JUDGES OF GUARANTEES ARE NOT GUARANTEES: THE URGENCY OF CONCRETE PROTECTION OF FUNDAMENTAL INDIVIDUAL RIGHTS
REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202510241216
Luiz Braz de Melo Machado Junior1
Gustavo Antônio Nelson Baldan2
RESUMO
O presente ensaio visa analisar a efetividade do Juiz das Garantias no cenário do processo penal brasileiro, especialmente após o advento do Pacote Anticrime. Investiga-se se essa figura judicial tem contribuído para proteger os direitos fundamentais diante dos desafios práticos e estruturais do sistema de justiça criminal. O ensaio aborda o funcionamento do sistema acusatório e sua relação com o garantismo penal, destacando os princípios de imparcialidade e legalidade. Buscou-se explorar também os vieses cognitivos, como a dissonância cognitiva e o efeito primazia, que em determinados casos podem comprometer a imparcialidade do juiz (como ocorreu na operação Satiagraha), reforçando a necessidade de separar as funções investigativas e judicantes. Além disso, o trabalho aponta limitações do Juiz das Garantias frente a abusos estatais, violações à cadeia de custódia e impunidade, especialmente contra grupos vulneráveis. Conclui-se que há necessidade de mudanças estruturais para garantir uma proteção real dos direitos fundamentais, e não apenas um mecanismo formal no processo penal brasileiro.
Palavras-chave: Juiz das Garantias. Garantismo Penal. Sistema Acusatório. Direitos Fundamentais individuais. Processo Penal.
ABSTRACT
This essay aims to analyze the effectiveness of the Guarantees Judge in the Brazilian criminal process, especially after the enactment of the Anticrime Package. It investigates whether this judicial figure has contributed to protecting fundamental rights in the face of the practical and structural challenges of the criminal justice system. The essay addresses the functioning of the adversarial system and its relationship with criminal guarantees, highlighting the principles of impartiality and legality. It also seeks to explore cognitive biases, such as cognitive dissonance and the primacy effect, which in certain cases can compromise the judge’s impartiality (as occurred in Operation Satiagraha), reinforcing the need to separate investigative and adjudicatory functions. Furthermore, the work highlights limitations of the Guarantees Judge in the face of state abuses, violations of the chain of custody, and impunity, especially against vulnerable groups. It concludes that structural changes are necessary to ensure real protection of fundamental rights, rather than merely a formal mechanism in the Brazilian criminal process.
Key-words: Judge of Guarantees. Criminal Guarantees. Accusatory System. Individual Fundamental Rights. Criminal Procedure.
1 INTRODUÇÃO
Este ensaio tem como tema central a análise da instituição do Juiz das Garantias no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após a promulgação do Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019). A questão que orienta a pesquisa é: qual é a efetividade do Juiz das Garantias na proteção dos direitos fundamentais no processo penal brasileiro, considerando os avanços normativos e os desafios práticos enfrentados?
A justificativa para este estudo reside na relevância de compreender se a implementação do Juiz das Garantias, prevista como mecanismo garantista para assegurar a imparcialidade judicial e a legalidade na fase investigatória, tem realmente contribuído para a efetivação dos direitos fundamentais, em um contexto marcado por denúncias recorrentes de abusos estatais e violações aos direitos humanos no Brasil.
O objetivo geral do trabalho é responder à questão da efetividade do Juiz das Garantias como instrumento de proteção dos direitos fundamentais no processo penal brasileiro. Para tanto, os objetivos específicos incluem: (1) analisar o contexto legislativo e jurisprudencial que originou a criação do Juiz das Garantias; (2) compreender o funcionamento do sistema acusatório e sua relação com o garantismo penal; (3) discutir os fundamentos teóricos do garantismo penal e sua aplicação prática; (4) examinar os vieses cognitivos que podem afetar a imparcialidade judicial; e (5) avaliar as limitações práticas e os desafios para a atuação efetiva do Juiz das Garantias frente à realidade das violações de direitos no Brasil.
No segundo capítulo, o estudo detalha o Pacote Anticrime e a introdução do Juiz das Garantias no Código de Processo Penal, incluindo a suspensão inicial da norma e a posterior decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu sua constitucionalidade, ressaltando a função específica deste juiz na fase investigatória para garantir a imparcialidade no processo penal.
O terceiro capítulo aborda o modelo acusatório no processo penal, explicando a separação das funções de acusar, defender e julgar, e a importância dessa estrutura para assegurar o equilíbrio processual e a imparcialidade judicial, além de destacar o papel do Juiz das Garantias nesse contexto, em consonância com as mudanças trazidas pelo Pacote Anticrime e posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça.
No quarto capítulo, são explorados os princípios do garantismo penal de Luigi Ferrajoli e as influências dos vieses cognitivos, como a dissonância cognitiva e o efeito primazia, que impactam a tomada de decisão judicial. O capítulo enfatiza a necessidade da separação entre as funções investigativas e judicantes para prevenir a contaminação cognitiva e preservar os direitos fundamentais no processo penal.
O quinto capítulo analisa a insuficiência da atuação do Juiz das Garantias diante da persistência das violações aos direitos humanos no Brasil, destacando dados recentes sobre abusos estatais, falhas na cadeia de custódia de provas e presos, e a cultura institucional que dificulta a efetiva proteção dos direitos fundamentais, apontando para a necessidade de reformas estruturais e mudanças culturais para garantir a eficácia do instituto.
A metodologia adotada para esta pesquisa é de abordagem qualitativa, com análise dedutiva e dialética. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental, baseada no estudo da legislação, jurisprudência, doutrina e dados institucionais atuais. O tratamento dos dados ocorreu por meio da análise crítica e interpretativa do material coletado, buscando articular os aspectos teóricos e práticos que envolvem a atuação do Juiz das Garantias no contexto do sistema penal brasileiro.
2 PACOTE ANTICRIME E A INSTITUIÇÃO DO JUIZ DAS GARANTIAS
O processo penal é um instrumento fundamental na proteção da dignidade humana, devendo operar sob os princípios da legalidade e igualdade entre as partes, além de respeitar rigorosamente garantias previamente estabelecidas que asseguram um procedimento justo e transparente, respeitando os direitos fundamentais.
Com a promulgação da Lei nº 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime, foram introduzidos no Código de Processo Penal os artigos 3º-A a 3º-F, sob o título “disposições preliminares”, com vigência inicialmente prevista para o dia 23 de janeiro de 2020. Contudo, na véspera dessa data, em 22 de janeiro, o ministro Luiz Fux suspendeu indefinidamente (sine die) a implementação das normas referentes ao juiz das garantias e suas medidas correlatas.
Foi somente em 24 de agosto de 2023 que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do juiz das garantias durante julgamento das ADIs3 (6298, 6299, 6300 e 6305).
De forma unânime, a Corte fixou um prazo máximo de doze meses após essa decisão (publicada em 24/08/2023) para que fossem adotadas as providências legislativas e administrativas necessárias à adaptação das diversas leis relacionadas à organização judiciária.
Esse movimento tem por objetivo assegurar concretamente tanto a implantação quanto operação plena do juiz das garantias por todo território nacional conforme diretrizes definidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável pela supervisão desse processo.
A função do Juiz Das Garantias consiste em supervisionar investigações criminais enquanto protege direitos individuais cuja fruição depende prévia autorização judicial; assim não pode exercer funções relativas à instrução ou julgamento posteriormente nesse mesmo caso visando garantir imparcialidade aos processos judiciais.
Sob esse prisma ligado ao Princípio do Garantismo Penal, a instituição deste novo cargo representa avanço significativo rumo à consolidação de um sistema processual comprometido com direitos fundamentais.
Essa medida reforça claramente distinções entre atividades investigatórias, acusatórias e julgadoras garantindo respeito aos princípios constitucionais tais como devido processo legal, ampla defesa, contraditório bem como imparcialidade dos juízes demonstrando ser verdadeira fortificação dentro Estado Democrático Jurídico.
Especificamente, a função do Juiz das Garantias abrange o controle da legalidade da investigação criminal, a proteção de inviolabilidades pessoais como intimidade, privacidade e honra, e a avaliação da necessidade e proporcionalidade de medidas cautelares que podem restringir direitos, como prisões provisórias, quebras de sigilo bancário e telefônico, e buscas e apreensões.
Além disso, o instituto visa prevenir que investigações se prolonguem indefinidamente ou prossigam sem justa causa, garantindo a razoável duração do processo, um direito fundamental que assegura celeridade e eficiência na persecução penal.
Um dos objetivos mais cruciais da criação do Juiz das Garantias é assegurar a imparcialidade judicial. Isso é alcançado ao afastar o juiz que decidirá o mérito da causa dos elementos de convicção produzidos e direcionados ao órgão de acusação durante a fase investigatória, mitigando o risco de contaminação cognitiva e de formação de juízo prévio.
A criação dessa figura confirma também compromisso jurídico frente ao modelo de justiça criminal capaz de proteger cidadãos contra abusos estatais resguardando as dignidades humanas,
3 MODELO DO SISTEMA ACUSATÓRIO NO PROCESSO PENAL
Quando se olha para as garantias processuais penais, o sistema acusatório representa uma conquista, já que estabelece um modelo de justiça em que há clara separação entre as funções de acusar, defender e julgar. Ao contrário do sistema inquisitorial, historicamente marcado pela concentração de poderes nas mãos do julgador e pela fragilização da posição do acusado, o modelo acusatório busca assegurar a imparcialidade do juiz e o equilíbrio entre as partes, princípios fundamentais em um Estado Democrático de Direito.
Ao contrário foi o que aconteceu no caso da Operação Satiagraha, onde a defesa do banqueiro Daniel Dantas e sua irmã Verônica Dantas pediu ao Supremo Tribunal Federal a concessão de habeas corpus para que ambos aguardassem em liberdade o trâmite da investigação (HC 95.009/SP).
O julgamento desse habeas corpus é emblemático, pois revela tensões entre o combate à criminalidade e o respeito às garantias constitucionais.
A Operação Satiagraha foi deflagrada pela Polícia Federal em julho de 2008, após quatro anos de investigação, com o objetivo de desmantelar um suposto esquema de corrupção, lavagem de dinheiro, gestão fraudulenta, evasão de divisas e formação de quadrilha (Agência Câmara de Notícias, 2008).
Entre os principais alvos estavam Daniel Dantas (Grupo Opportunity), o investidor Naji Nahas e o ex-prefeito de São Paulo Celso Pitta. A operação foi marcada por ilegalidades, como o uso indevido de agentes da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) sem autorização legal, o que levou à anulação das provas e da ação penal pelo STJ em 2011.
O julgamento do HC 95.009/SP pelo Supremo Tribunal Federal é emblemático nesse sentido.
A Corte reconheceu que a prisão preventiva, quando decretada sem fundamentação concreta, configura antecipação indevida da pena e afronta à presunção de inocência, prevista no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal.
Nesse julgamento, o Ministro Eros Grau reforçou que a prisão cautelar não pode se basear em meras suposições, como a possibilidade de o réu obstruir investigações ou continuar delinquindo. Em suas palavras:
Mera suposição — vocábulo abundantemente utilizado no decreto prisional — de que o paciente obstruirá as investigações ou continuará delinquindo não autorizam a medida excepcional de constrição prematura da liberdade de locomoção. Indispensável, também aí, a indicação de elementos concretos que demonstrassem, cabalmente, a necessidade da prisão. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 95009-4/SP. Plenário. Ministro Eros Grau, julgado em 06 nov. 2008. Diário da Justiça, Brasília, DF, 09 dez. 2008, p. 640)
Esse entendimento reforça a importância da atuação do Juiz das Garantias como mecanismo de controle da legalidade na fase investigatória, impedindo que medidas cautelares sejam decretadas com base em presunções genéricas e sem respaldo fático.
O juiz das garantias, ao atuar de forma independente e imparcial, concretiza os princípios do sistema acusatório e protege os direitos fundamentais do investigado, especialmente a liberdade e a presunção de inocência.
No sistema acusatório, a persecução penal não pode ser iniciada ou conduzida sem que haja uma acusação formal por parte do Ministério Público ou do querelante, no caso de ação penal privada.
Isso significa que o juiz atua como um terceiro imparcial, com a função de garantir a legalidade do processo, jamais substituindo a atuação das partes, especialmente no que se refere à produção de provas de acordo com o pacote anticrime e o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (2024), no relato abaixo:
De acordo com o ministro, a partir da Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime, está vedado ao juiz, de ofício, não apenas a conversão da prisão em flagrante em preventiva, como também a decretação da prisão preventiva em qualquer hipótese. Segundo explicou o vice-presidente do STJ, a lei alterou o artigo 282, parágrafo 4º, e o artigo 311, ambos do Código de Processo Penal. (STJ, HC 926.724, rel. Min. Og Fernandes, decisão liminar, DJe 05/07/2024.)
Tal característica visa evitar a contaminação da atividade jurisdicional pela parcialidade decorrente da condução investigativa, fenômeno típico do modelo inquisitivo.
A estrutura acusatória foi expressamente incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com o advento da Lei nº 13.964/2019, por meio da inclusão do artigo 3º-A ao Código de Processo Penal.
A norma estabelece que o processo penal terá estrutura acusatória, sendo vedada a iniciativa do juiz na fase investigativa, bem como a substituição da atuação probatória do órgão acusador.
Essa previsão normativa reafirma princípios constitucionais como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e, sobretudo, a imparcialidade do julgador.
Entretanto, a eficácia do sistema acusatório não se limita à sua previsão legal: é imprescindível que seus princípios sejam efetivamente incorporados por todos os operadores do Direito, em especial juízes, e membros do Ministério Público, cujas práticas ainda refletem, em muitos casos, traços do paradigma inquisitorial.
Para que esse modelo deixe de ser uma formalidade vazia e se transforme em instrumento de justiça efetiva, é imprescindível uma mudança cultural que valorize o respeito às funções institucionais e o compromisso inegociável com os direitos fundamentais.
Isso implica abandonar a visão do processo penal como mero meio de punição imediata e reconhecer seu verdadeiro papel: garantir um julgamento justo, imparcial e equilibrado, em conformidade com os princípios do Estado Democrático de Direito.
Para tanto, conforme de depreende do artigo Mídia e Processo Penal:
Com o avanço dos meios de comunicação, a velocidade com que as informações são divulgadas desperta no público um ímpeto por punição imediata, ignorando-se que o acusado continua sendo titular de direitos fundamentais, mesmo diante da suspeita ou prática de infração penal (Souza, 2008, p. 103)
Esse cenário revela a urgência de uma efetiva internalização dos princípios do sistema acusatório, sob pena de perpetuarmos um modelo de justiça simbólica, mais preocupado em atender à expectativa social de punição do que em garantir um processo penal justo, constitucionalmente orientado e equilibrado.
O juiz das garantias não pode ser reduzido a um elemento decorativo na engrenagem processual, mas deve atuar como verdadeira barreira institucional contra abusos, desvios e arbitrariedades. Quando sua função é esvaziada, o processo penal perde sua legitimidade e se converte em um instrumento de validação formal de decisões previamente contaminadas por interesses externos, sejam eles midiáticos, políticos ou institucionais, comprometendo a própria ideia de Estado de Direito.
Se seguirmos essa óptica, plantaremos laranjas e colheremos maçãs, um contrassenso processual, em vez de formar verdadeiros guardiões da legalidade e da imparcialidade, conforme exige a figura do juiz das garantias, formaremos meros atores de um sistema disfuncional, que reproduz aparência de justiça enquanto fragiliza, na prática, os direitos e garantias fundamentais que deveriam proteger.
No entanto, não basta apenas uma separação das funções, é necessário que o julgador de fato se mantenha alheio a qualquer propensão a um dos lados, bem como seja efetivado os direitos e garantias individuais do acusado no decorrer do processo (Alves, p. 15, 2024).
Como bem ressaltado, a imparcialidade não se resume a uma estrutura normativa, mas exige vigilância constante contra desvios subjetivos, como pré-julgamentos ou afinidades inconscientes com os órgãos de acusação. Assim, a efetividade do sistema acusatório depende não apenas da forma, mas da substância com que se aplicam as garantias processuais, sob pena de perpetuarmos um simulacro de imparcialidade, sem alcançar a justiça material que o processo penal deve assegurar.
4 GARANTISMO PENAL E OS VIÉSES DA DISSONÂNCIA COGNITIVA E EFEITO PRIMAZIA
O garantismo, conforme desenvolvido pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli (2002, p. 7) é um conceito robusto e multifacetado, aplicável a diversas áreas do direito, mas com especial relevância no direito penal.
Nessa abordagem Ferrajoli (2002, p. 8) argumenta que o poder punitivo estatal deve ser rigidamente restringido por garantias legais e processuais, assegurando assim a proteção do indivíduo contra abusos de autoridade.
Ferrajoli (2002 p. 73/75) propõe dez princípios ou axiomas fundamentais que devem guiar o sistema penal garantista, expressos por máximas latinas e seus princípios correspondentes, conforme segue abaixo:
1) Nulla poena sine crimine (Princípio da retributividade): Garante que a sanção penal só pode ser aplicada se houver um crime previamente estabelecido, protegendo contra punições arbitrárias;
2) Nullum crimen sine lege (Princípio da legalidade): Assegura que a conduta criminosa e a pena devem ser definidas por lei antes da sua prática, fundamental para a segurança jurídica;
3) Nulla lex (poenalis) sine necessitade (Princípio da necessidade): Limita o poder punitivo, exigindo que a criminalização seja a última ratio, apenas quando estritamente necessária.
4) Nulla necessitas sine iniuria (Princípio da Lesividade): Impede a punição de condutas que não causem lesão ou perigo concreto a um bem jurídico tutelado.
5) Nulla iniuria sine actione (Princípio da Materialidade): Exige que o crime seja uma conduta exteriorizada, afastando a punição de meros pensamentos ou intenções.
6) Nulla actio sine culpa (Princípio da culpabilidade): Estabelece que ninguém pode ser punido sem que sua conduta seja dolosa ou culposa (responsabilidade subjetiva).
7) Nulla culpa sine iudicio (Princípio da Jurisdicionalidade):A apuração da culpa e a imposição da pena dependem de um processo judicial regular. O JG assegura o controle judicial da investigação.
8) Nullum indicium sine accusation (Princípio Acusatório): Impõe a separação das funções de acusar e julgar. O JG é uma manifestação direta deste princípio na fase pré-processual.
9) Nulla accusatio sine probatione (Princípio da Carga da Prova): Atribui à acusação o ônus de provar a materialidade e a autoria do crime, protegendo o réu da presunção de culpa.
10) Nulla probatio sine defensione (Princípio do Contraditório): Garante o direito à ampla defesa e ao contraditório em todas as fases do processo.
Nesse cenário dos axiomas, a principal função do Juiz das Garantias reside em atuar como um guardião da legalidade e da imparcialidade na fase investigatória, essencial para a concretização dos princípios garantistas no processo penal.
Essa separação é crucial para reforçar dois axiomas fundamentais do garantismo de Ferrajoli: o Princípio da Jurisdicionalidade (Nulla culpa sine iudicio) e o Princípio Acusatório (Nullum indicium sine accusatione).
O primeiro garante que a apuração da culpa e a imposição da pena dependam de um processo judicial regular, onde o Juiz das Garantias assegura o controle judicial da investigação. O segundo impõe a clara separação das funções de acusar e julgar, assegurando que o juiz seja um terceiro imparcial, equidistante das partes.
A principal função do Juiz das Garantias, portanto, é mitigar o risco de “contaminação cognitiva”. Ao afastar o juiz que decidirá o mérito da causa do contato com os elementos de convicção produzidos na fase investigatória, ele previne a formação de um juízo prévio que poderia comprometer a imparcialidade do julgamento.
Essa problemática acima, cujo campo está concentrado na psicologia, fala-se em teoria da dissonância cognitiva e o efeito primazia. O primeiro descreve o desconforto mental causado pela contradição entre ideias ou comportamentos e para melhor exemplo, nas palavras de Silva Alves (2024 p.46):
Por exemplo, um indivíduo deseja um carro novo que seja barato e cause poucos danos ambientais, com isso em mente vai à uma concessionária e se depara com dois tipos de carros, cada um com as características que almeja, mas nenhum com ambas. Neste momento, é preciso decidir qual das duas opções (crenças) será levada em consideração na hora de fazer essa escolha e qual será desprezada, no caso, o economicamente viável ou o ecologicamente correto. Logo, decidir sobre determinada questão não é uma simples seleção e sim lidar com um conflito íntimo de ponderação entre concepções íntimas próprias.
Ou seja, a tomada de decisão, mesmo em contextos aparentemente racionais, é profundamente influenciada por fatores psicológicos internos, como a dissonância cognitiva esse mecanismo demonstra que escolhas, inclusive jurídicas, envolvem não apenas argumentos técnicos, mas também conflitos subjetivos entre valores, percepções e crenças pré-existentes.
Já quanto ao segundo, o efeito primazia é um conceito da psicologia que descreve a tendência humana de atribuir mais importância às primeiras informações recebidas, em detrimento das que vêm depois.
No contexto jurídico, isso significa que as impressões iniciais, como a narrativa da acusação ou as primeiras provas apresentadas, podem influenciar desproporcionalmente o julgamento do caso, mesmo que evidências posteriores apontem em outra direção. Esse viés cognitivo compromete a imparcialidade do julgador e reforça a necessidade de estruturas que garantam distanciamento entre o magistrado e a fase investigativa, como é o caso do juiz das garantias. Nas palavras de Alves (2024 p.46):
O efeito primazia, por sua vez, elucida que as pessoas têm tendência a aceitar melhor as informações que lhe forem apresentadas primeiros em detrimento daqueles que forem dadas posteriormente. Normalmente é associado àquela ideia de “primeira impressão” que se costuma ter quando se conhece alguém ou algo novo.
Em síntese, tanto a teoria da dissonância cognitiva quanto o efeito primazia revelam que a racionalidade humana, inclusive no contexto jurídico, é profundamente influenciada por mecanismos psicológicos que impactam a percepção e a tomada de decisões.
Essa preocupação foi evidenciada no julgamento da Operação Satiagraha (HC 95009-4/SP), na qual o Ministro Cezar Peluso fez uma distinção técnica crucial ao afirmar: “Uma coisa é fato novo; outra coisa é prova nova de fato velho.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 95009-4/SP. Plenário. Ministro Eros Grau. Voto: Cezar Peluso. Julgado em 06 nov. 2008. Diário da Justiça, Brasília, DF, 09 dez. 2008, p. 640) A frase ilustra como a confusão entre elementos repetitivos e fatos novos pode reforçar convicções já formadas, exemplificando o efeito primazia. Além disso, ao se deparar com provas que contradizem suas impressões iniciais, o juiz pode experimentar dissonância cognitiva, buscando inconscientemente justificar decisões anteriores em vez de reavaliá-las com isenção.
O caso da Operação Satiagraha, que originou o HC 95.009, é um exemplo emblemático.
A intensa cobertura midiática e a antecipação de narrativas acusatórias criaram um ambiente de pressão institucional, favorecendo a formação de juízos prévios. O julgamento revelou como essas influências podem comprometer a imparcialidade judicial, reforçando a necessidade de estruturas que garantam o distanciamento entre o magistrado e a fase investigativa. O Juiz das Garantias, nesse cenário, atua como antídoto institucional contra os efeitos psicológicos que podem distorcer a aplicação da justiça penal.
Diante disso, torna-se ainda mais relevante a existência de garantias estruturais no processo penal, como o instituto do juiz das garantias, cuja função é justamente mitigar os efeitos de impressões iniciais e conflitos internos que podem comprometer a imparcialidade e a justiça da decisão. Reconhecer e considerar essas influências é fundamental para a construção de um processo penal verdadeiramente equilibrado e comprometido com os direitos fundamentais.
Nesse cenário, o juiz das garantias atua como uma verdadeira barreira institucional contra abusos, desvios e arbitrariedades, garantindo que a atividade jurisdicional não seja contaminada pela parcialidade decorrente da condução da investigação, traço característico do sistema inquisitivo.
Assim, sua atuação concretiza os fundamentos do garantismo penal, ao assegurar que a apuração da culpa ocorra dentro de um processo judicial regular e sob controle imparcial.
Caso não sejam respeitados os limites legais e constitucionais que regem a produção de provas e a atuação judicial, ocorre flagrante violação aos direitos fundamentais, com consequências gravíssimas para a validade do processo penal.
Como destaca Alexandre de Moraes (2021, p. 343), a inobservância dessas garantias pode acarretar a nulidade processual de todos os atos praticados, especialmente quando há afronta direta aos princípios da legalidade, da imparcialidade e do devido processo legal. In verbis:
Provas obtidas em desrespeito a diversos princípios constitucionais e direitos e garantias individuais
– Prova ilícita – Derivação da ilicitude: STJ– “Participação irregular, induvidosamente comprovada, de dezenas de funcionários da Agência Brasileira de Informação (ABIN) e de ex-servidor do SNI em investigação conduzida pela Polícia Federal. Manifesto abuso de poder. Impossibilidade de considerar-se a atuação efetivada como hipótese excepcionalíssima, capaz de permitir compartilhamento de dados entre órgãos integrantes do Sistema Brasileiro de Inteligência. Inexistência de Preceito Legal autorizando-a. Patente ocorrência de intromissão estatal, abusiva e ilegal na esfera privada, no caso concreto. Violações da honra, da imagem e da dignidade da pessoa humana. Indevida obtenção de prova ilícita. Porquanto colhida em desconformidade com preceito legal. Ausência de razoabilidade. As nulidades verificadas na fase pré-processual e demonstradas à exaustão, contaminam a diversos dispositivos de lei. Contrariedade aos princípios da legalidade, da imparcialidade e do devido processo legal. Inquestionavelmente caracterizada a autoridade do juiz está diretamente ligada a sua independência ao julgar e à imparcialidade. Uma decisão judicial não pode ser ditada por critérios subjetivos, norteada pelo abuso de poder ou distanciada dos parâmetros legais. Essas exigências decorrem dos princípios democráticos e dos direitos e garantias individuais inscritos na Constituição. Nulidade dos procedimentos que se impõe, anulando-se, desde o início, a ação penal. 1. Uma análise detida dos 11 (onze) volumes que compõem o HC demonstra que existe uma grande quantidade de provas aptas a confirmar, cabalmente, a participação indevida, flagrantemente ilegal e abusiva, da ABIN e do investigador particular contratado pelo Delegado responsável pela chefia da Operação Satiagraha. 2. STJ – ‘Não há se falar em compartilhamento de dados entre a ABIN e a Polícia Federal, haja vista que a hipótese dos autos não se enquadra nas exceções previstas na Lei nº 9.883/99. 3. Vivemos em um Estado Democrático de Direito, no qual, como nos ensina a Profa. Ada Pellegrini Grinover, in ‘Nulidades no Processo Penal’, ‘o direito à prova está limitado, na medida em que constitui as garantias do contraditório e da ampla defesa, de sorte que o seu exercício não pode ultrapassar os limites da lei e, sobretudo, da Constituição’. 4. No caso em exame, é inquestionável o prejuízo acarretado pelas investigações realizadas em desconformidade com as normas legais, e não convalescem, sob qualquer ângulo que seja analisada a questão, porquanto é manifesta a nulidade das diligências perpetradas pelos agentes da ABIN e um ex-agente do SNI, ao arrepio da lei. 5. Insta assinalar, por oportuno, que o juiz deve estrita fidelidade à lei penal, dela não podendo se afastar a não ser que imprudentemente se arrisque a percorrer, de forma isolada, o caminho tortuoso da subjetividade que, não poucas vezes, desemboca na odiosa perda da imparcialidade. Ele não deve, jamais, perder de vista a importância da democracia e do Estado Democrático de Direito. 6. Portanto, inexistem dúvidas de que tais provas estão irremediavelmente maculadas, devendo ser consideradas ilícitas e inadmissíveis, circunstâncias que as tornam destituídas de qualquer eficácia jurídica, consoante entendimento já cristalizado pela doutrina pacífica e lastreado na torrencial jurisprudência dos nossos tribunais. 7. Pelo exposto, concedo a ordem para anular, todas as provas produzidas, em especial a dos procedimentos nº 2007.61.81.010208-7 (monitoramento telefônico), nº 2007.61.81.011419-3 (monitoramento telefônico), e nº 2008.61.81.008291-3 (ação controlada), e dos demais correlatos, anulando também, desde o início, a ação penal, na mesma esteira do bem elaborado parecer exarado pela douta Procuradoria da República” (STJ – 5ª Turma – HC 149.250/SP – Rel. Min. Adilson Vieira Macabu (desembargador convocado o TJ-RJ), decisão: 7-6-2011.
A nulidade das provas contaminou todo o processo, evidenciando que a autoridade do juiz está diretamente vinculada à sua independência e imparcialidade.
A decisão judicial não pode ser guiada por critérios subjetivos, tampouco por abusos de poder ou desvios institucionais.
Portanto, ao estabelecer uma separação clara entre as funções de investigar e julgar, essa figura judicial fortalece o modelo acusatório, garantindo que o magistrado preserve sua equidistância e imparcialidade, elementos indispensáveis à efetiva proteção dos direitos e garantias individuais, conforme os princípios do garantismo de Ferrajoli.
5 A INSUFICIÊNCIA DO JUIZ DAS GARANTIAS NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: ENTRE AVANÇOS FORMAIS E ABUSOS ESTATAIS
As denúncias de violações de direitos humanos no Brasil entre 2023 e 2024 revelam um quadro alarmante, que desafia qualquer ilusão de que o ordenamento jurídico, por si só, seja capaz de proteger efetivamente a dignidade da pessoa humana.
Segundo dados da Agência Brasil (2025) o Disque 100 recebeu, em 2024, mais de 657,2 mil denúncias, o que representa um crescimento de 22,6% em relação a 2023. O número de violações verificadas saltou de 3,4 milhões para 4,3 milhões no mesmo período.
Esses números não são meras estatísticas: são expressões concretas do fracasso institucional em coibir a violência estrutural e as práticas autoritárias que ainda permeiam o funcionamento do Estado brasileiro.
Entre as violações mais recorrentes estão aquelas que atentam contra a integridade física e psíquica dos cidadãos, com destaque para casos de negligência (464,3 mil), tortura psíquica (389,3 mil) e agressões físicas com risco à saúde (368,7 mil).
Esses dados indicam não apenas a persistência de condutas ilícitas, mas também revelam uma cultura institucional tolerante com a violência estatal, muitas vezes exercida sob o manto da legalidade ou da suposta manutenção da ordem.
Como bem observa Guilherme Nucci (2025 p. 34) é justamente nesse contexto que se destaca a importância da atuação do juiz das garantias, cuja função é assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais durante a investigação criminal.
Para o Nucci (2025), os direitos fundamentais, como a vida, a liberdade e a igualdade preexistem à lei e devem ser protegidos pelo Estado, enquanto as garantias, como o contraditório, a ampla defesa e a publicidade processual são mecanismos legais criados para dar efetividade a esses direitos. Assim, o juiz das garantias atua como um fiscal da legalidade, impedindo que o poder público ultrapasse os limites constitucionais sob o pretexto de manter a ordem.
Outro ponto em que ocorre a violação de direitos é a cadeia de custódia, tanto da prova quanto do preso, algo que constitui elemento estruturante do processo penal democrático.
Ela é essencial para a proteção dos direitos fundamentais e para a produção de decisões judiciais lícitas e baseadas em provas idôneas. Contudo, a realidade brasileira expõe um cenário de violações sistemáticas a esse instituto, revelando não apenas falhas operacionais, mas uma cultura institucional permissiva ao autoritarismo e à seletividade penal.
No tocante à cadeia de custódia da prova, observa-se a frequente ausência de protocolos rigorosos na coleta, transporte e armazenamento dos vestígios, o que compromete sua integridade e confiabilidade.
A quebra dessa cadeia, seja pela ausência de registros precisos ou pelo manuseio inadequado das provas, abre espaço para contaminações e manipulações que deslegitimam os resultados processuais.
Como consequência, o processo penal deixa de cumprir sua função de apuração da verdade real, ficando sujeito a nulidades, absolvições por falta de provas idôneas ou, pior, condenações injustas baseadas em elementos viciados.
Paralelamente, a cadeia de custódia do preso, essencial para garantir sua integridade física e psíquica desde a abordagem até a audiência de custódia, é rotineiramente violada. A virtualização das audiências de custódia, somada à baixa fiscalização, agrava esse quadro, dificultando a identificação de abusos e fragilizando a proteção judicial imediata ao detido.
Casos de tortura, maus-tratos, ausência de comunicação com a defesa e omissões no registro de horários e condições de detenção revelam não apenas negligência, mas um padrão de atuação estatal que resiste à proteção de direitos e garantias individuais.
Ainda nesse contexto de falta de responsabilização e impunidade estatal, manifesta o Conselho Nacional do Ministério Público (2024 p. 24):
Dois dos maiores desafios no combate à tortura e aos maus-tratos são a impunidade e a falta de responsabilização dos agentes do Estado envolvidos nesses atos. Muitas vezes, os perpetradores contam com a proteção das instituições governamentais ou do sistema legal, o que dificulta a aplicação da justiça e perpetua um ciclo de abusos.
Fatores que dificultam as apurações dos crimes de tortura e fomentam a impunidade se consubstanciam no fato de que é um fenômeno que ocorre em locais de pouca visibilidade social; poucas são as vítimas e/ou testemunhas que se encorajam a denunciar e sustentar a denúncia, sem desconsiderar que ninguém que figure no polo ativo reconhece ou assume as agressões e, mesmo quando as denúncias são levadas adiante, poucos são os casos que são devidamente apurados e os que são, por razões diversas, não são levados a bom termo.
Essas violações não são meramente acidentais: refletem um modelo punitivista e seletivo que opera à margem das garantias constitucionais, afetando desproporcionalmente grupos vulneráveis, em especial a população negra e periférica.
Ao comprometer a cadeia de custódia, o Estado rompe com os pilares do devido processo legal e da presunção de inocência, perpetuando práticas autoritárias sob a aparência de legalidade.
Neste contexto, a existência normativa da cadeia de custódia é insuficiente.
Sua efetividade exige reformas estruturais, investimentos em infraestrutura, capacitação contínua de agentes públicos, controle externo rigoroso e compromisso interinstitucional com os valores democráticos. Sem essas condições, o processo penal continuará sendo um instrumento de opressão, e não de justiça, mantendo o abismo entre o direito proclamado e a realidade vivida nas ruas e nas celas do país.
A figura do juiz das garantias, prevista no art. 3º-A do Código de Processo Penal, emerge como tentativa legislativa de assegurar maior imparcialidade no processo penal, ao separar as funções de acusar e julgar.
No entanto, sua existência formal não basta diante de um aparato estatal que frequentemente instrumentaliza o processo penal como ferramenta de repressão social, sobretudo contra os segmentos mais vulneráveis.
Como alerta Alexandre de Moraes (2024, p. 15), “não é o juízo das garantias a verdadeira salvação da pátria em matéria de Justiça Criminal”.
A advertência é pertinente: reformas normativas, embora relevantes, não alcançam sozinhas a raiz do problema, que reside na permanência de um modelo autoritário, seletivo e marcado por uma cultura inquisitorial resistente à consolidação de práticas garantistas.
O garantismo penal, conforme estudado de Luigi Ferrajoli (2002), estabelece limites rígidos ao poder punitivo do Estado, baseado em princípios como legalidade estrita, culpabilidade e separação entre acusação e julgamento.
O juiz das garantias, embora inspirado nessa lógica, é apenas uma peça dentro de um sistema que, sem reformas estruturais, continuará sendo um simulacro de Estado Democrático de Direito.
Sua criação pode representar um avanço legislativo, mas sem suporte institucional e mudança cultural, corre o risco de se tornar mero ornamento jurídico, incapaz de conter os abusos estatais cotidianamente renovados.
A prática revela que o Estado brasileiro, com frequência, viola os direitos que deveria proteger. Seja pela omissão diante de denúncias, pela morosidade processual, pela violência policial não responsabilizada ou pelo encarceramento em massa de pessoas pobres e negras, o sistema de justiça criminal opera como um mecanismo de perpetuação da desigualdade e da exclusão social.
Nessas circunstâncias, o juiz das garantias, quando inexistente ou mal implementado, torna-se mais um exemplo da distância entre o direito posto e a realidade vivida.
Portanto, é preciso mais do que vontade política ou reformas pontuais. É urgente uma reconfiguração institucional que rejeite o modelo punitivista e autoritário, valorize a dignidade humana e estabeleça mecanismos reais de controle e responsabilização do Estado.
Caso contrário, persistiremos na contradição de uma democracia formalmente instituída, mas substancialmente falha, onde a violência estatal segue legitimada em nome da ordem e o juiz das garantias, um instituto promissor, permanecerá impotente diante das sistemáticas violações de direitos fundamentais.
6 CONCLUSÃO
O presente ensaio, em seu primeiro capítulo introduziu o debate sobre o Juiz das Garantias, contextualizando sua criação pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019) e levantando a questão central da pesquisa: sua efetividade na proteção dos direitos fundamentais. Foram delineados os objetivos gerais e específicos, bem como a metodologia, evidenciando a importância do tema diante de recorrentes abusos estatais no Brasil.
No segundo capítulo, foi abordada a instituição do Juiz das Garantias e o trâmite legislativo e judicial que envolveu sua implementação. Destacou-se seu papel na fase investigatória, garantindo imparcialidade, respeito ao devido processo legal e proteção contra prolongamentos indevidos das investigações.
O terceiro capítulo analisou o sistema acusatório, que separa as funções de acusar, defender e julgar, buscando preservar a imparcialidade do juiz e evitar a contaminação cognitiva. Foi ressaltada a necessidade de mudança cultural e prática dos operadores do Direito para que o modelo acusatório vá além do papel e se concretize na realidade processual.
O quarto capítulo explorou o garantismo penal de Luigi Ferrajoli e a influência dos vieses cognitivos, especialmente a dissonância cognitiva e o efeito primazia, na tomada de decisão judicial. Evidenciou-se como o Juiz das Garantias atua como barreira institucional para mitigar tais vieses e assegurar julgamentos imparciais.
O quinto capítulo demonstrou as limitações práticas do Juiz das Garantias diante das persistentes violações de direitos humanos, falhas na cadeia de custódia e cultura institucional autoritária. Apontou que, sem reformas estruturais e mudança cultural, o instituto corre o risco de ser apenas um avanço formal, incapaz de conter abusos estatais.
Em síntese, o estudo conclui que o Juiz das Garantias representa um importante passo no fortalecimento do sistema acusatório e na concretização dos princípios garantistas.
Entretanto, sua efetividade depende não apenas de sua previsão legal, mas também de suporte institucional, fiscalização efetiva e compromisso cultural dos agentes públicos com a preservação dos direitos fundamentais.
Para que o Juiz das Garantias cumpra plenamente seu papel, é necessário um conjunto de medidas: aprimoramento da formação de magistrados e operadores do Direito com foco em garantismo e imparcialidade; implementação de protocolos rigorosos para a cadeia de custódia de provas e presos; fortalecimento do controle externo da atividade policial e judicial; e ampliação da transparência e da participação social na fiscalização do sistema de justiça. Somente assim será possível transformar o instituto em instrumento concreto de proteção, e não em mero ornamento jurídico.
Portanto, a solução passa por uma reforma ampla, que una mudanças legislativas, investimentos em infraestrutura e tecnologia, capacitação permanente dos agentes públicos e, principalmente, um compromisso ético com a dignidade humana. Sem essa combinação, o risco é perpetuar a contradição de um sistema que, embora avance formalmente, permanece ineficaz na garantia dos direitos que proclama proteger.
3A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é um processo judicial no Brasil que serve para declarar inconstitucional uma lei ou ato normativo federal ou estadual que contrarie a Constituição Federal
REFERÊNCIAS
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1Acadêmico do Curso Superior de Direito, do Centro Universitário de Jales (UNIJALES), Jales – SP.
E-mail: luizbrazmachadojr@gmail.com
2Mestre em Ciências Ambientais na Universidade de Brasil, orientador e professor do Curso de Direito do Centro Universitário de Jales (UNIJALES), Jales – SP.
