INTERSECCIONALIDADE E RESISTÊNCIA: DESAFIOS E AVANÇOS NA LUTA PELOS DIREITOS LGBTQIAPN+ NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

INTERSECTIONALITY AND RESISTANCE: CHALLENGES AND ADVANCEMENTS IN THE FIGHT FOR LGBTQIAPN+ RIGHTS IN CONTEMPORARY BRAZIL

REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10672786


Fabrícia Keilla Oliveira Leite1
Flávia Regina Souza Martins2
Teodoro Antunes Gomes Filho3


Resumo: O cenário brasileiro atual coloca em destaque os desafios para a concretização dos direitos humanos da população LGBTQIAPN+. Esta pesquisa aborda a resistência histórica e institucional ao reconhecimento desses direitos, intensificada pela ascensão de movimentos políticos conservadores. A metodologia utilizada envolve uma análise de marcos legislativos, políticas públicas e a aplicação da interseccionalidade para compreender as nuances da luta por esses direitos. O objetivo é explorar a dinâmica dos direitos LGBTQIAPN+ no Brasil, levando em conta as recentes mudanças legislativas e o papel dos movimentos conservadores. Concluímos que, apesar dos avanços pós-criação da ONU, persiste uma resistência aos direitos ligados à orientação sexual e identidade de gênero. A interseccionalidade revela-se essencial para compreender as discriminações no Brasil, onde a violência contra a comunidade LGBTQIAPN+ é exacerbada por fatores raciais e socioeconômicos. A despeito de progressos, como a legalização do casamento homoafetivo, a busca por direitos integrais demanda mudanças sociais substanciais.

Palavras-chave: Direitos LGBTQIAPN+. Interseccionalidade. Conservadorismo.

Abstract: The current Brazilian scenario highlights the challenges in realizing the human rights of the LGBTQIAPN+ population. This research addresses the historical and institutional resistance to the acknowledgment of these rights, intensified by the rise of conservative political movements. The methodology employed involves an analysis of legislative landmarks, public policies, and the application of intersectionality to understand the intricacies of the fight for these rights. The objective is to explore the dynamics of LGBTQIAPN+ rights in Brazil, taking into account recent legislative changes and the role of conservative movements. We conclude that, despite advances since the establishment of the UN, there remains resistance to rights related to sexual orientation and gender identity. Intersectionality proves essential to understand discrimination in Brazil, where violence against the LGBTQIAPN+ community is exacerbated by racial and socioeconomic factors. Despite achievements, such as the legalization of same-sex marriage, the pursuit of full rights demands profound social changes.

Keywords: Rights. Intersectionality. Conservatism.

Introdução

Ao iniciar um estudo, entendemos que a seleção criteriosa de autores e conceitos é fundamental para garantir a relevância e coesão dos resultados. Sabemos que, diante da vasta literatura e das diversas abordagens nos diferentes campos do conhecimento, é inviável abordar todas as perspectivas teóricas. A escolha por determinados autores e conceitos, em detrimento de outros, permite dar foco ao estudo, evitando desvios e facilitando a compreensão do leitor. Essa seleção reflete uma linha argumentativa, direcionando a pesquisa para o alcance dos objetivos estabelecidos.

Dito isto, neste momento optamos pelas contribuições dos estudos de Akotirene com interseccionalidade, de Biroli com gênero, de Butler com performatividade, de Crenshaw com discriminação, de Henning com feminismo, de Lorde com identidade, de Oliveira com transgeneridade, de Piovesan com direitos humanos, de Preciado com psicanálise e, por fim, de Sá Neto com diversidade sexual. 

É importante salientar que o Brasil enfrenta desafios significativos para consolidar os direitos da população LGBTQIAPN+. Esses desafios são agravados pela resistência histórica e institucional, que tem sido intensificada recentemente pelo surgimento de movimentos políticos conservadores. Essa resistência representa um obstáculo para a plena realização dos direitos humanos e a igualdade para todos os cidadãos, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Nosso objetivo, portanto, é investigar a dinâmica dos direitos LGBTQIAPN+ no contexto brasileiro contemporâneo. Para isso, definimos três objetivos específicos: analisar o impacto das recentes transformações legislativas; examinar a influência dos movimentos políticos conservadores; e avaliar a relevância da interseccionalidade na análise desses direitos. 

Metodologia

A metodologia de pesquisa que emprega a revisão de literatura qualitativa é uma tática crucial para explorar a evolução dos direitos LGBTQIAPN+ no cenário atual do Brasil. Este método permite um estudo detalhado das alterações legislativas recentes, considerando não apenas os elementos jurídicos, mas também os contextos sociais, históricos e políticos onde essas mudanças acontecem. Através desta revisão, conseguimos discernir os discursos mais comuns, as narrativas emergentes e as variadas perspectivas que influenciam a legislação e seus efeitos na comunidade LGBTQIAPN+. 

Ademais, a revisão qualitativa possibilita uma avaliação crítica do impacto dos movimentos políticos conservadores na criação, implementação e interpretação de políticas públicas direcionadas aos direitos LGBTQIAPN+. A análise de documentos, artigos e estudos anteriores nos permite esboçar um panorama da postura desses grupos e suas estratégias de ação. A compreensão da interseccionalidade é fundamental nesta investigação, pois fornece um prisma de análise que reconhece as diversas identidades e como elas interagem na luta pelos direitos LGBTQIAPN+. Portanto, a revisão qualitativa se mostra como uma ferramenta poderosa para atingir os objetivos propostos, oferecendo uma melhor compreensão dos desafios e progressos no âmbito dos direitos LGBTQIAPN+ no Brasil contemporâneo. 

Direitos Humanos: da ONU ao Brasil

Desde sua formação, os Estados têm se fundamentado nos princípios das famílias tradicionais para sustentar o sistema capitalista. Essa dependência fomenta uma resistência em aceitar configurações familiares que desviem do modelo estabelecido, o qual privilegia papéis sociais específicos para homens e mulheres, restringindo, assim, a diversidade de relações afetivas e familiares. A inflexibilidade em relação às vivências de gênero e sexualidade exerce um impacto expressivo na estrutura da nossa sociedade. As leis vigentes tendem a perpetuar esses padrões de existência como os únicos admissíveis, deixando desprotegidos aqueles que não se enquadram nesses moldes.

O reconhecimento dos direitos civis da população LGBTQIAPN+ é um fenômeno relativamente recente na narrativa da história contemporânea. Por longos períodos, manifestações e experiências de sexualidades que divergiam do padrão predominante foram socialmente marginalizadas e destituídas de reconhecimento legal. Entretanto, ações e mobilizações de movimentos civis organizados catalisaram transformações institucionais que culminaram no estabelecimento e afirmação dos direitos para a comunidade LGBTQIAPN+.

Nas últimas décadas, com a mobilização de setores conservadores e a ascensão da extrema direita em vários países do globo, vimos algumas dessas políticas ameaçadas, o que vem exigindo dos movimentos LGBTQIAPN+ e feministas uma reorganização política na busca de novas estratégias que façam avançar e consolidar os direitos duramente reconhecidos.

Para entender a veemente reação dos setores conservadores ao progresso das agendas sociais relativas aos direitos LGBTQIAPN+, é essencial estabelecer uma linha temporal que ilustre como as mobilizações sociais em larga escala têm provocado uma transformação significativa no tecido social no que tange ao reconhecimento e acolhimento das demandas de direitos individuais dessa comunidade.

A efetiva preocupação da comunidade internacional com os direitos humanos fundamentais surge após a Segunda Guerra Mundial, diante de todas as atrocidades cometidas pelo regime nazista, quando então a Organização das Nações Unidas (ONU) foi criada, sustentada na premissa de paz entre as nações e de respeito aos indivíduos.

Em face do regime de terror, no qual imperava a lógica da destruição e no qual as pessoas eram consideradas descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do  valor dos direitos humanos como paradigma e referencial ético a orientar a  ordem internacional.  O “Direito Internacional dos Direitos Humanos” surge, assim, em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial, e seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderia ser prevenida se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse (PIOVESAN, 2009,  p. 9).

Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) não se faz referência explícita à orientação sexual ou identidade de gênero. Foi somente em 1994, durante o julgamento do caso Toonen v. Austrália, que discutia a criminalização de relações sexuais entre indivíduos do mesmo sexo, que o Comitê Internacional de Direitos Civis e Políticos, associado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, estabeleceu que quaisquer violações aos direitos dos homossexuais deveriam ser interpretadas como infrações aos direitos humanos.

Nessa mesma perspectiva, em 2011 foi editada no Conselho de Direitos Humanos a primeira resolução que tratava dos direitos das pessoas LGBTQIAPN+, apresentada pelo Brasil e África do Sul. Tal resolução alertava para o fato de que os países deveriam primar pela não violação da dignidade das pessoas LGBTQIAPN+, atentando para o combate às variadas formas de discriminação. A mesma resolução solicitava que fossem feitos estudos sobre “leis e práticas discriminatórias” motivadas por preconceitos referentes à orientação sexual ou identidade de gênero. Esse foi um passo muito importante para que houvesse variados avanços nos anos seguintes.

Nas Américas, no ano de 2008, a Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovou sua primeira resolução que vinculava a violação dos direitos LGBTQIAPN+ à violação dos direitos humanos. Cinco anos mais tarde, a mesma entidade adotou a Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, onde reafirmava os direitos à sexualidade e reiterava o imperativo do combate às variadas formas de discriminação. Sobre a referida resolução, Clarindo Epaminondas de Sá Neto nos diz o seguinte:

A partir da referida convenção a OEA reitera firmemente o que já vinha expressando por meio de suas decisões, qual seja o compromisso em favor da erradicação de todas as formas de discriminação (direta, indireta, múltipla ou agravada) e intolerância, e a convicção de que tais atitudes discriminatórias representam uma negação de valores universais como direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa humana, e dos propósitos, princípios e garantias previstos em sua Carta de fundação, na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na Declaração Universal de Direitos Humanos, na Carta Social das Américas, na Carta Democrática Interamericana, na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, e na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e dos Direitos Humanos (SÁ NETO, 2015, p. 84).

Especificamente na América Latina, é importante destacar que a ascensão da agenda de direitos LGBTQIAPN+ sempre esteve condicionada pela forte influência da igreja católica, cuja presença nos países da região é amplamente reconhecida. Com o crescimento significativo das igrejas evangélicas nos últimos anos, tem-se observado um cenário de confrontos nos quais esses atores buscam reinstaurar um ordenamento jurídico respaldado pela moral religiosa cristã. No entanto, é notável destacar progressos legislativos substanciais desde o início do século XXI, como a aprovação de leis que reconhecem o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A Argentina foi o primeiro país da região a adotar tal medida, em 2010. Nos anos subsequentes, Uruguai, Brasil, Colômbia e Equador garantiram esse direito, e, mais recentemente, Cuba também seguiu essa tendência.

No Brasil, em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo constituíam uma entidade familiar. Seguindo essa decisão, em 2013 a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) emitiu parecer estabelecendo que todas as uniões estáveis poderiam ser convertidas em casamento, devendo a medida ser acatada por todos os cartórios do país. Tornava-se, então, legal o casamento homoafetivo, garantidos todos os direitos e obrigações inerentes ao casamento civil.

A norma heterossexual tem sido um dos pilares da noção  moderna de família e das convenções mobilizadas em discursos familistas, nos quais a defesa da “família” corresponde a idealizações e exclusões. A ruptura, mesmo que parcial, com a correspondência entre casamento, família e heterossexualidade é resultado da ação de movimentos sociais, feministas e LGBTQIAPN+, assim como de juristas e outros atores políticos que tem defendido o direito ao casamento como um direito individual que deveria ser garantido a todas as pessoas nas democracias contemporâneas, em vez de restrito com base em crenças e posições assumidas por  algumas instituições religiosas (BIROLLI, 2018, p. 122).

É importante destacar que, dentro da própria militância, muito se pondera sobre o valor da conformação da comunidade a uma norma convencionada, que é entendida como um grande instrumento regulador da sexualidade (BIROLLI, 2018). Em contraponto, observa-se que o direito ao casamento tem garantido segurança e proteção estatal, fazendo com que as pessoas LGBTQIAPN+ sejam também reconhecidas como sujeitos de direitos. Esse reconhecimento é fundamental para que outras demandas relacionadas à criação de políticas de combate a preconceitos e discriminações sejam assimiladas pelo conjunto da sociedade.

A partir dessa perspectiva, o Brasil tem buscado, ao longo dos anos, estabelecer uma agenda que inclua outras iniciativas nas políticas de direitos humanos, visando promover um debate mais abrangente acerca das garantias de uma vida digna para esse segmento da população. A título de exemplo, o lançamento do programa Brasil Sem Homofobia em 2004 representou um marco. Ele deslocou o foco, que até então estava majoritariamente nas políticas de saúde – durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC), as políticas direcionadas a esse grupo estavam centradas no âmbito da saúde em razão da epidemia de HIV/AIDS – e diversificou as ações em diversos campos, como segurança, cultura e educação.

No mesmo sentido, torna-se relevante destacar as legislações vigentes que têm garantido a identidade de gênero como um direito fundamental e constitutivo. Em 2014, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou o direito à mudança de prenome e classificação de gênero no registro civil. Em 2018, ao julgar outra ação referente à temática, a mesma corte ratificou tal entendimento, fundamentado na premissa de que o direito à autodeterminação de gênero é essencial para a concretização de outros direitos e para o pleno exercício da cidadania. Ressalta-se que esse direito não está atrelado a qualquer alteração corporal, sendo baseado unicamente no auto reconhecimento de pessoas trans e travestis.

Além disso, diversos esforços têm sido direcionados ao combate das diferentes formas de violência enfrentadas por essa população. Compreende-se que abordar a cidadania implica desenvolver políticas amplas que confrontem de maneira significativa as profundas formas de marginalização de gays, lésbicas, transexuais, travestis e outros grupos socialmente excluídos. Com base nessa observação, em 2019, o STF equiparou a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual ao racismo, tornando, assim, a homofobia e a transfobia crimes. Em 2023, a corte estipulou que tais atos fossem classificados como crime de injúria racial, atendendo às demandas de organizações do segmento que denunciavam a ineficácia das punições diante da omissão de certas instâncias judiciais.

A percepção de mudanças limitadas, mesmo diante de tantos avanços concretos, advém do fato de que, na prática, existe uma clara restrição no que tange à garantia de direitos e à implementação de políticas. Preciado (2022, p. 47) ressalta que “vivemos imersos na teia política da diferença sexual, e não me refiro somente a questões administrativas, mas a um conjunto de poderes minuciosos que atuam em nossos corpos e moldam nosso comportamento”. Nessa perspectiva, transformar essas estruturas tem sido um desafio árduo, pois não se baseia apenas em alterações legais, mas em uma revisão constante na “epistemologia da diferença sexual”. Especialmente no Brasil, nos últimos anos, o panorama apresenta-se como um intricado cenário em que as mudanças são sempre acompanhadas de acirradas controvérsias acerca da temática.

O momento atual exige que as militâncias feministas e LGBTQIAPN+ busquem novas formas de atuação que desafiem o paradigma heteronormativo, focando-se na consideração de demandas plurais propostas por indivíduos com vivências diversificadas em classe, raça e gênero. Nesse contexto, um conceito teórico-metodológico se destaca como fundamental para reorientar as lutas: a interseccionalidade. Após esse panorama histórico sobre marcos legais significativos relacionados às pautas de gênero e sexualidade, abordaremos a interseccionalidade, reconhecendo sua relevância como categoria analítica e sua eficácia como instrumento político e social.

Interseccionalidade: gênero, raça e classe

Prosseguindo com o tema proposto para este artigo – Direitos Humanos LGBTQIAPN+ no Brasil: itinerários reflexivos e agência de militância – avançamos na discussão abordando o conceito de interseccionalidade e sua inter-relação com a temática de gênero. Para isso, tomamos como base algumas vivências de intelectuais negras que contribuíram significativamente para o aprofundamento teórico, elucidando aspectos da compreensão das interseccionalidades. Entre as diversas autoras que abordam o pensamento interseccional, destacamos Patricia Hill Collins, Audre Lorde, Kimberle Crenshaw e Carla Akotirene.

Collins (2020) discute a importância de compreender a interseccionalidade não apenas como um conceito, mas sim como uma chave analítica. Esse enfoque visa entender o que ela proporciona ao ser aplicada em diferentes contextos, situações, abordagens e finalidades. Nas palavras da autora:

interseccionalidade investiga como as relações interseccionais de poder influenciam as relações sociais em sociedades marcadas pela diversidade, bem como as experiências individuais na vida cotidiana. Como ferramenta analítica, a interseccionalidade considera que as categorias de raça, classe, gênero, orientação sexual, nacionalidade, capacidade, etnia e faixa etária – entre outras – são inter-relacionadas e moldam-se mutuamente. A interseccionalidade é uma forma de entender e explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas (COLLINS, 2020, p. 16).

A concepção da interseccionalidade como ferramenta analítica, tal como proposta por Collins (2020), abarca diversas dimensões que elucidam as relações estabelecidas em contextos distintos. Tais relações não podem ser compreendidas sob um único prisma. A interseccionalidade pode ser comparada a um par de óculos cujas lentes sobrepostas oferecem perspectivas diferentes das categorias em foco. O raciocínio interseccional nos permite enxergar questões de poder sob diversos ângulos e entender como essas relações se entrelaçam, abarcando múltiplas dimensões ou categorias, como gênero, sexualidade e raça.

Ataques contra pessoas negras repercutem na comunidade lésbica e gay, pois muitas mulheres negras são parte dessa comunidade. Da mesma forma, qualquer discriminação ou violência contra a comunidade lésbica e gay impacta diretamente a comunidade negra, visto que muitos membros da comunidade LGBTQIAPN+ são negros.

Entre as mulheres lésbicas eu sou negra; e entre as pessoas negras, eu sou lésbica. Qualquer ataque contra pessoas negras é um problema para lésbicas e gays, porque eu e milhares de outras mulheres negras somos parte da comunidade lésbica. Qualquer ataque contra gays e lésbicas é um problema para pessoas negras, porque milhares de lésbicas e homens gays são negros. Não há hierarquia de opressão (LORDE, 2009, p. 236).

O trecho acima faz parte do ensaio publicado em 1980, no qual Audre Lorde aprofunda discussões sobre processos identitários, raça e classe, salientando os entrelaçamentos destas categorias tanto no âmbito do movimento feminista quanto no movimento pelos direitos LGBTQIAPN+. Ao afirmar isso, a autora, que era escritora, poeta e ativista do movimento feminista, ressalta que, no contexto das discriminações, não há categorias isoladas de opressão. Assim, as batalhas travadas pelos movimentos devem visar superar todas as formas de opressão, independentemente de sua origem ou alvo. Nesse contexto, torna-se fundamental entender o entrecruzamento entre as questões de gênero, raça e classe, que passou a ser denominado de interseccionalidade, para discernir as categorias de opressão que afetam certos grupos sociais.

Audre Lorde (2009), partindo de sua identidade como mulher negra, lésbica e feminista, apresenta uma abordagem interseccional do feminismo. Ela nos leva a compreender que, ao não haver hierarquias de opressão, a batalha contra o racismo deve convergir e seguir na mesma direção das lutas contra o sexismo e a homofobia, dada a profunda interconexão entre esses movimentos.

Da mesma forma, no painel Cruzamento Raça e Gênero: a interseccionalidade na discriminação de raça e gênero, Kimberle Crenshaw (2002) relata que, ao ter seu acesso negado pela porta da frente em uma agremiação na Universidade de Harvard por ser mulher, sentiu-se motivada a pesquisar a discriminação que havia sofrido, fenômeno este que certamente também é vivenciado por muitas outras mulheres negras. Ela destaca que tanto as questões de gênero quanto as raciais lidam com a diferença.

Nesse contexto, ela percebeu que a negação de seu acesso naquela ocasião foi devido ao seu gênero, e não à sua cor, visto que os homens negros que a acompanhavam tiveram permissão para entrar. Assim, experimentou uma discriminação simultânea de gênero e raça, impacto que não é vivenciado por mulheres brancas. Portanto, não se trata apenas de uma questão de gênero. Crenshaw denominou esse entrelaçamento de raça e gênero, exclusivo às mulheres negras, como “intercruzamento interseccional” das identidades. A autora enfatiza que o principal desafio da interseccionalidade é integrar a temática de gênero à prática dos direitos humanos e a questão racial à discussão sobre gênero. Em outras palavras, isso significa que:

precisamos compreender que homens e mulheres podem experimentar situações de racismo de maneiras especificamente relacionadas ao seu gênero. As mulheres devem ser protegidas quando são vítimas de discriminação racial, da mesma maneira que os homens, e devem ser protegidas quando sofrem discriminação de gênero/racial de maneiras diferentes. Da mesma forma, quando mulheres negras  sofrem discriminação de gênero, iguais às sofridas pelas mulheres dominantes, devem ser protegidas, assim quando experimentam discriminações raciais que as brancas freqüentemente não experimentam. Esse é o desafio da interseccionalidade (CRENSHAW, 2002, p. 3).

Historicamente, conforme aponta Henning (2015), a preocupação com os entrelaçamentos entre as categorias de gênero, raça e classe antecede as produções de Crenshaw. Um marco simbólico dessa temática é o manifesto de 1977 do Combahee River Collective, um coletivo de feministas negras e lésbicas atuante em Boston entre 1973 e 1980. Este coletivo defendia uma luta articulada não somente contra a opressão sexual das mulheres, mas também contra outras formas de dominação e desigualdades ancoradas no racismo, heterossexismo e exploração de classe.

Conforme Henning (2015), há um entendimento compartilhado entre autoras de que a noção do pensamento interseccional antecede a década de 1980. Patricia Hill Collins (2000, p. 3) destaca que, historicamente, existiram “descontinuidades na tradição do pensamento das mulheres afro-americanas”, nas quais, em certos momentos, suas vozes tiveram maior expressividade, enquanto em outros foram silenciadas. 

Akotirene (2019, p. 31) concebe a interseccionalidade como um “sistema de opressão interligado”, que afeta a vida de mulheres negras nas interseções de suas identidades. A autora ressalta a necessidade de observarmos o modo como o neoliberalismo se apropria do conceito de interseccionalidade, especialmente considerando que este surgiu no campo jurídico, um ambiente frequentemente marcado pelo eurocentrismo, punitivismo e criminalização das pessoas negras. Dessa perspectiva, o sistema de opressão mencionado pela autora impacta de forma intensa a vida de pessoas negras, já que as múltiplas identidades que possuem as situam em cruzamentos onde sentem diretamente os efeitos dos mecanismos opressores. Segundo a autora:

A prerrogativa do Direito pode criminalizar homens negros, africanos, defender encarceramentos, sem dizer que estes institutos discordam das bases epistemológicas do feminismo negro. O despautério metodológico é tanto que usam até interseccionalidade no campo punitivo particular reportando ao pensamento feminista negro de Angela Davis, uma abolicionista penal (2019, p. 31).

É crucial considerar as experiências de todas as pessoas envolvidas em lutas contra a discriminação racial, conforme aponta Akotirene (2019, p. 31):

[…] a interseccionalidade aplica a criação de mais conflitos às leis binárias do Direito e defesa das lutas antirracistas, tendo em vista imporem cisgeneridades heteropatriarcais, que ignoram lésbicas e trans negros como vítimas do racismo, mulheres negras como  duplamente discriminadas. Comparáveis, comunidades negras parecem usar a cisgeneridade referenciada pelos olhos, onde machos normativos são vistos verdadeiramente como negros.

O uso do conceito de interseccionalidade, da forma mencionada pela autora, caracteriza-se como uma apropriação do termo por certas instituições e, de algum modo, representa uma negação da autenticidade do que se denomina pensamento interseccional. Diante disso, há uma preocupação de que, ao ser mal interpretado, o conceito possa ser instrumentalizado com finalidades distantes daquelas originalmente intencionadas ao se cunhar o termo. Em última análise, compreende-se o risco de que a interseccionalidade seja utilizada para reforçar processos de criminalização de corpos negros, ao invés de entendê-los em suas múltiplas perspectivas. 

Não há política para quem não aparece nas estatísticas oficiais

O cenário sociodemográfico mundial é caracterizado por uma complexidade de grupos, cada um com suas peculiaridades, desafios e realidades. Um exame mais detalhado desses grupos revela disparidades que, muitas vezes, são consequências de contextos históricos, culturais e políticos específicos. Dentro dessa tessitura, questões de vulnerabilidade, identidade de gênero e poder emergem como temas que requerem uma análise contextualizada para entender a dinâmica subjacente.

A análise da precariedade em contextos específicos, considerando a distribuição demográfica, revela iniquidades. Desse ponto de vista, é evidente que alguns segmentos populacionais são particularmente mais vulneráveis, experimentando uma vida mais efêmera e um maior risco de morte prematura. A questão central reside em entender as vidas de quais indivíduos são mais frequentemente afetadas por essas condições e como essa distribuição desigual diante do risco de morte é administrada.

Entretanto, se abordamos essa questão do ponto de vista da distribuição demográfica e desigualdade de precariedade, então temos que perguntar: As vidas de quem são abreviadas mais facilmente? As vidas de quem são mergulhadas em um sentido maior de transitoriedade e mortalidade precoce? Como essa exposição diferencial à mortalidade é gerenciada? (BUTLER, 2018, p. 36).

Dando sequência à reflexão, é relevante avaliar os mecanismos e sistemas que modulam essa exposição diferenciada. A gestão dessa distribuição desigual de riscos é um indicador das prioridades e valores de uma sociedade, evidenciando onde estão localizados os pontos de vulnerabilidade demográfica e os desafios relacionados à precariedade.

A violência dirigida a indivíduos com base em sua identidade de gênero, seja ela simbólica ou concreta, é uma manifestação de discriminação e marginalização. Em particular, pessoas queer e trans enfrentam níveis desproporcionais de agressão e letalidade. Uma análise de dados, como os apresentados pelo relatório da Transgender Europe, evidencia a magnitude dessa problemática. O Brasil, especificamente, destacou-se de forma alarmante, liderando as estatísticas globais de homicídios de pessoas trans, com prevalência marcante no contexto da América do Sul e Central.

[…] temos a lógica da violência, simbólica ou não, sobre a diversidade do gênero, através do exercício da violência e mesmo do assassinato contra pessoas queer e trans. De acordo com Balzer e Hutta (2012), no relatório da Transgender Europe, o caso do Brasil é o pior dos casos contabilizados (sempre subestimados). É o país do mundo com mais casos noticiados de assassinatos contra pessoas trans até 2011. Esses números, obtidos neste relatório, mostram que no Brasil ocorreram 50% (325) dos homicídios de pessoas trans na América do Sul e Central (644) e 39% dos homicídios de pessoas trans em todo o mundo (831), entre os anos 2008 e 2011 (OLIVEIRA, 2016, p. 116).

Ao observar a proporção significativa de homicídios de pessoas trans no Brasil em relação ao cenário global, fica claro o alto grau de vulnerabilidade e risco que essas pessoas enfrentam no país. Além disso, é importante considerar a possibilidade de subnotificação destes crimes, o que poderia tornar a realidade ainda mais severa do que as estatísticas sugerem. Esta informação ressalta a necessidade urgente de reconhecimento e compreensão profunda dessa situação, evitando generalizações e buscando uma abordagem fundamentada em dados para compreender a complexidade do fenômeno.

A concepção de necropolítica aborda uma dimensão do poder que vai além da simples regulação da vida; ela se estende à determinação de quem pode ser submetido à morte. Essa forma de soberania se manifesta através da manipulação abrangente da existência humana, onde a destruição de corpos e populações é uma consequência direta. Em contraste com a biopolítica, que examina a gestão da vida, a necropolítica concentra-se nas dinâmicas que submetem certos grupos a extremos de violência e morte.

A necropolítica é uma forma de soberania assente na instrumentalização generalizada da existência humana e na destruição material de corpos humanos e populações (MBEMBE, 2003, p. 14). Enquanto Foucault (2008) se centrou na biopolítica e no biopoder, o foco na necropolítica implica em determo-nos, como explicam Haritaworn e outros (2014), em determinadas populações que são sujeitas a um overkill (um excessivo número de homicídios, como é o caso da população trans no Brasil e noutros países), o que coloca essas populações numa ontologia de quase vida, dada a vulnerabilidade dessas populações ao necropoder (OLIVEIRA, 2016, p. 117).

Nesse contexto, observa-se que determinadas populações, como a população trans no Brasil e em outras nações, são desproporcionalmente afetadas por essa forma de poder. A prevalência de homicídios excessivos — overkill — evidencia essa submissão, situando esses grupos em uma realidade que oscila entre a vida e a morte devido à sua acentuada vulnerabilidade. Esta análise ressalta a importância de compreender as diferentes manifestações de poder e como elas impactam as populações marginalizadas.

A análise das estatísticas relativas à violência pode revelar particularidades demográficas e socioeconômicas de um país ou região. No contexto brasileiro, evidencia-se um padrão preocupante: travestis negras até a idade de 35 anos surgem como as principais vítimas de atos letais cometidos com armas de fogo. Adicionalmente, esses atos frequentemente são perpetrados com um alto grau de crueldade.

Travestis negras com até 35 anos [são] as maiores vítimas da violência letal por arma de fogo e com requinte de crueldade e que entre as travestis vitimadas há predominância de negras e pardas, indicativo de seu pertencimento aos estratos mais pobres da sociedade brasileira (SEPPIR/PR, 2013, p. 10).

Ao analisar a composição racial das travestis vitimadas, nota-se uma predominância de indivíduos negras e pardas. Este dado sugere uma correlação entre a violência sofrida por esse grupo e sua inserção em camadas socioeconômicas mais desfavorecidas da sociedade. A intersecção de gênero, raça e classe social torna-se, assim, um fator determinante no panorama da violência letal enfrentada por determinados segmentos populacionais.

A questão da violência contra minorias é uma preocupação latente em diversos contextos sociais e políticos. Em algumas situações, observa-se que o próprio aparato de segurança do Estado, que deveria garantir a proteção e os direitos dos cidadãos, pode ser responsável direto ou indiretamente por atos de violência contra esses grupos. Esta dualidade apresenta um desafio: enquanto algumas forças de segurança podem perpetrar atos violentos, outras podem ser omissas em suas responsabilidades investigativas e preventivas.

Não impedir a violência contra as comunidades de minorias por parte da polícia do Estado é uma negligência criminosa, que permite à polícia cometer um crime e as minorias serem vítimas da precariedade nas ruas […] Como sabemos, algumas vezes é a força policial do Estado que pratica violência contra as minorias sexuais e de gênero, e algumas vezes é a polícia que deixa de investigar, deixa de processar como crime o assassinato de mulheres transgêneras ou prevenir, deixa de impedir a violência contra membros transgêneros da população (BUTLER, 2018, p. 41, 42).

Dentro desse panorama, minorias sexuais e de gênero, como a comunidade transgênero, enfrentam riscos acentuados. A falta de investigação adequada, a negligência em processar crimes e a ausência de medidas preventivas acentuam a vulnerabilidade dessas populações. Esta situação não apenas expõe tais comunidades a riscos elevados, mas também coloca em xeque a integridade e a função das instituições responsáveis pela manutenção da ordem e proteção dos cidadãos.

Em uma era globalizada, a identificação e o entendimento das disparidades demográficas e das dinâmicas de poder tornam-se imperativos. Ao explorar as nuances dessas questões, é possível discernir os meandros das vulnerabilidades que certos segmentos da população enfrentam. A compreensão dessas realidades, sem buscar soluções imediatas, proporciona uma base para futuras deliberações, ampliando a perspectiva sobre a rede de relações e circunstâncias que moldam a vida das pessoas em diferentes contextos.

Considerações finais

No decorrer deste texto, buscamos iluminar a complexidade de lutas, avanços e retrocessos na trajetória dos direitos humanos, dando ênfase particular aos direitos LGBTQIAPN+. Desde a fundação da ONU no século XX, testemunhamos um esforço global para instituir um sistema de proteção aos direitos humanos. Contudo, a defesa explícita dos direitos associados à orientação sexual e identidade de gênero é uma conquista mais contemporânea e que persiste enfrentando resistências. 

Ressaltamos o papel fundamental das mobilizações sociais na remodelação das normativas e políticas. Estas ações foram determinantes para o reconhecimento legal e social dos direitos LGBTQIAPN+, mas também evidenciaram a necessidade de estratégias frente à emergente presença de setores conservadores e da extrema direita em diversas regiões globais. 

Definimos a interseccionalidade como uma ferramenta analítica essencial para desvelar como distintas modalidades de discriminação e opressão convergem e se potencializam. Tal conceito se mostra especialmente pertinente no cenário brasileiro, onde a violência contra a população LGBTQIAPN+ é amplificada por questões de raça e classe social. 

Sublinhamos que, no Brasil, apesar dos expressivos avanços legislativos – como a legitimação do casamento homoafetivo e o reconhecimento do direito à autodeterminação de gênero – a jornada rumo à plena inclusão ainda é extensa. O país se sobressai negativamente em estatísticas de violência contra indivíduos trans e se depara com desafios na concretização de políticas públicas inclusivas. 

Concluímos, assim, que a defesa pelos direitos humanos – e, em particular, pelos direitos LGBTQIAPN+ – representa um campo dinâmico de contendas políticas, sociais e culturais. Progressos neste domínio demandam não apenas alterações legislativas, mas também um revigoramento nas estruturas sociais e paradigmas. Tal transformação pode ser efetivada somente por meio de uma perspectiva interseccional e um engajamento coletivo em prol da equidade e justiça.

Referências

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1Doutoranda em Educação (UNISINOS)
2Doutoranda em Educação (UNISINOS)
3Doutorando em Educação (UNISINOS)