INTEGRALIDADE DO CUIDADO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA SEXUAL: UM ESTUDO DE CASO

INTEGRALITY OF CARE FOR CHILDREN AND ADOLESCENTS IN SITUATIONS OF SEXUAL VIOLENCE: A CASE STUDY

REGISTRO DOI: 10.69849/revistaft/ni10202411210741


Lena Geisa da Rocha Ribeiro1; Orientador: Prof. Dr. Hilton Pereira da Silva2; Coorientador: Prof. Dr. Alder Mourão de Sousa2


Resumo: A violência sexual constitui relevante problema social que acarreta sérias consequências ao pleno desenvolvimento biopsicossocial das crianças e adolescentes afetados. A integralidade é um princípio de organização contínua do processo de trabalho nos serviços de saúde, constituindo-se em um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços nos diferentes níveis de complexidade do sistema sanitário. O objetivo desse estudo foi analisar, na perspectiva da integralidade, o cuidado a crianças e adolescentes em situação de violência sexual em um serviço especializado da capital paraense. Trata-se de um estudo de caso, holístico, descritivo e com abordagem qualitativa. O caso do Parápaz Integrado – Núcleo Renato Chaves. Os dados são provenientes de pesquisa documental; questionário online com escala de Likert de cinco pontos respondido por 12 profissionais e entrevista aberta com a gestora do serviço. Os resultados foram analisados a partir dos temas surgidos dessas abordagens. O estudo mostrou que para oferecer cuidado integral, o serviço realiza acolhimento e escuta ativa das crianças, adolescentes e familiares; articula o atendimento destes pelos serviços da rede intrassetorial e intersetorial. Por outro lado, o serviço possui o desafio de superar dificuldades estruturais, como a mudança da delegacia especializada (antes conjugada ao serviço) para outro local e o déficit de pessoal para atendimento da demanda proveniente da capital e do interior. Além da necessidade de incorporar práticas terapêuticas que reúnam a equipe multiprofissional para estudo e reflexão dos casos em conjunto e não apenas de forma fragmentada.

Palavras-chave: Integralidade em Saúde. Violência sexual. Criança. Adolescente.

Abstract: Sexual violence is a relevant social problem that has serious consequences for the full biopsychosocial development of children and adolescents affected. Integrality is a principle of continuous organization of the work process in health services. It constitutes an articulated and continuous actions and services at different levels of complexity of the system. The aim of this study was to analyze, from the perspective of integrality, the care provided to children and adolescents in situations of sexual violence in a specialized service in the capital of Pará. It is a case study, holistic, descriptive and with a qualitative approach. The case of Parápaz Integrado – Núcleo Renato Chaves. The data came from documentary research; an online questionnaire with a five-point Likert scale answered by 12 professionals and an open interview with the service manager. The results were analyzed from the emerged themes. The study showed that to offer integral care, the service performs reception and active listening; articulates through intrasectoral and intersectoral services; seeks to engage its users (children, adolescents and family) in sports and leisure activities. On the other hand, the service has the challenge of overcoming difficulties, such as moving the specialized police station (previously combined with the service) to another location and the lack of personnel to meet the demand coming from the capital and the countryside. In addition to the need to incorporate therapeutic practices that bring together the multidisciplinary team to study and reflect on cases together.

Keywords: Integrality in Health. Sexual violence. Child. Adolescent.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que buscou analisar o cuidado a crianças e adolescentes em situação de violência sexual em um serviço especializado, o Parápaz Integrado – Núcleo Renato Chaves, na perspectiva da integralidade. Tendo em vista divulgar a experiência de serviços que prestam cuidado integral a crianças e adolescentes em situação de violência sexual, reunindo serviços de saúde, segurança, justiça e proteção social no mesmo espaço.  Bem como reverter o cenário de escassez de pesquisas sobre a integralidade do cuidado na violência sexual infanto-juvenil, no Pará e no Brasil.

Embora não seja um problema particular da área da saúde, segundo Minayo (1994), a violência é um fenômeno que afeta a saúde. Não somente da perspectiva individual, mas também de forma comunitária e coletiva. E como área ou campo de conhecimento e atuação profissional, envolvendo também o complexo industrial criado em torno do que se vende, do que se compra e se acessa para ter saúde.

No período compreendido entre janeiro de 2019 e junho de 2021, foram registrados 74.535 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. houve 14.135 casos somente no 1º semestre de 2021 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Fundação José Luiz Egydio Setúbal, 2021).

No ano de 2022, 70,7% dos casos de violência sexual no Pará ocorreram entre crianças e adolescentes com menos de 14 anos de idade, o que coaduna com o restante do país quanto a concentração dos casos de estupro nessa faixa etária. De 2011 a 2022 o estado manteve uma taxa superior de casos de violência sexual em relação ao restante do Brasil (FAPESPA, 2023).

A violência sexual contra crianças e adolescentes consiste em relação de poder abusiva, na qual um adulto torna uma criança ou adolescente seu objeto, com a intenção de obter prazer sexual. Confrontam-se atores e forças, com pesos e poderes desiguais de conhecimento e autoridade, havendo negação de direitos e a possibilidade de destruição de identidade (FALEIROS; CAMPOS, 2000). Desse modo, a violência sexual consiste em ato que perpassa relações assimétricas de poder ocorridas em nível interpessoal, no qual são violados os direitos das crianças e adolescentes à sua proteção integral. Esse tipo de violência traz consequências ao desenvolvimento físico, psicológico e social da criança e do adolescente (FREIRE; ALBERTO, 2013).

A violência sexual contra crianças e adolescentes é um fenômeno complexo, multicausal, não havendo, portanto, soluções simples e isoladas. O problema só pode ser prevenido e enfrentado em rede, ou seja, por um conjunto de serviços de diferentes âmbitos trabalhando em conjunto pela proteção da criança e do adolescente. É essencial, portanto, que exista articulação em rede dos serviços já existentes para o cuidado da criança e do adolescente em situação de violência (SANTOS, 2020).

Segundo Cecílio (2001), a integralidade ocorre quando a equipe de um serviço de saúde, através de uma boa articulação de suas práticas, consegue escutar e atender, da melhor forma possível, as necessidades de saúde trazidas por cada um. A integralidade só é possível se houver a possibilidade de transversalizar todo um sistema, ou seja, de cuidar em rede.

A integralidade do SUS não se resume apenas à expressão “atendimento integral”. Ela é uma “bandeira de luta”, parte de uma “imagem-objetivo”, um enunciado de certas características do sistema de saúde, de suas instituições e de suas práticas que são consideradas desejáveis (MATTOS, 2006, p. 45).

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa do tipo estudo de caso holístico, descritivo e com abordagem qualitativa. O estudo de caso é constituído por uma única unidade de análise. Nesta pesquisa estudou-se o caso da instituição Parápaz Integrado, Núcleo Renato Chaves, em Belém, estado do Pará.

O estudo de caso contribui sobremaneira para um maior entendimento dos fenômenos individuais, organizacionais, sociais e políticos. É um método típico das pesquisas sociais, pois busca compreender fenômenos sociais complexos (YIN, 2001).

Segundo Yin (2015) a pesquisa com carácter holístico possui uma maior concentração no todo, ou seja, investiga um fenômeno de forma mais aprofundada.

Fundamentando-se na Resolução Nº 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016), tomou-se todas as medidas éticas necessárias na condução do estudo, desenvolvido no âmbito das Ciências Humanas e Sociais, no campo da Saúde Coletiva. Em pesquisas que abordem assuntos delicados – como o caso da violência – esta norma jurídica permite a aproximação entre o pesquisador e os participantes da pesquisa no campo, sem a tramitação do projeto em um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Esta possibilidade está disponível desde que não sejam coletados dados biológicos ou informações que possam identificar os participantes da pesquisa, entre outros argumentos.

Enviou-se carta de aceite à presidência da Fundação Parápaz que emitiu parecer favorável para a realização desta pesquisa.

Os participantes receberam o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). No Termo foram descritos os objetivos, riscos e benefícios da pesquisa, bem como o convite para participar da pesquisa mediante resposta ao questionário (profissionais) e entrevista (gestora). Também houve esclarecimentos sobre a garantia do anonimato dos participantes, além de explicações sobre a possibilidade de sanar quaisquer dúvidas e sobre o direito daqueles em desistir da pesquisa a qualquer momento.

O Parápaz Integrado Renato Chaves é um serviço público especializado no atendimento a crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violência, na cidade de Belém, Pará (PARÁ, 2017).

Para o estudo desse caso trabalhou-se com três tipos de dados: a pesquisa documental, questionário com escala de Likert e entrevista aberta. Neste artigo, porém, abordaremos apenas os dados coletados através do questionário Likert e da entrevista aberta, e suas respectivas discussões.

Para a produção de dados junto às integrantes da equipe multiprofissional, utilizou-se questionário com escala de Likert de cinco pontos. Utilizou-se cinco eixos de articulação da rede considerados essenciais para a integralidade do cuidado no Parápaz Renato Chaves emergidos a partir da leitura da “Linha de Cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências” (BRASIL, 2014), elaborando-se, assim, instrumento com nove perguntas fechadas. A análise de dados foi realizada de acordo com as reflexões sobre a Integralidade do Cuidado trazidas nas coletâneas “Construção da Integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde” (PINHEIRO; MATTOS, 2007) e “Os sentidos da Integralidade na Atenção e no Cuidado à Saúde” (PINHEIRO; MATTOS, 2009), as quais trazem importantes debates sobre os caminhos para um cuidado integral.

Os eixos de articulação da rede considerados essenciais para a integralidade do cuidado no PPI Renato Chaves são: 1) Articulação do PPI Renato Chaves com o sistema de saúde; 2) Articulação do PPI com o sistema de justiça e direitos humanos; 3) Articulação do PPI Renato Chaves com o sistema de segurança; 4) Articulação do PPI Renato Chaves com o sistema de assistência social.

Realizou-se uma entrevista do tipo aberta com a gestora do serviço para aprofundamento de questões sobre o cuidado e articulações na rede. Segundo Cecília Minayo (2014), a entrevista aberta é utilizada quando o pesquisador deseja obter o maior número possível de informações sobre determinado tema, segundo a percepção do entrevistado. Para tanto, elaborou-se a pergunta disparadora: Como ocorre o cuidado do PPI Renato Chaves à criança e ao adolescente em situação de violência sexual e encaminhados para os demais serviços da rede de saúde e de proteção social?

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram da pesquisa os profissionais da equipe multiprofissional do PPI Renato Chaves, incluindo a gestora do serviço que também atua como assistente social.

Todas as 12 profissionais participantes eram do sexo feminino. As profissionais da psicologia foram as que mais participaram da pesquisa.

Entre as profissionais, a maioria (58,33%) realizou Pós-graduação. Mesmo as profissionais cujas funções no serviço exigem nível fundamental ou médio, cursaram o ensino superior (33,3%). E quase a totalidade das profissionais atua há mais de cinco anos no serviço

Ao questionar as profissionais sobre a articulação do PPI Renato Chaves com os serviços de saúde, a maioria das profissionais concordou que o serviço articula o atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência sexual pela rede de saúde ou rede intrassetorial para a integralidade do cuidado a crianças e adolescentes em situação de violência sexual, conforme demonstrado no Quadro 01.

Quadro 01 – Concordância dos profissionais quanto a integralidade do cuidado no Parápaz Integrado Renato Chaves

Quando perguntados sobre a articulação do serviço com os órgãos de Justiça e Direitos Humanos a respeito de debates sobre propostas de intervenção com o autor de violência sexual contra crianças e adolescentes chama a atenção o percentual de profissionais que respondeu estar em “total desacordo”, “em desacordo” e “sem opinião” perfazendo um total de 58,34% das respostas. O que indica que os profissionais percebem que o serviço ainda não atua no sentido de recomendar ao sistema judiciário o tratamento dos agentes de agressão, na perspectiva de prevenção da violência sexual.

A gestora do PPI Renato Chaves (que é assistente social e também atende no serviço) citou o acolhimento inicial da criança/adolescente em situação de violência sexual e seu responsável, e encaminhamentos, quando estes chegam ao serviço.

Então a gente faz esse atendimento […] informa essa mãe, esse responsável, o fluxo por onde todo o atendimento que a criança irá passar, que vai ser realizada a escuta dela, posteriormente será feito o boletim de ocorrência e que dali vai haver o pedido de perícia, que a criança vai passar por uma perícia, a gente explica que é um pouco constrangedor para a criança a questão da perícia, conversa com a mãe o que a criança vai vivenciar, né!? E fala também sobre a questão dos encaminhamentos que, possivelmente, serão feitos com as crianças e adolescentes e a importância da mãe dar continuidade a esses encaminhamentos que a gente vai dar, levar a criança para os atendimentos que ela for encaminhada.

A gestora prosseguiu em seu relato:

E aí a gente inicia a escuta com a criança, algumas assustadinhas pelo que já vivenciaram e aí a gente inicia se apresentando. Me apresento, falo o meu nome, falo qual é a minha função ali, falo para a criança, assim, claro, tem uma faixa etária que a gente não consegue abraçar, tem casos de crianças de 3, 4 anos e que às vezes não consegue manter esse diálogo muito próximo. Que às vezes a criança até nem fala muito, enfim, mas a gente tenta, né!?

Eu também uso muito a questão lúdica nos meus atendimentos com criança especificamente. Eu uso muito a questão lúdica. Eu busco desenhos, eu pinto junto, que é pra gente manter, fazer um vínculo pra criança se sentir, às vezes, à vontade e segura em falar.

E falo que ele vai ser atendido também pela psicóloga, que lá ele pode falar tudo o que ele tá sentindo, como ele tá se sentindo, e isso assim, […] vai muito da faixa etária.

E aí eu finalizo a nossa escuta assim, falando sobre o que ele… conto assim – dependendo da idade da criança –, eu falo: – Olha você ainda vai passar pela perícia, lá é chatinho. Enfim, eu conto, converso um pouquinho sobre o quê que ele ainda vai presenciar, pra ele entender também o processo que ele vai viver, né!?

Quando a gente atende um adolescente […] a mesma coisa, mas de uma outra forma né? Menos lúdica vamos dizer assim. E aí o atendimento é feito, finalizo a escuta, eles saem da sala, vão para fazer o boletim de ocorrência.

[…] eu finalizo […] acolhendo novamente, falando sobre a importância dele ter conseguido falar sobre o fato. Dele ter conseguido verbalizar. Que isso não só vai ser bom pra ele, como também pra evitar que a pessoa que fez isso com ele faça com outras crianças. Que a gente não quer que outras crianças passem pelo que ela passou. E aí coloco a situação de que é errado, que o que ela vivenciou não é culpa dela, é culpa do agressor, que ele que fez a coisa errada.

Nos trechos acima, a gestora falou sobre o acolhimento e escuta da criança e do adolescente em situação de violência sexual. Detalhou sua postura e os recursos que utiliza naquele momento, diferenciando a abordagem com as crianças da abordagem com os adolescentes. Referiu que com a criança utiliza recursos lúdicos (desenhos, pinturas), afim de estabelecer um vínculo de confiança com ela e dessa forma conseguir com que ela se expresse, relate a situação de violência sexual que sofreu. Além disso, citou o atendimento psicológico como outro recurso para auxiliar a criança a se expressar, oferecendo a ela o suporte emocional necessário.

Em conversa com a gestora, esta confirmou que a metodologia de trabalho no PPI Renato Chaves é praticamente a mesma da que fora encontrada na pesquisa documental. Ou seja, permanece a estrutura de acolhimento e encaminhamentos internos e externos dos usuários que procuram o serviço. Porém, fez a ressalva de que a delegacia, antes conjugada ao serviço, teve que ser transferida para um outro prédio. A mesma justificou que em decorrência da pandemia de COVID-19 e o risco de contágio, o espaço que outrora abrigava a delegacia especializada (DEACA) oferecia riscos à saúde dos profissionais e usuários.

Nos trechos a seguir a entrevistada faz referência aos encaminhamentos da criança/ adolescente em situação de violência sexual aos serviços do Sistema de Segurança e Sistema de Justiça:

E aí o atendimento é feito, finalizo a escuta, eles saem da sala, vão para fazer o boletim de ocorrência, a gente encaminha… [vai] até a delegacia…

A perícia é agendada pra gente, é feita aqui com a gente nos casos de violência sexual. Quando é no caso de criança até 12 anos, no caso, a gente agenda pra Santa Casa. A Santa Casa que é a referência no atendimento de criança, a nossa é adolescente. Mas não que não possa acontecer aqui com a gente, pode, mas a maioria dos casos é Santa Casa. A gente também agenda pra criança consulta pediátrica na Santa Casa e ginecológica aqui com a gente. Esses são os encaminhamentos. [E…] Encaminho pro Conselho Tutelar pra fazer os atendimentos.

Nas falas a seguir, a gestora refere que a maioria das crianças e adolescentes em acolhidas no PPI Renato Chaves são encaminhadas para realizar as sessões de psicoterapia no próprio serviço, tendo em vista haver psicólogas capacitadas para o acompanhamento desses casos.

No entanto, há casos em que constata a necessidade de haver um acompanhamento também por parte do CREAS:

E aí eu vou pros encaminhamentos. […] Como tem psicólogo aqui [no Parápaz], eu vejo assim – a nossa psicologia ela é muito boa –, então a gente precisa abraçar essa criança que sofreu violência sexual de uma forma bem cuidadosa; então eu encaminho, a maioria dos casos de violência sexual pra cá pra gente. […] A demanda da psicologia do CPC é grande. Então eu encaminho pra cá […] em alguns casos eu encaminho também pro CREAS.

 […] eu encaminho também pro CREAS pela seguinte questão, que além da violência, na minha escuta, além d’eu visualizar a violência que a criança sofreu, eu visualizo também a questão dos vínculos familiares dentro de casa, entendeu? E aí eu percebo que aquela criança não precisa só ser atendida na questão da violência que ela sofreu, ela precisa também ser atendida na questão familiar, ela, a família, a mãe, o relacionamento.

[…]Talvez possa ser que seja um reflexo, a violência às vezes pode ter ocorrido por justamente é… essa fragilidade de cuidado, enfim.

Nos trechos anteriores a gestora cita que o atendimento da violência sexual propriamente dita ocorre no PPI Renato Chaves. No entanto, em se tratando de disfunções familiares que predispõem a criança ou adolescente a sofrerem violência sexual, a família dessa criança/adolescente é encaminhada para ser acompanhada pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), tendo em vista a alta demanda por atendimento psicossocial no PPI Renato Chaves.

A seguir, a gestora faz alusão ao encaminhamento de crianças/adolescentes aos serviços de esporte e lazer ofertados pela Fundação Parápaz:

[…] Quando a gente verifica alguma necessidade que a gente…enfim é… de engajar a criança ou o adolescente em alguma atividade, e a gente tem os pólos de bairro do próprio Parápaz (Fundação) né? a gente tem os pólos de bairro…a gente tenta engajar nas atividades que o Parápaz desenvolve, então a gente encaminha pro pólo do Parápaz né? a gente faz esses encaminhamentos dentro do serviço do Parápaz.

Nos trechos seguintes, a gestora cita os encaminhamentos da criança/adolescente para a rede intrasetorial da saúde:

[…] A gente também agenda pra criança consulta pediátrica na Santa Casa e ginecológica aqui com a gente […]

Encaminhamentos que a gente dá para a rede hospitalar nos casos de flagrantes é pra Santa Casa. É encaminhado pra Santa Casa pra questão da profilaxia, das medicações preventivas.

Enfim, e no caso quando já está confirmado, quando já vem [interrogado] uma possível gravidez, a gente encaminha pra Santa Casa. […]  Na verdade, no atendimento, a gente já situa tanto a adolescente quanto a mãe [ou] a responsável, sobre a questão do aborto legal. A gente conversa, coloca, explica, orienta nesse sentido, que é uma escolha delas e também a questão do médico que vai analisar e examinar a adolescente, se ela vai ter estrutura pra tá concebendo o feto, né!? Porque têm muitas que são crianças e, às vezes, nem têm o útero totalmente formado, preparado pra receber… uma questão médica que…  Enfim, esses encaminhamentos eles são feitos pra Santa Casa né?

A gestora cita ainda o encaminhamento da criança/adolescente em situação de violência sexual atendidos no Parápaz Renato Chaves, para os serviços de saúde mental da rede intrassetorial, quando o serviço verifica essa necessidade:

[…] quando a gente verifica demanda psicológica muito agravante no caso. [Demandas] que tenham alguma coisa que não seja só da questão da violência. A gente [percebe] que ele não tem assim um elo nas conversas, enfim, a gente tenta encaminhar pros CAPS, né!?

No caso quando a gente visualiza, [ou] quando os pais, [ou] responsáveis já trazem uma demanda daquela criança, que ela já teve um atendimento anos atrás, ou a gente visualiza que a criança necessita de um atendimento mais voltado para essa questão mental, a gente encaminha para o CAPSi.

Sobre a abordagem com o autor da violência sexual, a gestora refere o PPI Renato Chaves não realiza nenhum tipo de intervenção, seja ele adulto ou menor de idade:

Referente a acompanhamento com o agressor, a gente não faz, o Parápaz não faz. O nosso foco são as crianças e adolescentes vítimas, não há acompanhamento com o agressor. Essa questão já é com o presídio pra onde ele vai, se ele for preso. Enfim, não tem, a gente não faz nenhum tipo de abordagem com os agressores.

No caso de menor [agressor, o Parápaz] também não [faz o acompanhamento]. Quando ele é vítima a gente faz o acompanhamento, […] mas no caso de ele ser o agressor, o abusador, a gente também não faz. A gente encaminha para outros órgãos, [o] CREAS também.

Embora faça referência ao encaminhamento de criança/adolescente autor de violência sexual a outros serviços da rede, as falas acima mostram não haver uma articulação entre o PPI Renato Chaves e o sistema de justiça e direitos humanos, no que diz respeito a discutirem propostas de intervenção com o autor de violência sexual, principalmente o adulto. Tal constatação contraria ao que é recomendado pela Linha de Cuidado (BRASIL, 2014) com relação ao autor de violência sexual.

ACOLHIMENTO E ESCUTA ATIVA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Para um real alcance da integralidade, Cecílio (2009) defende que na interação entre o usuário e os profissionais de um estabelecimento de saúde deve prevalecer o compromisso e a preocupação, por parte desses, em fazer a melhor escuta possível das necessidades de saúde daqueles. Segundo a fala da gestora do serviço estudado, durante a escuta são identificadas as necessidades trazidas pela criança/adolescente em situação de violência sexual, entre elas, as de serem atendidos pela psicologia (psicoterapias), enfermagem, ginecologia e/ou pediatria. Em suas falas, a entrevistada demonstrou possuir uma postura acolhedora e escuta atenta no diálogo com a criança. Diante da dificuldade desta se expressar diante de fato tão constrangedor e traumático como a violência sexual, a gestora refere que utiliza recursos lúdicos (ilustrações), a fim de a criança externalizar a violência sofrida. A entrevistada refere ainda que ao final do relato tece elogios acerca da coragem da criança ou adolescente em elucidar a situação que contribui para que providências sejam tomadas e aquela violência interrompida. Segundo a entrevistada, nesse momento ela reforça a auto-estima e a autoconfiança da criança/adolescente (reforço positivo). A gestora afirma ainda que prepara a criança/adolescente acerca do exame pericial que será realizado no serviço, na busca por reduzir esse processo considerado traumático. A gestora refere que procede ao encaminhamento para o Centro de Atenção Psicossocial Infanto Juvenil (CAPSI) ao perceber sinais de transtorno mental na criança/adolescente em escuta, tendo em vista que esse serviço oferece suporte em saúde mental para essa faixa etária. Um estudo que revelou o perfil de crianças e adolescentes em situação de violência sexual, atendidas em um Centro de Atendimento Integrado no Distrito Federal também mostrou a presença de deficiência em 6,4% e de transtorno mental em 0,4% dos casos, levando em conta que esses valores estão subestimados devido a limitação física/mental ser um fator determinante para o baixo índice de denúncias (AZEVEDO; RODRIGES, 2019). É sabido o quanto as pessoas com deficiência estão vulneráveis à violência.

Neste sentido, a postura acolhedora e empática da profissional demonstra a sensibilidade da mesma em perceber e atender as necessidades trazidas pela criança/adolescente em situação de violência sexual, para além do atendimento das demandas por consulta médica, registro de boletim de ocorrência, perícia médica e encaminhamentos para a rede intrassetorial e intersetorial. Pois, segundo Cecílio (2009), as necessidades vão além do que ele chama de “demandas de saúde”.

A demanda, na maioria das vezes, são as necessidades modeladas pela oferta que os serviços fazem (consulta médica, consumo de medicamentos, realização de exames, etc.). Já as necessidades de saúde, porém, podem ser a busca por uma resposta para as más condições de vida que a pessoa viveu ou está vivendo, como a violência no lar, por exemplo. Está tudo ali na cestinha de necessidades trazida por cada pessoa que busca um serviço de saúde (CECÍLIO, 2009).

Por outro lado, para que a integralidade do cuidado de fato aconteça, espera-se que todos os serviços da rede intrassetorial e intersetorial também identifiquem a “cestinha de necessidades” que cada criança/adolescente (encaminhada pelo Parápaz) possuem ao chegarem lá para atendimento. Ou seja, a integralidade do cuidado não se encerra no ato de encaminhar, mas constitui-se em um processo contínuo tendo em vista que as necessidades identificadas no Parápaz (encaminhamento para realização de quimioprofilaxias, aborto legal, vacinas, exames laboratoriais, etc) e novas necessidades serão levadas pela criança/adolescente e família que busca os demais serviços fora do ambiente do Parapaz Renato Chaves (tais necessidades podem ser: um Plano Terapêutico Singular(PTS), acolhimento de mulheres que passarão pelo aborto legal, atividades de esporte e lazer, redução de danos, etc.).

Sobre o discorrido anteriormente, Cecílio (2009) defende que para além da Integralidade focalizada há que se pensar em uma “integralidade ampliada” que é a articulação em rede, institucional, intencional, processual, das múltiplas “integralidades focalizadas” que, tendo como epicentro cada serviço de saúde, se articulam em fluxos e circuitos, a partir das necessidades reais das pessoas. É a integralidade no “micro” refletida no “macro”; pensar a organização do “macro” que resulte em maior possibilidade de integralidade no “micro”. Radicalizar a idéia de que cada pessoa, com suas múltiplas e singulares necessidades, seja sempre o foco/a razão de ser de cada serviço de saúde e do “sistema” de saúde vigente.

A integralidade ampliada seria, então, essa relação articulada, complementar e dialética, entre a máxima integralidade no cuidado de cada profissional, de cada equipe e da rede de serviços de saúde e outros. Uma não é possível sem a outra. O cuidado individual, em qualquer serviço de saúde, não importa sua “complexidade”, está sempre atento à possibilidade e à potencialidade de agregação de outros saberes disponíveis na equipe e de outros saberes e práticas disponíveis em outros serviços, de saúde ou não (Cecílio 2009).

Os profissionais de saúde desempenham importante papel na integralidade do cuidado de crianças e adolescentes em situação de violência. A ação desses profissionais diante da criança/adolescente em situação de violência em todas as fases do atendimento pode representar o rompimento de dinâmicas abusivas; além de ajudar a evidenciar marcas e sequelas que muitas vezes não são encontradas no corpo da vítima, mas que podem comprometer o desenvolvimento da criança ou adolescente (BRASIL, 2014).

No PPI Renato Chaves, a escuta de crianças e adolescentes e família em situação de violência sexual é realizada principalmente pelas assistentes sociais do serviço. As assistentes sociais (principalmente, embora o acolhimento possa ser realizado por outro profissional da equipe do Parápaz, conforme o relatório de atendimento mostrou) realizam o acolhimento da criança/adolescente e família. Logo em seguida, a escuta especializada da criança/ adolescente registrando todas as informações colhidas durante o relato. Posteriormente, essas profissionais (ou outro profissional que realizar o acolhimento e escuta) enviam os registros para a delegacia que atenderá o caso, além do envio aos demais profissionais que atenderão a criança/adolescente internamente ou externamente. Dessa forma, evitam que estes sejam novamente interrogados pelos demais profissionais/serviços (conforme fala da gestora).

Utilizando a análise realizada por Teixeira (2007) sobre o Acolhimento como uma rede de conversações, no cuidado integral, percebe-se que no PPI Renato Chaves ocorre uma escuta ativa da criança/adolescente em situação de violência. A criança/adolescente, por sua vez, possui espaço nesse momento, para falar acerca da experiência que viveu de forma que lhe é dado o suporte emocional necessário – visto pela postura da profissional entrevistada – para que haja a revelação da violência vivenciada. A entrevista mostrou que ocorre reforço positivo durante a abordagem da profissional ao isentar a criança/adolescente de culpa na situação de violência.

Na análise de Teixeira (2007) sobre cuidado integral, o acolhimento ocupa todos os espaços de um serviço de saúde, ou seja, todos os lugares onde haja a interação trabalhador-usuário. Desde a recepção passando por todos os encontros assistenciais que marcam a passagem de um usuário pelo serviço, tendo em vista que nunca se encerra o ato de “investigar, elaborar ou negociar” as necessidades que podem ser satisfeitas pelo serviço. Em cada encontro ocorre o “acolhimento-diálogo”, o qual possui um caráter democrático, coletivo, em que ambos (usuário e profissional) falam e escutam.

 Em sua explanação sobre como realizar o acolhimento-diálogo, na perspectiva de um cuidado integral, Teixeira (2007) afirma que o acolhimento possui um caráter de acolhimento moral da pessoa e de suas demandas (“gesto receptivo”), acompanhado de um diálogo que busca maior conhecimento das necessidades do usuário e dos modos de satisfazê-las (ao que o autor denomina “práticas de conhecimento educativas”).

No discurso de Teixeira (2007) o acolhimento-diálogo desempenha importante papel na dinâmica organizacional, resultando em encaminhamentos, deslocamentos, trânsito do usuário pelo serviço e pela rede assistencial. É, portanto, resultado do que se passa e das decisões tomadas no encontro entre o profissional e o usuário. Encontro que é pautado por disposições morais (“gesto receptivo”) e cognitivas (“práticas educativas”).

No caso do PPI Renato Chaves, as assistentes sociais são as profissionais que primeiro interagem (após a recepção) com os usuários, logo são as principais responsáveis por definir as necessidades da criança/adolescente/ família em situação de violência. Em face disto, pode-se inferir que no encontro entre a profissional entrevistada e a criança/adolescente e familiar identifica-se o “acolhimento-diálogo, já que a assistente social cita em sua fala o acolhimento moral da criança, do adolescente e da família (“gesto receptivo”) e de suas demandas (nesse caso, um sofrimento importante) ao orientá-los e encaminhá-los aos serviços ofertados internamente e externamente ao PPI Renato Chaves. Além de fornecer espaço privado para expressarem sobre o que lhes levou ali, suas necessidades, também lhes é dada a chance de participar do seu próprio cuidado. Isto pode ser visualizado quando a gestora cita que deixa a criança/adolescente à vontade para fazer a revelação ou para realizar ou não o exame pericial naquele momento, em face do estado emocional da criança ou adolescente.

Interdisciplinaridade e Intersetorialidade

O PPI Renato Chaves realiza o encaminhamento sistemático da criança, do adolescente e da família para os serviços da rede intra e intersetorial, enviando relatório da escuta realizada. Estudo sobre os fatores de risco e proteção na rede de atendimento à crianças e adolescentes vítimas de violência sexual (HABIGZANG ET AL, 2006) apontou que a atuação conjunta e a troca de informações entre as instituições através de laudos e relatórios facilitam a atuação dessas instituições.

Para o alcance da integralidade do cuidado em saúde mental, a qual fica seriamente comprometida nos casos de violência sexual, trabalha-se intensiva e obrigatoriamente com a interdisciplinaridade e a intersetorialidade. Para uma experiência ser considerada inovadora, esses dois conceitos devem andar juntos (ALVES, 2009).

 Para atender à Integralidade Saraceno (apud ALVES, 2009) defende ser necessário superar o modelo biomédico e utilizar a premissa da acessibilidade, medida por três indicadores: geografia, turnos de funcionamento e menu de programas. A integralidade está implícita nesses três indicadores, com destaque ao menu de programas.

O menu de programas é constituído pela assistência; reinserção; lazer; hospitalidade e trabalho. A assistência é apenas um dos itens obrigatórios de qualquer abordagem abrangente, cidadã e ética, enfatiza Saraceno (apud ALVES, 2009).

Consideramos componentes indissociáveis da integralidade: a intersetorialidade e a diversificação. Se nos propusemos a lidar com problemas complexos, há que se diversificar ofertas, de maneira integrada, e buscar em outros setores aquilo que a saúde não oferece, pois nem sempre lhe é inerente (ALVES, 2009, pág.175).

A proposta de trabalho do PPI Renato Chaves possui em sua essência a premissa da acessibilidade à rede tendo em vista que articula serviços de saúde, assistência social, justiça, esporte e lazer, como ficou claro em falas da gestora. Esta faz referência aos encaminhamentos de crianças/adolescentes para os serviços da rede intrassetorial e intersetorial.

Para a articulação em rede se fortalecer, é essencial que os distintos atores das organizações envolvidas se integrem para enfrentar problemas concretos e comuns, cuja solução não está ao alcance de um isoladamente (BRASIL, 2014, p.78).

Um problema complexo e multifatorial como a violência que afeta crianças e adolescentes necessita de uma equipe de profissionais integrados em rede, ampliando assim o cuidado e o suporte para a criança/adolescente e familiares (LACERDA; VALLA, 2007).

 De acordo com a Linha de Cuidado (BRASIL, 2014, p.73), para que a integralidade no cuidado a crianças e adolescentes em situação de violência de fato ocorra, o serviço deve dispor de um fluxo interno de atendimento, formas de encaminhamentos, agendamentos de interconsultas, retornos, realização e avaliação de exames complementares, entre outros. Pois dessa forma, atendem-se as necessidades individuais de crianças/adolescentes/família por ações de cuidados, de proteção e prevenção.

 Para o alcance da integralidade do cuidado às crianças e adolescentes em situação de violência sexual, estes possuem o direito de receber cuidados profiláticos e tratamento para a violência sexual, seguindo o que é preconizado pela Norma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes. Essa Norma Técnica descreve esquemas medicamentosos para a prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis Não Virais, HIV/Aids, Hepatite B e Gravidez (BRASIL, 2012).

A linha de cuidado integral (2014) refere que diante de uma situação de violência sexual, a Delegacia é a responsável em emitir boletim de ocorrência e solicitar a perícia sexológica, a fim de reunir provas materiais e apresentar ao sistema de justiça que procederá à prisão do autor da violência e consequente interrupção daquele ciclo de violência. Para que isto ocorra de forma célere, o serviço que acolheu a criança/adolescente deve encaminhá-los à Delegacia Especializada no Atendimento a Criança e ao Adolescente (DEACA).

Para a integralidade do cuidado, é fundamental que o serviço de saúde encaminhe ao Conselho Tutelar (CT) a criança/adolescente em situação de violência sexual. Este órgão é responsável por fazer cumprir os direitos da criança e do adolescente, já que possui importante interlocução com as autoridades judiciárias. São atribuições do CT: requisitar serviços públicos nas áreas do serviço social, previdência, trabalho e emprego (BRASIL, 2014).

O CREAS, por sua vez, faz parte dos serviços não-gerenciados pelo setor saúde, mas que possuem profissionais capacitados para atender as necessidades de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violência sexual, como psicólogos, assistentes sociais, advogados, entre outros (BRASIL, 2014)

Sobre a articulação de serviços para a integralidade do cuidado, Ayres (2009, p. 13) declara “a multiprofissionalidade, a interdisciplinaridade e a intersetorialidade são aspectos esperados dos processos de trabalho em saúde orientados à integralidade”.

É consenso que o menor de idade agente de violência também deva ser cuidado por profissionais em serviços específicos, pela possibilidade de distúrbios psiquiátricos ou psicológicos associados a tal comportamento (BRASIL, 2014). O que é de grande relevância para a proteção da criança ou do adolescente agente da violência e para a prevenção desta violência contra outras crianças e adolescentes.

Uma intervenção voltada para a saúde mental dos agressores, de forma a permitir a ressignificação de suas histórias de vida, é importante para uma política de prevenção da violência sexual de crianças e adolescentes. Se os agentes de práticas agressivas estão excluídos dessas políticas, enfatiza-se apenas uma política de reparação (COSTA et al., 2018). Vale, ainda, ressaltar que as penas no Brasil são progressivas (redução da pena inicial), sendo os autores de violência muitas vezes recorrentes no crime, quando libertos pela justiça.

A intervenção terapêutica com agressores sexuais, usando o recurso psicodramático (quando aqueles reconhecem o próprio sofrimento por também terem sofrido violência sexual na infância) mostra resultados efetivos na proteção e prevenção à violência sexual contra crianças e adolescentes (WOLFF et al., 2016).

A Lei Nº 13.431, de 04 de abril de 2017, alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) ao instituir a escuta especializada nos serviços que prestam cuidado (saúde, educação, assistência social) a crianças e adolescentes em situação de violência sexual (BRASIL, 2017). Esta Lei busca proteger meninas e meninos, evitando que sofram revitimização ao longo do percurso de atendimentos.

A metodologia de trabalho do PPI Renato Chaves consiste em reunir no mesmo espaço atendimentos em saúde e segurança, a fim de evitar a revitimização de crianças e adolescentes em situação de violência sexual. A revitimização ocorre quando a criança/adolescente narra por várias vezes a violência sofrida. Isso acontece quando precisam se deslocar para diferentes serviços a fim de realizarem boletim de ocorrência, perícia médica, atendimentos em saúde.

Vale ressaltar que bem antes de a escuta especializada ser estabelecida por Lei no Brasil, esta prática já existia nos núcleos Parápaz Integrado desde a sua criação, em 2004. A metodologia de trabalho com foco em atender sem revitimizar, aplicada pelos Parápaz Integrados desde a sua criação, recebeu reconhecimento nacional e internacional. O Ministério da Saúde brasileiro e a World Childhood Foundation (ONG sueca que promove a defesa dos direitos da infância no mundo) reconheceram o Parápaz como modelo na prestação de cuidado integral a crianças e adolescentes em situação de violência sexual (PARÁ, 2017). 

No PPI Renato Chaves, a perícia médica é realizada em sala reservada no prédio do Parápaz (que é separado do prédio do IML), não havendo encontro das crianças e adolescentes com usuários adultos. A médica perita, embora vinculada ao Instituto Médico Legal, atende exclusivamente a clientela infanto-juvenil do Parápaz.

Desde sua criação no ano de 2011, o Parápaz Renato Chaves funcionava conjugado a uma delegacia especializada no atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual. No entanto, em 2020 a delegacia precisou ser deslocada para outro local, pois apresentou problemas estruturais que comprometiam a segurança de funcionários e usuários no tocante ao risco de contágio pela covid-19.

O Parápaz Integrado Renato Chaves realizou atendimentos para além de sua área de abrangência no município de Belém no período de março/2020 a março/2021. Chama a atenção para o fato de que foram atendidas crianças e adolescentes provenientes de outros municípios do Pará. Esse fato aponta para a necessidade de serem criados polos do Parápaz Integrado nesses locais, evitando com isso o deslocamento e a revitimização das crianças e adolescentes provenientes desses locais. Mostra ainda que pode estar havendo uma demanda reprimida de casos de violência sexual nos municípios que não possuem serviços estruturados para o cuidado integral dos casos de violência sexual em crianças e adolescentes.

O Hospital Santa Casa de Misericórdia do Pará é o único serviço de saúde para encaminhamento de crianças e adolescentes em situação de violência sexual na esfera estadual. Atende demandas da capital e do interior. É também a referência para consultas de pediatria.  Ainda não há, na capital, outro hospital com esse perfil nas esferas federal e municipal. Isto chama a atenção para outra questão, o fato de não haver estudos publicados sobre serviços dessa natureza na rede de saúde privada de Belém.

Ressalta-se, ainda, que o referido hospital se localiza em bairro distante de onde o PPI Renato Chaves está localizado, o que pode desestimular a continuidade do tratamento. Sem falar que muitas dessas famílias enfrentam dificuldades financeiras para prover transporte e alimentação para chegarem ao hospital e aguardar atendimento.

Na análise de Saraceno (apud ALVES, 2009, pág.174) um programa ou projeto de saúde mental precisa trabalhar com a “premissa da Acessibilidade, por sua vez dividida em: geografia (local, fluxo viário, barreiras físicas, entre outras); turnos de funcionamento (serviço único ou integrado); menu de programas (assistência, reinserção, lazer, hospitalidade; trabalho)”. A assistência consiste em apenas um dos itens obrigatórios de qualquer proposta abrangente, cidadã e ética. Ou seja, qualquer proposta comprometida com o cuidado integral (ALVES, 2009).

Para Alves (2009) a intersetorialidade e a diversificação são componentes indissociáveis da integralidade. Ao lidar com problemas complexos (como é o caso da violência sexual contra crianças e adolescentes), deve-se diversificar ofertas, de maneira integrada, buscando em outros setores aquilo que a saúde não oferece, posto que nem sempre lhe é inerente.

Reforçando a importância das redes para a integralidade do cuidado, Lacerda e Valla (2007) afirmam que uma equipe de profissionais integrados em rede amplia o cuidado e o suporte para pacientes e familiares em situações complexas de saúde.

A violência sexual contra crianças e adolescentes constitui uma questão complexa e muitas vezes de longa duração, tendo em vista que os perpetradores da violência são, na maioria das vezes, pessoas próximas ou da família e a denúncia leva ao rompimento de vínculos e mudança brusca na rotina da criança/adolescente.

Estudo que observou a função do esporte e lazer na promoção da saúde mental de adolescentes em situação de vulnerabilidade social mostrou que a prática dessas atividades influencia na qualidade de vida dos adolescentes, através da promoção de estímulos psicomotores, sensoriais, cognitivos e de interação social. Já seus familiares receberam orientações, e constatou-se que estes puderam refletir e experimentar práticas de vida mais saudáveis, as quais repercutirão nos filhos (NÓBREGA ET AL, 2020).

CONSIDERAÇÕES

Pelo exposto, a pesquisa documental, o relato dos profissionais e a fala da gestora mostraram que o serviço estudado articula o cuidado integral quando a assistente social realiza o acolhimento da criança/adolescente e familiar; procede à escuta atenta, aos encaminhamentos internos e aos encaminhamentos externos, inclusive enviando a esses serviços o relatório pormenorizado da escuta realizada.

A abordagem de crianças e adolescentes em situação de violência sexual por uma equipe multiprofissional mostra que a metodologia do serviço estudado está em consonância com a complexidade dos casos recebidos, os quais envolvem questões de saúde, segurança, justiça e assistência social. Ou seja, o tema possui caráter interdisciplinar por natureza, portanto requer condutas de variados profissionais em sua abordagem, e isto verificou-se no serviço, embora não tenha se observado um momento para estudo dos casos em grupo, mas apenas de forma individual.

Embora no serviço haja desafios a serem superados, o PPI Renato Chaves se mostrou inovador em sua metodologia de trabalho, buscando integrar serviços de saúde, segurança e assistência social para a integralidade do cuidado de crianças e adolescentes em situação de violência sexual. Sendo este, inclusive, um dos poucos serviços nesses moldes no Brasil e no mundo.

O estudo foi capaz de retratar a experiência do Parápaz Renato Chaves no cuidado integral a crianças e adolescentes em situação de violência sexual, reunindo no mesmo espaço serviços de saúde, segurança, justiça e proteção social. Além de contribuir para a alteração do cenário de escassez de pesquisas sobre a integralidade do cuidado na violência sexual infanto-juvenil, no Pará e no Brasil.

Como limitação deste estudo, citamos a não participação das famílias das crianças/adolescentes, sendo de suma importância conhecer as representações sociais daquelas. Bem como a participação dos profissionais que compõem a rede de serviços que recebem a criança/ adolescente e familiar encaminhados pelo serviço estudado.

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1Graduação e Licenciatura em Enfermagem pela Universidade Federal do Pará. Aluna do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva na Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Enfermeira da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) lotada no Complexo Hospitalar UFPA-EBSERH.

2Universidade Federal do Pará