ADI 1.856 Trial Under the Generational Perspective of Human Rights]
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.11107010
Ana Luísa Menezes Rodrigues¹; Beatriz Silva da Costa²; Fabiano Feitosa de Souza³; Gabriel Wagner de França Mar4; Shayana Sulamita Ferreira Reis5.
Resumo
Este artigo busca analisar a natureza dos direitos humanos, bem como o conceito geracional de estudo dos direitos humanos, como proposto por Karel Vasak, além de aplicar sua classificação ao estudo da ADI 1.856, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, na qual foi debatida a validade jurídico-constitucional da autorização eventos de “rinhas de galo”. Fazendo uso da doutrina e legislação correlata, o estudo pretende ampliar a compreensão acerca da relevância, positivação e aplicabilidade dos direitos humanos.
Palavras-Chaves: Direitos Humanos, Teoria Geracional dos Direitos Humanos, Meio Ambiente.
Abstract
This article intends to analyze the nature of human rights, as well as the generational concept of human rights study, as proposed by Karel Vasak, in addition to applying his classification to the study of the ADI 1.856, judged by the Federal Supreme Court, in which the legal-constitutional validity of “cockfighting” events was discussed. Making use of doctrine and related legislation, the study aims to expand understanding of the relevance, positiveness and applicability of human rights.
Keywords: Human Rights, Human Rights Generational Theory, Environ
INTRODUÇÃO
A evolução intergeracional dos conceitos de direitos humanos é um tema de grande importância nos campos da história, da filosofia política e do direito internacional. Os conceitos sobre quais os direitos que são fundamentais e como assegurá-los mudaram significativamente ao longo dos séculos, refletindo mudanças sociais, políticas e culturais em todo o mundo.
Os direitos humanos são parte inerente da experiência humana. Desde a antiguidade, as sociedades reconheceram a importância de proteger certos valores fundamentais como a vida, a liberdade e a integridade física. Contudo, o conceito moderno de direitos humanos tal como o entendemos hoje é o resultado de um longo processo histórico. A adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos pelas Nações Unidas em 1948 é frequentemente considerada um marco importante na afirmação global destes direitos. No entanto, esta declaração representa apenas uma etapa na evolução do conceito de direitos humanos intergeracionais.
Em 1979, o jurista Karel Vasak propôs uma classificação de “gerações jurídicas”, não pretendendo afirmar sua fundamentação científica, mas visando proporcionar um enquadramento contextual para diferentes categorias de direitos, relacionando-os aos momentos históricos de sua emergência. A teoria de Vasak, baseia-se nos princípios fundamentais da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade, conceitos usados para categorizar os direitos humanos de maneira didática em três perspectivas históricas de compreensão, conhecidas como as gerações de direitos: a primeira geração (direitos de liberdade), a segunda geração (direitos de igualdade) e a terceira geração (direitos de fraternidade).
Este artigo tem como objetivo analisar os direitos humanos, situando suas características nas diferentes gerações propostas por Vasak, bem como aplicar o conceito geracional ao julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.856, cuja finalidade era questionar a validade jurídico-constitucional da Lei estadual nº 2.895/98, do estado do Rio de Janeiro, que autorizava a realização de exposições e competições entre aves das raças combatentes.
1. REFLEXÕES GERAIS SOBRE DIREITOS HUMANOS
“Muita discussão circunda o assunto eventualmente denominado “Direitos humanos”. Convém iniciar essa revisão bibliográfica com a ressalva de Carlos Henrique Bezerra Leite (2004, p. 104) que evidencia uma das questões inerentes ao tema ao apontar que a doutrina faz uso de diversas nomenclaturas para tratar do mesmo coletivo de garantias, assim sendo: “direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos da pessoa humana, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e direitos fundamentais”.
No decorrer deste artigo, as escolhas dos autores originais serão mantidas, contudo a discussão não se afasta do objeto principal, que neste momento inicial se trata da discussão teórica da natureza e aplicabilidade dos Direitos Humanos.
No escopo da revisão bibliográfica, destaca-se a conclusão de R. Bäumlin (apud Canotilho, 1997), ao afirmar que “a história das constituições é a história apaixonada dos homens”. Essa observação condensa alguns dos conceitos basilares ao debate sobre Direitos Humanos, quais sejam: seu aspecto histórico-social, sua proteção constitucional e uma evolução indivisível de quaisquer desses elementos. Canotilho ainda nota que “essa ‘paixão’ e esta ‘história’ marcam muitos capítulos da história do direito constitucional. Saber ‘história’ é um pressuposto ineliminável do ‘saber constitucional’”. (1997, p.15)
Em seu Curso de Direitos Humanos (2017), André de Carvalho Ramos parte da perspectiva que direitos humanos são um conjunto de garantias essenciais, indispensáveis para uma vida digna, observando ainda que seria impossível determinar quantas ou quais seriam essas garantias, visto que as necessidades humanas são variáveis e não podem ser percebidas à parte de seu contexto social e histórico.
Essa ideia reverbera com os dizeres de Cristina Queiroz (2002) ao tratar de direitos fundamentais. A autora destaca que a distribuição de papéis no desenvolvimento jurídico varia tanto no tempo, acompanhando o período histórico, quanto no espaço, em sujeição ao Estado constitucional. Assim, “à dependência dos direitos fundamentais no texto constitucional contrapõe-se a sua dependência do ‘contexto histórico-social’ em que se movem” (2002, p. 49).
Ao tratar da efetivação da terceira dimensão dos direitos humanos no contexto do capitalismo neoliberal, momento econômico global absolutamente moderno, Ana Paula de Moraes Pissaldo (2015) destaca que há uma batalha pela implementação dos Direitos Humanos, travada em diversas frontes, sejam elas formais, como ações de líderes de Estado-Nação, da sociedade acadêmica e de organizações como a ONU, ou informais, como a atuação de indivíduos comuns da sociedade global, em suas devidas comunidades. A autora ainda faz uso das palavras de Imre Szabo para esclarecer que:
1. Os Direitos humanos constituem uma noção jurídica; 2. No sistema legal os Direitos humanos são cobertos por dois ramos do direito, a saber: Direito Constitucional (interno) e Direito Internacional; 3. Os Direitos humanos protegem o indivíduo independentemente de seu conflito ser com o próprio Estado, principalmente pelo fato de essa ser a razão do Estado, ou seja, ele é uma ficção jurídica que se materializa por seus órgãos, neste caso, os cidadãos. (Szabo apud Pissaldo, 2015, p. 46).
Essa citação traz luz a um aspecto central na discussão dos Direito Humanos: a relação entre indivíduo e Estado. Nesse escopo, George Sarmento (s.a., p.1) define que os direitos humanos são faculdades de agir que “nascem na ordem jurídica supraestatal e são recepcionados nos países que se comprometeram a assegurá-los e garanti-los em suas Constituições”. Tal definição, apesar de fiel à prática da recepção dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no ordenamento jurídico, cria uma separação entre a garantia e o indivíduo, como se o direito só lhe fosse assegurado em face à recepção.
Contudo, Ramos (2017) atesta que as “ideias-âncoras” dos direitos humanos são referentes à justiça, igualdade e liberdade, e impregnam a vida social desde o surgimento das primeiras comunidades humanas. E, conforme observa Szabo (op. cit.), o valor fundamental dos direitos humanos antecede a composição do próprio Estado, sendo intrínseco ao indivíduo. Tratam-se de direitos que asseguram a dignidade de vida, diretamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo portanto, inalienáveis e indisponíveis.
Ainda sobre a relação entre indivíduos e o Estado, Sérgio Resende de Barros (2003, p. 365) observa a dinâmica entre governantes e governados, destacando que “entre as características dos direitos humanos está a de se opor ao governo para limitar ou exigir sua atuação, conforme se cuide de defender ou de promover o indivíduo na comunidade onde o poder atua e o indivíduo se realiza”.
Entretanto, é essencial observar que tanto a atuação do Estado quanto a realização do indivíduo estão interligados ao aspecto histórico-social mencionado anteriormente. Em síntese, não há uma linearidade histórica que institua o nascimento dos direitos humanos, ao contrário, foi a sociedade evoluiu a tal ponto, que passou a reconhecer bens, que sempre estiveram presentes, como dignos de tutela. Antônio Carlos Wolkmer (2002) reflete que:
As teses de que os homens possuem direitos naturais que antecedem qualquer sociedade política se fortaleceram no século XVIII com a Declaração de Virgínia (1776) e com a Declaração Francesa de 1789. Tais direitos que se afirmam como direitos dos indivíduos considerados “inalienáveis e sagrados” materializam reivindicações concretas acerca de valores históricos, sobretudo referentes à liberdade e à dignidade humana (p. 10)
Compreender a natureza dos direitos humanos é essencial para assimilar que não há como se falar de uma proteção eficiente dessas garantias, sem a devida observação às subjetividades temporais, espaciais e coletivas que envolvem a valorização daquele direito. Wolkner também destaca que é diante da ampliação dos “novos” direitos de natureza humana, que surge a necessidade de sistematizar a evolução do reconhecimento desses direitos.
Surge assim, a perspectiva geracional dos direitos humanos.”
2 . TEORIA GERACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Não são poucos os esforços para sistematizar ou esclarecer a tutela das garantias que envolvem os direitos humanos. Ramos (2017) aponta, além de outros esforços, a teoria dos “status”, desenvolvida por George Jellinek, que observava inicialmente o estado da relação do indivíduo com o Estado, sob a ótica dos direitos, bem como as classificações feitas com base em suas funções, finalidades e formas de reconhecimento.
Wolkmer (2002) observa ainda que a compreensão sobre uma evolução linear e acumulativa de “gerações” sucessivas de direitos assimila diversas tipologias, desde a classificação dos direitos civis, políticos e sociais, estabelecida por T.H. Marshall, até formulações mais modernas, incluindo de doutrinadores nacionais, como Paulo Bonavides e Ingo W. Sarlet.
Entre todos esses métodos de organização temática, a teoria geracional, originalmente proposta por Karel Vasak em 1979, destaca-se ao ilustrar uma evolução histórica do reconhecimento dos direitos humanos, partindo dos notórios princípios da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Na teoria crítica dos Direitos Humanos, esse aspecto evolutivo, bem como a proposta de gerações como fases de uma evolução, não são bem recebidos. Barbosa (2019) aponta que a noção de gerações de direitos humanos, agrega uma perspectiva linear, derivada da narrativa europeia, que institui que os direitos dependem da normatização para passar a existir, sendo possível reconhecer esses momentos históricos e estabelecer uma linha do tempo.
Marques (2007) indica que a classificação geracional tende a ser uma divisão estagnada, e defende uma observação histórica pautada em que esteja presente “o ponto de vista da movimentação dialética e de inter-relacionamento, tanto entre as gerações quanto em suas respectivas categorias de direitos” (p. 16).
Feitas as ressalvas, há que se observar a composição teórica de Karel Vasak. Essencialmente, o jurista segmentou os direitos humanos em três gerações. A primeira, referente aos direitos de liberdade, resultantes do movimento libertário francês do século XVIII; a segunda, abrangendo direitos sociais, culturais e econômicos, com base na relação do indivíduo com a sociedade nos séculos XIX e XX; e a terceira geração, de ordem mais ampla, cultural, envolve direitos que lidam com os riscos sociais do fim do século XX, tais como o meio ambiente saudável e o desenvolvimento tecnológico sustentável.
Sarlet (2016) resume as gerações de Vasak da seguinte forma:
respectivamente, direitos de matriz liberal-burguesa, as liberdades e garantias civis e políticas, a segunda dimensão representada pelo direitos econômicos e sociais de caráter eminentemente positivo (prestacional) e voltados à garantia de determinados padrões de segurança social e igualdade e material a exigir determinados níveis de intervenção estatal no domínio do mercado e da economia, bem como uma terceira dimensão, composta – segundo o autor – por direitos culturais e de linguagem e mais recentemente os direitos ambientais. (p. 502).
Historicamente, a primeira geração dos direitos fundamentais surgiu com as revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. Leite (2004) aponta que esse tipo de direitos está assentado no liberalismo clássico e no iluminismo racionalista, fundamental ao pensamento ocidental entre os séculos XVI e XIX. São os chamados direitos de liberdade ou direitos individuais, abarcando a tutela dos direitos civis e políticos do indivíduo diante do Estado.
Wolkmer define que estes direitos são “inerentes à individualidade, tidos como atributos naturais, inalienáveis e imprescritíveis, que por serem de defesa e serem estabelecidos contra o Estado, têm especificidade de direitos “negativos”” (2002, p. 13). Sarlet ainda enriquece o contexto ao atestar que:
esses direitos individuais, civis e políticos surgem no contexto da formação do constitucionalismo político clássico que sintetiza as teses do Estado Democrático de Direito, da teoria da tripartição dos poderes, do princípio da soberania popular e da doutrina da universalidade dos direitos e garantias fundamentais (1998, p. 48-49).
Na perspectiva de Marques (2007), o reconhecimento dos direitos de primeira geração permitiu uma prática descontrolada da nova liberdade, permitindo que o capitalismo industrial se intensificasse, deteriorando o bem-estar da comunidade, principalmente no aspecto das condições de trabalho, e evidenciando a necessidade de se reconhecer valores de caráter social, menos individualistas. Era o princípio do processo de legitimação dos direitos de segunda geração, que Pissaldo (2015) caracteriza “pela igualdade em que a sociedade clama pela intervenção estatal para que os direitos sociais sejam garantidos e efetivados” (p. 35).
De acordo com a definição de Leite (2004), os direitos de segunda geração:
traduzem-se, portanto, em direitos de participação. Requerem, por isso, uma política pública que tenha por objeto, sobretudo, a garantia do efetivo exercício das condições materiais de existência de contingentes populacionais. São direitos de igualdade substancial entre as espécies humanas. Inserem-se no rol dos direitos fundamentais de segunda geração os direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades (p. 105)
Reconhecidos os direitos individuais e os direitos sociais, cabe então à terceira geração dos Direitos Humanos valorizar uma proteção comunitária, baseada num princípio de solidariedade. Nas palavras de Ramos (2017), estes direitos “são oriundos da constatação da vinculação do homem ao planeta Terra, com recursos finitos, divisão absolutamente desigual de riquezas em verdadeiros círculos viciosos de miséria e ameaças cada vez mais concretas à sobrevivência da espécie humana” (p. 54).
Pissaldo (2015) define que nesse momento ocorre uma mudança, do indivíduo antropocêntrico para o indivíduo antropofilíaco, processo ratificado pelo estudo da horizontalização dos Direitos Humanos, que integra o indivíduo na responsabilidade pela condição humana de seu semelhante.
Algumas das proteções dos direitos de terceira geração são: o desenvolvimento, a paz, a autodeterminação e o meio ambiente equilibrado. Como observa Leite (2004), são garantias dotadas humanismo e universalidade, que:
não se destinam especificamente à proteção de um indivíduo, de um grupo de pessoas ou de um determinado Estado, pois os seus titulares são, via de regra, indeterminados. A rigor, seu destinatário, por excelência, é o próprio gênero humano, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos existenciais. (LEITE, 2004. p. 105)
A discussão acerca da natureza dos Direitos Humanos, bem como seu processo de surgimento e sistemática de classificação não se encerra na teoria geracional. Contudo, apesar de eventuais críticas na doutrina especializada, há um valor didático na compreensão histórica, principalmente no sentido de esclarecer os contextos em que a valorização destas necessidades se tornou inquestionável.
O objeto central dessa pesquisa é a análise da ADI 1.856, ação movida para questionar a adequação constitucional de legislação estadual que autorizava a realização de exposições e competições entre aves de raças combatentes. Trata-se de práticas de maus tratos ou crueldade animal, ou seja, uma ofensa direta à fauna brasileira. É latente, portanto, que a questão pertence à tutela dos direitos humanos de terceira geração, aqueles de natureza coletiva, ou mesmo, transindividual, como diz parte da doutrina.
Necessário então, observar que tipo de proteções são destinadas ao meio ambiente no ordenamento jurídico brasileiro, para melhor compreender sua aplicação no caso em tela.
3. LEGISLAÇÃO RELACIONADA
Lima e Costa (2015) traçam breve histórico sobre a rinha de galos, destacando os marcos normativos da atividade no ordenamento brasileiro. De acordo com os autores, o evento foi implantado no país, na época da colonização, pelos espanhóis, sem regulamentação. Em 1934, Getúlio Vargas promulgou o Decreto Federal nº 24.645, estabelecendo medidas protetivas aos animais, incluindo as touradas como lutas entre animais, sem considerar as rinhas. Em 1941, a Lei de Contravenções Penais passou a proibir a crueldade contra animais, mas as rinhas não foram impedidas, devido a polêmicas envolvendo sua legalidade. A primeira vedação expressa só ocorreu em 1961, quando o Decreto nº 50.620 foi editado por Jânio Quadros, proibindo qualquer espetáculo cuja atração envolvesse luta de animais. A resposta geral foi negativa devido à circulação de dinheiro que os eventos promoviam. Em 1962, Tancredo Neves revoga o decreto proibitivo, liberando as rinhas outra vez.
Em 1988, a Constituição Federal institui, capítulo próprio, dentro do título da ‘Ordem Social’, destinado ao meio ambiente. Mateus Silveira (2018), elucida que, ao reconhecer a preocupação com os riscos ambientais, a Constituição Federal, especialmente em seu art. 225, não apenas positiva o direito ao meio ambiente, como o estabelece como direito fundamental constitucional, necessário à ordem social.
Esse pensamento reverbera nos dizeres de Niechenski (2017), que afirma que a Constituição Federal tanto concretiza o meio ambiente ecologicamente equilibrado como condição de bem de uso comum do povo, e essencial à sadia qualidade de vida, quanto impõe ao Estado e à coletividade o dever de proteção e preservação ambiental.
Observa-se aqui que não há como distinguir o direito à vida ou à dignidade da pessoa humana, dos direitos que protegem o ambiente onde essa vida se desenvolve. Bosselmann (2010) consagra essa lógica ao atestar que:
[…] direitos humanos e o meio ambiente estão inseparavelmente interligados. Sem os direitos humanos, a proteção ambiental não poderia ter um cumprimento eficaz. Da mesma forma, sem a inclusão do meio ambiente, os direitos humanos correriam o perigo de perder sua função central, qual seja, a proteção da vida humana, de seu bem-estar e de sua integridade. (p. 91)
Mesmo diante da complexidade do tema e do reconhecimento positivado na relevância do meio ambiente à humanidade, a criminalização das rinhas de galo só acontece em ocasião pós-constitucional, quando a Lei 9.605/1998 tipifica práticas de maus-tratos a animais como crime ambiental.
Neste escopo, convém observar a atuação do Supremo Tribunal Federal, buscando reconhecer nuances das garantias humanitárias, na estrutura em que foram classificadas pela teoria geracional.
4. ADI 1.856: RINHAS DE GALOS E A DEFESA DO MEIO AMBIENTE
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.856, proposta pelo Procurador-Geral da República, tinha por finalidade questionar a validade jurídico-constitucional da Lei estadual nº 2.895/98, do estado do Rio de Janeiro, que autorizava a realização de exposições e competições entre aves das raças combatentes.
A sustentação da referida inconstitucionalidade era motivada diretamente pelo caput do art. 225 do texto constitucional, qual seja:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (Constituição Federal da República, 1988)
Nos apontamentos da inicial, fica atestada a antinomia entre o disposto na lei estadual e o texto constitucional, uma vez que o legislador estadual deixou de observar o princípio da intervenção estatal obrigatória na defesa do meio ambiente, que torna compulsória a atividade dos órgãos e agentes estatais. Para o Procurador-Geral da República, é:
inegável que a Lei Estadual nº. 2.895/98 possibilita a prática de competição que submete os animais a crueldade, como é cediço dizer em se tratando de rinhas de brigas de galos, em flagrante violação ao mandamento constitucional proibitivo de práticas cruéis envolvendo animais. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI 1856, Relator Min. Celso de Mello, 2011).
Ao requerer o reconhecimento da plena validade constitucional da norma impugnada, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro manifestou-se no sentido de que os eventos autorizados pela lei teriam forte fator de integração de comunidades do interior do Estado, inclusive pelos empregos gerados em, aproximadamente, cem rinhas de galo e setenta centros esportivos.
E, para combater o argumento do Procurador-Geral, acerca do descumprimento do art. 225, é feita a seguinte alegação:
Objeto de proteção, (…), é a fauna como componente do ecossistemas.
Em sentido lato, prossegue, a palavra fauna refere-se ao conjunto de todos os animais de uma região ou de um período geológico, abrangendo aí a fauna aquática, a fauna das árvores e de solo (insetos e microorganismos) e a fauna silvestre (animais de pêlo e de pena).
Não é de se incluírem os animais domésticos e domesticados, nem os de cativeiro, criatórios e de zoológicos particulares, devidamente legalizados, remata o emérito constitucionalista.
Sucede que, na hipótese ‘sub examen’, pretende-se estender o objeto da tutela ambiental ao galo de briga que, consoante pronunciamento formal do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, entidade vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, dos Recursos Hídricos e da Amazônia Legal (DOC. II), é considerado como ave doméstica, escapando pois daquela de âmbito material de incidência do comando constitucional.
Ainda que se admitisse, ‘ad argumentandum tantum’, que estivesse o galo combatente incluído na fauna silvestre, mesmo assim não há como prosperar a pretensão na inicial deduzida. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI 1856, Relator Min. Celso de Mello, 2011)
Em sua análise do pleito, o Excelentíssimo Relator, Ministro Celso de Mello, destaca o dever ético-jurídico de preservar tanto a fauna quanto a própria subsistência do gênero humano em um meio ambiente ecologicamente equilibrada, bem como alerta para o impacto negativo que a prática de comportamentos predatórios e lesivos à fauna (como submeter animais a atos de crueldade) representa para a incolumidade do patrimônio ambiental dos seres humanos.
O Ministro assevera ainda, que o reconhecimento do direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, preceito inscrito no art. 225 da Constituição Federal é a consagração de uma das mais expressivas prerrogativas asseguradas às formações sociais contemporâneas. Notadamente, para o autor, o direito à integridade do meio ambiente constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva e, sendo o meio ambiente patrimônio público, é encargo irrenunciável tanto do poder público quanto da coletividade.
Entrando nos aspectos específicos do caso em tela, e no olhar jurídico sobre fenômeno das rinhas de galo, o relator faz uso incontestável da jurisprudência do próprio Supremo Tribunal Federal:
Impende destacar que, em período que antecedeu a promulgação da vigente Constituição, esta Suprema Corte, em decisões proferidas há quase 60 (sessenta) anos, já enfatizava que as “brigas de galos”, por configurarem atos de crueldade contra referidas aves, deveriam expor-se à repressão penal do Estado (RE 39.152/SP, Rel. Min. HENRIQUE D’ÁVILA – RHC 35.762/SP, Rel. Min. AFRÂNIO COSTA, v.g.), eis que – como então reconhecia o Supremo Tribunal Federal – “A briga galo não é um simples desporto, pois maltrata os animais em luta…” (RHC 34.936/SP, Rel. Min. CÂNDIDO MOTA FILHO – grifei). (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI 1856, Relator Min. Celso de Mello, 2011)
Confrontando o teor da manifestação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o Ministro assinala ainda que tanto os animais silvestres quanto os domesticados, incluídos os galos utilizados em rinhas, estão protegidos pela parte final do art. 225, § 1º, inciso VII, da Constituição Federal, não sendo possível ou necessária qualquer interpretação diversa.
Observa-se ainda, que a prática de rinhas de galo é considerada ilícita e criminosa pelo ordenamento positivo brasileiro, sendo sua tipificação tratada no art. 32 da Lei de Crimes Ambientais.
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
Oportunamente, convém destacar que a alegação de que “rinhas de galo” detém um valor cultural às comunidades envolvidas, poderia indicar conflito entre Direitos Humanos. Especificamente, seria um conflito entre a preservação de uma tradição (direito cultural) e a preservação da fauna (direito ambiental). Sem ignorar o aparente choque de princípios, o Ministro faz novo uso de votos anteriores da Suprema Corte para concluir que:
“A sujeição da vida animal a experiências de crueldade não é compatível com a Constituição do Brasil”, como enfaticamente proclamou esta Suprema Corte (ADI 2.514/SC, Rel. Min. EROS GRAU), que, por mais de uma vez, também rejeitou a alegação de que práticas como a “briga de galos” e a “farra do boi” pudessem caracterizar manifestações de índole cultural, fundadas em usos e em costumes populares verificados no território nacional (…) (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI 1856, Relator Min. Celso de Mello, 2011)
Nesse ínterim, destaca-se o voto de Ministro Néri da Silveira (apud Mello), que pontua que “a cultura pressupõe desenvolvimento que contribua para a realização da dignidade da pessoa humana e da cidadania e para a construção de uma sociedade livre”, alinhado ao pensamento de que “os princípios e valores da Constituição em vigor (…), apontam no sentido de fazer com que se reconheça a necessidade de se impedirem as práticas, não só de danificação ao meio ambiente, de prejuízo à fauna e à flora, mas também que provoquem a extinção de espécies ou outras que submetam os animais à crueldade”. (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, ADI 1856, Relator Min. Celso de Mello, 2011)
Estruturado nesses argumentos, o voto do Excelentíssimo Ministro Celso de Mello é no sentido de declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 2.895, de 20 de março de 1998, editada pelo Estado do Rio de Janeiro.
Em plenário, após breve debate acerca da competência da Corte para julgar o caso, a Decisão do Tribunal foi unânime e acompanhando integralmente os termos do voto do Relator, no sentido de rejeitar as preliminares arguidas e, no mérito, também por unanimidade, julgou procedente a ação direta para declarar a inconstitucionalidade da Lei nº 2.895, de 20 de março de 1998, do Estado do Rio de Janeiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.856 sobre a validade jurídico-constitucional de lei que autorizava a realização de exposições e competições entre aves das raças combatentes, nada mais é do que a reafirmação da evolução histórica dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro.
Partindo de um momento cultural em que essas competições eram vistas exclusivamente como fonte de renda e entretenimento, a instituição do art. 225 da Constituição Federal incorpora valores éticos de preservação ambiental que ultrapassam a individualidade humana, tanto em direitos quanto em obrigações.
Como observam Lima e Costa (2015), o compromisso admitido:
implica no respeito em relação aos interesses da geração vindoura que, não podendo no tempo presente exercer seus direitos de cidadão, devem ser compreendidos em sua importância e respeitados para que a balança do equilíbrio pretendido pelo meio ambiente penda para a proteção daquilo que necessitarão para viver e viver dignamente. (p. 114)
Ao pensar em novas dimensões e fundamentações dos Direitos Humanos, Antônio Carlos Wolkmer (2002), evidencia que a teoria jurídica formalista, instrumental e individualista, vem sendo repensada por “múltiplas transformações tecno-científicas, das práticas de vida diferenciadas, da complexidade crescente dos bens valorados e de necessidades básicas, bem como da emergência de atores sociais, portadores de novas subjetividades (individuais e coletivas)”.
O julgamento da ADI 1.865 evidencia que o aspecto coletivo dos direitos humanos de terceira geração desperta a necessidade de uma proteção difusa entre o Estado e a coletividade. Aplicado ao contexto das rinhas de galo, o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado depende tanto de limites e restrições estabelecidos em norma geral, quanto do compromisso pela preservação ambiental, em sua esfera individual, como observa Wolkmer (2002):
Impõe-se a construção de outro paradigma para a teoria jurídica em suas dimensões civil, pública e processual, capaz de contemplar o constante e o crescente aparecimento histórico de emergentes direitos humanos. Esses “novos” direitos de atribuição humana que se desvinculam de uma especificidade absoluta e estanque assumem caráter relativo, difuso e metaindividuais.(WOLKMER, 2002)
Acompanhando esse argumento, Oliveira e Cenci (2017) denotam que os direitos fundamentais se originam, a priori, no direito à vida e que “este traz como condição imprescindível a proteção do meio ambiente, na profunda relação entre homem e natureza, em que ambos se fundem e se confundem, sendo, pois, inseparáveis”. (p. 296).
Resta evidente que os direitos de terceira geração também se estendem à proteção do meio ambiente, como patrimônio comum da humanidade. Uma vez que a proteção e preservação do meio ambiente integram os direitos de terceira geração, não há como afastar sua natureza solidária e coletiva diante do compromisso em promover a dignidade da pessoa humana, tanto para a geração atual, quanto para outras, que vierem a suceder.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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¹Graduanda do 10º Período em Direito na Faculdade Santa Teresa
²Graduanda do 10º Período em Direito na Faculdade Santa Teresa
³Graduando do 10º Período em Direito na Faculdade Santa Teresa
4Graduando do 10º Período em Direito na Faculdade Santa Teresa
5Graduanda do 10º Período em Direito na Faculdade Santa Teresa