficial do Brasil é reconhecida como a “língua das comunidades surdas brasileiras (Brasil, 2002)”, e essa identificação ocorreu através da Lei 10436/02. Depois de reconhecer a língua, o Decreto 5626/05 introduziu a ortografia. A sua instrução é obrigatória para os cursos de graduação. Podemos afirmar que o primeiro contato dos estudantes de licenciatura com a realidade da trajetória dos surdos na educação e a complexidade da Libras é crucial para assegurar o desenvolvimento da Comunidade e, sobretudo, para garantir a preservação da Língua de Sinais não seja vulgarizada, simplificada ou atrelada ao Português. Neste estudo, apresentamos um pouco da história vivência como docentes em universidades federais, sendo um surdo e uma ouvinte. Adicionalmente, apresentamos alguns dados obtidos em um projeto de capacitação com docentes surdos de uma escola bilíngue para surdos. Com base nos discursos apresentados por esses participantes, examinamos os dados seguindo os princípios da PCCol – Pesquisa em Comunicação, Magalhães (2006) destaca a crítica de colaboração como uma abordagem teórico-metodológica que promove a colaboração. Colaboração dos participantes do estudo, bem como uma construção conjunta de escola e universidade. Descreve-se de um panorama que evidencia nosso compromisso como docente/pesquisadora, que buscam a noção de que ensinar e pesquisar são inseparáveis aprender é um percurso de mão dupla.

Palavras-chave: Libras; Currículo; Ensino; Formação de Professores.

INTRODUÇÃO

A Língua Brasileira de Sinais – Libras é reconhecida como língua da Comunidade Surda no Brasil desde abril de 2002, resultado de uma mobilização intensa da comunidade surda, apoiada pela senadora Benedita da Silva que, em 1996, apresentou o projeto de lei no plenário do Senado Federal, conforme os estudos de Brito (2013).

Apesar de algumas pessoas afirmarem que a Libras é incompreensível, outras afirmam que ela é compreendida. A segunda língua oficial do Brasil, na realidade, é reconhecida como a “língua das comunidades surdas brasileiras”, graças à lei resultante do Projeto de Lei da Senadora. A Lei 10436/02, em seu artigo 1º, declara: “A Língua Brasileira de Sinais – Libras e outros instrumentos de expressão a ela relacionados são reconhecidos como meios legais de comunicação e expressão.”

Esta Lei estabelece que os surdos são legalmente bilíngues, ou seja, ao mesmo tempo que reconhece a Libras como a língua nativa da comunidade Surda, também declara que, morando no Brasil, precisam ter acesso à língua predominante, neste caso, o Português. Apesar de estabelecer que a língua portuguesa só pode ser aprendida na forma escrita, já que a oralidade é inacessível para os surdos. Isso é corroborado pelo único parágrafo do Artigo 4º, que declara que “[…] A Libras – Língua Brasileira de Sinais não pode substituir a forma escrita do português.

Esta ação proporciona liberdade para os surdos. Os sinalizadores têm o direito de usar a Língua Brasileira de Sinais (Libras) em todos os ambientes e buscam superar os anos de oralismo, conforme descrito nos trabalhos de Skliar (1996), Sá (1999), Moura (2000) e Vieira (2014), entre outros estudiosos do campo.

Para viabilizar a Lei 10436/02, foi promulgado em 2005 o Decreto 5626, que a regulamenta e elucida as ações necessárias para que a Libras obtenha destaque, status e reconhecimento em todos os segmentos da sociedade, especialmente nos ligados à educação e à proteção dos direitos.

Em 2020, o Decreto 5626/05 completou 15 anos e podemos dizer que houve muitos progressos desde a sua promulgação, como a inclusão da Libras como matéria obrigatória nos programas de formação de professores. Este é um dos tópicos que pretendemos discutir neste artigo. O Decreto estabelece que:

Art. 3º A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1º Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério.
§ 2º A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publi­cação deste Decreto (Brasil, 2005).

Podemos afirmar que o primeiro contato dos estudantes de licenciatura com a realidade da luta dos surdos por educação, bem como a complexidade da Libras, é crucial para assegurar o progresso da Comunidade e, principalmente, para evitar que a Língua de Sinais seja banalizada, simplificada e/ou subjugada à Língua Portuguesa.

O Decreto também aborda outros aspectos relevantes, como assegurar a educação de surdos com foco na língua materna da comunidade, estabelecer espaços como salas de aula bilíngues e assegurar a presença de docentes fluentes em Libras na Educação Infantil e nos primeiros anos do Ensino Fundamental (Fund. I), além da existência de Tradutores e Intérpretes de Libras/LP nos últimos anos do Ensino Fundamental (Fund. II) e na Educação Básica.

Portanto, a partir deste documento, temos a Libras como primeira língua (L1) e o Português como segunda língua (L2), ambos na forma escrita, assegurados. Contudo, é crucial fazer algumas considerações sobre como tudo isso acaba sendo implementado no ambiente escolar. Portanto, nosso objetivo neste artigo é compartilhar a experiência de dois professores da matéria em universidades federais, um surdo e uma professora que escuta. Adicionalmente, examinaremos algumas informações obtidas através de diálogos com professores surdos de uma escola bilíngue, encarregados da mesma matéria.

Com base nos discursos apresentados por esses atores, faremos uma análise fundamentada nos princípios da PCCol (Pesquisa Crítica de Colaboração). Segundo Magalhães (2006), essa abordagem metodológica promove a co-construção dos participantes do estudo, além de promover uma construção conjunta da escola e da universidade. Esses processos formativos buscam, nos discursos, as contradições e as negociações que nos possibilitam reconsiderar ou reformular conceitos. Portanto, essa perspectiva evidencia o compromisso dos autores como professores-pesquisadores que veem o trabalho na escola como crucial para a criação de novos conhecimentos e a reflexão sobre os já consolidados.

As discussões de Vygotsky (1924-1934/1997) são a base teórica da PCCol, particularmente seus conceitos de zona de desenvolvimento proximal (intervenção, contradição e mediação). Segundo Hollosi (2019, p.93):

A formação crítico-colaborativa de educadores, embasada na PCCol propõe uma definição que se aproxima da perspectiva sócio-histórica-cultural que assume (a linguagem de argumentação), que volta para os processos de construção e não nos resultados sendo os participantes coprodutores num processo de formação que é crítico- reflexivo.

A INSTRUÇÃO DE LIBRAS NO NÍVEL SUPERIOR: A VIVÊNCIA DO DOCENTE SURDO

A minha experiência no ensino de Libras, tanto como minha língua materna quanto como língua estrangeira para ouvintes, começou em 2014, na universidade federal onde estudo, durante o curso de Licenciatura em Letras. No momento, a matéria de Libras faz parte do currículo com uma carga horária de 60 horas, na forma presencial, ocupando uma parte da carga horária do quinto período deste curso. É disponibilizada no primeiro semestre de cada ano. Adicionalmente, os cursos de Bacharelado em História, Ciências Sociais e Filosofia são oferecidos no segundo semestre de cada ano, ocupando o oitavo período das respectivas grades curriculares.

A estrutura da matéria aborda aspectos mais abrangentes da Cultura e Identidade Surda, além da comunicação fundamental em Língua de Sinais. O curso é prejudicado pela escassa quantidade de horas disponibilizadas, o que dificulta o aprendizado efetivo do idioma. Isso vai de encontro à necessidade de capacitação de docentes para a inclusão escolar de alunos, o público-alvo da educação especial inclusiva, especificamente os surdos.

Nas aulas, discutimos aspectos da legislação, seus princípios e, de maneira bastante resumida, as práticas com os diversos públicos. A matéria instiga o interesse dos alunos pelo tema, fornecendo-lhes informações inéditas e apresentando questões e realidades que eles ainda não tinham considerado. Muitos desconheciam a existência de alunos com deficiência ou surdez em suas salas de aula. Os tópicos teóricos são abordados através do Moodle (uma ferramenta disponível para ensino à distância) e de aulas presenciais, sendo aplicados em paralelo às experiências e circunstâncias do dia a dia.

A disciplina não se limita a ilustrar os caminhos já percorridos na educação de surdos, mas também desempenha um papel propositivo ao reunir princípios que espelham a maneira surda de adquirir conhecimento. Mais do que fornece métodos e fórmulas prontas para ensinar e o que atrapalha o aprendizado, é crucial que a produção de textos por surdos ganhe cada vez mais espaço. Se um conceito leva a outro, um texto escrito por um surdo pode influenciar textos de muitos outros surdos. Portanto, a ênfase principal das aulas é nas práticas linguísticas.

Contudo, além do reduzido número de horas, existe também a questão do elevado número de estudantes inscritos na matéria a cada semestre. Em geral, as turmas têm entre 40 e 60 estudantes, o que prejudica o aprendizado e a qualidade das aulas. Se levarmos em conta que, para se comunicar em Libras, os interlocutores precisam se enxergar, enxergando inclusive o espaço entre a cabeça e o meio do tronco um do outro (pelo menos), o ideal seria que as turmas tivessem no máximo 20 estudantes.

O professor, ao ministrar as aulas, utiliza frequentemente o projetor multimídia, já que os estudantes necessitam do aspecto visual para compreender a linguagem de sinais. Adicionalmente, a estratégia de perguntas e respostas é intensificada, permitindo que o grupo interaja e partilhe informações. Adicionalmente, realizamos atividades práticas em sala de aula, permitindo que cada aluno continue seu aprendizado em casa. Caso haja alguma dúvida, também aplicamos técnicas de soletração.

É crucial examinarmos como a criação de textos em linguagem de sinais envolve uma dinâmica de interação entre corpo, espaço e movimento. Assim, ao contrário da dinâmica presente nas línguas orais, as línguas de sinais interagem com o cênico como um componente de atribuição de significados. Portanto, o ambiente ou espaço físico não é apenas um componente ou pormenor, mas um fator crucial na criação de sentidos.

A VIVÊNCIA DA DOCENTE QUE OUVINTE

Ao contrário do colega surdo, a minha experiência no ensino de Libras é ensinar a minha língua materna para ouvintes também como L2. E o que me coloca nessa posição é o processo de formação, tanto na Língua de Sinais quanto na Língua Portuguesa, já que é necessário um conhecimento aprofundado em ambas as línguas para executar essa tarefa.

Na universidade onde trabalho, uma instituição federal, todos os professores devem possuir doutorado. Por isso, o nosso concurso permaneceu aberto por vários anos, até que pudéssemos preencher essa posição.

Conforme relatado pelo meu colega surdo, a matéria na universidade tende a ser mais voltada para a informação sobre o público, a história e suas lutas e vitórias, do que para o aprendizado da língua em si, dado o curto período de tempo disponível. Quando entrei, tinha 24 horas (dois créditos), agora temos 48 horas (4 créditos) e mais duas disciplinas de 48 horas, uma focada em teoria e outra em prática.

Os alunos demonstram grande interesse e, desde o começo, presumem que aprenderão o idioma, já que, para a maioria, Libras é uma forma de sinalizar o Português. Logo que compreendem a complexidade dessa língua, eles nos apoiam na batalha pela promoção e compromisso com a mesma, passando a ver o surdo como um indivíduo com diferenças linguísticas.

RESULTADOS

Com base nessas realidades, realizamos uma comparação com a coleta de materiais de professores surdos de uma escola bilingue acerca da Libras, além de um questionário aplicado aos nossos estudantes de graduação acerca das expectativas de aprendizado da língua.

Com as docentes que lecionam a matéria para jovens surdos do Ensino Fundamental II e Médio, conseguimos identificar um certo equívoco em relação ao ensino da língua. Uma delas disse-nos:

Durante o planejamento, é essencial discutir com os professores de outras matérias o que eles pretendem abordar, pois assim conseguimos fornecer as orientações necessárias aos estudantes. Trabalhamos com os termos de acordo com o ano escolar e as matérias que eles cursam (Professora responsável pelo ensino de Libras para os estudantes de Ensino Médio).

Esta declaração da professora, que é surda, levanta muitas questões polêmicas. Embora ela afirme ter uma identidade surda e ser fluente na língua, ela desconsidera que a língua deve ser ensinada em sua totalidade e no contexto; ela não é apenas um instrumento para aprender outras matérias. Possivelmente devido às suas experiências no aprendizado do Português, ele utiliza as mesmas táticas que foram utilizadas com ela durante o período escolar.

Por outro lado, a professora surda, apesar de compartilhar concepções semelhantes, na atividade conduzida, mostrou-se mais receptiva à compreensão de que a língua precisaria ser trabalhada em sua totalidade. Ademais, apesar de inicialmente ter dito a mesma coisa que Paula, ao apresentar o plano de curso, já expressou uma reflexão sobre a formação:

Ao refletir sobre o ensino da Libras, pensei que era necessário instruir os estudantes sobre como se comportar, que existia uma Libras mais formal e outra mais informal. Eles tinham que compreender que, ao apresentar um trabalho, era necessário observar o tipo de linguagem que estavam empregando. Nunca tinha feito isso antes; somente após o nosso diálogo percebi que precisava ensinar isso, algo que eu nunca havia aprendido. (Professora responsável pelo ensino de Libras aos alunos do Ensino Fundamental II).

Em um primeiro momento, os alunos da graduação acreditavam, inicialmente, que aprenderiam todos os sinais para, assim, substituir as palavras do idioma português. Portanto, acreditam que poderiam adquirir fluência na comunicação com os surdos após algumas poucas horas de contato com a língua.

CONCLUSÃO

O estudo mais extenso em Libras, incluído a seguir, mostra que, apesar de estarmos de acordo de que é essencial o ensino de Libras para os estudantes de graduação, especialmente os licenciados, e apesar disso já estar estabelecido na lei, ainda não se tem clareza sobre a carga horária ou os conteúdos a serem abordados. Isso, por um lado, pode ser interpretado como liberdade de criação para a instituição, mas, por outro, pode complicar a compreensão das necessidades específicas da comunidade.

Ainda prevalece a concepção do “mestre”, isto é, o entendimento do falante nativo como inatamente apto a ensinar o idioma. Assim, muitos ainda não possuem uma licença para ser professores, mas devido à surdez, assumem posições de ensino, sem perceber que não possuem os conhecimentos fundamentais para o ensino do idioma, já que o usuário da língua não é por natureza um professor.

Finalmente, é importante ressaltar que, no Brasil, ainda não existe um currículo oficial para o ensino de Libras. Assim, é necessário compartilhar as experiências para podermos criar propostas e programas mais apropriados para o ensino dessa língua.

Também é relevante salientar que a Libras está conquistando espaço nas duas universidades mencionadas e, atualmente, há estudantes surdos tanto na graduação quanto na pós-graduação. Isso levanta uma outra questão, a acessibilidade, que pode ser debatida em outra ocasião.

REFERÊNCIAS

Brasil. (2005). Decreto 5626, de 22 de setembro de 2005. Regulamenta a Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais e o art. 18 da Lei 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União. Brasília, 2005. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm. Acessado em: 12 de novembro de 2024

Brasil. (2002). Lei 10.436 de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais. Diário Oficial da União. Brasília, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm. Acessado em 15 de novembro de 2024

Brito, F. B. (2013). O movimento social surdo e a campanha pela oficialização da língua brasileira de sinais. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-03122013-133156/publico/FABIO_BEZERRA_DE_BRITO.pdf. Acessado em 30 de outubro de 2024

Hollosi, M. (2019). Professor Surdo: Desafios na construção de uma prática bilíngue. Tese (Doutorado em ciências: Educação e Saúde na Infância e adolescência) –Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP. Disponível em: https://repositorio.unifesp.br/server/api/core/bitstreams/31962280-5253-4963-a53a-faea2f80d94a/content. Acessado em 05 de novembro de 2024

Magalhães, M. C. C. (2006a). A etnografia colaborativa: pesquisa e formação profissional. In: Fidalgo, S. S., & Shimoura, A. S. (Orgs.). Pesquisa crítica de colaboração: um percurso na formação docente. São Paulo: Ductor. p. 56-63   

Moura, M. C. (2000). O Surdo, Caminhos para uma Nova Identidade. Rio de Janeiro: Editora Revinter.

Sá, N. L. R. (1999). Educação de surdos: a caminho do bilinguismo. Niterói: EdUFF

Skliar, C. (org). (1996). A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação.

Vieira, C. R. (2014). Bilinguismo e inclusão – Problematizando a questão – Curitiba: Appris.


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