LAWFARE NA POLÍTICA BRASILEIRA E SEUS REFLEXOS NA SOCIEDADE

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/pa10202409301506


Jair Zaleski1
Katia Kupicki2


RESUMO

O presente artigo visa ao longo de seus conteúdos promover a compreensão e destaque do Lawfare, ressaltando como esse processo ocorre e seus principais impactos quanto aos aspectos jurídicos e eleitorais, assim como sociais. O mesmo tem por objetivo geral destacar as principais características do Lawfare. No que se referem aos objetivos específicos, esses são: contextualizar o Lawfare; destacar o Lawfare na realidade brasileira; avaliar os principais reflexos e dificuldades quanto ao processo de Lawfare junto à rotina social brasileira. Para uma melhor estabilidade das informações, dados e aspectos abordados ao longo do artigo realizou-se uma revisão de literatura, destacando alguns dos principais conceitos e analises de autores renomados, tendo por base obras publicadas ao longo dos últimos 8 anos. Pode-se concluir que existem alguns aspectos dentro do campo político brasileiro que podem impactar de forma considerável a sociedade como um todo, assim como alguns direitos considerados na Constituição algo fundamental para um ambiente social e político eficiente.

Palavras-Chave: Política. Brasil. Guerra Jurídica. Direitos Fundamentais. Garantias Constitucionais.

ABSTRACT

This article aims throughout its contents to promote the understanding and prominence of Lawfare, highlighting how this process occurs and its main impacts on legal and electoral, as well as social, aspects. The general objective of this is to highlight the main characteristics of Lawfare. Regarding the specific objectives, these are: contextualize Lawfare; highlight Lawfare in the Brazilian reality; evaluate the main consequences and difficulties regarding the Lawfare process within the Brazilian social routine. For better stability of the information, data and aspects covered throughout the article, a literature review was carried out, highlighting some of the main concepts and analyzes by renowned authors, based on works published over the last 8 years. It can be concluded that there are some aspects within the Brazilian political field that can have a considerable impact on society as a whole, as well as some rights considered in the Constitution to be fundamental for an efficient social and political environment.

Keywords: Politics. Brazil. Legal War. Fundamental rights. Constitutional Guarantees.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda sobre o Lawfare, destacando o conceito, a realidade brasileira, seus reflexos e as dificuldades de reconhecimento do uso da mesma pela população em geral. É importante destacar que a prática de lawfare é crescentemente poderosa, todavia pouco estudada, recebendo pouca atenção dos estudiosos. Portanto, há maior necessidade de estudos sobre o tema, principalmente por imiscuir-se nas decisões políticas, estratégicas, operacionais e táticas que compõe os conflitos contemporâneos.

O conceito de Lawfare continua a evoluir e a proliferar. Na altura da sua encarnação moderna, em 2001, uma pesquisa na Internet teria revelado apenas um punhado de referências, mas, como observado abaixo, esse número subiu para 60.000 em 2009 (ZANIN; MARTINS, 2019). Hoje, no entanto, produziria centenas de milhares de resultados. Atualmente, a guerra jurídica não só persiste como um aspecto fundamental dos conflitos assimétricos que envolvem atores não estatais.

De acordo com Zavaro (2021), o objetivo da conceptualização do Lawfare no contexto da segurança nacional é fornecer um veículo que ressoe prontamente com públicos não legais, particularmente nas Forças Armadas. Historicamente, o papel do direito nos conflitos armados foi apresentado de diversas maneiras, mas muitas vezes simplesmente como mais um requisito, ao qual a adesão era uma questão de integridade e retidão moral.

Por mais poderosos que esses valores possam ser como incentivos, especialmente para as forças armadas das democracias liberais, conceber o papel da lei em termos militares mais convencionais tem as suas vantagens (DORNELLES, 2022). Compreender que a lei pode ser manejada como uma arma por qualquer um dos lados numa beligerância é algo com que um militar se pode identificar. Facilita a contabilização da lei, e particularmente o fato e a percepção de adesão a ela, no planejamento e condução das operações.

Embora a descrição de Lawfare (“a estratégia de utilização ou utilização indevida da lei como substituto dos meios militares tradicionais para atingir um objetivo operacional”) utilizada no artigo de 2009 ainda ressoe, esta evoluiu ao longo dos anos. A evolução recente sugere que talvez seja necessário um novo ajustamento. Uma expressão poderia ser simplesmente identificar o Lawfare como o uso da lei como meio de realizar o que de outra forma exigiria a aplicação da força, ou como meio de facilitar o mesmo (ZANIN; MARTINS, 2019).

O trabalho tem por objetivo geral destacar as principais características do Lawfare. Quanto aos objetivos específicos, esses são: contextualizar o Lawfare; destacar o Lawfare na realidade brasileira; avaliar os principais reflexos e dificuldades quanto ao processo de Lawfare junto à rotina social brasileira.

2 MATERIAL E MÉTODOS

Para o desenvolvimento da pesquisa apresentada foi realizado um levantamento bibliográfico sobre a Lawfare, avaliando a visão e pesquisa promovida no ambiente jurídico dentro da temática. Sendo promovida uma avaliação de como esse processo ocorre ou vem sendo estabelecido junto ao ambiente social brasileiro, algo que pode ser fundamental quanto às rotinas jurídicas.

Depois de levantadas todas as informações necessárias, promoveu-se uma descrição de todos os estudos relacionados com o tema abordado, assim como estabelecida uma compreensão dos principais conceitos, analises e observações de autores renomados.

Vale destacar que no campo literário foram selecionados livros, artigos e dissertações selecionados através de busca nos seguintes bases de dados Scientific Eletronic Library Online (SciELO), Google Acadêmico, Periódicos Portal CAPES entre outros disponíveis online. Para realizá-la foram levados em consideração trabalhos realizados entre 2014-2024, com temas que se limitassem a temática, portanto os trabalhos publicados nos últimos 8 anos (exceto para livros clássicos), sendo os idiomas definidos português e inglês.

Os critérios de inclusão foram: trabalhos completos disponíveis nas bases de dados, dentro do período de 10 anos, que correspondessem aos objetivos dessa pesquisa. Os critérios de exclusão foram: trabalhos que não contemplavam o objetivo proposto da pesquisa; que não tivessem aderência com a área de pesquisa e que estivessem indisponíveis no momento da coleta e que, portanto, não teriam relevância para esse estudo, além de estarem fora do período do recorte temporal.

3 RESULTADOS E DISCUSSÕES

Lawfare é comumente usado para criticar o que é considerado abuso da lei e dos tribunais por razões estratégicas. De acordo com Esposito (2021) Lawfare é o abuso frívolo do direito interno ou internacional para prejudicar e deslegitimar um oponente, obter uma vitória de relações públicas, financeiramente paralisar um adversário, ou amarrar o tempo do adversário.

Fernandes e Silva Filho (2022) definem Lawfare como “a manipulação negativa das leis internacionais e nacionais de direitos humanos para atingir outros fins que não, ou contrárias àqueles para os quais foram originalmente promulgadas”, com particular referência ao uso do direito internacional por organizações não-governamentais para deslegitimar Israel.9 Apesar da visibilidade destes “grupos de direitos humanos que abusam da lei” ideologicamente carregados, uso do termo, este é apenas um dos vários conceitos de Lawfare na literatura.

A guerra jurídica pode ser limitada ou pode reduzir as pessoas à “vida nua”. Em algumas pós-colônias, transformou-se numa necropolítica mortal com um número crescente de corpos […] mas procura sempre lavar a força bruta numa lavagem de legitimidade, ética, propriedade. Às vezes é posto em prática, como aconteceu em muitos contextos coloniais, para criar novos tipos de sujeitos humanos; por vezes, é o veículo através do qual os oligarcas se apoderam dos nervos do Estado para promover os seus fins económicos; por vezes é uma arma dos fracos, voltando a autoridade sobre si mesma ao encomendar a sanção do tribunal para reivindicar recursos, reconhecimento, voz, integridade, soberania. Mas, em última análise, não são os fracos, nem os mansos, nem os marginais que predominam nessas coisas. São aqueles que estão equipados para atuar de forma mais potente na dialética da lei e da desordem (GARZON, 2022, p. 30).

Conceitos como “guerrilha Lawfare”, “Lawfare insurgente” e Lawfare como “uma arma dos fracos” são usados – com aprovação e desaprovação – na literatura para descrever estratégias através das quais os relativamente desprovidos de poder podem fazer avanços usando a lei. Embora o efeito disso seja frequentemente questionado. Guaman (2022) descreveram o envolvimento de grupos fracos e marginalizados na “guerra jurídica insurgente” para promover os seus objetivos como uma “estratégia liliputiana” fútil num território onde a elite dominante provavelmente prevalecerá.

A intersecção entre a ascensão do populismo de direita, o poder judicial e o neoliberalismo são complexos, dado o suposto preconceito nacionalista das políticas populistas e os limites territoriais da lei. O que une esses temas é o conceito de Lawfare. Na verdade, o novo autoritarismo que o Brasil representa ajuda-nos a analisar a natureza do Lawfare, que revela o potencial hierárquico e excludente nas democracias liberais na América Latina e em outros lugares (DORNELLES, 2022). Além disso, para a esquerda, o Brasil serve como um caso crucial para a compreensão das formas pelas quais o Estado de direito pode impulsionar as agendas da direita.

A América Latina está hoje a viver um ressurgimento de governos de direita e de políticas neoliberais, apresentando uma suposta “restauração conservadora” (ESPOSITO, 2021). Desde o golpe que derrubou Evo Morales na Bolívia até à eleição de Iván Duque Márquez na Colômbia, esta viragem à direita, com a sua natureza populista e apoio de massas, está enraizada em sentimentos relativos à necessidade de lei e ordem, e nas antipatias em relação à raça. ou grupos religiosos que frequentemente acompanha. O Brasil não é exceção nessa tendência.

A candidatura bem-sucedida de Bolsonaro à presidência aproveitou as crises que assolam o país. Após anos de estagnação económica e raiva generalizada contra a corrupção, Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores (PT) sofreu impeachment em 2016 sob alegações politicamente carregadas de irresponsabilidade fiscal. Depois, um dos líderes mais populares do Brasil e fundador do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, foi mantido como preso político durante 580 dias após ter sido acusado de liderar um esquema de corrupção relacionado com a empresa petrolífera estatal Petrobras (CITTADINO, 2021). Longe de ser um exemplo claro de crime, o caso contra Lula foi criticado pela sua falta de provas e conotações políticas.

A inspeção minuciosa da ascensão de Bolsonaro chama nossa atenção para o Judiciário. Outros notaram uma presença crescente do judiciário na política, não apenas no Brasil, mas globalmente. Alguns defenderam o poder judicial como parte integrante da salvaguarda dos direitos e da responsabilização dos líderes.

Por um lado, esta judicialização da política permite reivindicações de baixo para cima – isto é, de grupos historicamente marginalizados – para procurar reparação de erros passados. Por outro lado, recorrer aos tribunais para resolver conflitos poderia ser cada vez mais indicativo de retrocesso democrático (RODRIGUES, 2022). Os defensores desta última posição destacam como os sistemas jurídicos têm ligações com as instituições repressivas de segurança do Estado. Dado que muitos eleitores apoiam políticos que falam de lei e ordem, isso muitas vezes significa uma aceitação aberta de métodos violentos de lidar com o crime e a dissidência.

Alguns membros do coro crescente de vozes que criticam o lugar do Estado de direito na política democrática têm utilizado o conceito de guerra jurídica. Certos observadores entendem que o termo significa o uso da lei para fins políticos, especificamente para postular um inimigo (SALDANHA, 2022). Em oposição a um processo neutro e apolítico, outros enfatizam o elemento estratégico no uso do direito enraizado em normas como a equidade e os direitos.

Na visão de Feitosa (2020), “a guerra jurídica procura lavar o poder visceral numa lavagem de legitimidade à medida que é utilizada para fortalecer os nervos do Estado ou alargar os capilares do capital”. De acordo com esta compreensão mais ampla, a lei não é uma ferramenta contundente usada para subjugar violentamente os chamados outros.

Os sistemas jurídicos exigem algum tipo de legitimidade, ou melhor, precisam que alguns grupos da sociedade civil desejem a lei e a ordem. Além disso, o direito é constitutivo da sociedade – está envolvido em tudo, desde contratos de trabalho até à cidadania (CITTADINO, 2021). À medida que se insere nas relações sociais, detém a capacidade de identificar e depois punir o que os funcionários do Estado consideram irregularidades e quem consideram infratores.

Ao construir lawfare como um conceito analítico, um começo útil é distinguir entre as diferentes formas de contestação legalizada que diferentes atores buscam em várias arenas (ZANIN, 2021). No sentido mais amplo, qualquer uso de direitos e leis para promover um objetivo sociopolítico pode constituir lawfare, desde que faça parte de uma contestação hostil mais ampla entre interesses sociais organizados. Diferentes tipos de lawfare são regularmente empregados por uma variedade de atores.

Zanin et. al. (2019) cita como exemplo de lawfare as ações de Israel e dos Estados Unidos da America contra a consolidação da Palestina como Estado, o que, como consequência, a impede de se tornar parte de tratados internacionais e, portanto, de acessar tribunais internacionais que poderiam julgar as violações praticadas por outros Estados nesse contexto. Nesse caso, a tática de lawfare está em bloquear o uso de procedimentos disponíveis e normas legais para defender seus direitos contra aqueles.

Ao longo do seu estudo Martins et. al. (2020), destaca que a lawfare é a utilização indevida de instrumentos jurídicos para fins de perseguição política, destruição de imagem pública e desqualificação de adversário político. Combina ações aparentemente legais com ampla cobertura da imprensa para pressionar o acusado e a sua comitiva (incluindo familiares próximos), para que fique mais vulnerável a acusações sem provas. O objetivo: fazer com que perca o apoio popular para que não tenha capacidade de reagir.

Em termos políticos, existem diferentes perspectivas, que incluem desde a redução do lawfare a um discurso ideológico e a sua negação como conceito crítico, até um uso frouxo da noção, que tende a atribuí-la a qualquer tipo de julgamento por corrupção ou perseguição política. Isto tende a gerar alguma confusão, bem como a potencial perda de significado do conceito para explicar situações específicas.

Embora o lawfare possa ser um discurso ideológico de poder, e assim tenha sido na sua origem, isso não exclui uma reapropriação crítica do mesmo, como realmente ocorreu a partir de diferentes perspectivas. Na verdade, a forma como na América Latina está a ser utilizada como analogia da guerra, como guerra política, enfatiza as continuidades entre a guerra aberta e outras formas de conflito e violência incorporadas nas instituições políticas nacionais e internacionais (MARTINS et. al. 2020). Desta forma, o lawfare não seria um discurso ideológico, mas muito pelo contrário, uma crítica da ideologia. Um desmascaramento do carácter aparentemente neutro dos quadros jurídicos.

A política de lawfare é empregada por atores na sociedade política (definida como tal por sua competição por poder político, em oposição aos atores da sociedade civil, que buscam influenciar políticas e mudanças sociais sem almejar posições políticas) (WATERS, 2020). Exemplos incluem alegações de inconstitucionalidade ou ilegalidade de políticos da oposição, bem como ações judiciais desafiando a legislação e ações executivas ou buscando o impeachment ou demissão de titulares de cargos importantes.

Lawfare from below é quando atores da sociedade civil – como movimentos sociais, organizações não governamentais, igrejas, acadêmicos, corporações e sindicatos – usam arenas e estratégias legais como litígio, lobby baseado em direitos e discurso sobre direitos em várias arenas sociais em uma tentativa de garantir mudanças políticas, lucros, hegemonia ideológica e transformação social (POPOVA, 2018). Esse tipo de lawfare frequentemente também inclui alianças com atores internacionais.

De acordo com Saldanha (2022), o elemento autoritário do Lawfare aparece no que é considerado desordenado. À medida que as relações sociais mudam ao longo do tempo, o que é considerado desordenado também evolui. A disseminação das instituições democráticas e das reformas neoliberais em diferentes países ao longo dos últimos trinta anos moldou as suas respectivas ordens jurídicas para incluir mais atores para controlar.

Seja na promoção da disciplina fiscal, na privatização dos serviços públicos, ou no desencorajamento da despesa pública e da tributação progressiva, a desregulamentação capitalista requer um Estado para impor ou regular mudanças no sentido da concorrência pura (RODRIGUES, 2022). O direito desempenha um papel especial no ordenamento neoliberal, que leva à economia económica. mudanças, bem como mudanças jurídicas e sociais simultâneas.

Os estudos sobre a guerra jurídica ecoam as representações marxistas do estado capitalista. Com base nesta investigação, o Lawfare chama a atenção para a natureza necessariamente política do direito, onde os atores utilizam os tribunais com objetivos explícitos contra os oponentes (FEITOSA, 2020). As instituições jurídicas mantêm o potencial para acabar com as interações democráticas, caracterizando a tendência autoritária sempre presente no direito.

No que diz respeito ao capitalismo, o conceito de guerra jurídica não reduz os sistemas jurídicos a ajudar diretamente a acumulação. Em vez disso, a menos que uma ação legal desafie algum elemento do capitalismo, como a propriedade privada, as relações de produção existentes continuam a funcionar (BURGOS, 2018). A guerra jurídica também apresenta elementos emocionais, particularmente no que diz respeito à necessidade de obrigar a legitimidade entre os diferentes atores da sociedade civil. Desta forma, o conceito de Lawfare mostra como um projeto popular que favorece a acumulação capitalista faz com que o Estado de Direito sirva ao seu desenvolvimento.

A guerra jurídica cresceu à medida que o neoliberalismo se expandia. A Constituição de 1988 enfraqueceu os meios oficiais de expropriação de terras e favoreceu a concentração dos direitos de propriedade privada. No governo do presidente Fernando Collor de Melo (1990-92), a lei 8.031/1990 pretendia “reposicionar estrategicamente a economia brasileira, colocando o que antes estava no setor público no privado” (FALK, 2015). Tal processo incluía medidas nominalmente democráticas, pois os planos de privatização foram desenvolvidos por um conselho que “deliberou sobre quais empresas privatizar” antes de submeter as suas decisões ao presidente para aprovação.

O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995–2002) procurou abrir a indústria brasileira de petróleo e gás natural a interesses estrangeiros, aprovando uma emenda constitucional que acabou com o monopólio do estado sobre a exploração, produção, refino, importação e exportação de petróleo.

O processo de privatização mudaria com a aprovação da lei 9.491/1997, que permitiu a venda da Vale SA. A reordenação neoliberal não foi feita por decreto executivo; a legislação legitimou a privatização (ORTE, 2016). Os atores do sector privado aproveitaram-se disto, lucrando com a venda dessas empresas e consolidando ainda mais a desigualdade económica.

A dinâmica da reforma neoliberal e da guerra jurídica mudou sob Lula (200210) e Dilma (2011–16). Em 2010, o governo Lula impôs restrições à compra de terras privadas por capitais não brasileiros. Mesmo com o intuito de promover o desenvolvimento nacional, a iniciativa de Lula não restringiu o investimento estrangeiro; em vez disso, levou os interesses multinacionais a adaptarem as suas estratégias de acumulação no sector primário.

Além disso, o Brasil continuou dependente das exportações do agronegócio para adquirir reservas e pagar as suas obrigações externas, bem como das exportações de petróleo e mineração para obter royalties (BURGOS, 2018). A descoberta de reservas de petróleo em águas profundas apenas contribuiu para estes desenvolvimentos, levando o governo a aprovar uma série de leis para garantir o controlo estatal. Tais esforços são indicativos de políticas no extrativistas, que implicam a promoção de indústrias exportadoras para obter acesso a royalties para financiar políticas. As iniciativas da era PT, embora não favorecessem a privatização, contribuíram para o neoliberalismo na promoção de vantagens comparativas.

Lula e Dilma procuraram promover o nacionalismo de recursos, mas as suas políticas saíram pela culatra. Eles trouxeram o petróleo e o gás natural para o domínio do controle estatal, o que, sob a direção de um governo diferente, permitiu a sua venda. Logo após a destituição de Dilma em 2016, as reservas de petróleo chamaram a atenção dos interesses estrangeiros (ORTE, 2016).

Os anos pós-PT assistiram ao regresso a uma utilização mais oportunista da lei para facilitar a privatização. Numa das suas primeiras ações como presidente, Michel Temer (2016–18) emitiu uma ordem executiva para facilitar concessões e contratos público-privados. Temer também aprovou uma lei aprovada pelo Legislativo brasileiro para congelar os gastos do setor público por vinte anos. Em seguida, liberalizou o mercado de trabalho brasileiro, tornando os contratos de trabalho mais flexíveis e enfraquecendo os sindicatos (DUNLAP, 2018).

Nos últimos anos, o Brasil também testemunhou uma crescente desigualdade através da concentração de renda, riqueza, privilégios e poder político no topo. Como argumenta Feitosa (2020), a concentração de riqueza é incompatível com a democracia. “A desigualdade desestabiliza democracias já estabelecidas. Isto porque em democracias desiguais a redistribuição é mais dispendiosa para as elites, que são, portanto, mais propensas a organizar golpes.” As políticas de bem-estar social e pró-trabalho, a queda das taxas de desemprego e o aumento dos salários mínimos contribuíram para um breve período de redistribuição de rendimentos durante os governos Lula e Dilma (SKINNER, 2022). No entanto, a incapacidade do PT de abandonar as políticas neoliberais deixou intocadas as causas estruturais da desigualdade.

A guerra jurídica depende de certos grupos da legislatura, bem como de membros da sociedade civil. Esta aliança socio legislativa está mais presente em três setores: o agronegócio, os cristãos evangélicos e as forças de segurança do Estado, particularmente os militares e a polícia (LENTZ, 2022). Em português, respectivamente e coloquialmente, são chamados de BBB – o Boi, a Bíblia e a Bala. Assim, ao mesmo tempo em que acrescentamos ao trabalho de João Pedro Stedile, também concedemos maior agência às diferentes vozes na coligação de direita que promove o Lawfare neoliberal.

Além da sua oposição ao PT e à agenda dos direitos humanos em geral, o grupo Bullet regressou, em parte devido a uma geração mais jovem de adeptos da direita, despreocupados com o estigma associado à ditadura (SKINNER, 2022). Esta versão mais recente da extrema direita tomou aproveitando os escândalos de corrupção, que geraram ressentimento popular em relação ao PT.

Apesar da reforma da segurança social de Bolsonaro ter encontrado oposição de alguns aliados policiais e militares – uma posição aparentemente contrária à ortodoxia neoliberal – a secção principal da coligação governante está ligada à agenda neoliberal (BOBBIO, 2019). A indústria armamentista do setor privado tem financiado cada vez mais as campanhas de seus membros, expondo a influência dos interesses empresariais na política brasileira e uma certa forma de privatização. Além disso, apesar da oposição inicial à reforma da segurança social, o aparelho repressivo acabou por se unir e acompanhou os cortes e a reestruturação de Bolsonaro.

Dada à natureza politizada dos casos, os processos de Lawfare também criam desafios específicos para os juízes. As decisões judiciais controversas podem desencadear pressão social e política, incluindo sobre os próprios tribunais, e envolver riscos de politização do sistema judicial (QUEIROZ, 2022). Por outro lado, estes casos representam oportunidades para os juízes, colocando-os no centro de questões social e politicamente importantes, aumentando a sua relevância social e permitindo-lhes opinar sobre questões sociais contestadas.

Para compreender como os juízes abordam e decidem nestes casos, onde é provável que considerem não apenas o caso imediato que lhes é submetido, mas também as implicações em longo prazo, incluindo para os seus interesses pessoais e institucionais (ou para que potenciais litigantes possam antecipar como eles podem governar), é novamente útil começar com a sua estrutura de oportunidades.

Como foi exposto acima em relação aos ativistas, a estrutura de oportunidades dos juízes consiste na gama de preocupações que eles provavelmente levarão em conta (consciente ou inconscientemente) ao decidir um caso específico, e que os ativistas – e pesquisadores – tentando compreender e prever o seu comportamento, portanto deve considerar (RODRIGUES, 2022).

Mais uma vez, estas preocupações podem ser divididas em estruturas de oportunidades normativas, socioeconómicas, políticas e jurídicas. Para cada conjunto de considerações, existem fatores que podem levar os juízes a decidir contra a sua condenação original no caso específico, bem como fatores que podem apoiar uma decisão e servir como recursos para os juízes elaborarem uma decisão de acordo com ela.

A estrutura de oportunidades políticas dos juízes está relacionada com o contexto político em que operam e com as condições para a independência judicial. Estas são considerações relacionadas com os riscos de uma sentença resultar em sanções contra os tribunais ou juízes individuais, bem como a probabilidade de aceitação e cumprimento pelas autoridades às quais a sentença é dirigida (KITTRIE, 2016). Isto não é apenas uma função do caso individual, mas também está relacionado com – e com implicações para – a autoridade, a legitimidade e o capital político do poder judicial.

4 CONCLUSÃO

Os fenômenos jurídicos introduzidos a partir de estudos relacionados ao direito internacional têm sido foco de algumas análises nos últimos anos, particularmente aqueles relacionados aos conflitos contemporâneos. Derivado da abreviatura das palavras “Law – Lei” e “Warfare – Guerra”, seu significado mais destacado leva à manifestação do conflito, tendo caráter de guerra, em que o método de combate não se concentra nas armas convencionais, mas no uso estratégico do direito positivo.

O autoritarismo voltou ao Brasil. Desta vez, baseia-se em leis promulgadas por políticos eleitos e utilizadas pelo poder judiciário. Este último tem estado no centro das disputas políticas, tomando partido. Os juízes, geralmente com enormes privilégios, aproveitaram a oportunidade para influenciar abertamente a política.

Com o suposto objetivo de expurgar a corrupção do capitalismo brasileiro, lançaram uma campanha direcionada contra a esquerda organizada. Os políticos de esquerda condenados à prisão estavam ligados aos seus respectivos partidos, principalmente ao PT, fazendo com que isso parecesse uma conspiração organizada contra o povo.

A pandemia do coronavírus levou os juízes a romper com Bolsonaro, principalmente na questão da saúde pública. Ainda assim, a julgar pelo desenvolvimento institucional do poder judiciário no país, é improvável que um Brasil pós-pandemia apresente uma forma de Estado de direito sem um claro preconceito de classe alta.

Embora estivesse no centro de uma aliança política dedicada a restaurar uma era semelhante a uma ditadura, o poder judicial não poderia atingir os seus objetivos sozinhos. As alianças políticas são complexas, envolvendo diferentes agendas e interesses, mas estão unidas por políticas neoliberais que excluem grupos minoritários e a esquerda organizada.

A natureza sistémica e dinâmica dos processos de Lawfare torna-os confusos e por vezes até complicados de analisar, mas num contexto em que o Lawfare se está a tornar um modo cada vez mais comum de contestação social e política, há uma necessidade urgente de desenvolver ferramentas analíticas adequadas para a tarefa. Este artigo é uma contribuição nesse sentido.

Em suma, pode-se dizer que a questão da pesquisa e os objetivos estão respondidos, concluindo que o direito é um fenômeno que põe em causa a segurança jurídica e ignora as regras do devido processo legal para atingir fins políticos e ideológicos, não apenas levando a que isso seja uma violação do direito constitucional ordem e uma ameaça, mas é também um precursor do possível colapso da base democrática sobre a qual um país democrático governado pelo Estado de direito pode ser construído.

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1Mestre em Desenvolvimento Regional, Universidade do Contestado. Canoinhas-SC. Brasil. E-mail: jairzalewski@yahoo.com.br

2Acadêmica do Curso de Direito, Universidade do Contestado. Rio Negrinho-SC. Brasil. E-mail: katia.kupicki@aluno.unc.br