LIMITES À AUTONOMIA DA VONTADE NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

LIMITS TO THE AUTONOMY OF WILL IN CONSUMER RELATIONS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202408302002


Laura Schneider von Mühlen1


RESUMO

O presente artigo visa analisar, a partir de um resgate histórico pós-absolutismo, as consequências da aplicação ilimitada pelos particulares do princípio da autonomia da vontade nas relações de mercado. Como metodologia, opta-se pelo método dedutivo, de pesquisa bibliografia e de legislação. Inicialmente, faz-se necessária a contextualização da visão tradicional do Ocidente do princípio da autonomia da vontade e o resultado de sua aplicação plena no direito privado puro; na sequência, a transmutação do direito privado puro para o direito privado social é objeto de análise; por fim, aborda-se a regulação constitucional e infraconstitucional das relações de consumo no ordenamento jurídico brasileiro como forma de imposição de limites ao mau uso da autonomia da vontade.

Palavras-chave: autonomia da vontade; relações de consumo; direito do consumidor; atuação estatal.

ABSTRACT

This article aims to analyze, through a historical review following the era of absolutism, the consequences of the unrestricted application of the principle of autonomy of will by private parties in market relations. The chosen methodology includes the deductive method, as well as a review of relevant literature and legislation. Initially, it is necessary to contextualize the traditional Western view of the principle of autonomy of will and the results of its full application in pure private law; subsequently, the transformation from pure private law to social private law is examined; finally, the constitutional and infra-constitutional regulation of consumer relations within the Brazilian legal system is addressed as a way of imposing limits on the misuse of the autonomy of will.

Keywords: autonomy of will; consumer relations; consumer law; state intervention.

Sumário: Introdução. 1. A visão tradicional do princípio da autonomia da vontade como resposta aos marcos do absolutismo. 2. O advento da sociedade de consumo no ocidente: do direito privado puro ao direito privado social. 3. A constitucionalização da proteção e defesa do consumidor no Brasil. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

A sociedade pós-moderna tem se tornado cada vez mais consciente da importância da proteção e da defesa do consumidor, notadamente porque o direito do consumidor é um dos ramos jurídicos mais próximos do indivíduo comum e, possivelmente, é aquele que o impacta de maneira mais direta. Embora despercebidamente, os cidadãos integram de forma diária as relações de consumo, que vão desde a compra de alimentos e vestuário até o uso de serviços como telefonia, transporte e entretenimento.

Essas relações envolvendo a troca de dinheiro por bens e serviço são, na maioria das vezes, caracterizadas por um desequilíbrio econômico e/ou informal entre consumidores e fornecedores. Tal fato pode resultar em cláusulas e práticas abusivas de consumo, as quais na atualidade são vedadas em nosso ordenamento jurídico.

Todavia, a proteção à parte mais fraca da relação jurídica foi por anos negligenciada, com base no princípio da autonomia da vontade e no dever de estrito cumprimento daquilo que foi pactuado entre os particulares, com a intervenção estatal mínima.  Assim, o retorno à origem da proteção ao consumidor é fundamental para a compreensão dos problemas decorrentes da aplicação imoderada da autonomia da vontade nas relações de mercado/consumo.

Para fins didáticos, inicialmente, busca-se contextualizar a visão tradicional do Ocidente acerca do princípio da vontade como resposta ao abuso do Poder Público praticado no período do absolutismo. Em um segundo momento, considerando as mudanças proporcionadas pela Revolução Industrial, faz-se uma síntese do surgimento da sociedade de consumo, da exigência de contratos ágeis de adesão e da consequente transição do direito privado puro em direito privado social. Por fim, realiza-se uma análise acerca da influência do cenário jurídico-social do Ocidente na constitucionalização da proteção e defesa do consumidor no Brasil, além de apontar a importância da atuação estatal para a equalização das relações de consumo entre partes factualmente desiguais.

O método utilizado neste estudo será o dedutivo, dado que se partirá de conceitos amplos para se chegar à análise particularizada da proteção e defesa do consumidor a partir da limitação do mau uso da autonomia da vontade como meio de equilibrar a relação jurídica entre fornecedor e consumidor. Com o fito de alcançar os objetivos almejados, será utilizada pesquisa essencialmente bibliográfica e de legislação.

1 A VISÃO TRADICIONAL DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE COMO RESPOSTA AOS MARCOS DO ABSOLUTISMO

No século XVIII, com o declínio do absolutismo e com a influência do movimento intelectual e filosófico iluminista, o passado monárquico francês, construído sobre a tradição e sobre os costumes, passou a ser fortemente contestado. As Luzes rejeitavam a tradição e a velha sociedade de ordens (clero, nobreza e Terceiro Estado2). “Deseja-se, ao contrário, uma sociedade baseada na legalidade civil entre todos os homens, repousando sobre um direito comum”.3

Nesse sentido, as concepções liberais, emergentes sobretudo da Revolução Francesa, alcançaram o seu apogeu no início do século XIX, período norteado pela autonomia da vontade4, princípio ao qual se associa a expressão latina pacta sunt servanda ou, em tradução livre, “quem pactua, obriga-se”. Por conseguinte, “o ideal de segurança jurídica buscado por aquela sociedade oitocentista fundamentava-se na livre vontade dos indivíduos”5.

A fundada aversão aos abusos praticados pelo Poder Público, decorrente do absolutismo, resultou na imoderação dos poderes privados, pautados no liberalismo econômico e no individualismo jurídico. Pode-se assim dizer que a falta de interferência estatal nas relações privadas permitiu a ocorrência de práticas abusivas nas relações comerciais. Isso porque predominava a vontade do contraente mais forte sobre o contraente mais fraco, sob a justificativa da igualdade entre os cidadãos e plena liberdade. Reinava nesse período, portanto, o livre-arbítrio dos particulares.

Sob tal perspectiva, destaca-se que

o fundamento filosófico do princípio jurídico da autonomia da vontade é, sem dúvida, a noção de livre-arbítrio erigida na modernidade, sobretudo, por Kant, e que se encontra, em alguma medida, no cerne da própria ideia de direito, quando afirma: “o direito é o conjunto das condições pelas quais o arbítrio de cada um pode harmonizar-se com o arbítrio dos demais, segundo uma lei universal de liberdade6.

O célebre filósofo alemão Immanuel Kant (1724 – 1804), autor de um dos livros mais importantes e influentes da filosofia moderna, Crítica da Razão Pura, viveu no Século das Luzes. Seu entendimento da Razão como instrumento regulador das ações humanas e como faculdade basilar para a construção de máximas universais dialogava diretamente com a sociedade oitocentista, que, como já dito, buscava a legalidade civil respaldada em um direito livre e comum a todos.

Para Kant, “a lei moral nada mais exprime do que a autonomia da razão pura prática, isto é, da liberdade e esta é mesmo a condição formal de todas as máximas, sob a qual unicamente elas podem harmonizar-se com a lei prática suprema”7.

Todavia, o princípio da autonomia da vontade, aliado às noções modernas de livre-arbítrio e de presunção de igualdade entre as pessoas, estabeleceu, à época, uma mera igualdade formal, que desconsiderava possíveis desequilíbrios econômicos e/ou informacionais entre as partes.

Durante o primado liberal, a igualdade, na prática, não se materializou. Negligenciou-se a denominada igualdade aristotélica, a qual propõe “tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na exata medida das suas desigualdades”, em detrimento da autonomia da vontade e da não intervenção estatal nas relações entre os particulares (vendedor/comprador).

No contexto jurídico do início do século XIX, a obrigação contratual derivava exclusivamente da vontade das partes, cabendo à lei garantir apenas a execução dos acordos comerciais, sem que o Estado interferisse diretamente nas relações entre os particulares. A propósito, essa quase completa ausência de ingerência estatal fomentou o abuso do poder privado.

Os grandes empresários e comerciantes valeram-se do princípio da autonomia da vontade para impor ao cidadão comum contratações que lhes beneficiavam desproporcionalmente, uma vez que tinham maior conhecimento de mercado e maior poder econômico. Ainda que reconhecido eventual abuso, imperava a sujeição dos indivíduos menos favorecidos, dada sua necessidade e a ausência de proteção jurídica que proporcionasse adequado equilíbrio contratual.

Dessa forma, o abuso de poder, antes exercido pelo Poder Público, passou a ser praticado pelos particulares. Diante das disparidades econômicas e informacionais entre as partes integrantes da relação jurídica, sobreveio a intemperança em relação ao uso do direito privado e do princípio da autonomia da vontade, tendo como uma de suas consequências a ocorrência de cláusulas e práticas abusivas de mercado8.

2 O ADVENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO NO OCIDENTE: do direito privado puro ao direito privado social

Passada a segunda metade do século XIX, a visão ocidental sobre a autonomia da vontade precisou ser ajustada às mudanças derivadas da expansão industrial e mercantil daquele período. “O ponto de partida, então, seria a ideia de que a revolução do consumo e do comércio ocorreu logo antes da Revolução Industrial e foi um ingrediente da modernidade e da modernização do Ocidente”9.

Nessa perspectiva, a ampliação da produtividade laboral e dos lucros à classe burguesa, por meio da utilização e do aprimoramento de máquinas no decorrer da Revolução Industrial, levou ao progressivo aumento das relações contratuais, ocasionando a contratação em grande escala.

Como consequência,

a massificação na produção e distribuição de bens deu origem a um novo direito: o direito do consumidor, ramo da ciência jurídica voltado para a correção das desigualdades entre a classe dos consumidores, que é a grande parte da população, e a dos fornecedores, composta pelos industriais e comerciantes10.

O surgimento do direito do consumidor implicou, pois, o retorno da atuação estatal nas relações privadas, razão pela qual o direito privado puro se transmutou em direito privado social. Dessa vez, contudo, buscou-se uma ingerência moderada do Poder Público nas relações de consumo.

Diferentemente do Estado despótico dominante séculos atrás, requereu-se um Estado equalizador de negócios jurídicos formalizados entre partes desiguais, ente a figurar como limitador da autonomia da vontade, quando ela for utilizada de maneira lesiva.

Além disso, o aumento exponencial da sociedade de consumo, em que há relações massificadas entre fornecedores e consumidores, exigiu fosse eleito um instrumento contratual ágil: o contrato de adesão. No entanto,

operando em um palco de liberdade contratual plena, o instituto mencionado deflagrava o exercício absoluto de autonomia da vontade da classe fornecedora em detrimento da classe consumidora, uma vez que esta somente possuía a prerrogativa de aderir, mas não de discutir o contrato, revelando também sua vontade11.

Ampliado o consumo de bens e produtos, formalizados inúmeros contratos massificados e constatada a falta de igualdade material nas relações consumeristas, descredibilizaram-se gradualmente os preceitos do liberalismo até então vigente. “Cabia agora à lei proteger a vontade criadora das partes e os efeitos pretendidos por elas quando da celebração do negócio jurídico”12.

Por conseguinte, o contrato deveria atender à função social do direito privado, ou seja, “o bem jurídico deveria ostentar, doravante, uma função que respeitasse os interesses da comunidade; deveria apresentar uma função social”13. Nessa lógica, cláusulas e práticas abusivas de consumo passaram a ser objeto de intervenção do Estado.  “Assim, o panorama jurídico-constitucional do ocidente começava a descobrir a chamada constituição social”14. Daí a influência europeia no ordenamento jurídico brasileiro para a constitucionalização da proteção e defesa do consumidor.

3 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR NO BRASIL

“Rompendo com os postulados individualistas e liberais do direito privado moderno, o surgimento das leis consumeristas […] representa a atualização do direito ocidental, na busca de maior isonomia fática entre fornecedores e consumidores”15. No sistema jurídico brasileiro, entretanto, é possível serem consideradas recentes as normas de proteção ao consumidor.

Influenciado pelo cenário jurídico-ocidental do final do século XX, o Brasil estabeleceu na Constituição Federal de 1988 a defesa do consumidor no artigo 5º, inciso XXXII, como direito fundamental, e no artigo 170, inciso V, como princípio da ordem econômica. “Da mesma forma, consta na Constituição mandamento ao legislador para que fizesse, em 120 dias contados da data de sua promulgação, um Código de Proteção e Defesa do Consumidor”16. Em 11 de setembro de 1990, com certo atraso, promulgou-se o Código de Defesa do Consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor (CDC), a seu turno, preconiza que “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” (artigo 2º do CDC), enquanto “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços” (artigo 3º do CDC).

Em outras palavras, as partes que figuram as relações de consumo — fornecedor e consumidor — se encontram devidamente descritas em lei infraconstitucional, a qual está, e deve estar, consoante a Constituição. Além do mais, estão resguardados os direitos básicos dos consumidores (artigo 6º do CDC) e a vedação a práticas abusivas de consumo (artigo 39 do CDC).

Isso significa dizer que, caso ultrapassados os limites da autonomia da vontade, quando da formalização de um contrato de consumo, deve-se visar à preservação da adequada equalização entre as partes, sob pena de lesão a qualquer um dos contraentes.

Pode-se listar, a título de exemplo de extrapolação da autonomia da vontade: a pactuação de juros remuneratórios abusivos pelas instituições financeiras17; a hipótese de venda casada de produtos ou serviços; as cláusulas de exclusão da responsabilidade dos fornecedores ou de renúncia a direitos básicos dos consumidores; situação de superendividamento do consumidor18, etc.

Afinal, a proteção e defesa do consumidor é, acima de tudo, norma infra e constitucionalizada, que suscita a revisão do negócio jurídico quando o equilíbrio contratual necessita ser restabelecido. Assim dizendo:

70. Quando se desce do geral ao particular, para analisar mais de perto o problema da lesão, encontra-se explicação para as atitudes discordantes dos diversos Códigos em relação do instituto.

No terreno moral e na órbita da justiça comutativa, nada existe de mais simples: se um contrato exprime o aproveitamento de uma das partes sobre a outra, ele é condenável, e não deve prevalecer, porque contraria a regra de que a lei deve ter em vista o bem comum, e não pode tolerar que um indivíduo se avantaje na percepção de ganho, em contraste com o empobrecimento do outro, a que se liga pelas cláusulas ajustadas.

Todo contrato tem como pressuposto duas vontades que se querem vincular, e todo contrato é previsão.

Essa última palavra logo evoca uma alternativa: na execução de qualquer ajuste, bem pode acontecer que a desconformidade do ganho se prenda ao momento de sua formação, como venha a resultar de eventos futuros, que, alterando fundamentalmente as condições das partes, proporcionem a uma delas maior lucro e levem à ruína a outra. A execução de tal contrato imporá a um dos contratantes lucro desproporcionado com o seu resultado para o outro, de franco prejuízo ou de arrasamento completo19.

Por conseguinte, é indiscutível que o contrato é um acordo bilateral, o qual gera direitos e deveres para ambas as partes envolvidas e tem força vinculante entre elas. O negócio jurídico, portanto, não pode ser modificado unilateralmente por uma das partes. Se isso fosse permitido, significaria que qualquer uma delas poderia se desvincular do pacto a seu bel-prazer.

Em contrapartida, é essencial manter o equilíbrio adequado entre as partes, garantido pelas próprias normas, que asseguram que o negócio jurídico realizado seja efetivado em todos os seus aspectos: tanto na atribuição de direitos, quanto na imposição de responsabilidades.

Por isso, a aplicação das normas consumeristas é fundamental para garantir maior proteção ao consumidor e promover relações de consumo mais justas e equilibradas, cumprindo destacar que

[…] os direitos do consumidor não excluem outras disposições que assegurem os mesmos direitos ou outros correlatos em legislações especiais ou gerais. Por intermédio da técnica do diálogo de fontes, acrescem ao nível de proteção do consumidor as normas que prevejam um maior nível de proteção desses direitos, ou de detalhamento dessas possibilidades na legislação extravagante do CDC20.

Logo, a incidência da Constituição Federal e do Código de Defesa do Consumidor nas relações de consumo acarretam a ampliação de direitos e a complementação — não exclusão — de normas jurídicas pertencentes a ramos jurídicos distintos. Nesse prisma, o diálogo de fontes é “um método da nova teoria geral do direito muito útil e pode ser usada na aplicação de todos os ramos do direito […] como instrumento útil ao aplicador da lei no tempo, em face do pluralismo pós-moderno de fontes, que não parece diminuir no século XXI”21.

A aplicação conjunta e coerente das normas em situações concretas vem se mostrado cada vez mais importante para a prevenção de conflitos normativos e para o fortalecimento do princípio da boa-fé objetiva. Como resultado, tem-se a maior promoção da justiça, a realização da igualdade material e, sobretudo, a proteção efetiva do consumidor.

Em suma, a atuação do Estado na regulação das relações de consumo não é sinônimo de despotismo — como foi outrora —, e sim de garantia da proteção dos direitos dos consumidores, de modo a equilibrar negócios jurídicos desigualmente pactuados e limitar o mau uso da autonomia da vontade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do resgate histórico pós-absolutismo realizado, verificou-se o problema dos extremos, quais sejam, o abuso do Poder Público, praticado anteriormente no regime absolutista, e a utilização ilimitada dos poderes privados, sob o viés liberal pautado no princípio da autonomia da vontade. Ambas as situações ocasionaram no Ocidente a opressão da parte mais fraca da relação contratual pela parte mais forte, uma vez que aquele que detém maior poder econômico, informacional e decisivo se beneficiava às expensas dos compradores mais vulneráveis.

Além do reconhecimento da problemática envolvendo o pleno uso da autonomia da vontade, ficou evidente a insustentabilidade do liberalismo econômico e do individualismo jurídico, em razão da expansão industrial e mercantil, que alterou a visão acerca da autonomia da vontade.

Inferiu-se que a crescente produtividade dos maquinários, a contratação em massa, os contratos de adesão e o aumento exponencial da sociedade de consumo exigiu mudanças jurídica-sociais especificamente após a segunda metade do século XIX. Em tal período, o surgimento do direito do consumidor mostrou-se inevitável. Houve, então, a transmutação do direito privado puro para o direito privado social, no qual o Estado passa a exercer função estabilizadora.

Ainda, deduziu-se que o Brasil, influenciado pelo ordenamento jurídico ocidental da época, estabeleceu a constitucionalização da proteção e defesa do consumidor. Além disso, vislumbrou-se, logo após, a promulgação do Código de Defesa do Consumidor.

Interpretou-se, também, a importância do diálogo entre as normas infra e constitucionais com outras fontes de direito, notadamente porque ampliam a proteção efetiva do consumidor, desde que aplicadas de maneira coerente nas situações concretas. Concluiu-se, por fim, que a atuação estatal é, sim, importante para limitar o mau uso da autonomia da vontade e assegurar a adequada tutela jurisdicional nas relações de consumo.


2Quanto à figura do Terceiro Estado, questiona criticamente Sieyès (1789): “1° Qu’est-ce que le Tiers état ? — TOUT. 2° Qu’a-t-il été jusqu’à présent dans l’ordre politique ? — RIEN. 3° Que demande-t-il ? — À ÊTRE QUELQUE CHOSE”. Em tradução livre: 1° O que é o Terceiro Estado? Tudo. 2° O que ele tem sido até o presente momento na ordem política? Nada. 3° O que ele exige? Tornar-se alguma coisa.

3DA COSTA, Thales Morais et. al. Introdução ao direito francês. Curitiba: Juruá, 2009, p.70.

4Explica Miragem (2021, p. 86): “distingam-se, contudo, autonomia privada e autonomia da vontade. Autonomia privada entende-se como a capacidade ou esfera de atuação individual reconhecida pelo direito para que as pessoas autorregulem parcela de seus interesses de acordo com sua vontade, em espaço de liberdade delimitado pelo ordenamento jurídico. […] A autonomia privada só se justifica dentro do direito, ou pressupondo a existência do direito como modo de disciplina da vida social, uma vez que é por ele reconhecida e delimitada quanto a sua existência e extensão. Autonomia da vontade é o princípio que orienta o exercício de liberdade, faculdades, poderes, direitos e deveres, de modo que cada pessoa possa constituir, modificar ou extinguir relações jurídicas, submetendo-se a seus efeitos. Por seu intermédio, reconhece-se a capacidade humana para constituir obrigações a partir de comportamentos voluntários, mediante declaração expressa ou não da vontade, e dar causa ao vínculo jurídico que daí resulte”.

5SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 49.

6MIRAGEM, Bruno. Direito Civil – Direito das Obrigações. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021, p. 86. E-book. ISBN 9788530994259. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530994259/. Acesso em: 29 ago. 2024.

7KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Grupo Almedina, 2008, p. 54. E-book. ISBN 9789724422244. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9789724422244/. Acesso em: 29 ago. 2024.

8Nesse ponte, utiliza-se propositalmente a expressão “mercado”, porquanto a ideia de consumo como hoje conhecemos é posterior ao contexto histórico abordado nesta primeira parte do artigo. 

9SILVEIRA, Guaracy Carlos da; LESSA, Bruno de S.; CONSTANTE, Fernanda Lery P.; et al. Antropologia do Consumo. Porto Alegre: Grupo A, 2021, p. 36. E-book. ISBN 9786556902210. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786556902210/. Acesso em: 28 ago. 2024.

10SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 59.

11SCHMITT, Cristiano Heineck. Cláusulas abusivas nas relações de consumo. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 60.

12Ibidem, p. 58.

13DA GAMA, Guilherme Calmon Nogueira; CIDAD, Felipe Germano Cacicedo. Função Social no Direito Privado e Constituição. R. Dir. Proc. Geral, Rio de Janeiro (61), 2006, p. 154. Disponível em: <https://pge.rj.gov.br/comum/code/MostrarArquivo.php?C=MTM5NQ%2C%2C>. Acesso em: 28 ago. 2024.

14Ibidem, p. 155.

15SOARES, Ricardo Maurício Freire. A nova interpretação do Código brasileiro de Defesa do Consumidor. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, n.p.

16 MIRAGEM, Bruno. Direito Bancário. 4. ed. São Paulo: Thomson Reutersl, 2023, p. 99.

17Veja edição da Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça, que assim dispõe: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.

18Sobre o tema, destaca Marques (2022, p. 37): “Reforçando a boa-fé na concessão responsável do crédito ao consumo e criando um sistema novo de conciliação em bloco das dívidas dos consumidores, que preserva o mínimo existencial, em junho de 2021 foi aprovada a Lei 14.181,2021, que atualiza o Código de Defesa do Consumidor-CDC”.

19PEREIRA, Caio Mário da Silva. Lesão nos Contratos.  5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 108/109.

20MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 189.

21MARQUES, Claudia Lima (coord.). Diálogo das fontes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 21. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5104368/mod_resource/content/1/10%20aula%20-%20Direito%20e%20fontes%20do%20direito%20em%20esp%C3%A9cie.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2024.

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1Acadêmica de Direito na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul