LEI MARIA DA PENHA: A APLICABILIDADE ACERCA DA COMPETÊNCIA NA JUSTIÇA MILITAR NOS CASOS ENVOLVENDO CÔNJUGES MILITARES ESTADUAIS APÓS A PROMULGAÇÃO DA LEI 13.491/17

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.8043665


Samuel Ribeiro da Silva1
Izabella Ribeiro da Silva Alves2


RESUMO

Com o aumento das mulheres integrando os serviços militares na esfera estadual cresceu-se o número de casais de militares na caserna. Visando a proteção da mulher visto sua condição de vulnerabilidade e alto índice de violência, criou-se a Lei nº 11.340/06, conhecida como ‘Lei Maria da Penha”. Como a Lei não alterou o Código Penal Militar, nem o Código de Processo Penal Militar, surgiram inúmeras dúvidas quanto à natureza do crime de violência doméstica e familiar praticado em uma relação entre militares da ativa, além da possibilidade da Justiça Militar Estadual aplicar as medidas protetivas de urgência em favor da mulher policial militar, a qual também pode ser vítima de violência doméstica e familiar por parte do marido, também policial militar.

O presente trabalho tem como objetivo demonstrar os dois posicionamentos adotados pela doutrina e jurisprudência: O primeiro que sustenta ser hipótese de crime comum, sob o argumento de que, a condição de militar de ambos os cônjuges não constitui pressuposto para a incidência da Lei Penal Militar, se o crime ocorreu em ambiente doméstico. O segundo, e com entendimento pacífico entre as cortes, entende sempre se tratar de crime militar, em razão da situação de ambos os sujeitos ativo e passivo, restando clara a competência se tratando de militares na ativa conforme a inteligência do artigo 9º, inciso II, alínea “a”. Entendimento esse que ganhou força com ampliação dos crimes militares trazidos pela Lei 13.491/17, sendo crime por extensão os que encontram tipificação no código penal comum.

Palavras-chaves: Lei Maria da Penha; Cônjuges Militares Estaduais; Competência; Justiça militar; Lei 13.491/17.

1.  INTRODUÇÃO

“A principal finalidade da lei não é punir os homens. É prevenir e proteger as mulheres da violência doméstica e fazer com que esta mulher tenha uma vida livre de violência”. Essas são palavras de Maria da Penha, uma das mulheres mais conhecidas em terras brasileiras e até mesmo mundialmente. A mesma dá nome a Lei que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Com o efetivo feminino crescendo consideravelmente ao longo dos anos, e a vida do militar ser dedicada em boa parte para a academia, torna-se cada vez mais comum o surgimento de casais na caserna.[1] Em consequência, questões que permeiam toda a sociedade como a violência doméstica ou familiar passam a ser discutidas no âmbito militar. 

 Em paralelo, a edição da Lei nº 13.491/17 alterou o artigo 9º do Código Penal Militar, que versava sobre os crimes militares em tempo de paz, essa mudança vem trazendo discussões sobre os aspectos que envolvem a competência para o seu processamento;  nesse sentido, a lei Maria da Penha enquadra-se no contexto quando a violência contra a mulher militar é cometida por outro militar estadual e ambos são ligados por laços domésticos ou familiares.

O desenvolvimento da pesquisa consiste em analisar a Lei Maria da Penha, seu objetivo, aspectos, e mecanismos de proteção a mulher, bem como discorrer sobre a competência a aplicabilidade de seus institutos protetivos no âmbito da Justiça Militar em casos que envolvam casais de militares estaduais;

Para tanto, será utilizada a metodologia de trabalho científico dedutivo, ante a análise de bibliografias, legislações, jurisprudências, pertinentes ao tema, visando-se construir um estudo que apresenta, desde sua promulgação, a Lei Maria da Penha, a alteração legislativa dos crimes militares em tempo de paz e a competência para julgar os casos envolvendo militares Estaduais.

2.  SOCIEDADE PATRIARCAL: O FRUTO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

A subjugação da mulher tem raízes históricas, como na sociedade patriarcal, na qual a violência e opressão contra a mulher era vista como algo normal. No século XVI, Portugal havia descoberto o Brasil e tinha um grande interesse de colonizar suas terras e ampliar seus domínios, ao decorrer do tempo com a valorização do açúcar na Europa houve a necessidade de criação de grandes lavouras e latifúndios, consequentemente surgiram os primeiros engenhos.

A partir disto os portugueses se fixaram no Brasil, trazendo consigo uma cultura patriarcal, no qual as regras eram ditadas pelo chefe de família; o pai. No conceito de Regina Lins (2011), o patriarcado é uma organização social com base no poder do pai, em que os descendentes e parentes seguem a linha do masculino, e na qual as mulheres são consideradas inferiores e, como consequência, subordinadas à sua dominação.

Sob o domínio do pater familias, conhecido como senhor de engenho, estabelecia-se a casa-grande, parte mais importante dessas fazendas, as quais eram governadas por uma gerente doméstica que mantinha a ordem e organização da casa, chamada também de matronas ou matriarcas. A própria palavra família, cuja origem está no latim, famulus, significa conjunto de escravos domésticos, considerando-se como parte desse todo: mulher, filhos e agregados. (LEAL, p. 167, 2004).

Ressalta-se que o patriarcado não significava o pai em si como centro, e sim, o homem, no qual a sua autoridade prevalecia até mesmo sobre o poder do estado. Para Aguiar (2000, texto digital), “o patriarcado é um sistema de poder análogo ao escravismo”. Propondo que a inferioridade feminina é totalmente social, segundo Saffioti (1987), que ainda complementa que homens com alto poder político ou econômico, se utilizam de suas posições para explorar sexualmente mulheres que são suas subordinadas.

A evolução do direito traz um conceito novo de família, “como relação de afeto” (DIAS, 2012, p.49). A mesma autora entende que o modelo patriarcal romano está sendo abandonado, entrando em cena uma nova modalidade em que os membros são participativos e solidários em um mesmo nível, sem distinções de gênero. Para que a violência doméstica se configure é necessário que exista “um nexo entre a agressão e a situação que a gerou, ou seja, a relação íntima de afeto deve ser a causa da violência”.

Ainda nessa sequência, a doutrinadora menciona que a violência cometida por ex namorado ou até namorado se aplica à Lei Maria da Penha e que após muitos problemas, o Superior Tribunal de Justiça – STJ reconheceu a competência da matéria como pertencendo ao juizado da violência doméstica (DIAS, 2012). Porém, não é algo pacífico.

2.1  Tipos de violência contra a mulher

As violências podem ser evidenciadas de várias formas de acordo com a análise abaixo, sendo que elas têm uma grande influência do patriarcado, e são uma forma de dominação do gênero feminino pelo masculino:

No âmbito das relações privadas, a violência contra a mulher é um aspecto central da cultura patriarcal. A violência doméstica é uma forma de violência física e/ou psíquica exercida pelos homens contra as mulheres no âmbito das relações de intimidade, manifestando um poder de posse de caráter patriarcal. Podemos pensar na violência doméstica como uma espécie de castigo que objetiva condicionar o comportamento das mulheres e demonstrar que não possuem o domínio de suas próprias vidas (FERRAZ et al., 2013, p. 470).

Violência física

O artigo 7° inciso I da Lei nº 11.340/06 dispõe que: […] I – a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal (BRASIL, LMP, 2018).

Neste sentido para Guedes e Gomes (2018, p. 1), a violência física é toda e qualquer conduta que agrave a saúde ou integridade física de uma mulher, esta violência é demonstrada de diversas formas como arremesso de objetos, tentativa de estrangulamento, espancamento, socos, pontapés e, em muitos casos, leva o homem a cometer o assassinato da vítima.

Violência psicológica

A violência psicológica é aquela que atinge a autoestima da mulher, deixando-a com a autoconfiança baixa levando muitas vezes a depressão, normalmente são cometidas por xingamentos, constrangimentos, rebaixamentos, isolamento, ameaças, tudo aquilo que ocasione suas limitações de ir e vir (GUEDES e GOMES, 2018, p. 1).

O artigo 7° inciso II da Lei nº 11.340/06 dispõe que:

[…] II – a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, LMP, 2018).

Muitas vezes revela-se dificultoso reconhecer uma vítima de violência psicológica, podendo-se observar que diversas mulheres não procuram ajuda e acabam aceitando a forma como são tratadas e não se abalam com tal violência, pois acabam crendo que o motivo para tal agressão é a forma como ela age, além dos motivos citados anteriormente. (MARTINELLI, 2018, p. 1).

Violência sexual

Qualquer ato ou comportamento que leve ao constrangimento ou a participação de relação sexual indesejada, mediante o estupro, abuso sexual, assédio moral e atentado violento ao pudor são tidos como violência sexual.

Esta violência está descrita na Lei nº 11.340/06 em seu artigo 7° inciso III, vejamos:

[…] III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (BRASIL, LMP, 2018).

Violência patrimonial

A violência patrimonial está prevista na Lei nº 11.340/06 em seu artigo 7° inciso IV.

[…] IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades (BRASIL, LMP, 2018).

A violência patrimonial é uma novidade da Lei Maria da Penha que tipifica com nitidez comportamentos que basicamente configuram abuso dos direitos econômicos das mulheres, explanando a ação do Estado brasileiro de combater atos que previnam ou revoguem o exercício desses direitos, segundo determina o disposto no artigo 5º da Convenção de Belém do Pará (FEIX, 2018, p. 207).

Violência moral

Descrita na Lei nº 11.340/06 em seu artigo 7º inciso V dispõe que: Art.7°[…] V a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (BRASIL, LMP, 2018). É a violência que fere a honra de alguém, estando todos estes crimes dispostos no Código Penal Brasileiro.

Caluniar é acusar alguém de um crime “imputando-lhe falsamente fato definido como crime”, podendo-se observar que a injúria acontece quando a pessoa tem a sua dignidade ou seu decoro ofendido, e difamar significa imputar fato ofensivo à reputação de alguém (BRASIL, CP, 2018)

3.  LEI  MARIA DA PENHA: O INÍCIO DA PROTEÇÃO DA MULHER NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Somente em 2006, com muita pressão da convenção interamericana de direitos humanos, houve a criação de uma lei específica para resguardar as mulheres que fossem vítimas de violência doméstica, a lei Maria da Penha (lei 11.340/2006). Conforme o entendimento de Amini Haddad Campos o nome ”Maria da Penha” é uma homenagem à Maria da Penha Maia Fernandes, é uma farmacêutica brasileira que durante 20 anos lutou contra seu agressor, seu próprio marido Marco Antonio Herredia Viveros.

Demorou cerca de 15 anos o processo que havia sido instaurado pelo Ministério Público. Em razão da omissão da justiça brasileira quanto à condenação do acusado, a vítima buscou órgãos internacionais protetores de direitos humanos. O caso foi apresentado à OEA (organização dos estados americanos) pela negligência e omissão do estado brasileiro, que mesmo após inúmeras denúncias ofertadas pela vítima não havia tomado nenhuma medida contra o agressor. (CAMPOS, AMINI HADDAD, p.143)

Todo o processo começou em 1988 no Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e no Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM). Os dois órgãos juntamente com a vítima Maria da Penha Maia Fernandes formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o estado brasileiro, tendo em vista que o Brasil não estava cumprindo com os compromissos internacionais assumidos para casos de violência doméstica

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos emitiu em 2001 o relatório nº 54/2001 responsabilizando o Brasil por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres. Não atendendo o artigo 7º da Convenção de Belém do Pará.

Marco Antônio foi preso apenas em 2002, vinte anos após o crime, poucos meses antes da prescrição da pena. Depois de um longo processo de luta, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou em setembro de 2006 a Lei nº 11.340, conhecida por Lei Maria da Penha, uma grande conquista das mulheres, vítimas da violência doméstica. (CAMPOS, Amini Haddad, p.143).

3.1  Institutos de proteção

Na criação da Lei 11.340/2006, foram inseridos para ajudar na proteção das vítimas domésticas e familiares medidas cautelares de urgência, são medidas protetivas que são atendidas a pedido da vítima, que podem ser aplicadas ao agressor de imediato. Para a lei, diante de um caso de agressão a mulher as medidas protetivas podem ser concedidas de imediato, independente de audiência das partes e da manifestação do Ministério Público, ainda que o Ministério Público deva ser comunicado de imediato.

Prevê o instituto dois tipos de medidas protetivas de urgência: a que é direcionada a mulher e seus filhos visando à proteção dos mesmos, e a que obrigue o agressor a deixar de praticar alguma conduta ou deixar de frequentar um local, por exemplo.

As medidas que obrigam o agressor a não praticar determinados atos estão previstas no artigo 22 da referida lei, nas hipóteses destacam-se: suspensão da posse ou restrição do porte de armas, bem como a comunicação ao órgão competente, afastamento da ofendida ou local de convívio familiar, contato com a ofendida, familiares ou testemunhas, bem como a suspensão de visitas aos menores. As medidas protetivas de urgência para proteção das ofendidas estão listadas no art. 23 e 24 da Lei, onde estão elencadas medidas em que o Juiz pode determinar quando necessário sem prejuízo de outras medidas.

Se tratando dos aspectos penais retira a possibilidade de penas pecuniárias, retira a matéria de apreciação dos juizados especiais, altera a lei de execução penal para que o juiz possa determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação, caso a violência doméstica seja contra mulher portadora de deficiência a pena será aumentada de um terço, permite a prisão do agressor em flagrante em caso de descumprimento da medida protetiva, também altera o código de processo penal para que a prisão preventiva seja decretada em casos que houver risco à integridade física da mulher, por exemplo.

4.  A JUSTIÇA MILITAR E SUA ESTRUTURA

A Justiça Militar brasileira é integrante do Poder Judiciário, de acordo com o que preconiza o artigo 92 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Referido artigo indica como órgãos do Poder Judiciário: o Supremo Tribunal Federal; o Conselho Nacional de Justiça; o Superior Tribunal de Justiça; os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; os Tribunais e Juízes do Trabalho; os Tribunais e Juízes Eleitorais; os Tribunais e Juízes Militares; e os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 determinou, ainda, em seu artigo 122, incisos I e II, que compõem a Justiça Militar o Superior Tribunal Militar, os Tribunais e Juízes Militares instituídos por lei. Logo, a norma com assento constitucional enumerou os possíveis órgãos da Justiça Militar, consagrando a obrigatoriedade do Superior Tribunal Militar, deixando, no entanto, a cargo da legislação ordinária a criação dos Tribunais e Juízes Militares. (MORAIS, 2009)

A Justiça Militar é dotada de um caráter sui generis, por tratar-se de um gênero com duas espécies, a Justiça Militar da União, prevista entre os artigos 122 a 124 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e, a Justiça Militar Estadual, prevista em seu artigo 125, §§ 3°, 4° e 5°. Sendo que, a Justiça Militar da União possui uma competência ampla, pois ao processar e julgar os crimes militares definidos em lei submete à sua jurisdição qualquer pessoa, inclusive os civis, já a Justiça Militar Estadual tem competência restrita, pois processa e julga os crimes militares definidos em lei e que sejam cometidos pelos militares estaduais e do Distrito Federal. (ASSIS, 2016)

Foi criada através do legislador ordinário a Lei 8.457, de 04 de setembro de 1992, que fixou a Organização da Justiça Militar da União e seus serviços auxiliares, sua composição e seu funcionamento – LOJMU. Em seu artigo 1°, estabelece os órgãos da Justiça Militar, a saber: o Superior Tribunal Militar; a Auditoria de Correição; os Conselhos de Justiça; os Juízes-Auditores e os Juízes-Auditores Substitutos.

Já em seu artigo 16, alíneas “a” e “b”, estabelece a permanência de duas espécies de Conselhos de Justiça, os Conselhos Especial e Permanente de Justiça. O Conselho de Justiça é um órgão jurisdicional colegiado diferenciado – em razão do artigo 16 da Lei 8.457, de 04 de setembro de 1992 –, formado por um juiz togado (Auditor) e quatro juízes militares, pertencentes à Força que integrar o acusado, possuindo previsão constitucional no artigo 122, inciso II, e artigo 125, § 3°.

É o responsável por processar e julgar os crimes militares cometidos por praças ou civis, tendo seus juízes renovados a cada trimestre, sem vincular os juízes militares ao processo nos quais atuaram naquele período. O Conselho Especial de Justiça é destinado a processar e julgar oficiais até o posto de Coronel ou Capitão de Mar e Guerra, tendo seus juízes militares escolhidos para cada processo. Aqui, excepcionalmente, rege o princípio da identidade física do juiz, ou seja, aquele Conselho apenas se extinguirá com a decisão final do processo. Oportuno, ainda, ressaltar que o Presidente do Conselho de Justiça será aquele oficial de maior posto, declarando abertas e encerradas as sessões. (ASSIS, 2016)

O Juiz de Direito do Juízo Militar, é o juiz-auditor, sendo o detentor, efetivamente, do conhecimento legal necessário, e também é quem relata o feito, apresentando-o para os juízes militares e votando sempre em primeiro lugar. (ASSIS, 2016). Enfim, a competência do juiz-auditor encontra-se no artigo 30 da Lei 8.457, de 04 de setembro de 1992, bem como ao longo dos demais dispositivos constantes do Código de Processo Penal Militar.

4.1  Do crime militar

Foureaux (2019) muito bem acentua ao esclarecer que se exclui do Direito Penal Militar as contravenções penais militares, portanto, na legislação castrense somente encontramos previsão de crimes militares, todos previstos na forma do Decreto-lei nº 1.001 de 1969, Código Penal Militar.

Inicialmente, Assis conceitua crime militar:

É toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares. Distingue-se da transgressão disciplinar porque esta é a mesma violação, porém na sua manifestação elementar e simples. A relação entre crime militar e transgressão disciplinar é a mesma que existe entre crime e contravenção penal. (ASSIS, 2016, p.35)

Foureaux menciona a definição de Lobão, que conceitua crime militar da seguinte forma:

A infração penal prevista na lei penal militar que lesiona bens ou interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares, ás suas atribuições legais, ao seu funcionamento, à sua própria existência, no aspecto particular da disciplina, da hierarquia, da proteção à autoridade militar e ao serviço militar. (FOUREAUX, 2019, p.24)

Foureaux assevera a não definição dada pelo Código Penal Militar, então, faz uma análise do crime militar, em seus conceitos formal, material e analítico:

No aspecto formal, crime militar é todo aquele fato que se adequa perfeitamente ao tipo penal previsto no Código Penal Militar. Há mera subsunção da conduta a um dos artigos previsto no Estatuto Repressor Militar. No aspecto material busca se referir a lesividade da conduta, em observância ao princípio da intervenção mínima, considerando-se os bens jurídicos tidos como essenciais para uma convivência harmônica da sociedade. O conceito formal e material de crime militar não é suficiente para definir realmente o que seja crime militar sendo necessário analisar o seu aspecto analítico. No aspecto analítico, verifica-se a estrutura do crime, elementos que compõem a infração penal militar, sendo crime militar o fato típico, ilícito e culpável, além de ter de se amoldar ao artigo 9º do Código Penal Militar e o sujeito ativo pode ser processado e julgado pela Justiça Militar. (FOUREAUX, 2019, p.32)

Para Neves (2014, p.88), primeiramente é necessário “[…] saber quais os critérios de configuração de um crime militar, para uma vez incluindo determinado fato nesse rol, definir se se trata de crime essencialmente militar ou acidentalmente militar”.

Nesse sentido, Neves (2014, p.90), com base no ensinamento de Esmeraldino Bandeira, estabelece os seguintes critérios iniciais, que foram assim definidos: “[…] o critério ratione materiae e o critério ratione personae, filiando-se o primeiro ao Direito Romano primitivo e o segundo ao Direito Germânico inicial. Em momento posterior, agregaram-se a essas classificações as dos crimes militares ratione loci e ratione temporis”.

Assim, conclui ASSIS (2016) que o critério adotado para classificação de crime militar é o ratione legis, enumerado no art. 9º do CPM, ou seja, é aquele que a legislação define.

Seguindo a classificação de ASSIS (2016) , o crime militar restou definido em três modalidades: crime propriamente militar, que pode ser cometido somente por militar; crime impropriamente militar, que pode ser cometido por militar da ativa, da reserva, reformado ou civil, sendo que o crime tem possibilidade de estar tipificado tanto no Código Penal Militar como no Código Penal Comum; e, por último, crime tipicamente militar, que pode ser praticado tanto por militar quanto por civil, porém a conduta ilícita está tipificada apenas no Código Penal Militar.

Essas situações estão previstas no art. 9º do Código Penal Militar (CPM), que trata dos crimes militares em tempo de paz;

Ao analisar o referido dispositivo legal, Lima conclui que os crimes militares, nele citados, podem ser tipificados de forma direta, ou seja, previstos somente no Código Penal Militar, que correspondem ao inciso I, e, de forma indireta, ou seja, previstos também no Código Penal Comum, que correspondem aos incisos II e III. (LIMA, 2011)

Seguindo o pensamento de Loureiro Neto (2010), o advento da Lei nº 9.299/1996, que, em seu §1º acresceu o parágrafo único do art. 9º do CPM, destaca uma exceção bastante relevante com relação aos crimes dolosos contra a vida, praticados em desfavor de civis, os quais são julgados na Justiça Comum, embora tenham como o autor do delito um militar.

Esse entendimento ganhou força com a introdução do parágrafo 2° no art. 82 do Código de Processo Penal Militar (CPPM), o qual refere que: “Nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”.

No entanto, Loureiro Neto (2010, p.66) destaca que: “conexos os crimes praticados por policial militar e por civil, ou acusados estes coautores pela mesma infração, compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar o Policial Militar pelo crime militar, por força do CPM, art. 9º e a Justiça Comum.

Por fim, são considerados crimes militares, em tempo de guerra, os contidos no art. 10 do Código Penal Militar. Cabe salientar que os crimes militares elencados neste artigo serão considerados se cometidos apenas em tempo de guerra; dessa forma, possuem penalidades mais rígidas do que as estipuladas para os crimes militares em tempo de paz.

4.2      As novas classificações de crime militar propostas pela doutrina com o advento da lei 13.491/17

A nova redação do art. 9º do CPM, conferida pela Lei nº 13.491/17, ampliou a competência das justiças militares ao aumentar o rol de crimes militares, originando uma nova denominação para além das categorias tradicionalmente adotadas pela doutrina.

Além de crimes militares próprios (aqueles somente previstos no CPM) e crimes militares impróprios (aqueles previstos no CPM, e com igual previsão no Código Penal), passaram a existir “os crimes militares por extensão” (inexistentes no CPM, todavia, presentes na legislação penal comum ou extravagante, que são considerados militares quando praticados nas hipóteses das alíneas “a” a “e”, do inciso II, do citado artigo). (ROTH, 2017)

Coimbra Neves (2014) infere que tais tipos penais acabarão por ser conhecidos e classificados pela teoria clássica como impropriamente militares. Contudo, por estarem tipificados fora do Código Castrense, sem previsão correlata, se praticados em hipóteses contidas numas das alíneas do inciso II do art. 9º podem ser designados como “crimes militares extravagantes”.

Pereira (2017, p.25) considera acertadíssima a decisão do legislador na atualização do dispositivo, que criou uma cláusula de permanente atualização da definição de crime militar impróprio, para fazer incorporar no seu alcance a legislação penal como um todo”. Esse autor compreende que a antiga situação jurídica do dispositivo do CPM, em que o inciso II limitava as hipóteses de crime militar apenas àqueles com semelhante redação no ordenamento penal ordinário, carecia de sentido. Os crimes nele previstos, ainda que existam no CPM, se praticados, afrontam à hierarquia e a disciplina, tais quais os definidos analogamente nos dois sistemas. (PEREIRA, 2017)

A inovação legislativa, Pereira (2017, p.26), reportando-se ao Procurador da República Douglas Araújo, atribuiu a gênese de nova figura jurídica: “o crime militar por equiparação à legislação penal comum”. O jurista incorpora à classificação apresentada (crimes militares por extensão) por Reinaldo Roth (2017). No entanto, se não convergem quanto à nova classificação doutrinária no que tange à natureza da nova lei, as doutrinas apresentam harmônica dicção de seu aspecto híbrido, com reflexos de ordem material e processual.

Paralelamente, há mudanças no aspecto material concernentes à ampliação do conceito de crime militar e à seara formal, advinda do deslocamento de competência processual à Justiça Militar da União e dos Estados. (ROTH, 2017)

De outro flanco, não se pode olvidar o alerta de Roth (2017) de que a nova redação do art. 9, II, do CPM, não faz estender sua abrangência às contravenções penais previstas no Decreto-Lei nº 3.688/1941. Note-se que o aludido dispositivo tão somente se refere à espécie de infração delituosa “crime”, de sorte que as contravenções penais restam excluídas da seara penal militar, vez que não se encerram nesta categoria.

4.3   Aplicabilidade da lei maria da penha nos casos de violência doméstica entre cônjuges militares estaduais

Para os casos de violência doméstica entre casais de militares estaduais, existem duas distintas posições teóricas: a primeira delas sustenta que não se trata de crime militar, devendo ser afastada a competência da justiça castrense; a segunda argui que a hipótese sempre será de crime militar, independentemente do local em que ocorra, sendo aplicável o CPM, tendo respaldo na inovação legislativa que amplia o rol de crimes militares.

Os adeptos da primeira teoria defendida por Célio Lobão e Murillo Salles Freua, por exemplo, advogam que as ocorrências envolvendo violência doméstica entre cônjuges militares não devem ser consideradas crimes militares, impondo-se, em seu processo e julgamento, a Lei Maria da Penha.

Murillo Salles Freua (2007, p. 4 – 5) publicou artigo em que defende a seguinte posição: aceitar a aplicação da legislação militar na solução de problemas familiares, sem nenhuma conexão com a instituição militar, pode gerar danos irreparáveis à instituição militar. Seria inviável levar para o contexto das “relações do lar” a legislação penal militar. Nesta ótica, a lei castrense não poderia interferir na vida íntima do casal, em observância às disposições da Lei Maior pertinentes aos direitos fundamentais à intimidade e à vida privada.

Felisberto Filho (2005, p. 5-6), antes mesmo da Lei Maria da Penha, declarava que, nos casos de violência doméstica, como nos crimes de ameaça, a competência para o julgamento seria da Justiça Comum, por entender que a “condição de militar de ambos os cônjuges não interfere na qualidade (…) dos delitos”.

A relação profissional, para essa vertente doutrinária, não se confunde com as relações familiares, que envolvem afeto, amor e, certas vezes, ódio e mágoa. Assim, a legislação castrense não poderia se envolver nesta seara, devido às suas especificidades e peculiaridades (FILHO, 2005, p. 6).

Murillo Salles Freua (2007, p. 6), seguindo a Constituição Federal e os diversos tratados internacionais nos quais o Brasil figura como signatário, aduz que, com o advento da Lei Maria da Penha, como já cientificado, deu-se o agravamento da punição, nos casos de violência doméstica, além das medidas protetivas à vítima, como atendimento multidisciplinar e medidas de proteção patrimonial. Mostrando-se inadequado afastar da militar, enquanto vítima destes atos, a possibilidade de usufruir das medidas protetivas, exclusivamente por conta da sua condição profissional diferenciada. Este afastamento sim violaria, claramente, os ditames e garantias constitucionais.

Para o referido autor, a Lei nº 11.340/2006 deve ser aplicada, na medida em que visa à regularidade da instituição família, baseada nos sentimentos desenvolvidos entre as pessoas. Acrescenta, ainda, que de forma contrária, a Justiça Militar tem por objeto a regularidade das instituições militares, baseadas na hierarquia e na disciplina (FREUA, 2007, p. 7), não devendo ser aplicada, nestes casos, a legislação penal militar, tida por insuficiente.

Para Adriano Alves-Marreiros (2015, p. 112), o CPM poderia ser utilizado nos casos de agressão da esposa ao marido ou entre companheiros do mesmo sexo, no entanto, nos casos de violência doméstica cometida pelo cônjuge em desfavor de sua esposa, deve o caso ser julgado perante a Justiça Comum, pois concorda que a Lei Maria da Penha foi pensada para esta finalidade.

Para a segunda teoria, a Lei Penal Militar deve ser sempre utilizada nos casos de violência doméstica, Guilherme de Souza Nucci (2014, p. 34) declara que não importa onde ocorra o ato envolvendo violência doméstica, se em casa ou na Organização Militar, pois o fato será sempre um crime militar.

Muitos doutrinadores, ao afastar a aplicabilidade da Lei Maria da Penha da Justiça Militar, baseiam-se na proteção familiar, sob o argumento de que não se pode falar em hierarquia e disciplina na relação conjugal. Explicam, também, que os casos de violência doméstica entre casais militares não repercutiram na esfera militar, a ponto de atrair a competência da justiça castrense (ALVES-MARREIROS, 2015, p. 109).

Nesse raciocínio, Marcello Streifinger e Robson Coimbra (2012, p. 140)

Com efeito, a agressão entre cônjuges no interior do ambiente doméstico, como regra, não avilta bens jurídicos penais-militares, passando ao largo da necessidade de intervenção penal militar. (…) Claro que se a agressão for perpetrada em ambiente onde estejam presentes a disciplina e a hierarquia militares, haverá acinte a bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal Militar.

Jorge César de Assis (2015, p. 16, 17) apresenta o exemplo, do Tribunal de Justiça Militar do Rio Grande do Sul, que exemplifica a situação de violência doméstica contra a mulher, na qual a Corte considerou que houve, também, afronta à caserna:

No primeiro caso, ainda que impulsionado por inconformismo frente a uma possível separação, veremos que o réu, Sargento da ativa que havia agredido sua companheira, uma Capitã, algemando-a na via pública. Ao ser abordado por PMs que foram chamados por vizinhos, identificou-se como sargento da Brigada acreditando que seria liberado. Para o TJM-RS, não se trata de mera pendenga familiar quando essa extrapola as fronteiras da privacidade e torna-se pública. (…) (LESÃO CORPORAL, VIOLÊNCIA CONTRA SUPERIOR E CONTRANGIMENTO ILEGAL. TJMRS, Ap. crim.3.785/14, relator Juiz-Cel Sérgio Antonio Berni de Brum, julgado em 09.11.2014.)

Com relação ao argumento de que a agressão delituosa em estudo não interfere ou repercute no meio militar, não há como concordar. Se o fato tem o condão de afetar o ambiente de uma empresa privada, com muito mais razão enseja reflexos negativos consideráveis se verificada em estabelecimentos militares. Prejudica diretamente a hierarquia e a disciplina, pois a violência entre dois militares, ainda mais quando envolve casal, reclama adequada reprimenda ao agressor. A despeito da física, a violência alcança, em igual medida, o pundonor militar e o decoro da classe, ferindo a instituição familiar e sua essência (ALVES-MARREIROS, 2015, p. 109).

Quando alguém comete um erro, dentro do meio militar, e não é responsabilizado como devido, inexoravelmente, desestabiliza-se a ordem no quartel, mesmo na hipótese de cometimento de transgressão disciplinar leve – como chegar atrasado ao expediente -, pois a instituição cultua como virtude o exemplo de conduta do outro. O militar deve pautar-se de modo a servir de exemplo a seus pares, superiores e subordinados.

Atualmente, busca-se constante combate à violência doméstica, no meio militar, pois é notório que esta agressão pode corresponder ao primeiro passo na escala de gravidade do ato violento, podendo redundar, em casos extremos, no crime de homicídio (ALVES-MARREIROS, 2015, p. 109).

A proteção à família e ao lar é tão importante no meio militar, que em 2001, através da Lei Complementar nº 893, de 09 de março de 2001, foi alçada, no artigo 8º, inciso XXII, da legislação militar vigente no estado de São Paulo, à condição de dever militar a condução da família como um bom chefe. (KOBAL, 2008, p. 16)

Ainda, cabe frisar que a o advento da alteração dos crimes militares trazida pela lei 13.491/17, ampliou a competência da justiça militar, abarcando os crimes com previsão no Código Penal Comum, não restando dúvidas para interpretação diversa, vejamos:

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I            – Os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II           – Os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado. (grifei). (BRASIL, 1969, art. 9° C.PM).

Contudo, antes mesmo do advento da ampliação dos crimes trazido pela referida Lei, o artigo 9º do CPM em sua alínea “a” é claro ao definir que se encaixa na definição de crimes militares: os “militares em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado”.

Lembrando que não se deve confundir a expressão “militar em atividade” com a expressão “militar em serviço”, pois a primeira se refere ao militar que ainda se encontra no serviço “ativo”, em oposição ao militar que foi reformado (aposentado), ou passou para a “reserva”, podendo ter sido feita a sua manutenção pela própria administração militar ou a pedido do mesmo.

Com isso, conclui-se que ainda que o crime fosse cometido por policial militar da ativa contra sua cônjuge igualmente policial militar da ativa ambos de folga, ainda que fora do local “sujeito à administração militar”, a competência para o julgamento do crime seria incontestavelmente da justiça castrense, já que a redação do artigo em questão não deixa dúvidas ao contido.

Nesse sentido, observa-se a seguir o posicionamento do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo/SP:

Recurso Inominado Ministerial – Pedido para remessa dos autos à Justiça Comum indeferido pelo Juiz de piso – Violência doméstica praticada por policial militar contra policial militar, ambos na ativa e de folga, no interior da residência do casal – Independentemente do motivo da agressão, do local da ocorrência, de estarem agente e vítima na ativa ou não ou, ainda, de serviço ou de folga, o crime é militar e a competência para processamento e julgamento do caso é da Justiça Militar estadual – Recurso Inominado improvido. (TJ-MSP 0002792018, Relator: CLOVIS SANTINON, Data de Julgamento: 07/02/2019, 2ª Câmara) (grifei).

Outro fator levantado por essa teoria para justificar a tramitação da ação penal perante a Justiça Militar é a celeridade no julgamento do processo. Em contrapartida, seus opositores frisam que a pena imputada pelo CPM é menor para o crime de lesão corporal, em relação ao Código Penal. Malgrado a relevância deste ponto, a maior agilidade das investigações, do processo e, por consequência, da punição do agente, confere maior prestígio à utilização da Justiça Castrense. Nela, a possibilidade de prescrição é mínima, ao contrário do que ocorre nos órgãos da Justiça Comum Estadual conforme dados anunciados linhas atrás (ALVES-MARREIROS, 2015, p. 114).

Esta lentidão no trâmite dos processos na justiça comum estadual resultou constatada no Anuário Soteropolitano da Prática Penal, alhures mencionado, que diagnosticou os índices ínfimos das persecuções penais, dos julgamentos e das punições.

Ainda, apesar da Lei Maria da Penha não ter alterado o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, impõe-se assegurar assistência necessária à militar agredida por parte da autoridade de polícia judiciária militar, a qual, no caso dos militares, seria o Comandante da Organização Militar (ROCHA, 2010, p. 4).

Luiz Flávio Gomes (2009, p. 3) também favorável a essa corrente, assim se posiciona em um trecho de seu artigo:

Embora a lei Maria da Penha esteja voltada para a criminalidade comum, é certo que suas medidas protetivas podem ter incidência analógica benéfica mesmo quando o delito seja militar. Em outras palavras: a natureza militar da infração não impede a incidência das medidas protetivas da lei Maria da Penha, porque se trata de uma aplicação analógica benéfica.

Semelhante raciocínio é dedutível da doutrina de Rogério Greco (2014, p. 49), para quem o julgador poderá, utilizando-se da analogia in bonam partem, aplicar ao caso específico, sobre o qual não exista norma reguladora, a legislação existente que seja similar, a fim de ver respeitado o princípio da isonomia, atuando o magistrado como um legislador positivo. Somando, traz a redação do artigo 3º do Códex militar:

Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:

a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar;
b) pela jurisprudência;
c)  pelos usos e costumes militares;
d)  pelos princípios gerais de Direito;
e)  pela analogia.

Portanto, vale-se da analogia in bonam partem para admitir a possibilidade de aplicação dos institutos protetivos da Lei Maria da Penha em casos cujo julgamento se dê perante a Justiça Militar. Justifica tal entendimento a natureza processual das medidas instituídas em favor da vítima de prática de violência doméstica, já que, como visto, cuida-se de garantias a serem exercidas perante a autoridade policial, no curso da investigação ou, ainda, no curso da ação penal uma vez determinadas pelo juiz competente. Nesse sentido, tem-se a decisão do Supremo Tribunal Federal no HC 125836/SP:

EMENTA Habeas corpus. Processual Penal Militar. Ameaça (CPM, art. 223, caput) praticada por militar contra militar em situação de atividade em local sujeito à administração militar. Crime militar caracterizado. Competência da Justiça Castrense (CPM, art. 9º, inciso II, alínea a). Precedentes. Ordem denegada. 1. O crime praticado por militar contra militar em situação de atividade em lugar sujeito à administração militar, inevitavelmente, atrai a competência da Justiça Castrense, por força do art. 9º, inciso II, alínea a, do Código Penal Militar. Precedentes. 2. Ordem denegada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência da Senhora Ministra Rosa Weber, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em denegar a ordem de habeas corpus, nos termos do voto do Relator. (Coatores SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR – Primeira Turma E. Ministro Dias Toffoli no HC 125836/SP – Julgamento Brasília, 03 de março de 2015) (grifei).

Assim, resta claro que a solução para o conflito de competência entre a Justiça Comum e a Justiça Militar para julgamento dos casos de violência doméstica e familiar, entre casais de militares, é consolidada entre as cortes.

CONCLUSÃO

Com o aumento do número de casais de militares, têm-se o aumento de questões que permeiam toda a sociedade adentrando a esfera militar. Por ser a violência doméstica uma questão pública de urgência, criou-se a Lei Maria da Penha, que traz um rol taxativo de medidas de proteção em favor do feminino. O estudo se mostra relevante ao passo que os militares, por conta da sua especialidade, estão sujeitos a uma legislação, que lhes impõem direitos e deveres próprios e que, por conta disso, devem ser processados e julgados pela Justiça Militar.

Como a Lei Maria da Penha não criou crimes contra a violência doméstica, não alterou o CPM, nem o CPPM, surgiram inúmeras dúvidas quanto à natureza do crime de violência doméstica e familiar praticado em uma relação entre militares da ativa, além da possibilidade da Justiça Militar Estadual aplicar as medidas protetivas de urgência em favor da mulher policial militar, a qual também pode ser vítima de violência doméstica e familiar por parte do marido, também policial militar.

Desta forma, doutrina e jurisprudência desenvolveram dois posicionamentos: O primeiro que sustenta ser hipótese de crime comum, sob o argumento de que, a condição de militar de ambos os cônjuges não constitui pressuposto para a incidência da Lei Penal Militar, se o crime ocorreu em ambiente doméstico, por exemplo, esse extrapola o “local sujeito à administração militar”, não trazendo qualquer ofensa à instituição.

O segundo, e com entendimento pacífico entre as cortes, entende sempre se tratar de crime militar, em razão da situação de ambos os sujeitos ativo e passivo, restando clara a competência se tratando de militares na ativa conforme a inteligência do artigo 9º, inciso II, alínea “a”. Entendimento esse que ganhou força com ampliação dos crimes militares trazidos pela Lei 13.491/17, sendo crime por extensão os que encontram tipificação no código penal comum.

Partindo disso, sendo caracterizado a conduta delitiva como crime militar, por serem providências cautelares que visam impedir danos imediatos, devem ser aplicadas no âmbito militar as medidas protetivas de urgência em relação à vítima, com fulcro no artigo 3º, alínea “e”, do CPPM e utilizados os instrumentos dados pela legislação militar (administrativa, penal e processual penal militar) para aplicação das medidas contra o agressor.

De forma que, a mulher militar receba o mesmo amparo das demais, respeitando-se, assim, o princípio da isonomia, pois a violência doméstica e familiar constitui, na realidade brasileira, flagrante violação aos direitos humanos consagrados na Carta Magna, que são universais e, portanto, pertencem a todos, independente de categoria profissional, e a condição de militar não pode retirar da mulher o manto de proteção abarcado na Lei Maria da Penha. Assim pactua o Supremo Tribunal Federal.

Dessa forma, conclui-se este trabalho após análise da jurisprudência e legislação, com o entendimento de que cabe o julgamento e aplicação das medidas protetivas trazidas pela Lei Maria da Penha nos casos envolvendo cônjuges Militares Estaduais, pela Justiça Militar. E que a falta de previsão legal não pode impedir que a Justiça castrense conceda as medidas protetivas dispostas na Lei, pois seria inconstitucional privar a militar de ter direito às inovadoras medidas.

Mesmo as que dizem respeito à seara cível, são plenamente aplicáveis na Justiça Militar, seja por analogia, quando aplicada a um caso não previsto em lei as hipóteses relativas a uma situação semelhante, ou através da adoção de providências administrativas e processuais penais militares já estabelecidas na legislação castrense, sendo necessário para tanto um urgente aprimoramento e adequação desta Justiça especializada quando o crime envolver militares no âmbito das relações domésticas e familiares.

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[1] edifício ou alojamento para moradia de soldados, dentro de um quartel, de um forte.


11º Tenente do quadro de combatentes da Polícia Militar do Estado do Paraná, Bacharel em Segurança Pública pela APMG/PMPR, bacharel de Direito pelo Centro Universitário Campos de Andrade, Licenciado em Pedagogia pelo Centro Universitário FacVest. Email:
samuel.ribeiro@pm.pr.gov.br
2Bacharel em direito pela Faculdade CRISTO REI. Inscrita na Ordem dos Advogados do Paraná sob nº 113.273. Email: izabellaribeiro4584@gmail.com