LIMITAÇÕES DE GÊNERO DO DIREITO À CIDADE: EVIDÊNCIAS DE VIOLAÇÃO À CIDADANIA DA POPULAÇÃO LGBTQIAP+

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10835043


Ilay Nogueira Ellery Viana[1]
Liz Costa de Santana[2]


RESUMO

A cidade pulsa, se expressa, realiza um movimento diário e acontece. Pensá-la para além do concreto, blocos e asfalto e enxergar toda a diversidade de pessoas que nela habitam e transitam, seus valores, códigos morais, desejos, possibilidades e oportunidades reconhecendo que esse espaço se apresenta interditado para determinados grupos de pessoas por conta da sua identidade de gênero, sexualidade, raça e classe é um desafio democrático. Nesse contexto o presente artigo propõe o estudo das evidências de violação do direito à cidade para comunidades formada por lésbicas, gays, bissexuais, transgênero, queer, intersexo, assexuais, pansexuais e demais identidades dissidentes. Para fundamentar a análise foi realizada uma revisão bibliográfica dos principais referenciais teóricos que abordam os conceitos de direito à cidade buscando relacionar seus fundamentos com os dados sobre violência publicados em 2021 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Grupo Gay da Bahia cujos resultados apontaram para a insustentável violência urbana direcionada aos que ousam desafiar o cistema heterossexual, propondo reflexões sobre como a pluralidade de uma cidade é fortalecida na adoção da diversidade e a necessidade urgente de inserção na agenda política de Estado de medidas que pautem o enfrentamento efetivo da violência destinada a essa população para a consecução da cidade como um espaço verdadeiramente democrático e inclusivo.

ABSTRACT

The city pulsates, expresses itself, makes a daily movement, and happens. Thinking beyond concrete, blocks and asphalt and seeing all the diversity of people who live and move in it, their values, moral codes, desires, possibilities and opportunities, recognizing that this space is forbidden to certain groups of people because of their gender identity, sexuality, race and class is a democratic challenge. In this context, the present article proposes to study the evidence of violation of the right to the city for communities formed by lesbian, gay, bisexual, transgender, queer, intersex, asexual, pansexual, and other dissident identities. To ground the analysis, a bibliographic review of the main theoretical references that address the concepts of right to the city was carried out, seeking to relate its fundamentals to the data on violence published in 2021 by the Brazilian Forum for Public Safety and by the Grupo Gay da Bahia, whose results pointed to the unsustainable urban violence directed at those who dare to challenge the heterosexual system, proposing reflections on how the plurality of a city is strengthened in the adoption of diversity and the urgent need for inclusion on the political agenda of the State of measures that guide the effective confrontation of violence aimed at this population for the achievement of the city as a truly democratic and inclusive space.

Palavraschave: Direito à cidade; LGBTQIAP+; violência. 

INTRODUÇÃO

O debate sobre direito à cidade é indissociável da pauta de opressões e da construção de uma sociedade verdadeiramente democrática e participativa. Quando lançado um olhar sobre a circulação e permanência segura de pessoas LGBTQIAP+ o direito a cidade se apresenta como enorme desafio, isso porque as lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queer, intersexos, assexuais, pansexuais e demais identidades dissidentes vivenciam múltiplas formas de discriminações, negações de direitos básicos e criminalizações, além de limitações de ir, vir e permanecer nos espaços públicos e privados.

Alvarenga e Melo (2018), no tocante ao reconhecimento dos diversos direitos humanos, destacam o direito ao desenvolvimento em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, para com ele contribuir e dele desfrutar, permitindo que todos os demais Direitos Humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.

Zeifert (2019) pontua que a execução de políticas públicas precisa dar conta das mais variadas necessidades de uma sociedade. É tarefa dos Estados, principalmente nas áreas sociais, fazer investimentos que possibilitem o acesso de todos os direitos relativos às necessidades humanas, aliada à atuação da sociedade civil. 

Nesse contexto, o presente trabalho se propõe a um estudo das evidências de violação do direito a cidade sofrida por pessoas LGBTQIAP+ a partir da análise do acesso à vida urbana segura no intuito de contribuir com os estudos acerca do sentimento de pertencimento das pessoas LGBTQIAP+ aos espaço urbano.

 O trabalho foi dividido em três partes. Na primeira são apresentados os recentes dados de violências monitoradas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Grupo Gay da Bahia. Na segunda sessão, de caráter contextual, são trazidas reflexões sobre o direito à cidade e a exclusão da população LGBTQIAP+, no terceiro e ultima sessão se apresentam as reflexões sobre as fronteiras entre a identificação de gênero e o exercício limitado da cidadania no espaço urbano.

2 CIDADE INTERDITA: A VIOLÊNCIA DIRECIONADA À POPULAÇÃO LGBTQIAP+ NO ESPAÇO URBANO.

Não recomendado à sociedade é a realidade cotidiana da população LGBTQIAP+, corpos dissidentes que desafiam o CIStema[3] heteronormativo. As sociedades ocidentais modernas hierarquizam os sujeitos a partir do cumprimento de suas determinações de gênero e prática sexual, assim que pessoas cisgêneros, heterossexuais, brancas sem deficiência que casam e procriam figuram no topo da hierarquia e são recompensados com o reconhecimento de saúde mental, respeitabilidade, legalidade, mobilidade social e física, apoio institucional e benefícios materiais e a  medida que se vai descendo a escala identidade de gênero e práticas sexuais categorias do sistema da cisheterossexualidade compulsória, os indivíduos que os praticam se veem sujeitos a presunção de doença mental, falta de idoneidade, tendência a criminalidade, restrição de mobilidade social e física, perda de apoio institucional, sanções econômicas e processos penais. (RUBIN, 2017)

A partir desse o presente trabalho buscou analisar os dados mais recentes de dois importantes trabalhos realizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Grupo Gay da Bahia (GGB) fundamentais para o entendimento do cenário de violência provocado pela homofobia.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, baseado em informações fornecidas pelas secretarias de segurança pública estaduais, pelas polícias civis, militares e federal, entre outras fontes oficiais da Segurança Pública, disponibilizado em 15/07/2021 pelo FBSP, trouxe uma análise do registro de crimes contra a população LGBTQIAP+ por tipo, considerando os estados da federação nos anos de 2019 e 2020.

Conforme o relatório, 97 pessoas LGBTQIAP+ foram assassinadas no Brasil em 2019 e 121 pessoas em 2020. Na Bahia, em 2020 foram registrados 20 homicídios, 162 vítimas de lesão corporal dolosa e 14 vítimas de estupro, em 2021 foram 23 homicídios e 151 vítimas de lesão corporal dolosa e 10 vítimas de estupro.

Os registros apresentados pelo Grupo Gay da Bahia, que realiza o levantamento de dados desde 1990, apontaram para 329 pessoas LGBTQIAP+ assassinadas no Brasil em 2019 seguido 237 vítimas em 2020, neste mesmo ano na Bahia foram 24 pessoas assassinadas (GASTALDI, et al 2020).

Gráfico 1- Assassinatos de pessoas LGBTQIAP+ no Brasil 2019 e 2020.

                                Fonte: Elaboração própria, 2021.

A divergência dos dados apresentados pelo Fórum de Segurança Pública e a análise do GGB direcionam para uma baixa qualidade dos registros oficiais, tendo em vista que dos 26 estados e o Distrito Federal, 15 não disponibilizaram os índices de agressão, homicídio e estupro ou divulgaram parcialmente. 

Essa situação compromete sobremaneira a análise adequada da violência direcionada à esta população, a fragilidade quantitativa corrobora a resistência ao reconhecimento da legitimidade das diversas identidades de gênero pelos agentes públicos, motivo pelo qual os trabalhos realizados pela sociedade civil a exemplo das pesquisas realizadas pelas Universidades e movimentos sociais, como o GGB se destacam como fonte importante de discussão e orientação sobre a adequação do indicadores das políticas públicas, efetivação de direitos e proteção da população LGBTQIAP+.

Quanto a redução do número de mortes ocorridas em 2020 em relação ao ano anterior o GGB pondera que não existem motivos reais e factíveis para se comemorar, tendo em vista que não se pode afirmar que a redução no número de mortes motivadas pela LGBTQIAPfobia se deu pelo incentivo do Estado na promoção de políticas públicas de inclusão e proteção desse segmento, podendo ser ocasionada por quatro fatores: o primeiro uma oscilação numérica imponderável; o segundo pela enorme subnotificação identificada durante as buscas, pesquisas e registros realizados e o terceiro: o desmonte – a partir de 2018 – dos investimentos em políticas públicas, campanhas de incentivo à denúncia e proteção às vítimas. (GASTALDI, et al 2020).

Quando se trata da vida das pessoas transexuais e travestis os números indicam uma situação de vulnerabilidade ainda mais acentuada. Os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais apontam para o número de 124 pessoas transsexuais e travestis assassinadas em 2019 e 175 pessoas em 2020 (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021). A Bahia é o terceiro estado com mais assassinatos de pessoas transgênero durante o ano de 2020, sendo que a expectativa de vida de uma pessoa transgênero é de 35 anos (BENEVIDES,2020).

Os assassinatos de pessoas transgênero continuam aumentando o que indica a necessidade urgente de ações do Estado que busquem a inclusão na agenda institucional para a criação de uma política nacional de enfretamento a violência de gênero.

A sustentação do discurso heteronormativo, de economias de armário, como exposto por Carvalho e Macedo Jr (2017) apresenta como resultado imediato a invisibilidade de segmentos já opacos, como a população transexual e as travestis. A cidade para o LGBTQIAP+ dissocia o conforto do pertencimento da segurança, e força o processo de “guetização” para tentar assegurar um pouco mais de garantias de melhor viver. 

Essa afirmação se corrobora com a verificação do local da morte, relatório identificou que 60,82% dos casos ocorreram em espaços públicos como praças, ruas, vias, vielas, terrenos abandonados, entre outros espaços, seguido de 23,50% na residência da vítima e, por fim, 15,66% em espaços privados como motéis, casas e comércios de terceiros, apenas 20 das pessoas assassinadas não tiveram identificação do local (GASTALDI, et al 2020).

Assim que toda essa negativa de direitos, vista principalmente na sacralização dos espaços públicos por meio do discurso de “lugar de respeito” – constrói uma cidade interdita: uma cidade que nem todos podem acessar. (CARVALHO E MACEDO JR, 2017)

Tomando como base a análise espacial das regiões brasileiras, o Nordeste ocupa o primeiro lugar em número de mortes, seguido do Sudeste, Norte e Sul e o Centro Oeste na última colocação. Nos últimos anos, Nordeste e Norte se revezam nessa sangrenta precedência. O risco de um LGBTQIAP+ ser assassinado no Nordeste é quase três vezes maior do que no Sul (GASTALDI, et al 2020).

Dentre as cidades brasileiras, Fortaleza foi a capital mais homotransfóbica no ano de 2019: 20 LGBTQIAP+ mortos, o dobro de São Paulo (10), que é cinco vezes mais populosa. Os índices de criminalidade em Natal são igualmente preocupantes, pois teve o mesmo número de mortes de Salvador (5) que possui dois milhões a mais de habitantes. Pior ainda é a situação de alguns municípios interioranos que tiveram a mesma incidência de crimes letais de outras sete capitais mais populosas: em Alagoas, Rio Largo e São José da Laje e em São Paulo, São Bernardo do Campo. (GASTALDI, et al 2020).

Alagoas desponta como o estado mais violento do Nordeste e do Brasil, acumulando 4,8 mortes para cada um milhão de habitantes, seguido por Roraima no Norte, com 4,4; no Centro Oeste, Mato Grosso, com 1,97; Minas Gerais no Sudeste, com 0,96 e no Sul, o líder dos assassinatos foi Santa Catarina com 0,8 mortes. O risco de uma LGBTQIAP+ ser assassinada em Alagoas é 6 vezes maior do que em Santa Catarina (GASTALDI, et al 2020).

Importante destacar também, que os dados aqui colacionados se referem às mortes provocadas por assassinatos, mas a violência promovida pela sociedade em geral vai da esfera privada – espancamentos, expulsão do lar, cárceres privados, à esfera pública – humilhações, piadas, exclusão e assédios morais e sexuais.

Essas pessoas tiveram suas vidas interrompidas pelo simples fato de circularem nos espaços públicos expressando sua orientação sexual ou identidade gênero, exercendo um direito pessoal e inalienável, repensar o direito a cidade de forma que assegure a existência segura de todas as pessoas que nela habitam ou provisoriamente transitam deve ser uma preocupação de um Estado verdadeiramente democrático.

3 DIREITO À CIDADE E EXCLUSÃO DA POPULAÇÃO LGBTQIAP+ 

A expressão “direito à cidade” surgiu em 1968 com a publicação do livro de Henri Lefebvre, O Direito à Cidade, com o intuito de contemplar a reivindicação dos movimentos sociais quanto às liberdades civis e o respeito aos direitos humanos.

Abruptamente pode se entender a cidade em sua concretude, porém nas últimas décadas, tem sido crescente o entendimento de que a questão integra também a cidadania, no dizer de Milton Santos (2013, p.83) “deve começar por definições abstratas, cabíveis em qualquer tempo e lugar, mas para ser válida deve poder ser reclamada ”.

Os Direitos Humanos vêm em seguida como suporte básico a ser respeitado no âmbito urbano, na medida em que as lutas sociais se tornam aguerridas, buscando cidades mais justas, democráticas e sustentáveis. O ideário da reforma urbana tem demonstrado limites nos contextos de pautas identitárias, e as contradições entre o dever ser e a realidade vivenciada pelos sujeitos têm evidenciado a violação de direitos, e o aprisionamento dos sonhos de expressão da própria identidade, como exemplo, o que vem atravessando os segmentos LGBTQIP+.   

Historicamente as cidades foram se formando com a necessidade de proteção humana e para o desenvolvimento das forças produtivas, e consequentemente houve a constituição de forças políticas das classes sociais. Na formação proposta, o espaço seria para todos os indivíduos, mas a realidade tem se mostrado inversa, pois grande parte da população encontrase submetida a violações de direitos e violências.

Lefebvre (2001, p. 107) no que diz respeito à cidade, lança um encorajamento quando diz que o objeto da ciência não está determinado: o passado, o presente o possível não se separa. É um objeto virtual que o pensamento estuda e que exige novas démarches. Essas novas diligências estimulam o pensar em novas alternativas e desafiam o entendimento da estruturação social pós-moderna, que Harvey classifica como: 

“dominada pela ficção, pelo imaterial, pelo capital fictício, pelas imagens, pela efemeridade, pelo acaso e pela flexibilidade em técnicas de produção, mercados de trabalho e nichos de consumo. Preocupação com o ser, com o carisma, com a ontologia, o neoconservadorismo.” (HARVEY, 1992, p.305)

No que diz respeito a constituição do habitat, do coletivo, do social, traz à tona a reflexão urbanística que propõe o estabelecimento ou a reconstituição de unidades sociais originais, particularizadas e centralizadas, “cujas ligações e tensões reestabeleceriam uma unidade urbana dotada de uma ordem interna complexa, não sem estrutura, mas com uma estrutura flexível” (LEFEBVRE, 1991, p. 112).

Essa visão de flexibilidade, adaptação e entendimento da constante construção da urbe, de forma tecnicista se apresenta como proposto por Bauman (1999, p.305) em uma tentativa de homogeneizar o espaço urbano, torná-lo lógico, funcional ou legível redundando na desintegração das redes protetoras tecidas de afeto e na experiência fisicamente devastadora do abandono e da solidão.

Há que se apostar, portanto na vertente do humano, pelo humano e para o humano, e não como um simples direito de visita, mas um direito à vida urbana, transformada, renovada. Torna-se fundamental com isso, mitigar a capacidade da cidade de fornecer soluções para os problemas urbanos, analisando suas múltiplas funções e o sentimento de pertencimento dos que ali habitam (LEFREBRE, 2001, p 139).

Lefebvre (2001) inspira a criação de uma estratégia urbana contra-hegemônica, a ser embandeirada por classes e grupos capazes de iniciativas revolucionárias permanentes por acreditar que há um coletivo construindo e formatando os efeitos sociais na cidade, e que “o individual não morre, se afirma”, surgindo direitos das idades e dos sexos, direitos das condições, direito à instrução e à educação, direito ao trabalho, à cultura, ao repouso, à saúde, à habitação, e entre esses direitos, o Direito à Cidade.

Entretanto, as áreas urbanas são tendentes ao conflito, divididas, sectarizadas, com espaços que consistem progressivamente em fragmentos fortificados, que “descobre que é lacunar” (LEFEBVRE, 2001, p. 115), que existem buracos, às vezes abismos, mas que são também os lugares do possível na luta diária pela sobrevivência, que ameaçam a sustentação dos ideais de identidade urbana, e cidadania e pertencimento. 

“O respeito ao indivíduo é a consagração da cidadania, pela qual uma lista de princípios gerais e abstratos se impõe como um corpo de direitos concretos individualizados. A cidadania é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância.” (Milton Santos, 2013, p.82).

As lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, representam fortemente os desafios do Direito à Cidade, pois ao sair da esfera privada para tomar as ruas e avenidas para participar da vida na cidade, vivenciam múltiplas formas de discriminações, negações de direitos básicos e criminalizações, além de limitações de ir e vir e permanecer nos lugares, que como sinaliza Bauman (1999) “estar proibido de mover-se é um símbolo poderosíssimo de impotência, de incapacidade e dor”, evidenciando também que a cidade não pode ser acessada por todos e todas. 

É uma violência sofrida diariamente de forma sutil, de forma corriqueira através de micropoderes constituídos (como a religião e a família), e de forma explícita, com espancamentos, assassinatos, hostilizações, menosprezos, exclusões e humilhações. A preocupação com a segurança é sobrecarregada de sentidos “para além de sua capacidade em função dos tributários da insegurança e incerteza psicológica, eleva-se ainda acima de todos os medos articulados, lançando sombra ainda mais acentuada sobre todas as outras razões de ansiedade” (BAUMAN, 1999, p.113).

A cidade, portanto, se constitui num palco para violências contra as minorias que são subjugadas na estrutura do poder, que para Foucault (1979, p.248) “é um feixe aberto, mais ou menos coordenado (e sem dúvida mal coordenado) de relações” que são desiguais e relativamente estabilizadas, e que por não acomodarem além do binarismo, e por serem reprodutoras de mecanismos sociais, mitigam condutas sociais apropriadas ou não a seus ambientes. Ianni (2001, p.59) chega a sugerir que a questão social adquire, simultaneamente, aspectos característicos da questão urbana, colocando, portanto, a violência e a violação dos direitos humanos ao mesmo tempo sociais e urbanas, manifestadas em cada cidade correlacionada com suas particularidades e conjunturas.

E assim o discurso cisheteronormativo nega existência e agrava a exclusão da população LGBTQIAP+, privando-os de direitos básicos por meio do discurso  “lugar de respeito”, desencadeando a interdição do viver, proibindo sua expressão e performances em público, colocando-os à margem da sociedade e empurrando-os para os espaços privados ou fora da visão, e como exposto por Santos é a extensa a tipologia das formas de vida não cidadãs, cuja crueldade se apresenta desde a retirada, direta ou indireta, dos direitos civis à maioria da população, às fórmulas eleitorais engendradas para enviesar a manifestação da vontade popular, ao abandono de cada um à sua própria sorte (SANTOS, 2013, p.94).

4 AS FRONTEIRAS ENTRE A IDENTIFICAÇÃO DE GÊNERO E O EXERCÍCIO LIMITADO DA CIDADANIA NO ESPAÇO URBANO

A cidade pulsa, se expressa, realiza um movimento diário e acontece. As transformações objetivas e subjetivas fundamentam a espacialização da cidadania. O espaço urbano no formato proposto e referenciado pela história, a partir da sua construção ideológica, tem interditado algumas parcelas da sociedade sob o ponto de vista da sexualidade e identidade de gênero, especializando a urbe e apagando as subjetividades e alteridades.

A cidade pode ser vista como armário urbano quando se analisa o isolamento e o disfarce que o sujeito imputa na sua vida privada diante da sua impossibilidade de plena liberdade no ambiente de vida com o outro, colocando-se como uma situação necessária para proteção das pessoas que não coadunam com a cisheteronormatização.

A rua é um espaço coletivo de trocas e vivências, mas representa um risco grande de existência e de demonstração de afetos e relacionamentos. É nítido que “a configuração das cidades” precisa ser repensada como possibilidade de reconfigurações da realidade social, pois para muitos, a rede urbana existente e a rede de serviços correspondente são apenas reais para um grupo específico, em sua maioria formado por pessoas brancas, heterossexuais, cisgêneras, sem deficiência.

A cidade, portanto, não pode ser acessada e transitada livremente, pois uma parcela da população rompe com os acordos de gênero e sexualidade tácitos definidos pelos poderes atuantes.

Nessa hora faz-se necessário reposicionar o olhar sobre a cidade e Lefebvre pontua:

A consciência da cidade e da realidade urbana se esfuma tanto nuns como noutros, até desaparecer. A destruição prática e teórica (ideológica) da cidade não pode, aliás, ser feita sem deixar um vazio enorme. Sem contar os problemas administrativos e outros cada vez mais difíceis de serem resolvidos (LEFEBVRE, 1991, p. 21).

O sistema está arraigado na sociedade, impedindo a consciência social de avançar no conceito de cidadania e fortalecendo e aprofundando a violência e as desigualdades sociais, marcando e dificultando a abertura da “porta do armário” e a manifestação da individualidade e do alterego. A repressão feita de forma moral ou através da violência atinge aos que se põe a margem das normas sexuais e que ousarem desafiar a ordem posta, colocando em “cheque” o espaço urbano considerado “lugar de respeito”, subvertendo a lógica e buscando o pertencimento à cidade.

Foucault (1979) ensina que “a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”, está, portanto, vinculada ao discurso de daqueles que tem o poder de dizer o que é verdadeiro.

Apesar da repressão que representa o silenciar, o corpo acaba por produzir verdades sobre si mesmo, mesmo com o risco da punição do entorno, e esse armário confessionário guardado, em algum momento deixa a porta entre aberta que acaba por se manifestar (CARVALHO E MACEDO JUNIOR, 2017)

Para que possamos dar passos no sentido de uma vida em comunidade genuína, plena. A discussão de gênero rompe com os estigmas, e é preciso lembrar que não se trata de uma permissão para existir, é um direito de personalidade. Daí a importância de um conceito de gênero que não seja nem universal nem essencial e que possa permitir a afirmação das diferentes performances experimentadas por corpos que não necessariamente se entendam como mulheres ou homens, pessoas que percebem que suas performances dialogam com as múltiplas expressões do ser (NASCIMENTO, 2021).

São as relações de poder que vão determinar uma verdade sobre o corpo sexuado, fixando a diferenciação sexual binária como uma condição anterior à fabricação do gênero, como provoca Nascimento (2021) o sexo não é algo natural, pois tanto o sexo como os conceitos anatômico, hormonal, cromossômico são enunciados discursivos criados a partir de contextos culturais específicos. Nesse sentido, a autodefinição é a ferramenta construtiva do sujeito.

Assim que, negar direitos, negar espaços, negar afeto e negar a vida a seres humanos para a permanência de hierarquias sexuais é inadmissível.

Os espaços negados aos LGBTQIAP+ reforçam a ideia de cidade que pertence e cidade que exclui, cidade legal e cidade ilegal, normalidade e anormalidade, apagando tudo que ameace a ordem posta pelo machismo, patriarcalismo e heteronormatização e cisgeneridades. Limitar espaços é reforçar a arbitrariedade.

Silva e Santos (2015, p. 510-511) afirmam que o próprio estado, por vezes, institucionaliza e convive com o preconceito e que “naturaliza-se a violação dos direitos humanos em ambientes que deveriam proteger os indivíduos contra todas as formas de violência e violação de direitos”. Mas essa opressão não pode se manter. 

Para Montaner e Muxi (2014, p. 198):

“O desafio consiste em construir um espaço sem gênero nem ordem patriarcal; […] sem hierarquias, horizontal, um espaço que evidencie as diferenças, e não as desigualdades, um espaço de todas e de todos em igualdade de valoração de olhares, saberes e experiências. O objetivo é ressignificar a construção de nossas cidades a partir da experiência que os homens e as mulheres têm do mundo – duas maneiras de enunciar a realidade”.

A sensação de insegurança amplia a atividade ligada a segurança privada, mas também aprofunda o medo de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais que acessam e existem em “praça pública”.

É fácil e simples alegar que o que tarda o avanço de mudança cultural tem sido o anonimato dos armários sociais erguidos pela cidade, mas a ameaça de perda de integração, pertencimento e reconhecimento são legítimos para as pessoas LGBTQIAP+.

Tornar as cidades mais humanas não é somente ampliar os espaços de convivência comum, mas primeiramente oferecer o fortalecimento da democracia e cidadania, não somente como discurso esvaziado e panfletário, mas sim enxergando uma nova territorialidade e uma nova ordem urbanística, com ressignificação, com compreensão emancipatória dos direitos, traçando inclusive críticas à espacialização da cidadania, denunciada por Milton Santos na década de 1980, tampouco se esquivar do cruzamento da raça, sexualidade, gênero, identidade de gênero e classe social com o tecido urbano. Nenhuma vida é mais digna do que outra.

A democratização dos espaços urbanos perpassa a possibilidade de as pessoas poderem vivenciar a cidade com a devida liberdade de expressão, para serem quem são sem “armários” que as limitem e sem riscos de violências.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grande desafio é pensar na cidade além do concreto, blocos e asfalto. É necessário levar em conta os que ali vivem e como vivem, com seus valores, códigos morais, questões implícitas e explícitas, tentando correlacionar os espaços de atuação das pessoas de forma cidadã.

Turistas LGBTQIAP+ são bem recebidos e propagam a liberdade e o conforto da cidade tornando-a padrão gay friendly, porque se esbaldam gastando mais de três vezes o que um turista heterossexual consome, e a cada vez mais existe todo uma indústria viabilizando essa sensação de pertencimento e bem-estar para esses visitantes provisórios.

Mas a violência permanece em suas camadas mais profundas, mais fortemente nos lugares em que se supõe estar seguro, ao sair do armário social, revelando as consequências da exclusão e da não aceitação de pessoas LGBTQIAP+. 

Buscar a integração das comunidades é tarefa essencial da sociedade como um todo. A transformação virá quando a democratização dos espaços urbanos oferecer a possibilidade de as pessoas vivenciarem a cidade com a liberdade de serem o que são, demolindo ou tornando visível com isso os armários urbanos, estimulando também cada vez mais a assimilação das diferenças entre os cidadãos e das cidadãs que formam nossa urbe.

Não se atinge uma cidade ideal padronizando os indivíduos, e sim considerando suas nuances, suas diferenças e necessidades desde o início do planejamento da cidade. Isso possibilita maior identificação pessoal do sujeito com o espaço. As lutas de classes passam a representar as lentes de aumento que facilitam a compreensão e a percepção das distorções, denunciando e apontando o preconceito, a violência e a ausência do direito.  A cidade no formato que está projetada não condiz mais com a sociedade atual, e para isso será necessário alterar o âmago do planejamento urbano visando a integração de todas as diversidades presentes na sociedade.

Nesse diapasão os resultados apontaram para a insustentável violência urbana direcionada aos que ousam desafiar o CIStema heterossexual, propondo reflexões sobre como a pluralidade de uma cidade é fortalecida na adoção da diversidade e a necessidade urgente de inserção na agenda política de Estado de medidas que pautem o enfrentamento efetivo da violência destinada a essa população para a consecução da cidade como um espaço verdadeiramente democrático e inclusivo.

 Motivo pelo qual se faz necessário continuar as problematizações sobre o Direito à cidade e a importância de futuras pesquisas que reforcem o debate de gênero intersecionados a raça e classe no espaço urbano como fatores indissociáveis da construção de uma comunidade participativa, inclusiva e pacífica.

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[3] A palavra CIStema é utilizada ao longo do texto com essa grafia de forma proposital como crítica ao sistema cisgênero.


[1] Administradora de empresas, discente do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá; subsecretária de Governo da Prefeitura Municipal de Camaçari. E-mail: ilayellery@hormail.com

[2] Mestre em Desenvolvimento Regional e Urbano pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU/UNIFACS); advogada, docente do curso de Direito da Universidade Salvador (UNIFACS). E-mail: lizcostasantana@gmail.com.