JUSTIÇA RESTAURATIVA: O PODER TRANSFORMADOR DO DIÁLOGO NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/fa10202409061353


Inácio Jário Queiroz de Albuquerque


RESUMO

O tema abordado, a justiça restaurativa, representa uma abordagem inovadora na resolução de conflitos, baseada no poder transformador do diálogo e da empatia. Diferente dos modelos tradicionais de justiça, que frequentemente se concentram em punir os ofensores, a justiça restaurativa busca promover um processo de reconciliação entre as partes envolvidas, permitindo que vítimas, ofensores e a comunidade afetada se reúnam para discutir o impacto do delito e buscar formas de reparação. Ao colocar o diálogo no centro do processo, essa abordagem cria um espaço seguro onde as partes podem expressar seus sentimentos, compartilhar suas perspectivas e trabalhar juntas para encontrar soluções que atendam às necessidades de todos. A empatia, nesse contexto, é fundamental para quebrar barreiras e construir entendimento mútuo, permitindo que o conflito seja tratado de maneira mais humana e eficaz. Este artigo explora como a justiça restaurativa pode transformar conflitos em oportunidades de crescimento e cura, destacando casos práticos e analisando os benefícios dessa prática na promoção de uma justiça mais inclusiva e pacificadora.

Palavras-chave: Método alternativo. Diálogo. Harmonia social. Reconciliação. Ofensores. Empatia

ABSTRACT

The topic addressed, restorative justice, represents an innovative approach to conflict resolution, based on the transformative power of dialogue and empathy. Unlike traditional models of justice, which often focus on punishing offenders, restorative justice seeks to promote a process of reconciliation between the parties involved, allowing victims, offenders and the affected community to come together to discuss the impact of the crime and seek ways to make amends. By placing dialogue at the center of the process, this approach creates a safe space where parties can express their feelings, share their perspectives and work together to find solutions that meet the needs of all. Empathy, in this context, is essential to break down barriers and build mutual understanding, allowing conflict to be dealt with in a more humane and effective way. This article explores how restorative justice can transform conflicts into opportunities for growth and healing, highlighting practical cases and analyzing the benefits of this practice in promoting a more inclusive and peaceful justice.

Keywords: Alternative method. Dialogue. Social harmony. Reconciliation. Offenders. Empathy

1 INTRODUÇÃO

A Justiça Restaurativa, embora recente no cenário jurídico, tem suas raízes em práticas ancestrais de resolução de conflitos, que priorizam o diálogo e a reparação ao invés da punição. Em um mundo onde a justiça tradicional, frequentemente baseada em um modelo punitivo, parece insuficiente para lidar com as complexidades e as necessidades reais das vítimas, dos ofensores e da comunidade, a justiça restaurativa oferece uma abordagem que prioriza a reparação, o diálogo e a empatia. Este paradigma propõe uma mudança significativa de foco: em vez de centrar-se na punição do ofensor, busca restaurar os laços sociais rompidos, promover a cura das feridas emocionais e reestabelecer o equilíbrio na comunidade afetada.

Ela visa a reconstrução das relações sociais danificadas pelo conflito, através de um processo colaborativo e inclusivo. Howard Zehr, considerado um dos pioneiros deste movimento, argumenta que a justiça deve ser entendida como um processo que envolve não apenas a punição do ofensor, mas também a restauração do equilíbrio social e a cura das partes envolvidas. Segundo Zehr, a Justiça Restaurativa é uma “justiça centrada na vítima,” na qual o diálogo entre vítima, ofensor e comunidade desempenha um papel essencial na reconstrução do tecido social.

No cenário atual, marcado por polarizações, desigualdades e uma sensação generalizada de desconfiança nas instituições, a justiça restaurativa se apresenta como um caminho promissor para a construção de uma cultura de paz e de respeito mútuo.

A relevância da justiça restaurativa no contexto atual se torna ainda mais evidente quando observamos o crescente movimento global em direção a sistemas de justiça que sejam mais inclusivos e menos punitivos. Em muitos países, o modelo tradicional de justiça, focado na retribuição, tem sido criticado por não proporcionar verdadeira reparação às vítimas e por não contribuir para a reintegração social dos ofensores. Além disso, esse modelo frequentemente ignora o impacto do crime nas comunidades, deixando-as desamparadas e sem a devida atenção às suas necessidades. A justiça restaurativa, por sua vez, propõe um enfoque holístico que reconhece a complexidade das relações humanas e a importância de sanar as feridas causadas pelo delito.

Para a compreensão do conteúdo do conceito de Justiça Restaurativa é fundamental a compreensão da dimensão restauradora, conforme Scuro Neto (2000):

‘fazer justiça’ do ponto de vista restaurativo significa dar resposta sistemática às infrações e a suas consequências, enfatizando a cura das feridas sofridas pela sensibilidade, pela dignidade ou reputação, destacando a dor, a mágoa, o dano, a ofensa, o agravo causados pelo malfeito, contando para isso com a participação de todos os envolvidos (vítima, infrator, comunidade) na resolução dos problemas (conflitos) criados por determinados incidentes. Práticas de justiça com objetivos restaurativos identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relação convencional com sistema de Justiça, significando, assim, trabalhar para restaurar, reconstituir, reconstruir; de sorte que todos os envolvidos e afetados por um crime ou infração devem ter, se quiserem, a oportunidade de participar do processo restaurativo.

2. A Justiça Restaurativa Promovendo Diálogo e Empatia na Resolução de Conflitos

Braithwaite (2003) defende que o principal valor da Justiça restaurativa é ser não dominante. Ou seja, ela não permite que o Estado se aproprie dos conflitos, ensejando assim um empoderamento dos indivíduos na medida em que estes resolvem por si mesmos seus conflitos e aprendem e se desenvolvem com as soluções encontradas. O criminoso também tem necessidades, assim como a vítima.

A justiça restaurativa pode servir como um catalisador para a promoção de diálogo e empatia na resolução de conflitos. Ao contrário da justiça tradicional, que frequentemente distancia as partes envolvidas e as coloca em posições adversárias, a justiça restaurativa cria espaços de encontro onde vítimas, ofensores e membros da comunidade podem dialogar abertamente sobre os impactos do crime e trabalhar juntos na busca por soluções que atendam às necessidades de todos.

O processo restaurativo é intrinsecamente ligado ao diálogo, pois é por meio dele que se abre caminho para a empatia e para a compreensão mútua. Ao permitir que as partes compartilhem suas experiências e sentimentos, a justiça restaurativa promove um ambiente em que o ofensor pode reconhecer a humanidade da vítima e, ao mesmo tempo, se responsabilizar pelos seus atos de uma forma que contribua para sua própria reabilitação. Para as vítimas, essa abordagem oferece a oportunidade de expressar seu sofrimento e de participar ativamente na definição de como o dano causado pode ser reparado. Por fim, para a comunidade, a justiça restaurativa reforça a coesão social, ajudando a reconstruir os laços rompidos e a prevenir futuros conflitos.

3. Necessidade de Alternativas ao Modelo Punitivo Tradicional

A importância do tema se revela na crescente demanda por alternativas ao modelo punitivo tradicional, que tem se mostrado limitado em várias dimensões. Historicamente, a justiça retributiva, centrada na punição, tem sido o pilar dos sistemas judiciais em muitas sociedades. No entanto, evidências apontam que essa abordagem, ao focar na punição do ofensor, nem sempre promove a recuperação das vítimas, não aborda adequadamente as causas subjacentes do comportamento criminoso e pode até contribuir para a reincidência.

A justiça punitiva frequentemente falha em fornecer um espaço para que as vítimas possam expressar plenamente suas dores e receber a reparação adequada. Além disso, a aplicação de penas severas sem considerar as circunstâncias individuais pode levar à exclusão social do ofensor, dificultando sua reintegração e perpetuando ciclos de criminalidade. Por outro lado, a justiça restaurativa oferece um enfoque que valoriza a reparação e a reconciliação, proporcionando às vítimas um papel ativo no processo e facilitando a reintegração dos ofensores na sociedade.

Essa necessidade de alternativas é ainda mais crítica quando se consideram os efeitos a longo prazo do encarceramento em massa, particularmente em comunidades marginalizadas. O modelo punitivo tradicional muitas vezes exacerba as desigualdades sociais e raciais, gerando um impacto desproporcional sobre certos grupos demográficos. A justiça restaurativa, com seu foco na inclusão e na equidade, oferece um caminho para a construção de um sistema de justiça mais justo e eficaz, que atenda não apenas à necessidade de segurança, mas também à promoção da dignidade humana e à coesão social.

Neste sentido, a justiça restaurativa se destaca como uma abordagem essencial para o futuro das práticas judiciais, propondo uma mudança de paradigma que coloca o ser humano no centro da resolução de conflitos. Ao promover o diálogo e a empatia, ela não só oferece uma resposta mais completa às necessidades das vítimas e ofensores, mas também fortalece a comunidade como um todo, construindo as bases para uma sociedade mais harmoniosa e justa.

4. Conceito de Justiça Restaurativa

Azevedo (2005, p. 140), conceitua a justiça restaurativa como “proposição metodológica por intermédio da qual se busca, por adequadas intervenções técnicas, a reparação moral e material do dano, por meio de comunicações efetivas entre vítimas, ofensores e representantes da comunidade a estimular: I) a adequada responsabilização por atos lesivos; II) a assistência material e moral das vítimas; III) a inclusão de ofensores na comunidade; IV) empoderamento das partes; V) a solidariedade; VI) respeito mútuo entre vítima e ofensor; VII) a humanização das relações processuais em lides penais; e VIII) a manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes eventualmente preexistentes ao conflito”.

A justiça restaurativa representa uma transformação significativa na maneira como compreendemos e abordamos o crime e a justiça. Em contraste com a justiça retributiva, que se concentra na punição do ofensor, a justiça restaurativa busca reparar os danos causados pelo crime, promovendo o diálogo e a reconciliação entre todos os envolvidos. Ela se baseia em uma visão mais ampla de justiça, que inclui a restauração das relações rompidas, a cura das vítimas e a reintegração dos ofensores na sociedade.

4.1 Definição e Princípios Fundamentais

A Justiça Restaurativa é uma abordagem inovadora que se diferencia do sistema penal tradicional ao focar na reparação dos danos causados pelo crime e na restauração das relações entre vítima, ofensor e comunidade (Van Ness & Strong, 2015). Segundo Zehr (2002), essa abordagem busca responder às necessidades das vítimas, promover a responsabilidade dos ofensores e restaurar o equilíbrio na comunidade afetada.

Os princípios fundamentais da justiça restaurativa incluem a participação voluntária, o respeito mútuo, a reparação do dano e a responsabilidade. Esses princípios orientam o processo restaurativo, assegurando que ele seja conduzido de maneira inclusiva e equitativa. A participação voluntária é crucial, pois garante que todas as partes estejam engajadas de maneira genuína e com o objetivo comum de restaurar as relações. O respeito mútuo é promovido ao longo do processo, onde todos os participantes têm a oportunidade de serem ouvidos e de contribuir para a solução do conflito.

A reparação do dano é outro princípio central. Diferente da justiça tradicional, que muitas vezes ignora as necessidades da vítima, a justiça restaurativa coloca a reparação como objetivo principal. Isso pode incluir medidas financeiras, desculpas formais, ou outras formas de compensação que reconheçam e abordem o impacto emocional, físico e material sofrido pela vítima. A responsabilidade é igualmente importante, pois o processo restaurativo encoraja o ofensor a reconhecer seu erro, assumir a responsabilidade por suas ações e trabalhar ativamente para reparar o dano causado.

Além desses princípios, a justiça restaurativa também valoriza a comunidade, reconhecendo que o crime não afeta apenas as vítimas diretas, mas também o tecido social ao redor delas. Portanto, o envolvimento da comunidade no processo restaurativo é visto como essencial para a reconstrução das relações e para a prevenção de futuros conflitos.

4.2 Histórico e Origem

O conceito de justiça restaurativa não é novo; na verdade, ele tem raízes profundas em diversas tradições culturais e práticas comunitárias ancestrais. Muitos dos princípios que hoje associamos à justiça restaurativa podem ser encontrados em sistemas de justiça praticados por sociedades indígenas e tradicionais ao redor do mundo. Essas culturas frequentemente adotavam práticas que priorizavam a reparação dos danos e a restauração das relações dentro da comunidade, em vez de simplesmente punir os infratores.

Na América do Norte, por exemplo, as práticas de justiça das Primeiras Nações e outros povos indígenas, como os Maori na Nova Zelândia, são frequentemente citadas como precursores da justiça restaurativa moderna. Nessas culturas, o foco estava na reconciliação e na manutenção da harmonia dentro da comunidade. Quando um crime ou ofensa ocorria, as partes envolvidas eram trazidas para um processo coletivo de resolução, onde a prioridade era curar as feridas e restaurar a paz.

O ressurgimento da justiça restaurativa como um movimento contemporâneo pode ser rastreado até meados do século XX. Na década de 1970, o interesse por alternativas ao sistema punitivo tradicional começou a crescer, especialmente em resposta às falhas percebidas do encarceramento em massa e às críticas ao sistema de justiça criminal ocidental. Um dos casos mais emblemáticos desse período foi o “experimento de Kitchener” no Canadá, onde um juiz decidiu que dois jovens infratores participassem de um encontro com as vítimas de seus crimes para discutir a reparação dos danos. Esse experimento é amplamente considerado um dos primeiros exemplos formais de justiça restaurativa na era moderna.

Desde então, a justiça restaurativa tem se expandido e evoluído, sendo adotada em diversos países e contextos. A prática foi inicialmente aplicada em casos envolvendo crimes menores, mas sua eficácia e potencial levaram à sua adoção em crimes mais graves, incluindo casos de violência doméstica, crimes de ódio e até crimes de guerra. Hoje, a justiça restaurativa é reconhecida como uma abordagem legítima e eficaz, amplamente utilizada em sistemas judiciais ao redor do mundo, bem como em escolas, instituições e comunidades que buscam formas mais humanizadas de lidar com conflitos e ofensas.

A história da justiça restaurativa reflete um movimento contínuo em direção a uma justiça mais inclusiva e humana, que reconhece a importância da cura e da reconciliação como elementos essenciais para a construção de uma sociedade mais justa. Ao retomar e adaptar práticas antigas para responder às necessidades do mundo contemporâneo, a justiça restaurativa demonstra como soluções inovadoras podem emergir da tradição, oferecendo esperança e alternativas em um sistema muitas vezes marcado pela ineficácia e pela desumanização.

5. Diferença entre Justiça Restaurativa e Justiça Retributiva

A justiça, enquanto conceito e prática, é fundamental para a manutenção da ordem social e para a proteção dos direitos individuais. No entanto, as abordagens sobre como essa justiça deve ser aplicada variam significativamente. Dois dos principais paradigmas em debate são a justiça retributiva e a justiça restaurativa. Ambos buscam responder ao crime e às violações de normas, mas fazem isso com filosofias e métodos radicalmente diferentes. Compreender essas diferenças é essencial para avaliar o impacto de cada abordagem na sociedade e no sistema judicial.

5.1 Comparação de Abordagens: Diferenciação entre Justiça Restaurativa e Retributiva

A justiça retributiva é a forma de justiça mais amplamente conhecida e praticada no mundo ocidental, enraizada em uma tradição que remonta ao Código de Hamurabi e às leis romanas. Esta abordagem se baseia na ideia de que o crime é uma violação das leis do Estado e que, portanto, deve ser punido de forma proporcional ao dano causado. A justiça retributiva opera em um modelo linear, onde o crime é cometido, o infrator é identificado e uma pena é aplicada com o objetivo de punir o infrator e, idealmente, dissuadir futuras infrações.

Os defensores da justiça retributiva argumentam que a punição é uma forma de restabelecer o equilíbrio social e de reafirmar a autoridade das leis. Ao punir o infrator, a justiça retributiva pretende enviar uma mensagem clara de que o comportamento criminoso não será tolerado e que as normas sociais devem ser respeitadas. No entanto, essa abordagem tem sido criticada por várias razões, incluindo sua ineficácia em prevenir a reincidência, sua incapacidade de realmente reparar os danos sofridos pelas vítimas e sua tendência a exacerbar a exclusão social dos ofensores.

Por outro lado, a justiça restaurativa oferece uma abordagem completamente diferente para a resolução de conflitos e crimes. Em vez de ver o crime apenas como uma violação das leis do Estado, a justiça restaurativa o entende como uma violação de pessoas e relacionamentos. Assim, seu foco não é simplesmente punir o infrator, mas sim reparar os danos causados, restaurar as relações rompidas e, quando possível, reintegrar o ofensor na comunidade de forma saudável.

Além disso, a Justiça Restaurativa busca restaurar as relações humanas e comunitárias, promovendo a cura e a reconciliação, ao passo que o sistema penal tradicional frequentemente gera isolamento e estigmatização (Bazemore & Walgrave, 1999).

Ela opera em um modelo circular, onde vítimas, ofensores e membros da comunidade participam ativamente no processo de resolução. O objetivo principal não é impor uma pena, mas sim promover a compreensão mútua, facilitar a reconciliação e encontrar uma solução que atenda às necessidades de todos os envolvidos. Essa abordagem é baseada na crença de que a justiça verdadeira só pode ser alcançada quando todos os afetados por um crime têm a oportunidade de participar do processo e de expressar suas perspectivas e necessidades.

A principal diferença entre as duas abordagens reside na maneira como cada uma percebe o crime e a justiça. Enquanto a justiça retributiva é punitiva por natureza e se concentra na imposição de penas, a justiça restaurativa é reparativa e busca curar as feridas causadas pelo crime. Isso leva a diferentes resultados e impactos sociais: a justiça retributiva tende a aumentar a marginalização dos ofensores e pode deixar as vítimas insatisfeitas com o processo, enquanto a justiça restaurativa tem o potencial de promover a reconciliação, reduzir a reincidência e fortalecer os laços comunitários.

6. Foco na Empatia e no Diálogo: Como a Justiça Restaurativa se Concentra na Construção de Relacionamentos em vez da Punição

Um dos aspectos mais distintos da justiça restaurativa é seu foco na empatia e no diálogo como ferramentas essenciais para a resolução de conflitos. Enquanto a justiça retributiva frequentemente desumaniza o ofensor, tratando-o meramente como um objeto de punição, a justiça restaurativa vê o ofensor como um ser humano que, embora tenha cometido um erro, é capaz de mudança e de contribuir positivamente para a sociedade.

A empatia é um elemento central na justiça restaurativa. Ela permite que os envolvidos no processo – tanto vítimas quanto ofensores – vejam além dos rótulos de “criminoso” e  “vítima” e  reconheçam a humanidade um do  outro. Isso  é facilitado por processos como os círculos restaurativos e a mediação, onde as partes têm a oportunidade de compartilhar suas histórias, sentimentos e perspectivas em um ambiente seguro e respeitoso.

Durante esses processos, o diálogo desempenha um papel crucial. O diálogo na justiça restaurativa não é simplesmente uma troca de palavras, mas sim uma ferramenta para a construção de entendimento e confiança. Ele permite que as vítimas expressem o impacto que o crime teve em suas vidas, algo que muitas vezes é ignorado na justiça retributiva, onde o foco está na pena do ofensor. Para os ofensores, o diálogo oferece a oportunidade de ouvir diretamente das vítimas sobre as consequências de suas ações, o que pode ser um passo poderoso para o reconhecimento da responsabilidade e para o arrependimento genuíno.

Além disso, o diálogo na justiça restaurativa não se limita às partes diretamente envolvidas. Ele frequentemente inclui membros da comunidade, que também podem ter sido afetados pelo crime e que têm interesse em ver a paz restaurada. Esse envolvimento comunitário é fundamental, pois reconhece que o crime não é apenas uma questão entre o ofensor e a vítima, mas algo que afeta o tecido social como um todo.

Ao concentrar-se na construção de relacionamentos, a justiça restaurativa visa não apenas resolver o conflito imediato, mas também fortalecer a comunidade para prevenir futuros conflitos. A punição, por si só, não cura as feridas deixadas pelo crime nem promove a reintegração do ofensor. Pelo contrário, pode aprofundar a alienação e perpetuar ciclos de violência e exclusão. A justiça restaurativa, ao promover a empatia e o diálogo, busca romper esses ciclos, oferecendo às vítimas a reparação que desejam, aos ofensores a oportunidade de se redimir e à comunidade a chance de se curar e se fortalecer.

Em resumo, enquanto a justiça retributiva se baseia na punição e na imposição de penas como meio de afirmar a ordem social, a justiça restaurativa oferece uma abordagem que valoriza a empatia, o diálogo e a reparação. Ao focar na construção de relacionamentos e na resolução pacífica de conflitos, a justiça restaurativa não apenas responde ao crime de maneira mais humana e inclusiva, mas também promove um sentido mais profundo de justiça e reconciliação, tanto para os indivíduos diretamente envolvidos quanto para a sociedade como um todo.

7. Mecanismos da Justiça Restaurativa
7.1 Círculos Restaurativos

Os círculos restaurativos representam uma das práticas centrais da Justiça Restaurativa e têm suas raízes em tradições indígenas, onde o círculo é visto como um símbolo de igualdade e respeito mútuo. Em essência, os círculos restaurativos são encontros em que todas as partes afetadas por um conflito ou crime se reúnem para dialogar, compartilhar experiências e buscar soluções conjuntas. Esses círculos são mediados por um facilitador treinado, que assegura que o processo ocorra de maneira ordenada e respeitosa.

7.1.1 Funcionamento dos Círculos Restaurativos

O círculo restaurativo é constituído por várias etapas cuidadosamente planejadas para criar um ambiente seguro e inclusivo. Inicialmente, o facilitador convida as partes envolvidas para o círculo, explicando as regras e o objetivo do encontro. Todos os participantes, que podem incluir a vítima, o ofensor, familiares, amigos e membros da comunidade, têm a oportunidade de falar. A palavra é passada em torno do círculo de forma sequencial, garantindo que cada pessoa tenha sua voz ouvida.

O processo do círculo se realiza por meio do ato de contar histórias, no qual todos são respeitados, tendo igual oportunidade de falar sem serem interrompidos (PRANIS, 2010).

Durante o processo, as partes são encorajadas a expressar seus sentimentos e perspectivas sobre o ocorrido. A vítima pode falar sobre o impacto do crime em sua vida, enquanto o ofensor tem a chance de refletir sobre suas ações e demonstrar arrependimento. A ideia é promover a empatia e a compreensão mútua, abrindo caminho para a reparação do dano.

A fase final do círculo envolve a criação de um plano de ação, acordado por todos os participantes, que descreve as medidas que o ofensor tomará para reparar o dano e restaurar a confiança da vítima e da comunidade. Isso pode incluir pedidos de desculpas, compensações financeiras, serviços comunitários ou outras formas de reparação. Através desse processo, busca-se não apenas resolver o conflito imediato, mas também prevenir a recorrência de comportamentos prejudiciais.

7.2 Mediação Vítima – Ofensor

A mediação vítima-ofensor é um mecanismo restaurativo que coloca a vítima e o ofensor frente a frente em um ambiente mediado, com o objetivo de discutir o impacto do crime e explorar formas de reparação. Esse processo difere significativamente dos procedimentos judiciais tradicionais, onde as partes raramente têm a oportunidade de interagir diretamente.

O processo de mediação vítima- ofensor começa com a seleção cuidadosa dos casos. Nem todos os crimes são adequados para mediação, e a participação é sempre voluntária para ambas as partes. Quando um caso é considerado apropriado, e tanto a vítima quanto o ofensor concordam em participar, um mediador treinado é designado para conduzir o processo.

A primeira etapa envolve sessões preparatórias individuais, nas quais o mediador encontra-se separadamente com a vítima e o ofensor para explicar o processo e preparar ambos para o encontro. Essas sessões são fundamentais para garantir que ambas as partes estejam prontas emocionalmente para o diálogo e para estabelecer expectativas claras sobre o que será discutido.

Na sessão de mediação propriamente dita, a vítima e o ofensor se encontram em um espaço seguro e confidencial, com a presença do mediador. A vítima tem a oportunidade de descrever o impacto do crime em sua vida, tanto emocional quanto materialmente. O ofensor, por sua vez, é incentivado a reconhecer o dano causado e a assumir a responsabilidade por suas ações.

O objetivo da mediação não é apenas permitir que a vítima obtenha respostas e expressões de arrependimento, mas também que ambas as partes trabalhem juntas para encontrar uma solução justa e restaurativa. Isso pode incluir acordos sobre reparações financeiras, serviços comunitários ou outras formas de compensação que a vítima considere apropriadas. A mediação encerra-se quando ambas as partes chegam a um acordo que atenda às suas necessidades e expectativas, e esse acordo pode ser formalizado e monitorado para garantir seu cumprimento.

7.3 Conferências Familiares e Comunitárias

As conferências familiares e comunitárias são mecanismos restaurativos que envolvem não apenas as partes diretamente envolvidas no conflito, mas também suas famílias, amigos e outros membros da comunidade. Este modelo reconhece que os crimes e conflitos não afetam apenas os indivíduos diretamente envolvidos, mas têm um impacto mais amplo sobre a comunidade como um todo.

7.3.1 Envolvimento da Comunidade na Resolução de Conflitos

As Conferências de Grupo Familiar têm origem nas reivindicações dos povos nativos da Nova Zelândia, chamados Maori. Na tradição Maori a justiça deve buscar a reparação e não somente a punição, pois tanto a vítima quanto o ofensor precisam da cura, e descobrir a causa da ofensa faz parte da solução. (MACRAE, 2020)

Nas conferências familiares e comunitárias, o processo começa com a convocação de todos aqueles que tenham uma conexão com o ofensor e a vítima, incluindo familiares, amigos, representantes comunitários e, em alguns casos, profissionais como assistentes sociais ou conselheiros. Um facilitador treinado conduz a conferência, garantindo que todos os participantes tenham a oportunidade de falar e contribuir para a discussão.

A conferência geralmente começa com uma descrição do incidente ou crime por parte do facilitador, seguida por depoimentos da vítima e do ofensor. A partir daí, os participantes discutem o impacto do crime não apenas sobre a vítima, mas também sobre as famílias envolvidas e a comunidade em geral. Esse diálogo amplo permite que os participantes compreendam a extensão do dano causado e considerem as necessidades de todos os afetados.

O foco das conferências familiares e comunitárias é a construção de um consenso sobre como o ofensor pode reparar o dano e restaurar as relações dentro da comunidade. As soluções propostas geralmente vão além de simples compensações financeiras, abrangendo ações como pedidos públicos de desculpas, envolvimento em atividades comunitárias, ou a participação em programas de reabilitação. A força desse modelo reside na sua capacidade de mobilizar a comunidade em torno da restauração do ofensor, oferecendo-lhe apoio e orientação para evitar futuros comportamentos delituosos.

Os mecanismos da Justiça Restaurativa, como os círculos restaurativos, a mediação vítima-ofensor e as conferências familiares e comunitárias, oferecem alternativas poderosas e eficazes ao sistema de justiça tradicional. Ao focar na reparação, na responsabilização e na restauração das relações, esses processos não apenas resolvem conflitos imediatos, mas também promovem uma cultura de paz e reconciliação. Embora não sejam apropriados para todos os casos, sua aplicação cuidadosa pode transformar a maneira como lidamos com o crime e o conflito, oferecendo soluções que são justas, humanas e duradouras.

8. O Papel do Diálogo na Justiça Restaurativa

Em uma abordagem que vai além da simples aplicação de normas legais para tratar crimes e conflitos. A Justiça Restaurativa promove um processo de comunicação que visa não apenas resolver o conflito, mas também reparar danos, restaurar relações e transformar vidas. O diálogo é, portanto, a espinha dorsal dessa prática, sendo o meio pelo qual vítimas, ofensores e comunidades podem se envolver em um processo de cura e reconciliação. Através do diálogo, as partes envolvidas são capazes de expressar seus sentimentos, ouvir as perspectivas dos outros e, crucialmente, reconhecer o impacto de suas ações. Este texto explora como o diálogo desempenha um papel central na Justiça Restaurativa, abordando seus principais aspectos: a promoção do diálogo, a escuta ativa e a expressão de sentimentos, e o reconhecimento e a responsabilidade.

8.1 Promoção do Diálogo: O Diálogo como Centralidade na Justiça Restaurativa

O diálogo é o coração pulsante da Justiça Restaurativa. Diferente do modelo tradicional de justiça, que tende a ser adversarial e punitivo, a Justiça Restaurativa promove um ambiente onde o diálogo aberto e honesto é incentivado e facilitado. Através do diálogo, as partes envolvidas em um conflito são encorajadas a falar sobre suas experiências, explorar as causas subjacentes do conflito e, finalmente, trabalhar em conjunto para encontrar uma solução que seja justa e reparadora.

O diálogo na Justiça Restaurativa serve como uma ponte entre a vítima e o ofensor, permitindo que ambos se envolvam em um processo de compreensão mútua. Em muitas situações de conflito, a comunicação entre as partes está quebrada ou inexistente. A Justiça Restaurativa cria um espaço seguro onde o diálogo pode ser restaurado. Esse espaço é cuidadosamente estruturado para garantir que todas as partes tenham a oportunidade de falar e ser ouvidas.

A promoção do diálogo começa com a preparação das partes envolvidas. Facilitadores treinados trabalham com as vítimas e ofensores antes do encontro restaurativo, explicando o processo e ajudando-os a se preparar emocionalmente para a conversa. Durante o encontro, o diálogo é guiado de forma que todos possam contribuir de maneira significativa. Isso é feito através de perguntas abertas e neutras, que encorajam as partes a refletir sobre o impacto do conflito e a pensar em soluções que atendam às necessidades de todos.

Ele também desempenha um papel crucial na prevenção de futuros conflitos. Ao envolver as partes em uma comunicação construtiva, a Justiça Restaurativa promove a empatia e a compreensão, elementos essenciais para a construção de relações mais saudáveis e para a criação de uma comunidade mais coesa e resiliente.

8.2 Escuta Ativa e Expressão de Sentimentos: A Essência do Processo Restaurativo

Um dos componentes mais críticos do diálogo na Justiça Restaurativa é a escuta ativa e a expressão de sentimentos. A escuta ativa vai além de simplesmente ouvir as palavras do outro; envolve a compreensão profunda das emoções, necessidades e perspectivas das partes envolvidas. Da mesma forma, a expressão de sentimentos permite que as partes externalizem suas emoções, muitas vezes reprimidas, de uma maneira que promove a cura e o entendimento.

8.2.1 Escuta Ativa: Um Ato de Empatia

A escuta ativa é um ato de empatia que permite que o ouvinte compreenda plenamente o que a outra pessoa está tentando comunicar, tanto verbalmente quanto não verbalmente. Na Justiça Restaurativa, a escuta ativa é essencial, pois muitas vezes as vítimas e ofensores têm uma necessidade urgente de serem ouvidos e compreendidos. Para a vítima, a escuta ativa oferece um espaço para compartilhar o impacto emocional do crime, permitindo-lhe expressar dor, raiva, medo e outras emoções que possam estar presentes. Para o ofensor, ser ouvido sem julgamento pode abrir caminho para a reflexão e o reconhecimento de suas ações.

Facilitadores treinados desempenham um papel crucial em modelar e encorajar a escuta ativa durante os processos restaurativos. Eles garantem que todas as partes tenham a oportunidade de falar sem interrupções e ajudam a guiar a conversa para que todos os aspectos importantes sejam abordados. A escuta ativa também envolve a reformulação do que foi dito, para garantir que a mensagem tenha sido compreendida corretamente, e o uso de linguagem corporal e sinais não verbais que demonstram atenção e respeito.

8.2.2 Expressão de Sentimentos: A Liberação das Emoções

A expressão de sentimentos é igualmente vital no processo de diálogo restaurativo. Muitas vezes, as vítimas de crimes sentem que suas emoções foram negligenciadas ou minimizadas no sistema de justiça tradicional. A Justiça Restaurativa oferece um espaço onde essas emoções podem ser expressas de maneira segura e respeitosa. Expressar sentimentos permite que as vítimas processem suas experiências e comecem a curar as feridas emocionais deixadas pelo crime.

Para o ofensor, a expressão de sentimentos pode ser um passo crucial para a responsabilização. Ao ouvir o impacto emocional que suas ações tiveram sobre a vítima, o ofensor pode começar a compreender a gravidade de seu comportamento e sentir genuíno arrependimento. Esse processo de internalização dos sentimentos da vítima pode ser o primeiro passo para a mudança de comportamento e a prevenção de futuras ofensas.

O reconhecimento dos danos causados é um momento de profunda importância no processo restaurativo. Através do diálogo, o ofensor tem a oportunidade de ouvir diretamente da vítima

9. Empatia como Ferramenta de Transformação

A empatia, uma habilidade intrínseca ao ser humano, pode ser definida como a capacidade de se colocar no lugar do outro, compreendendo seus sentimentos, emoções e perspectivas. Diferente da simples simpatia, que envolve sentir compaixão ou piedade, a empatia exige um esforço ativo para entender o que o outro está passando, sem julgamento. Essa habilidade é crucial nas interações humanas, pois permite que as pessoas se conectem de maneira mais profunda e significativa, promovendo a compreensão mútua e a cooperação.

“O estado de empatia ou ser empático consiste em aperceber-se com precisão do quadro de referências interno de outra pessoa, juntamente aos componentes emocionais e os significados a ele pertencentes, como se fôssemos a outra pessoa, sem perder jamais a condição de ‘como se’. Portanto, significa sentir as mágoas e alegrias do outro como ele próprio as sente e perceber suas causas como ele próprio as percebe sem, contudo, perder a noção de que é ‘como se’ estivéssemos magoados ou alegres, e assim por diante. Se perdermos esta condição de ‘como se’, teremos um estado de identificação” (ROGERS E ROSENBERG, 1977, p. 71).

No contexto da justiça restaurativa, a empatia desempenha um papel central e transformador. A justiça restaurativa, ao contrário dos modelos tradicionais de punição, busca restaurar as relações entre vítimas, ofensores e a comunidade, enfatizando a reparação do dano causado. Nesse processo, a empatia é cultivada e promovida como uma ferramenta essencial para que todas as partes envolvidas possam entender os impactos do crime ou conflito de uma forma mais humana e compassiva. O ofensor é incentivado a compreender profundamente as consequências de suas ações sobre a vítima e a comunidade, enquanto a vítima tem a oportunidade de expressar seus sentimentos e necessidades em um ambiente de escuta e acolhimento.

Os benefícios da empatia são amplos e impactam positivamente a vítima, o ofensor e a comunidade como um todo. Para a vítima, a empatia recebida pode facilitar o processo de cura, pois ela se sente compreendida e valorizada em suas experiências e dores. Esse reconhecimento é um passo vital para a reconstrução de sua confiança e segurança. Para o ofensor, a prática da empatia pode levar a uma maior conscientização sobre os efeitos de suas ações, promovendo um senso de responsabilidade genuíno e o desejo de reparar o dano causado. Isso pode resultar em uma transformação pessoal, que diminui a probabilidade de reincidência. Para a comunidade, a empatia ajuda a restaurar o tecido social, fortalecendo os laços entre os membros e promovendo uma cultura de paz e respeito mútuo.

Assim, a empatia, quando aplicada de maneira intencional no processo restaurativo, não apenas promove a reconciliação e a justiça, mas também atua como uma poderosa ferramenta de transformação social, capaz de curar feridas, reconstruir relacionamentos e fortalecer as comunidades.

10. Benefícios da Justiça Restaurativa

Um dos principais objetivos da justiça restaurativa é a reparação dos danos, tanto materiais quanto emocionais, causados pelo crime. Esse processo envolve não apenas a compensação financeira ou a restituição de bens, mas também a cura emocional e psicológica das vítimas. Na justiça restaurativa, as vítimas têm a oportunidade de expressar seus sentimentos e necessidades, sendo ouvidas e reconhecidas em suas dores. Esse reconhecimento por parte do ofensor e da comunidade ajuda a restaurar a dignidade da vítima e a promover sua recuperação. Além disso, o ofensor é incentivado a participar ativamente da reparação, assumindo a responsabilidade por suas ações e trabalhando para corrigir o que foi destruído, seja através de serviços comunitários, compensação financeira, ou até mesmo por meio de um simples pedido de desculpas sincero.

10.1 Reintegração Social

A justiça restaurativa também desempenha um papel fundamental na reintegração social do ofensor. Em vez de marginalizar ainda mais a pessoa que cometeu o crime, a justiça restaurativa busca reintegrá-la à sociedade de forma construtiva. Ao participar de processos de reparação e ao ser confrontado diretamente com as consequências de suas ações, o ofensor tem a chance de refletir sobre seus erros e mudar seu comportamento. Esse processo de responsabilização e empatia pode reduzir significativamente as taxas de reincidência, uma vez que o ofensor se sente apoiado na sua jornada de transformação e reinserção social. A comunidade, ao participar desse processo, também desempenha um papel crucial, oferecendo suporte ao ofensor e criando um ambiente propício à sua reintegração.

10.2 Fortalecimento Comunitário

O fortalecimento dos laços comunitários é outro benefício essencial da justiça restaurativa. Ao envolver a comunidade no processo de resolução de conflitos, a justiça restaurativa promove um senso de coesão e solidariedade. Os membros da comunidade têm a oportunidade de participar ativamente na resolução de questões que afetam o coletivo, o que contribui para a construção de um ambiente mais seguro e harmonioso. Além disso, ao promover a reparação e a reconciliação, a justiça restaurativa ajuda a restaurar a confiança entre os membros da comunidade, fortalecendo as relações e criando uma cultura de apoio mútuo e respeito.

11. Análise Crítica: Desafios e Limitações

Embora os casos mencionados acima ilustrem o potencial transformador da justiça restaurativa, é crucial reconhecer os desafios e limitações inerentes à sua aplicação.

Desigualdade de Poder

Em situações onde há uma disparidade significativa de poder entre as partes envolvidas, como em casos de violência doméstica ou abuso sexual, a justiça restaurativa pode inadvertidamente reforçar a dinâmica de poder existente. Se a vítima sentir-se pressionada a participar do processo ou a perdoar o ofensor, o resultado pode ser contraproducente, exacerbando o trauma ao invés de promovendo a cura. Portanto, é essencial que haja mecanismos rigorosos de proteção e suporte para garantir que a participação seja verdadeiramente voluntária e informada.

Resistência Institucional

A integração da justiça restaurativa no sistema de justiça tradicional enfrenta resistências institucionais, principalmente de setores que veem a abordagem restaurativa como leniente ou incompatível com a punição tradicional. Policiais, promotores e juízes, acostumados com o modelo punitivo, podem hesitar em adotar práticas restaurativas, limitando sua aplicação em larga escala. A mudança de paradigma requer não apenas treinamento e sensibilização, mas também uma transformação cultural profunda dentro do sistema de justiça.

Sustentabilidade e Reintegração Comunitária

A eficácia da justiça restaurativa depende da participação ativa e contínua das comunidades. No entanto, em contextos onde a coesão social é fraca ou onde as comunidades são fragmentadas, manter o engajamento a longo prazo pode ser um desafio. Além disso, a reintegração do ofensor, embora seja um dos objetivos principais da justiça restaurativa, pode enfrentar barreiras significativas, como o estigma persistente e a falta de oportunidades econômicas e sociais para os reincidentes.

Em conclusão, enquanto a justiça restaurativa oferece uma alternativa poderosa e muitas vezes mais humana à justiça retributiva, sua aplicação requer uma consideração cuidadosa das dinâmicas de poder, da resistência institucional e do contexto comunitário.

Com abordagens adaptadas e suporte adequado, a justiça restaurativa pode não apenas resolver conflitos imediatos, mas também contribuir para uma transformação social mais ampla, promovendo uma cultura de paz e respeito mútuo.

12. Desafios na Implementação da Justiça Restaurativa em Sistemas Judiciais Tradicionais

A transição de um sistema judicial tradicional, centrado na punição e retribuição, para um que prioriza a restauração e a reparação, é complexa e repleta de resistências. Um dos principais desafios na implementação da justiça restaurativa é a incompatibilidade percebida entre suas práticas e os valores fundamentais do sistema de justiça convencional. O modelo punitivo, profundamente enraizado em muitas culturas jurídicas, vê a justiça como um processo de aplicação rigorosa da lei, onde o Estado detém o monopólio da punição. Nesse contexto, a justiça restaurativa, que busca a resolução de conflitos através do diálogo, é frequentemente vista como uma abordagem “branda” ou insuficiente para lidar com crimes graves.

Além disso, a falta de conhecimento e treinamento adequado entre profissionais do direito sobre os métodos e benefícios da justiça restaurativa contribui para a resistência à sua implementação. Juízes, promotores e advogados, acostumados com o sistema adversarial, podem relutar em adotar práticas que exigem um grau maior de empatia, flexibilidade e colaboração. Essa resistência é amplificada pela ausência de uma estrutura legal clara que legitime e regule a justiça restaurativa de maneira uniforme. Em muitos países, as iniciativas de justiça restaurativa são fragmentadas e inconsistentes, dependentes de programas piloto ou da boa vontade de certos operadores do sistema judicial, o que limita sua aplicação em larga escala.

Outra dificuldade significativa na implementação da justiça restaurativa é a necessidade de criar um espaço seguro para que as vítimas e ofensores possam participar do processo de maneira voluntária e informada. Isso requer não apenas a garantia de confidencialidade e proteção, mas também um suporte psicológico e emocional robusto para todas as partes envolvidas. No entanto, os recursos necessários para proporcionar esse nível de apoio são frequentemente escassos, especialmente em sistemas judiciais sobrecarregados e subfinanciados.

13. Limitações Estruturais e Culturais: Discussão sobre as Barreiras Culturais e Estruturais para a Adoção da Justiça Restaurativa

As barreiras culturais e estruturais desempenham um papel crucial na limitação da adoção da justiça restaurativa. Em termos culturais, a visão punitiva da justiça está profundamente enraizada na sociedade. Muitas culturas veem a punição como uma forma de retribuição moral, onde a justiça é feita quando o infrator “paga” pelo seu crime, seja através da prisão, multa ou outra forma de sanção. Essa visão está associada a uma crença de que o sofrimento do ofensor é necessário para restaurar a ordem e dissuadir futuros crimes. Nesse sentido, a justiça restaurativa, que foca na reparação e reconciliação em vez da punição, pode ser vista como um enfraquecimento do sistema de justiça e, portanto, encontra resistência tanto entre os operadores do direito quanto na sociedade em geral.

As estruturas institucionais também representam um obstáculo significativo. Os sistemas judiciais, em muitos países, foram projetados para lidar com crimes de forma adversarial, onde o processo é conduzido por meio de disputas entre o Estado (como representante da vítima) e o ofensor. A justiça restaurativa, ao contrário, requer um espaço onde as partes envolvidas possam dialogar diretamente, o que desafia a estrutura adversarial. Além disso, os sistemas judiciais tradicionais estão frequentemente sobrecarregados e subfinanciados, o que dificulta a alocação de recursos necessários para a formação de facilitadores de justiça restaurativa, a organização de círculos restaurativos e o acompanhamento contínuo dos casos.

As limitações estruturais incluem também a questão da legislação. Em muitos países, a legislação vigente não oferece uma base legal sólida para a aplicação da justiça restaurativa, especialmente em casos de crimes graves. Isso significa que, mesmo quando existe a vontade de adotar práticas restaurativas, a falta de apoio legal pode limitar sua aplicação ou resultar em decisões judiciais contraditórias. Além disso, a justiça restaurativa muitas vezes é relegada a casos menos graves, como crimes juvenis ou delitos menores, limitando assim seu potencial transformador em crimes de maior impacto social.

Os desafios e limitações da justiça restaurativa, tanto em termos de implementação quanto de barreiras culturais e estruturais, são significativos, mas não intransponíveis. A resistência à sua adoção no sistema de justiça tradicional reflete a necessidade de uma mudança de paradigma que reconheça a reparação e a reconciliação como componentes fundamentais da justiça. Superar essas barreiras exige não apenas reformas legislativas e institucionais, mas também uma mudança cultural que valorize a restauração do dano e a cura das comunidades. Somente através de uma abordagem integrada e sustentada será possível expandir o alcance da justiça restaurativa e realizar seu potencial transformador.

14. Possibilidades para a Expansão da Justiça Restaurativa em Diferentes Contextos

A expansão da justiça restaurativa para além dos contextos tradicionais, como o sistema de justiça criminal, é uma das áreas mais promissoras para seu desenvolvimento futuro. Historicamente, a justiça restaurativa tem sido aplicada principalmente em casos de delitos menores e juvenis, onde o foco está na reabilitação do ofensor e na reparação do dano à vítima. No entanto, há um crescente reconhecimento de que essa abordagem pode ser eficaz em uma ampla variedade de situações, desde conflitos comunitários até disputas empresariais e escolares.

Contextos Comunitários: Em comunidades onde as tensões sociais são elevadas, a justiça restaurativa pode ser uma ferramenta poderosa para mediar conflitos e promover a coesão social. A expansão dessa prática para conflitos comunitários permite que as partes envolvidas dialoguem diretamente, restabeleçam a confiança e trabalhem juntas para encontrar soluções duradouras. Além disso, em comunidades afetadas por crimes de ódio ou discriminação, a justiça restaurativa pode ajudar a abordar as raízes do conflito e facilitar a reconciliação.

Instituições Educacionais: A justiça restaurativa tem mostrado resultados positivos em ambientes escolares, onde sua aplicação pode ajudar a resolver conflitos entre estudantes, reduzir a violência e criar uma cultura de respeito mútuo. A expansão dessa prática para escolas e universidades é uma tendência crescente, com programas sendo desenvolvidos para treinar professores e administradores em técnicas restaurativas. Isso não só melhora o ambiente escolar, mas também ensina aos jovens habilidades importantes para a resolução pacífica de conflitos.

Ambientes Corporativos: Em empresas e organizações, a justiça restaurativa pode ser adaptada para lidar com conflitos internos, como assédio, discriminação e disputas trabalhistas. Em vez de recorrer a processos legais ou disciplinares, a justiça restaurativa oferece uma abordagem que prioriza a reparação do dano, a restauração das relações e a prevenção de futuros conflitos. A expansão dessa prática no ambiente corporativo pode contribuir para a criação de culturas organizacionais mais justas e inclusivas.

Justiça Internacional e Pós-Conflito: A justiça restaurativa tem um papel crescente em contextos de justiça transicional, onde países que emergem de conflitos armados ou regimes opressivos buscam formas de lidar com crimes do passado. A adaptação dessa prática para o nível internacional envolve desafios complexos, mas também oferece a possibilidade de promover a reconciliação e a reconstrução social em larga escala.

15. CONCLUSÃO

A nossa conclusão sobre o artigo em comento – Justiça Restaurativa – deve reafirmar a importância dessa abordagem como uma transformação necessária na maneira como a sociedade lida com conflitos. Ao longo da análise, ficou claro que a Justiça Restaurativa transcende a aplicação tradicional da lei, oferecendo um caminho mais inclusivo e reparador para a resolução de disputas. Esse modelo não apenas desafia os fundamentos do sistema punitivo, mas também propõe uma alternativa baseada na empatia, no diálogo e na restauração das relações sociais.

Autores como Howard Zehr e John Braithwaite demonstram que a Justiça Restaurativa não é apenas uma teoria, mas uma prática que pode ser implementada em diversos contextos, desde sistemas judiciais até escolas e comunidades. Ao focar na reparação do dano e na reintegração do infrator, ela promove uma justiça mais holística e humana. O diálogo, elemento central nesse processo, revela-se como uma poderosa ferramenta de transformação, permitindo que vítimas, ofensores e a comunidade se envolvam em um processo de cura coletiva.

Essa abordagem também traz implicações significativas para o futuro da justiça. Em um mundo cada vez mais polarizado, onde a punição é frequentemente vista como a única resposta aos crimes, a Justiça Restaurativa oferece uma visão diferente – uma visão que prioriza a reconciliação e a restauração do equilíbrio social. É um convite para repensar as bases do sistema jurídico, promovendo uma justiça que, em última análise, busca não apenas punir, mas também curar e fortalecer o tecido social.

Portanto, ao encerrar esta reflexão, fica evidente que a Justiça Restaurativa representa um avanço necessário para a sociedade. Ela não é apenas uma alternativa ao sistema tradicional, mas uma proposta de mudança profunda, onde o diálogo e a reparação assumem um papel central na construção de uma justiça mais justa e equitativa. Essa transformação não ocorre de forma imediata, mas demanda um compromisso contínuo com a mudança de paradigmas, onde a justiça é entendida como um processo restaurador, capaz de transformar vidas e comunidades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, André Gomma de, ed., 2002. Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação (Brasília: Ed. Brasília Jurídica).

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Justiça Restaurativa e Sociedades Complexas: Desafios para sua Implementação. Editora Saraiva, 2012.

SLAKMON, C., R. De Vitto, e R. Gomes Pinto, org., 2005. Justiça Restaurativa (Brasília – DF: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD), p. 140.

BARROS, ana paula mendes de, e batista, vera malaguti. Justiça Restaurativa e Práticas Restaurativas: Reflexões Teóricas e Práticas. Editora Lumen Juris, 2013.

BAZEMORE, G., & WALGRAVE, L. (Eds.). Restorative Juvenile Justice: Repairing the Harm of Youth Crime. Criminal Justice Press. 1999.

BRAITHWAITE, J. The Fundamentals of Restorative Justice, in: Dinnen, S. (Ed.) et al. A kind of Mending: Restorative Justice in the Pacific Islands. Camberra: Pandanus Books, 2003, pp. 35- 43.

CAPPELLETTI, mauro, e garth bryant, 1988. Acesso à Justiça (Porto Alegre: Ed. Sérgio Antonio Fabris).

DEUTSCH, morton, 1973. The Resolution of Conflict: Constructive and Deconstructive Processes (New Haven, CT: Yale University Press).

MACRAE, Allan. ZHER, Howard. Conferências de Grupos Familiares: modelo da Nova Zelândia. Tradução: Fátima de Bastiani. São Paulo: Palas Athena, 2020.

PERRONI, otávio, 2003. “Perspectivas de psicologia cognitiva no processo de Mediação,” in

AZEVEDO, André Gomma de, ed., Estudos em Arbitragem, Mediação e Negociação Vol. 2 (Brasília: Ed. Grupos de Pesquisa).

PIMENTEL, silvia. Justiça Restaurativa: Fundamentos e Prática no Brasil. Editora Revista dos Tribunais, 2015.

PRANIS, K. Círculos de justiça restaurativa e de construção de paz: guia do facilitador. Porto Alegre, RS: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 2011.

ROGERS, Carl; ROSENBERG, Rachel L. A pessoa como centro. São Paulo: EPU, 1977.

SANTOS, José Vicente Tavares dos. Violências e conflitualidade. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2009. (Série Sociologia das Conflitualidades,3).

SCURO NETO, Pedro. A Justiça como Fator de Transformação de Conflitos: Princípios e Implementação. (2.000).

SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa: Para Além da Punição. Editora Marcial Pons, 2018.

SILVA, Elizabet Leal da. Justiça restaurativa como meio alternativo de solução de conflito. Arquivo Jurídico, Teresina: Piauí, v. 1, n. 6, p. 22-38, jan/jun. 2014.

VASCONCELOS, marcelo semer. Justiça Restaurativa: Princípios e Práticas no Brasil. Editora Lumen Juris, 2011.

ZEHR, howard, e ali gohar. The Little Book of Restorative Justice for Colleges and Universities: Repairing Harm and Rebuilding Trust in Response to Student Misconduct. Good Books, 2009.